Escalando o Time – Quer Dizer, As Forças Armadas

Escalando o Time – Quer Dizer, As Forças Armadas

Uma imagem. Vivemos uma civilização da imagem. Do jeito que o mundo TeVe. Mundo refratado na infinitude de imagens. Fragmentos de imagens da política em frangalhos.

Enquanto o presidente eleito, logo após os resultados de segundo turno, muito soberbo e orgulhoso, ia escolhendo, convidando e definindo os seus primeiros e mais poderosos e autoritários aliados no poder – composição e constituição do comitê executivo, rigorosamente e autenticamente de acordo com os interesses dos blocos dominantes do capital nacional e do capital estrangeiro, com ordens e rezas de pastores do bloco evangélico – nas horas vagas de folga, o eleito ia até o alfaiate para tirar medida do terno (fatiota, no linguajar do gaúcho) para a sessão solene de posse de presidente do Brasil. Ia, também, ao cabeleireiro para cortar e ajeitar o topete de fios esticadinhos, retinhos, alisados da frente para trás e para os lados, bem à moda e estilo de militar superior reformado. Andava indisciplinadamente orgulhoso à vontade, sem pudor, vestido de militar em dias de folga: camiseta amarela popular sem grife por fora da bermuda branca e de chinelos nos pés. Numa postura muito perseverante aos seus rebaixados  propósitos, queria impressionar e conquistar a adesão dos aliados (e das multidões de alienados) pela simplicidade no  pentear, no vestir e no andar. Se a simplicidade é autêntica ou não, isso não vem ao caso. O presidente eleito, fiel à disciplina hierárquica quartelesca, permanece sempre serio de rosto sisudo em posição de ataque e defesa. O presidente eleito não é ridente. Continua fiel à disciplina da ordem e obediência. E não faz rir. Aliás, um momento: só ri – sorri – para as câmeras e faz rir só pelos enunciados disparatados e ridículos de assuntos que não conhece e não entende minimamente. Primeiro fala e diz. Depois desdiz. Sem passar vergonha.

Dias depois, o presidente eleito aparecia diante das câmeras de camisa social creme e manga comprida. Um pouco mais jovem, de aparência.

Já nos últimos dias, o presidente eleito aparece em postura mais elegante  e formal, vestido de terno e gravata, anunciando nomes de seus ministros, autenticamente aliados e fiéis às propostas de programa de governo de um autêntico desentendido. Fala de economia sem bases conceituais, estruturais, sociais, científicas…; fala de educação sem educação. Convida um professor de sangue não brasileiro, um encefaloide para ocupar o ministério da educação. Este cidadão geneticamente não brasileiro vai instituir e implantar uma educação alienada ao capital e alienante das brasileiras e dos brasileiros pobres; uma educação fetichizada e fantasmagorizada de neutralidade ideológica pura e imaculada; acima de tudo e acima de todos, vai implantar “a escola sem partidos”, por ordem do quartel e de bispos e pastores evangélicos. Estes, os pastores, entendem tudo tim-tim por tim-tim de arrecadação de dinheiro dos seus fiéis. Sempre em nome do Senhor. E agora, os pastores impõe o ministro da educação.

Ora, senhor presidente eleito e senhor ministro da educação, quem proclama, prega e impõe a neutralidade ideológica confirma o seu lugar na escala da direita mais alta escrotal e conservadora da sociedade de classes sociais. Isso é perversamente ideológico. Os senhores, presidente eleito e ministros, precisam saber  com urgência que ainda não existiu ao longo da história dos homens – e continua não existindo e não irá existir – uma sociedade democrática sem partidos políticos. Os partidos políticos são o cérebro e o sangue da sociedade democrática. E quando contaminados, infestados por germes, corrompidos por células cancerígenas, precisam ser higienizados e medicados com procedimentos científicos precisos e eficazes. E acima de tudo, com uma educação de formação humana.

Lembrem-se, numa sociedade democrática contemporânea, desde uma democracia do seu nível mais baixo e elementar até o seu nível mais elevado e substantivo, os partidos políticos são o elemento vital imprescindível, sem os quais não há e não haverá uma sociedade democrática. Quer dizer, não haverá uma sociedade democrática sem um governo democrático. Na ciência política, nada mais verdadeiro e ético do que o dito e escrito de Antônio Gramsci sobre o partido político: o “Príncipe Moderno”.

