por João Wanderley Geraldi | dez 7, 2018 | Blog
Aprendemos com o poeta que a luta com as palavras é vã e, no entanto, como o poeta, quase todos nós passamos os dias diante das letras que outros traçaram e que nossos olhos acompanham enquanto nossa mente se desloca de um espaço para outro, ou com as letras traçamos nós mesmos linhas que pretendemos ir deixando vestígios de nosso trabalho constante, incansável. Condenados a significar, por sermos “seres viventes dotados de palavra”, na recuperação que faz Larrosa (2001) da fórmula grega zôon lógon échon, em que lemos juntos a leitura autorizada e legitimada como literal “homem dotado de razão”, estamos sempre às voltas com as palavras e com elas vamos construindo para nós mesmos e para os outros os sentidos do que vemos, tocamos, ouvimos: nos espaços, os homens, as coisas e suas relações são temporalizados pelas linguagens com que referimos e interpretamos o que nos acontece.
Ainda é possível falar sobre a leitura, com tantas palavras já em circulação, com tantos discursos já proferidos, com tantas vozes que, já tendo falado, esperam que outro as retome para dar-lhe continuidade? Três vozes retornam à memória do leitor, para oferecer, a seus modos, traços com que fugir dos começos sempre trágicos (Barcena, 2001). Na voz do poeta
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro, de um outro galo
que apanhe o grito que um falo antes
e o lance a outro, e de outros galos[
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
(João Cabral de Melo Neto, 19677, p. 15)(2)
Na voz do filósofo
O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calam, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz”. E a instituição responde: “Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que lhe advém”. (Foucault, 1970:7)
Na voz do crítico
Maníaco ou melancólico, o sujeito da escrita está condenado ao Outro e às bordas de seu texto. A escrita, como experiência do próprio, revela-se antes um processo de confronto com o texto alheio. Nela se pratica, pois, o conflito de identidade.
Se, para que a escrita advenha e subsista, ela assente sempre num processo de amnésia, no sentido em que ultrapassa a fixação na fobia do já-dito, a experiência do plágio sofre, pelo contrário, de um peso excessivo da memória. Enquanto o sujeito que se afirma como autor trabalha num processo de afirmação da sua voz por entre as vozes alheias, o plagiador deixa-se sempre seduzir ou abafar por uma voz outra. O autor esquece e por i8sso produz. O plagiador fixa(-se) e por isso re-produz. (Babo, 1987:32)
Esquecendo, portanto, o já-dito, retomando o canto para que ele continue com uma entonação outra e desconfiando do pré-paro do discurso pelas instituições, a ideia que gostaria de trazer aqui é a de pensar a leitura como uma oferta de contrapalavras do leitor que, acompanhando os traços deixados no texto pelo autor, faz estes traços renascerem pelas significações que o encontro das palavras produz.
Para pensar a leitura a partir desta perspectiva, é preciso enfrentar um problema de construir no fluxo das instabilidades uma estabilidade e confessá-la ao Outro como uma posição provisória que permite propor a hipótese. Eis pois esta posição: instaurar a linguagem como um processo de contínua constituição e, por isso, sobre a precariedade que a temporalidade específica dos momentos implica. E se o sujeito emerge no mundo discursivo e nele sua consciência se constitui, a precariedade do provisório é também, pelo funcionamento próprio da linguagem, uma característica da subjetividade. Não há, para nos garantir, um terreno estável, nem um sujeito pronto e acabado que se apropria da língua (ou de um lugar preparado) ao falar/escrever, nem uma língua (no sentido sociolinguístico do termo, que implica portanto e desde sempre a multiplicidade na unidade aparente) pronta e acabada. Sobra-nos, neste sentido, apenas o evento discursivo, que se dá na linha do tempo e que só tem consistência enquanto “real” na singularidade do momento em que se enuncia. A relação com a singularidade é da natureza do processo constitutivo da linguagem e dos sujeitos do discurso. Evidentemente, os acontecimentos discursivos, precários, singulares e densos de suas próprias condições de produção, fazem-se no tempo e constroem história. Estruturas linguísticas que inevitavelmente se reiteram também se alteram, a cada passo, em sua consistência significativa. Passado no presente, que se faz passado.