Assim, senhor presidente eleito e seus preclaros ministros, a escola é o espaço social pedagógico mais importante e rico para as vidas e as existências dos alunos, desde quando criancinhas, adolescentes, jovens e adultos. A escola é o espaço, o lugar, o tempo mais apropriados e preparados cientificamente para formação dos sujeitos, das pessoas, dos cidadãos na infinitude de suas relações, na alteridade, na amorosidade, no diálogo, na liberdade, com seus sentimentos e inteligências irrigados pela imaginação.

E por fim, senhores, um pedido sincero e autêntico: por gentileza e pela energia dos mais elevados princípios da ética, da liberdade, da justiça, da solidariedade, não queiram implantar e impor  o velho e desastroso princípio pedagógico do “vigiar e punir”. Está mais que provado e comprovado que quanto mais mecanismos – forças armadas, armas, instrumentos materiais e eletrônicos da mais elevada tecnologia, policiais, guardas, vigias, fóruns da justiça superequipados, câmeras nas escolas, nas ruas, nos bancos, etc. etc. – mais criminosos e crimes horríveis acontecem e irão acontecer.

No lugar do princípio pedagógico do “vigiar e punir” precisamos fundar, instituir e vivenciar o princípio pedagógico da “autoresponsabilidade”, a formação da “autoconsciência” desde o berço das crianças até o último instante de vida dos idosos. O cérebro de cada uma e de cada um, de todas e de todos, é a câmera, a luz, a consciência, a inteligência na formação da autoconsciência individual e coletiva.

Ah! por gentileza, não digam que isso não é possível.

Sim, senhor presidente eleito, ministro da justiça, ministro da educação, ministro astronauta da ciência e tecnologia, por gentileza, por autêntica gentileza, não queiram impedir uma educação livre, multíplice, visível, consistente e consciente, uma educação critica de elevada qualidade para todas as crianças, todos os adolescentes e jovens do nosso – de todos –  querido e amado Brasil.

Fux: sem aumento, não tem despacho. Fica o auxílio-moradia

Fux: sem aumento, não tem despacho. Fica o auxílio-moradia

Fux: sem aumento, não tem despacho. Fica o auxílio-moradia

Em qualquer parte do mundo se um juiz da suprema corte condiciona seu despacho em qualquer processo à sanção presidencial do aumento de seus salários, haveria um escândalo de grandes proporções.

Aqui, passa em branco! O ministro Fux, o mesmo que concedeu, de livre e espontâneo cambalacho para sua filha virar desembargadora, o auxílio-moradia para todos os juízes do país, agora avisa que somente suspenderá sua liminar se o presidente da República sancionar a lei do aumento de 16,38% nos seus salários. Como Temer sancionou hoje, vejamos se terá coragem de despachar contra o auxílio-moradia.

Claro, a Associação dos Magistrados do Brasil, a poderosa AMB, já entrou no processo, com a petição de que o senhor ministro não suspenda os efeitos da liminar, e que no processo encaminhe a plenário (quando quiser – que poderá ser nunca) parecer favorável a manutenção do auxílio-moradia que escandaliza a sociedade brasileira. Dizem os magistrados que aumento salarial é uma coisa, auxílio-moradia é outra. Que o ministro não misture alhos com bugalhos.

Depois que os interesses mais mesquinhos se tornaram a tônica do judiciário brasileiro, como concessões e com perseguições a torto e a direito, com tribunais decretando de forma jurisdicional o direito a excepcionalidades para os juízes singulares, tudo o que vigora nada tem mais a ver com a lei: a lei quem a faz é o judiciário, não só por suas interpretações… Aliás, o decano já disse: a Constituição é o que o STF quer que seja!

A esta proposta de barganha do ministro Fux – acabo com o auxílio-moradia em troca do aumento salarial – só conheço outros dois julgamentos: 1) a decisão judicial a propósito do teto salarial dos servidores públicos do estado de São Paulo: a sentença final é taxativa – o teto equivalente ao subsídio do governador é válido para todos os servidores do estado, incluindo neste teto qualquer comissão, gratificação ou o que seja, MENOS para os juízes, desembargadores, procuradores e delegados de polícia! Isto que é julgar em causa própria! 2) a Assembleia Legislativa aprovou um Projeto de Emenda à Constituição do Estado de São Paulo, dentro das regras de tramitação de propostas de emendas constitucionais. Mudou o teto dos salários dos servidores, tornando-o igual aos demais estados da nação. Pois o Tribunal de Justiça de São Paulo não gostou que a Assembleia queira legislar, função que agora compete exclusivamente ao judiciário, e suspendeu a aplicação da PEC tornada emenda já promulgada. A isto se chama “ativismo judiciário”: faz a lei e julga segundo a sua interpretação da lei.

Realmente, penso que não somos mais um país do mundo… estamos viajando céleres para uma nação dos reinos diabólicos das profundas dos infernos. E isso que o governo fascista nem começou, que Sérgio Moro ainda não é o xerife geral da perseguição nem o Posto Ipiranga começou a entregar aos outros países o que aqui ainda funciona. Lembrem: o BB deu lucro de 3,2 bi num trimestre… será vendido por 1 bi e a imprensa baterá palmas… porque isso é o Brasil das elites em que estão no comando sujeitos como o ministro Fux, par lídimo do ministro Barroso, todos os dois sob as asas das ministras tia Carmen e da colegial Rosa.

Leiamos Lucas, XI, 45-52

Então, respondendo um intérprete da Lei, disse a Jesus: Mestre, dizendo estas coisas também nos ofende a nós outros!

Mas ele respondeu: Ai de vós também, intérpretes da Lei! Porque sobrecarregais os homens com fardos superiores às suas forças, mas vós mesmos nem com um dedo os tocais.

Ai de vós! Porque edificais os túmulos dos profetas que vossos pais assassinaram.

Assim, sois testemunhas e aprovais com cumplicidade as obras dos vossos pais; porque eles mataram os profetas, e vós lhes edificais os túmulos.

Por isso, também disse a sabedoria de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns deles matarão e a outros perseguirão,

para que desta geração se peçam contas do sangue dos profetas, derramado desde a fundação do mundo;

desde o sangue de Abel até ao de Zacarias, que foi assassinado entre o altar e a casa de Deus. Sim, eu vos afirmo, contas serão pedidas a esta geração.

Ai de vós, intérpretes da Lei! Porque tomastes a chave da ciência; contudo, vós mesmos não entrastes e impedistes os que estavam entrando.

Treinamento pré-militar

Treinamento pré-militar

Neste sábado, na praça em frente a meu apartamento, vejo um grupo de crianças e adolescentes vestidos totalmente de preto, com boina vermelha, portanto uma bandeira brasileira, uma bandeira preta e uma bandeira vermelha. Curioso, fui à praça. Para conversar com algum deles.

Consegui uma rápida conversa com um menino que cursa o fundamental. Disse-me que era uma escola – FOPE – cuja tradução é “força pré-militar”. O menino me disse que eles se preparam, na escola, para fazerem concurso para as escolas preparatórias de oficiais das Forças Armadas (que incluem Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia e Bombeiros).

Ganhei um folheto que me garantia um presente: “Você ganhou um dia de treinamento pré-militar”, mas o treinamento é para “rapazes e moças 8 a 17 anos”. A sede nacional da FOPE é em Campinas, na Av. Senador Saraiva, no centro da cidade. Tentei obter mais detalhes, mas o menino foi chamado para formar fila indiana, dois a dois, sob os gritos dos mais velhos, não sem palavrões (provavelmente os alunos do ensino médio).

Mas os garotos não conseguiram impor ordem “unida” aos mais novos. Então apareceu o adulto, com apito: apitou, gritou e todos foram ao chão e fizeram 10 flexões. Depois levantaram, ouviram outro grito que os xingava por não serem obedientes às ordens dos mais velhos, e gritaram em uníssono: “Sim, Senhor!”.

E então a fila andou, a galope, gritando como fazem os militares: alguém faz um solo, os outros repetem. Num canto pouco compreensível.

Restou-me tentar alguma informação na internet. Encontrei a página da FOPE (https://www.fope.com.br/). Embora não tenha encontrado data de fundação da escola preparatória, percebo que se trata de escolas vinculadas a um sistema mais amplo de preparação para a carreira militar. Na página aparecem todas as escolas militares do país; aparece também link para outra escola FOPE em Bauru.

Nunca tinha visto estas crianças e adolescentes no centro da cidade, fora dos muros de sua escola preparatória. E sua saída para a praça certamente tem um sentido: propaganda da escola. No folheto que recebi, há um formulário a ser preenchido pelo adulto responsável pelo aluno que fará o treinamento gratuito… e nele se autoriza “que as imagens captadas sejam utilizadas pela FOPE e seus parceiros”.

Menos mal: ainda não é a juventude nazi-fascista em treinamento e manifestação!!! Mas as cores do uniforme, as bandeiras, o uso das boinas: tudo está nos conformes. As sementes e a publicização dos treinamentos seguem o mesmo percurso do passado.

Ciranda dos encantados, de Aníbal Beça

Ciranda dos encantados, de Aníbal Beça

Curupira correu na floresta,

currupião bateu asas e voou.

 

Moça bonita

despontou na ribanceira

como flor d elaranjeira

e o boto se encantou.

 

curupira cantou na floresta,

currupião bateu asas e voou.