Para dar conta desse movimento entre estabilizações e instabilidades, Bakhtin (1929-1981) opõe dois conceitos: aquele da significação e aquele do tema. Se considerarmos que uma língua é um conjunto instável de recursos linguísticos com que construímos representações com “acentos apreciativos” (portanto, nunca neutros), cada um desses recursos traz em si “os murmúrios de sua própria história” condensados como suas significações, que se apresentam a cada uma de suas reiterações. E nessas reiterações do “aqui e agora” da enunciação, esses mesmos recursos se desvestem de suas significações para se revestirem com as vestes que lhe traz o tema específico e único de cada enunciação.
Falar ou escrever é uma “luta” com os recursos linguísticos porque, vindo carregados de suas memórias, ainda assim se tornam maleáveis na singularidade do evento discursivo. Trata-se, portanto, de construir com recursos “imperfeitos” algum sentido, que não se reduz à unidade. Do ponto de vista da produção, nesta luta vã, o máximo que conseguimos é deixar rastros a serem manuseados pelo leitor, sem que possamos delimitar o que cada um de nossos traços consegue fazer emergir. Se do ponto de vista do funcionamento da linguagem qualquer de seus usos sempre traz em si processos de (in)determinação, do ponto de vista do trabalho linguístico, é possível apontar dois polos: aquele que explora os recursos linguísticos para produzir um fechamento de sentidos e aquele que explora a característica própria destes recursos para aumentar as possibilidades de sentidos. De um lado o trabalho linguístico pragmático e referencial; do outro lado, o trabalho linguístico estético da poesia e da literatura.
Como a palavra lida é sempre o momento e lugar da ‘stantartização’ de muitas outras palavras do leitor, suas contrapalavras, a compreensão resulta não do reconhecimento da palavra aí impressa, aí ouvida, mas do encontro entra a palavra e suas contrapalavras (na metáfora bakhtiniana, na faísca produzida por este encontro). Dada a impossibilidade de prever quais as contrapalavras que virão a esse encontro, porque elas para ele comparecem segundo os percursos já percorridos por cada diferente leitor e seus inumeráveis momentos da leitura, é impossível prever todos os sentidos que a leitura produz. Por isso, um texto, uma vez nascido, passa a ter histórias que não são a reprodução de sentidos sempre idênticos a si mesmos. E por isso, ler, esta operação de caça,
… é peregrinar por um sistema (o do texto, análogo à ordem construída de uma cidade ou de um supermercado). Análises recentes mostram que “toda leitura modifica o seu objeto”, que (já dizia Borges) “uma literatura difere de outra menos pelo texto que pela maneira como é lido, e que enfim um sistema de signos verbais ou icônicos é uma reserva de formas que esperam do leitor o seu sentido (Certeau, 1994:264) (3)
Um leitor que não oferece às palavras lidas as suas contrapalavras, recusa a experiência de leitura. É preciso vir carregado de palavras para o diálogo com o texto. E essas palavras que carregamos multiplicam as possibilidades de compreensões do texto (e do mundo) porque são palavras que, sendo nossas, são de outros, e estão dispostas a receber, hospedar e modificar-se face às novas palavras que o texto traz. E estas se tornam, por sua vez, novas contrapalavras, nesse processo contínuo de constituição da singularidade de cada sujeito, pela encarnação de palavra alheias que se torna nossa pelo esquecimento da origem (Bakhtin, 1974:405-406).
Leituras
Kholstomer, o cavalo bragado que à noite narra aos demais cavalos a sua história, na segunda noite ele reflete sobre os costumes dos homens de se apropriarem das coisas, justamente quando está narrando sua passagem de potro a cavalo, pela prepotência do gesto humano de dessexualização dos animais:
As palavras meu cavalo pareciam-me tão ilógicas como a minha terra, meu ar, minha água. Aquela frase fez em mim nada menos que uma impressão profunda.
Refleti depois, e só daí a(sic) um tempo, depois de conhecer os homens por ter com eles lidado, é que pude compreender bem tudo aquilo.
Os homens – ora vão lá vendo! – costumam se guiar não por fatos, mas por palavras. À possibilidade de falar de tal ou tal objeto, nos termos de antemão por eles convencionados. E esses temos, que para eles têm uma enorme importância, são os seguintes: o meu, a minha, os meus. Eles os empregam falando dos diferentes seres vivos, da terra, dos homens, dos cavalos. É comum, também, ao falarem de um objeto, uma só pessoa qualificá-lo de meu. A pessoa que tem a possiblidade de aplicar a palavra meu a um grande número de objetos, é considerada pelas outras como a mais feliz.
[…]
Um homem diz: minha casa e ele não mora nessa casa, apenas trata de construí-la e de conservá-la; um lojista diz a minha loja e nunca põe os pés nela, ou o meu armarinho e nunca tira dali um só metro de fazenda para as suas necessidades. Há homens que dizem: minha terra sem nunca a terem visto; há entre os que empregam a palavra meu, aplicando-a a seus semelhantes, a seres humanos que eles nem mesmo conhecem e aos quais fazem todos os prejuízos possíveis e imagináveis. Eles dizem também minha mulher falando de uma mulher que consideram como sua propriedade, mas que muitas vezes vive com outro homem. O fim principal que se propõem os homens, não é fazer aquilo que julgam o bom e o justo, mas ter a possibilidade de aplicar a palavra meu a um grande número de objetos; e eu estou agora convencido que essa a diferença fundamental que existe entre nós e os homens. (Tolstoi, História de um cavalo)
Também com as palavras acontece o jogo desse poder: qualifica-las como de minhas, pelo esquecimento da origem, permite também que nas relações sociais instaurem-se aqueles que, na relação de forças próprias às relações de poder, acabam utilizando o texto para fechar seus sentidos impondo-lhe um sentido, a que denominam de “literal”.
Deste ponto de vista, o sentido “literal” é o sinal e o efeito de um poder social, o de uma elite. Oferecendo-se a uma leitura plural, o texto se torna uma arma cultural, uma reserva de caça, o pretexto de uma lei que legitima como “literal”, a interpretação de profissionais e de clérigos socialmente autorizados. (Certeau, 1994 : 267)
Um modo de insurgir-se contra os sentidos que as leituras privilegiadas impõem, privilegiadas porque realizadas por sujeitos privilegiados, é retomar os modos de funcionamento da linguagem, tomando cada compreensão como produto instável de nosso trabalho, pois tal trabalho é executado com palavras que, sendo nossas, não nos são próprias e por isso mesmo estão sempre admitindo uma adição de sentidos outros que desestabilizam as provisórias interpretações que fazemos.
Tomando outra metáfora emprestada, as palavras funcionam como aquela máquina que os viajantes perdidos encontram na sexta ilha a que aportam:
Aportaram depois numa Sexta ilha, ainda mais ao oeste, onde todos falavam incessantemente entre si, um contando ao outro o que ele desejava que o outro fosse, e vice-versa. Aqueles ilhéus realmente podiam viver apenas se fossem narrados por outros; quando um transgressor contava outras histórias desagradáveis, obrigando-os a vivê-las, os outros não contavam mais nada a seu respeito, e assim ele morria.
Mas o problema deles era inventar para cada uma história diferente; com efeito, se todos tivessem tido a mesma história, não poderiam mais se diferenciar um dos outros, porque cada um de nós é aquilo que os seus atos criaram. Eis a razão por que tinham construído uma grande roda, que denominavam Cynosura Lecensis, erguida na praça da aldeia: era formada por seis círculos concêntricos que giravam cada qual por sua própria conta. O primeiro era dividido em vinte e quatro casas ou janelas; o segundo, em trinta e seis; o terceiro, em quarenta e oito; o quarto, em sessenta; o quinto, em setenta e dois; e o sexto, em oitenta e quatro. Nas várias casas, segundo um critério que Lilia e Ferrante não tinham conseguido entender em tão breve tempo, estavam escritas ações (como ir, vir ou morrer); paixões (como odiar, amar, ou sentir frio); e depois modos como bem e mal, tristemente ou com alegria; e tempos e lugares, como por exemplo, na própria casa ou o mês depois.