 

Na nossa vida

passa o rio passa a canoa,

venta o vento lá na proa,

pescador tarrafeou.

 

Curupira assustou a foresta,

currupião bateu asas e voou.

 

Eu já rezei

nove dias nove mágoas,

fiz novena paara Mãe D’Água,

curupira se espantou.

 

Curupira fugiu da foresta,

currupião bateu asas e voltou.

A linguagem nos processos sociais de constituição da subjetividade

A linguagem nos processos sociais de constituição da subjetividade

  … devemos compreender que estamos neste pequeno planeta, casa comum, perdidos no cosmos e que, efetivamente, temos uma missão que é civilizar as relaçõesshumanas nesta Terra. As religiões da salvação, as políticas da salvação diziam: sejamos irmãos porque seremos salvos. Creio que hoje seria necessário dizermos: sejamos irmãos porque estamos perdidos, perdidos num pequeno planeta dos arredores de um sol suburbano de uma galáxia periférica de um mundo privado de centro. Estamos aí, mas temos as plantas, os pássaros, as flores, temos a diversidade da vida, temos as possibilidades do espírito humano. Está aí, doravante, o nosso único fundamento e o nosso único recurso possível. (Edgar Morin. Amor, Poesia, Sabedoria, p. 44)

 

A linguagem, enquanto processo de constituição da subjetividade, marca as trajetórias individuais de sujeitos que se fazem sociais também pela língua que compartilham. A exploração das contrapalavras das compreensões diferentes permite o cálculo de horizontes de possibilidades e a construção, através da memória do futuro, de lugares desterritorializados a partir dos quais podem ser mobilizados desejos e ações que, respeitando diferenças, não as transformando  em desigualdades.

O objetivo deste trabalho é correr o risco de trazer para a reflexão sobre a cidadania um conjunto de conceitos formulados nos contextos de reflexão sobre a atividade constitutiva da linguagem. Mais especificamente ainda, o diálogo que pretendo estabelecer toma como fonte privilegiada, polifonicamente mediada por contrapalavras procedentes de outros lugares, o pensamento de Bakhtin tal como formulado no seu estudo sobre as relações entre “autor e herói”.

Sem dúvida alguma, os riscos maiores desta aproximação dizem respeito à noção de sujeito que resulta [ou se constrói a partir] da concepção de linguagem como atividade constitutiva, já que o exercício da cidadania frequentemente pressupõe um sujeito racional, crítico e consciente, tal como concebido pelo pensamento humanista (e cartesiano?). Uma crítica a tal concepção, certamente sem ainda ter conseguido ultrapassar o pensamento humanista, não implica a recusa à construção de formas de convívio capazes de “compreender que os seres humanos são instáveis, nos quais existe a possibilidade do melhor e do pior, alguns tendo melhores possibilidades que outros; devemos compreender, também, que os seres têm múltiplas personalidades potenciais e que tudo depende dos acontecimentos, dos acidentes que lhes sucedem e que podem liberar algumas delas” (Morin, 1997:64).

Esboçados os riscos, o [irrealizável] desejo seria o de construí rum lugar capaz de escapar aos questionamentos recentes à “pedagogia crítica”, para nela permanecer, contribuindo com alguns elementos de construção de uma concepção de sujeito que não aceite qualquer essencialidade intocável, qualquer “alma governante”, qualquer princípio ou origem a não ser sua constante mobilidade e mutabilidade.

  1. Movendo-se entre o mundo ético e o mundo estético

Debruçado sobre a relação entre o autor e o herói, Bakhtin move-se entre os mundos ético e estético e elabora um conjunto de categorias com que os aproxima, diferenciando-os. Na arquitetura do pensamento bakhtiniano, a relação com a alteridade é fundamental e é a partir desta relação, em que o herói é o outro do autor, o autor é o outro do herói, que o pensador russo estatui o princípio básico que diferencia a relação estética da relação ética:

um autor modifica todas as particularidades de um herói, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo que, na vida, reagimos com um juízo de valor a todas as manifestações daqueles que nos rodeiam: na vida, todavia, nossas reações são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem, e mesmo quando o determinamos enquanto todo, definindo-o como bom, mau, egoísta, etc., expressamos unicamente a posição que adotamos a respeito dele na prática cotidiana, e esse juízo o determina menos do que traduz o que esperamos dele. (Bakhtin, 1992:25)

É esta reação ao todo, segundo o autor, específica da reação estética, porque baseada na suposição de acabamento do objeto – herói ou obra – que fundamentará a diferença entre os dois mundos postos em paralelo neste seu estudo. A posição produtiva e criativa do autor é que lhe permite o olhar para o todo da obra, o olhar para cada herói como um sujeito acabado, produzido, com tempo de existência delimitado pela estrutura da obra(2). A energia criadora estabiliza-se no produto cultural significante que é a obra (3).