Fazendo girar as rodas obtinham-se histórias como “foi ontem para casa e encontrou o seu inimigo que sofria, e o ajudou”, ou então “viu um animal com sete cabeças e o matou”. Os habitantes asseguravam que com aquela máquina podiam escrever ou pensar setecentos e vinte e dois milhões de milhões de histórias diferentes, e havia-as para dar sentido à vida e cada um, durante os próximos séculos. (Umberto Eco, A ilha do dia anterior, p. 429-430).
Notas
- Normalmente estou sempre devendo textos, desde sempre! E escrevi (e continuo a escrever) em geral porque há algum evento de que devo participar, ou porque algum amigo me pediu um texto.. Este não é diferente. Foi escrito para minha participação na mesa-redonda “Ler é traduzir” no 13º. COLE, realizado em julho de 2001. Ele foi publicado em Educar em revista 20, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 2002:77-85. Republicado In. Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. O Espelho de Bakhtin. São Carlos : Pedro & João Editores. 2007, p. 39-46.
- O poema é parte do livro Educação pela Pedra, com poemas de 1962-1965. Cito aqui a edição da Antologia Poética (Cf. Melo Neto, J. C. Antologia Poética, Rio de Janeiro : Sabiá, 1987).
- O autor remete, em suas notas 8 e 9, às seguintes referências: Charles, M. Rhétorique de la lecture. Paris :Seuil, 1977, p. 83; e Jorge Luís Borges, citado em Genette, G. Figures. Paris : Seuil, 1966, p. 123.
Referências
Babo, M. A. A escrita: uma paixão devoradora? Revista de Comunicação e linguagens, n. 5, p. 29-44, 1987.
Bakhtin, M. (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1981.
_________ Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. In. Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.
Certeau, M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis : Vozes, 1994.
Eco, U. A ilha do dia anterior. Rio de Janeiro : Record, 1995.
Foucault, M. A ordem do discurso. São Paulo : Loyola, 1996.
Melo Neto, J. C. Antologia poética. Rio de Janeiro : Sabiá, 1967.
Tolstoi, L. História de um cavalo. In. Tosltoi, L. Senhor e servo. São Paulo : Clube do Livro, 1953.
por José Kuiava | dez 5, 2018 | Blog
As novas estratégias dos protagonistas, dos proprietários e donos do capital nacional e do capital estrangeiro, aliados sempre aos donos do poder político neoliberal, sempre assistidos e iluminados pelos seus intelectuais orgânicos – economistas, altos funcionários do direito e da justiça e tecnocratas das media e jornalistas do Top – é inventar e aplicar novas trapaças para alienar a opinião e a vontade das massas populares.
Na teoria, os trapaceiros continuam proclamando o dístico popular – histórico, ético e dogmático – “os fins não justificam os meios”, para, na prática, fazer o contrário. A lógica estratégica das trapaças é o seguinte: primeiro, é tomada a decisão, o fim desejado, almejado; depois, são arquitetados os meios, os mecanismos legais-constitucionais para justificar o fim.
Primeira ordem: “é preciso tirar a Dilma da presidência da República” – Como, se não tem provas de crimes? – “Não importa! Há dispositivo constitucional que precisa ser aplicado, segundo o qual a maioria dos deputados e dos senadores votando pelo impeachment, a Dilma está fora da presidência”, Eis aí o meio – a arma – justificado pelo fim.
Segunda ordem: “- o Lula não pode voltar a ser presidente do Brasil! Portanto, não pode ser candidato, pois se for candidato, será eleito pelos petistas” – “Mas, e quem pode impedir o Lula ser candidato?” – “A Lava Jato, o Sr. Moro” – “Mas se não houver provas dos crimes? – “Não importa, Lula deve ser condenado e preso antes das eleições! Está decidido” Os meios legais – os argumentos jurídicos – o Moro vai inventar”. E assim foi feito.
Terceira ordem: “ precisamos eleger Bolsonaro para presidente do Brasil”. – “Mas como, se ele não entende nada de economia, nada de educação, de ciência, de cultura, de agricultura, de etc. etc…?” Aí, quando candidato, Bolsonaro discursava para os pobres, a favor deles, para ganhar os votos deles. – “O emprego voltará, a corrupção acabará, os criminosos e os bandidos eu acabo com eles”. Agora eleito, trapaceia e trama políticas para garantir os ricos continuarem mais ricos às custas dos pobres.