Derivam deste princípio os conceitos formulados por Bakhtin com os quais distingue os mundos ético e estético. Extraio desta reflexão aqueles conceitos que me parecem mais úteis para desenhar uma concepção de linguagem como atividade constitutiva da subjetividade.

Quando se admite que um sujeito se constitui, o que se admite junto com isso? Que energia põe em movimento este processo? Com que “instrumentos” ou “mediações” trabalha este processo? Obviamente, este conjunto de questões, a que outras podem ser somadas, põe em foco o fenômeno humano e sua compreensão. Habituados à higiene da racionalidade, ao inescapável método de pensar as partes para nos aproximarmos de respostas provisórias, temos caminhado e definido as partes, os recortes, as passagens a partir da suposição de que o todo será um dia compreendido e, pior ainda, de que este todo tem uma existência real (4).

Nascidos nos universos de discursos que nos precederam, internalizamos dos discursos de que participamos expressões/compreensões pré-construídas, num processo contínuo de tornar intraindividual o que é interindividual. Mas a cada nova expressão/compreensão pré-construída fazemos corresponder nossas contrapalavras, articulando e rearticulando dialogicamente o que agora se apreende com as mediações próprias do que antes já fora aprendido. Como ensina Bakhtin  (op.cit. p. 385):

As influências extratextuais têm uma importância muito especial nas primeiras etapas do desenvolvimento do homem. Estas influências estão revestidas de palavras (ou outros signos), e estas palavras pertencem a outras pessoas; antes de mais nada, trata-se das palavras da mãe. Depois, estas “palavras alheias” se reelaboram dialogicamente em “palavras próprias-alheias” com a ajuda de outras palavras alheias (escutadas anteriormente) e logo se tornam palavras próprias (com a perda das aspas, falando metaforicamente) que já possuem um caráter criativo.

Está na incompletude a energia geradora da busca da completude eternamente inconclusa. E como incompletude e inconclusão andam juntas, as mediações sígnicas, ou as linguagens, construídas neste trabalho contínuo de constituição não podem ser compreendidas como um sistema fechado e acabado de signos para sempre disponíveis, prontos e reconhecíveis. A linguagem, enquanto atividade, implica que até mesmo as línguas (no sentido sociolinguístico do termo) não estão de antemão prontas, dadas como um sistema de que o sujeito se apropria para usá-las segundo suas necessidades. Sua indeterminação não resulta apenas de sua dependência dos diferentes contextos de produção ou recepção. Enquanto “instrumentos” próprios construídos neste processo contínuo de interlocução com o outro, carregam consigo as precariedades do singular, do irrepetível, do insolúvel, mostrando sua vocação estrutural para a mudança.

Na síntese de Kramer (1994:107), “a linguagem […] regula a atividade psíquica, constituindo a consciência, porque é expressão de signos que encarnam o sentido como elemento da cultura. Sentido que exprime a e experiência vivida nas relações sociais, entendidas estas como espaço de imposições, confrontos, desejos, paixões, retorno, imaginação e construções”. Se é neste movimento que se constitui a consciência, também esta não pode ser considerada senão em sua constante mutação.

Elege-se, portanto, o fluxo do movimento como território. Lugar de passagem e na passagem a interação do homem com os outros homens no desafio de construir compreensões do mundo vivido. Das histórias contidas e não contadas. Dos interesses contraditórios, das incoerências. De um presente que, em se fazendo, nos escapa porque sua materialidade inefável contém no aqui e agora as memórias do passado e os horizontes de possibilidades calculados com base numa memória de futuro.

Do ponto de vista bakhtiniano, no mundo da vida “calculamos” a todo instante, com base na memória do futuro desejado, as possibilidades de ação no presente.

A singularidade de cada sujeito coloca, portanto, a questão das relações com os outros e com a organização social, espaço em que nos inserimos instáveis e “divididos entre o egoísmo e o altruísmo” (Morin, 1996:55). Este o espaço em que exercemos o que convencionalmente temos chamado de cidadania. E como é na “cidade”, lugar do convívio conflituoso com o outro, que se processa a educação, sobre suas práticas, formulemos algumas perguntas.

  1. Entre a transmissão do conhecido e a atenção ao acontecimento

É a partir da perspectiva da instabilidade – dos sujeitos, da história, da natureza – que os processos educacionais podem ser revisitados. Parece ser um pressuposto indiscutível que a educação tem por objetivo transmitir às novas gerações o conjunto das experiências do passado da humanidade, sistematizado na forma de valores, saberes e conhecimentos. Neste sentido, a atividade pedagógica teria uma característica aparentemente paradoxal: enquanto prática social, ela somente existe porque a sociedade atual projeta uma sociedade futura, mas ao mesmo tempo o projeto que a sustenta tem seus fundamentos no passado. Em outras palavras, é a sociedade atual que imagina um futuro e com base nesta “memória do futuro” seleciona do passado os valores, saberes e conhecimentos que quer ver realizados.

O processo educativo coloca, portanto, três grandes questões a que em geral não damos muita atenção: 1. Qual a sociedade futura que desejamos? 2. Quais experiências do passado são suficientemente significativas para instrumentar a construção dessa sociedade futura? 3. Quem, na sociedade contemporânea, responde às perguntas anteriores e define as formas de implementar o projeto que elabora?

Certamente estas perguntas não são novas e com maiores ou menores certezas, com maiores ou menores dúvidas, abraçando ou não a ortodoxia que a história escolar e, mais especificamente, a história da disciplina em que atuamos acabam impondo como conteúdos verdadeiros e necessários, acostumamo-nos a trabalhar no presente com olhos na construção do futuro.

A organização social rotiniza os acontecimentos, fazendo com que neles não vejamos o singular, mas a repetição do mesmo, de modo que a cada momento vamos deixando de calcular os horizontes de possibilidades – os inéditos viáveis. Para a estabilização da história, é necessário não refletir sobre a nossa própria prática. É necessário que sequer nos perguntemos se o que nos foi ensinado no passado estamos ocupando hoje para viver a sociedade que construímos no presente.

Certamente, não se trata de imaginar que nós, professores, somos culpados pela repetição ou que não nos apercebamos de muitos dos assuntos estudados somente nos servem hoje para repeti-los a nossos cansados alunos, como também nós fomos cansados alunos que também nos perguntávamos “para que aprender isso?”. Sem resposta para a pergunta esquecida no passado, nas dúvidas de hoje, para não prejudicar o aluno, acabamos ensinando um conjunto de conhecimentos que a tradição da disciplina listou como necessários para construir o futuro sonhado pelo passado. Passado e sonho de futuro que, certamente, não nos pertencem.

A sociedade em que vivemos hoje, construída com base no conjunto de valores, sabres e conhecimentos que nos foram transmitidos, é cada vez mais excludente. Globaliza para excluir. E sendo excludente, cada vez é menor o número de sujeitos considerados competentes para responder nossas três questões: quem define o que do passado será projetado no futuro são aqueles que se beneficiam com a exclusão e, certamente, os professores não estão entre eles.

Compreender este processo de seleções e exclusões é um interessante programa de estudos. De imediato, e a partir dos estudos da linguagem, certamente os caminhos de compreensão passam pelas questões da diversidade linguística e da subordinação da oralidade à escrita.

  1. A cidade das exclusões

A conquista humana do domínio da técnica da escrita alarga incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas possibilidades interativas, e por isso mesmo da constituição de nossas consciências. Uma tal “tecnologia”, a duras penas construída, não poderia deixar de ser objeto de desejo e instrumento de dominação. É necessário fixar uma ordem à desordem resultante do alargamento possível. A leitura pressupõe uma escritura. E a escritura erigiu-se historicamente como o espaço da ordem e do limite dos sentidos. Tal uso da técnica da escrita pretendeu estancar a fluidez da palavra; entorpecer-lhe os poderes; impedir toda futura desordem pela fixação dos significantes e seus significados: definir, orientar e projetar as realizações humanas, enfim reger a mutante vida dos homens e de seus signos.

Ao labirinto das produções fluidas da oralidade, com suas diversidades, sobrepôs-se, com a escrita, o esforço de decifração da ordem, da construção do imutável. E antes mesmo que a escrita se tornasse tecnicamente acessível àqueles que habitam as periferias das cidades e do poder, a escritura construiria uma cidade letrada, “o anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais” (Rama, 1985:43).

Como realizar semelhante proeza, se a escrita trabalha com a linguagem, objeto essencialmente mutável, sujeito às precariedades singulares dos acontecimentos interativos? Como fixar e tornar inalterável o que, na imagem de Wittgenstein (1975:19) pode ser considerado “como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes”?

A sociedade só pôde ser assim construída, sob o império de uma separação radical,  a partir de uma estrutura de exclusão. Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável para o não convidado. E de dentro destes muros, uma função outra agrega-se à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão, regrar os processos de negociações de sentidos e orientar, através de suas mensagens uníssonas e uniformes, os bons caminhos  a serem trilhados.