Para entender melhor o poder subjacente desta conjuntura de barbáries e trapaças políticas, vou me valer de escrito de Eduardo Galeano – “O livro dos abraços” – A vida profissional. (L&PM Editores, 2018, p. 106-107).
Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais do que os reis e os marechais e mais do que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os juros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a frequência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade:
– Somos neutros – dizem.
Sobre a fração financeira-rentista do capitalismo neoliberal, Galeano é mais exato:
O sistema: Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vítimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.
É isso. Igual à democracia sem partido.
por João Wanderley Geraldi | dez 1, 2018 | Blog
Esta coletânea de contos lê-se de um fôlego. As imagens, as paisagens, as personagens parecem se concretizar diante do leitor. E passam na velocidade estonteante do acontecimento narrado com maestria. Ler cada conto é como ver um filme de curta metragem, dado o realismo com que o narrador vai mostrando o que vê, faz e vive cada personagem.
Os dedos: narrativa curta como a experiência sexual de uma transa de mulher casada que pela primeira vez trai. Gestos nervosos que se vão acalmando: pronto. Agora tomar o táxi, voltar para casa, em “dignidade de estátua”:
– Se me encontrar, nunca me viu.
– Tique tranquila.
A ceia: um retorno à casa de um marido ausente por muito tempo. Um pouco surreal. O reencontro com a casa, que é a mesma: “Tudo o mesmo. E aqui estou.” Ela sorriu. O mesmo sorriso. O mesmo vestido, um pouco desbotado. Na cena seguinte, sem passagem de explicação, a casa está com tijolos soltos, ruínas, monte de escombros. Apenas lembrança do que foi. Entendo como uma alegoria à vida: as rotinas, os momentos que se vão, a vida que se esvai.
A promessa: este é um conto com diálogos curtos, entre um namorado e sua namorada, que lhe promete por duas vezes praticarem o ato sexual, mas que chegado o momento, ela se desvia, não aceita, recusa. Embora tenha prometido. E ele apressado, querendo, sedento. E ela: “Eu não queria assim.” Ela senta-se na relva; ele já desistido, aproxima-se. Ficam juntinhos. Brincam com uma formiga que foge. Olham-se. Sorriem.
A missão: os momentos cruciais de quem busca o martírio, a crucificação. Sai de casa, deixa-a deserta e de porta fechada. Caminha com martelo e pregos na sacola. Uma caminhada fisicamente difícil, metaforicamente a caminhada psicológica difícil para uma decisão radical. Chega ao ponto, abraça-se à madeira roliça. “Quase no topo a haste transversal, como braços aberto. Muito alto para alcancá-la. Altura nunca esperada. Abriu a sacola, tirou dela os grandes pregos, o martelo e o cipó fino, enrolado e espinhento. […] Ali ficou à disposição: sua cabeça, suas mãos, seus pés. Nada mais poderia fazer. Cumprira sua parte. Esperaria para sempre. A outro qualquer caberia termina a tarefa.
A sombra: esta a história de dois jogadores de futebol, um do ataque, outro um guarda-roupa de dois metros, na defesa. Neste futebol nenhum, apenas força; naquele todo o futebol e a certeza de todos de que iria para a seleção. O grandão lhe faz sombra, comete num jogo uma falta, mas quem recebe cartão amarelo é o atacante, pois uma das táticas do mau jogador é fingir dor e rolar no chão até a maca chegar. Era preciso vingar-se. E é esta expectativa do próximo jogo contra o mesmo time que preenche parte do campeonato até o novo jogo. O atacante entra arredio, com medo, sem correr. Parado. Lá estava a Parede e a sombra! Não tem coragem, mas acontece um burbúrio no jogo, o campo é invadido, o juiz vocifera. Ele chega de mansinho e dá um chute no tornozelo. O grandão cai, verdadeiramente sofrendo. Quem foi? Quem não foi? O jogo recomeça e então ele começa efetivamente a jogar. Um conto excelente!