Apoderar-se da letra, e da escolaridade que ela demanda, resulta de uma sábia decisão popular porque os excluídos cedo perceberam sua significação e relevância. Mas na escola que temos e no estágio atual da estrutura da sociedade, ainda é possível apostar em políticas de construção do novo com base no instável, local, mutável e único, elegendo os acontecimentos como alavancas da reflexão sobre o múltiplo?

Certamente uma resposta a esta pergunta remete ao exercício da cidadania, espaço onde “o eu, o tu e o ele” podemos calcular nossos horizontes de possibilidades, defendendo, ainda que conflituosamente, a sociedade que nossa memória do futuro projetou, para que os excedentes de visão no futuro se tornem o motivo da busca do diálogo constitutivo de sujeitos únicos e livres, e não mais o lugar da construção de uma separação radical entre os homens.

Notas

  • Este texto foi escrito para minha participação em mesa-redonda no VII Semináro Internacioanl de Reestruturação Curricular – Utopia e Democracia. Os inéditos viáveis na educação cidadã, promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegra (03 a 08 de julho de 2000), posteriormente publicado em A paixão de aprender, vol. 13, uma revista da própria secretaria. Para além do fato de ter compartilhado a mesa-redonda com Flávio Aguiar, o que já é uma honra, este texto me levou a outras experiências a que jamais imaginaria chegar: ter a experiência de dar aulas no exterior. O Seminário tinha duas edições, de três dias cada uma delas. Na segunda edição, repetiam-se as mesmas palestras e mesas-redondas. Na primeira exposição, que foi numa segunda-feira à tarde, recebo do público uma pergunta formulada a viva voz pela depois amiga, então desconhecida, Maria Benites. Na pergunta, ela articulava o que havia dito com algum filósofo que eu desconhecia. E fui sincero na resposta, diante de mais de 4 mil participantes. Respondi: “Não sei!” A Maria gostou da minha apresentação e da minha resposta. No dia seguinte, pela manhã, no hotel, me apresentou a Bernd Fichtner, Steve Stoar, Michael Apple elogiando minha exposição e dizendo que todos deveriam me ouvir na quinta seguinte. Perdido entre grandes nomes da Educação e sem saber falar inglês, fiquei somente encabulado. Mas na quinta lá estavam, no público o Steve e o Bernd. Ambos me convidaram para ir a suas universidades para fazer a mesma conferência! Aceitei o convite do Steve para ir a Portugal, mas recusei o convite para ir para Siegen, na Alemanha, em função de não falar inglês. Um ano depois, fui para Portugal. E num evento aqui no Brasil reencontro o Bernd, que convidou minha filha Joana para fazer estudos de aprofundamento em língua alemã, que ela vinha estudando durante a graduação. Ela aceitou. Então o Bernd me colocou contra a parede: estou levando sua filha… agora você aceita ir a Siegen fazer uma palestra? Aceitei. E depois me tornei professor do programa do INEDD que ele coordenou; também aceitei dar cursos seguidos na Universidade do Porto, a convite do Steve. E numa das conferências feita aí, tive como participante a Profa. Helena Sá, que me levou por um semestre como professor visitante da Universidade de Aveiro! Ou seja, devo a este texto toda a experiência docente que tive no exterior (Portugal e Alemanha). No entanto, o texto, como o leitor perceberá, é praticamente uma paráfrase mal feita, num resumo, o artigo assinado por Bakhtin e transposto para preocupações do presente.

Talvez este seja o texto que mais vezes foi publicado. Primeiro na revista da Secretaria de Educação de Porto Alegre; depois foi publicado no livro organizado por Gladys Rocha e Maria da Graça Costa Val, “Reflexões sobre práticas escolares de produção de textos – o sujeito autor” (2003). E mais tarde eu o inclui na coletânea “Ancoragens – Estudos bakhtinianos” (2010).

  • É necessário não confundir “o tempo de existência” do herói na obra com seu ressurgimento e existência em cada leitor.
  • O fato de a obra ser um todo acabado não significa que seja uma totalidade fechada, sem vazios e sem sujeição a interferências.
  • Talvez uma das maiores vantagens do questionamento contemporâneo à concepção do “sujeito racional, crítico, consciente, emancipado ou libertado” (Silva, 200:13), seja precisamente o reconhecimento de que nossas compreensões serão sempre locais e limitadas e jamais recobrirão a totalidade de um suposto real.

 

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

Geraldi, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas : Mercado de Letras/ALB, 1996.

Kramer, Sônia.”A formação do professor como leitor e construtor do saber”. In. Moreira, Antonio Flávio (org) Conhecimento educacional e formação do professor. Campinas : Papirus, 1994.

Morin, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Lisboa : Instituto Piaget, s/data (orginal de 1997)

Prigogine, Elya. “O fim da ciência?” in. Dora F. Schitman (org). Novos paradigmas, cultrua e subjetividade. Porto Alegre : Artes Médicas, 1996.

Rama, Angel. A cidade das letras. São Paulo : Brasiliense, 1984

Silva, Tomza Radeu (org) Pedagoiga dos monstros. Os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte : Autêntica, 2000.

Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo : Ed. Abril, 1975.

Os médicos cubanos e o presidente

Os médicos cubanos e o presidente

Atendendo a seus compromissos atrelados ao corporativismo e não à saúde da população, o presidente eleito fugiu a qualquer civilidade mínima com os médicos cubanos e com o seu país de origem.

Desde a Idade Média a construção da nova “cidade”, que remete a civitas, à civilidade, à polidez, estabeleceu-se uma oposição entre rusticidade/civilidade. Se no interior da “urbs” (donde urbanidade) as relações, os comportamentos foram se modificando saindo da mera força física para modos polidos de interação. O rústico passou a ser “negativo”.

No entanto, nos processos atuais do individualismo exacerbado, o sujeito como unidade de consumo, num exercício de um pequeno poder, aquele da “compra”, o conjunto de valores caros à civilidade deixaram de ser orgulho da cidade, do homem civilizado.

Tomemos o conceito de autenticidade. Era um valor ético. Migrou para valor comercial: um produto autêntico, não ‘fake’: corresponde efetivamente à etiqueta que o cidadão hoje ostenta no corpo como sinal de distinção. Esta migração para o comércio de um valor ético, tem um retorno para o comportamento das pessoas. Ser autêntico, hoje, é dizer o que pensa, sem qualquer análise efetiva deste pensamento primeiro, sem reflexão, sem medir consequências para os outros e até mesmo para si.

Foi este “valor” de autenticidade que esteve muito presente na campanha eleitoral de Bolsonaro: ele se apresentava como “autêntico”, dizendo o que pensa, sem esconder nada… e os ingênuos não perceberam que isso é parte da propaganda de si (e das empresas).

Foi esta suposta “autenticidade” que o levou a dizer besteiras sobre os médicos cubanos presentes no país graças ao programa Mais Médicos. Primeiro considerou seu trabalho como trabalho escravo, porque grande parte de seus salários vão para o seu país (que os formou gratuitamente, que mantém a formação de novos cubanos, que dá toda garantia à família do médico que sai de seu país para contribuir com a saúde de países com dificuldades). Depois criticou a formação destes médicos. Foi “autêntico” na crítica, como se todos fôssemos imbecis que não perceberíamos que compromissos levam a esta suposta “autenticidade”.

O governo cubano reagiu. Denunciou o contrato existente. E chamou seus cidadãos de volta para seu país. E isso mexeu com a vida de milhões de brasileiros… Mas isso o “autêntico presidente eleito” não levou em conta. Disse o que disse e esperava que tudo ficasse por isso mesmo, como ficaram por isso mesmo todas as mentiras usadas durante sua campanha à presidência.

Agora ficam os brasileiros das pequenas comunidades, dos grotões, das favelas, das periferias, sem a assistência de qualquer médico. Corre o ‘autêntico’ a dizer que Cuba foi irresponsável. Que ele não quer trabalho escravo no país, que há que se respeitar a legislação brasileira, etc. etc… Não adianta mais.

Certamente uns 20% dos médicos cubanos permanecerão no país. Muitos deles e delas vieram solteiros para o Brasil, aqui formaram família e têm todo o direito de aqui permanecerem [para felicidade das comunidades que poderão continuar com seu contributo para suas saúdes]. Certamente a imprensa badalará cada médico cubano que não retornar à Cuba, sem contar sua história, sem contar os vínculos que aqui estabeleceu, etc. Faz parte da “autenticidade” da notícia manipulada, aquela da meia verdade.

Corre hoje o governo moribundo a lançar editais para preencher vagas com brasileiros que sempre se recusaram a trabalhar em lugares indesejáveis… e correm para garantir a vinda de estrangeiros, mesmo sem o Revalida, para que comecem a exercer suas funções mesmo antes de dispor de registro na ordem dos médicos!

Não é possível compreender os rompantes de “autenticidade” do presidente eleito sem levar em conta este trânsito de um valor ético para valor comercial, de venda de si e dos produtos industriais.