O sorriso: casal recente, mas o marido já rotineiro na relação sexual. A mulher pergunta: “Acabou?” e ele responde “Claro”. Ela não mais suporta. Quer mais que não vem. Passa o dia andando de carro pela cidade. E começa a olhar o frentista, macacão, musculoso, negro, sorriso aberto. Sonha com ele. E então é descrita uma transa em que ela estando com o marido imagina o tempo todo estar com o frentista: Desci ao fundo do poço e dele voltei muitas vezes para respirar, sufocada, sem ar, até me sentir vencida pelo cansaço. E ele vai saindo de mim lentamente, fugindo em espiral, diluindo o riso encantador. Sinto-me exausta, pálpebras pesadas. O marido: – “Nunca você foi tão ótima, querida. Puxa.”
A ciranda: mais uma traição, agora numa fazenda. A mulher do fazendeiro e o capataz. Ela promete, mas a cada vez quer que seja “Em pé.” Ele não aceita. E nada acontece… a cena se repete, e nada. Até que o fazendeiro indo viajar, ela lhe abre a janela do quarto. E lá, ela quis: “– Quero em pé. É como uma ciranda.” As palavras cirandaram em voo rápido e ele nunca soube se o que girava eram as copas das árvores do capão de mato, o quarto estreito dentro da escuridão ou o fuso veloz que o jogava para dentro de si mesmo.
A confissão: este é um diálogo de frases curtas, entrecortadas entre um marido traído e seu amigo. O marido acabara de descobrir que sua mulher era amante do Bispo! Vira-os aos beijos no Palácio Episcopal. Não sabe o que fazer… a forma sucinta dos diálogos desvela este estado de angústia da personagem, sem que dela se ocupe no que se fala.
O vendedor de bilhetes: este é um conto em dois planos. Um homem de negócios bem sucedido com casa e boa vida que retorna à infância, à casa no morro de que fora saíra fugido de um pai bêbado e violento que era vendedor de bilhetes do jogo do bicho. O filho que vencerá cá embaixo, veste a mesma roupa do pai, dorme na casa, relembra a infância infeliz e irrecuperável.
O andarilho: este é um conto de realismo mágico. A personagem aparece numa estrada pedindo carona, não consegue. Um ônibus para, ele entra. O ônibus anda em velocidade alucinante, em meio ao pó da estrada. O passageiro descobre que é o único dentro do ônibus. Vai até o motorista e não há motorista. Resolve saltar fora. Caminha. Chega à casa, o cão o reconhece, a mulher o recebe e pergunta: Por onde andou?
A árvore caída também é um retorno, para as festas de fim de ano. Para a casa da infância, numa cidade já agora desconhecida. Caminha por ela, pela praça, só a Igreja lá está, a mesma. Chega em frente a casa, e fica encostado ao poste a olhar o tempo nela marcado.
A bolsa: trata-se de uma ladra que tendo roubado as joias de uma casa, num furto planejado por longo tempo, sai para a rua em tempo chuvoso. Um bêbado dela se aproxima, quer “carona” no guarda-chuva e algo mais. Ela segura a bolsa com medo de ser roubada. O bêbado se aproxima cada vez mais. Ela vai para junto de uma árvore, fecha o guarda-chuva. O bêbado se aproxima: será no tronco da árvore? Ela uso a ponta do guarda-chuva como arma e o mata. Deixa-o ali, segue pela rua deserta, chega à avenida de pouco movimento. Demora, mas consegue um táxi.
Um segundo: trata-se aqui de um suposto vendedor que viaja por inúmeras pequenas cidades do interior, e nelas realiza furtos os mais variados. Segue para a estação, toma ônibus ou trem e segue adiante, para qualquer outra cidade pequena, onde realiza novo furto. Até que consegue uma boa bolada. Retorna de ônibus para a cidade grande (São Paulo?), hospeda-se num hotel, toma banho, faz a barba, come bem, dá gorjetas gordas. Volta para casa, para o reencontro com os filhos e a mulher grávida. Reclama dos negócios, da crise, mas teve sorte e conseguiu bons pedidos e uma comissão graúda…
Referência: Cario Porfírio Carneiro. Os dedos e os dados. Campinas : Pontes Editora, 1989.
por João Wanderley Geraldi | nov 30, 2018 | Blog
Resumo: Em sociedades de escolarização ainda insuficiente, quer em sua amplitude, quer em sua história de cultura escrita, circulam e interpenetram-se manifestações culturais variadas. O objetivo deste trabalho é explorar três estudos realizados por diferentes pesquisadores sob o ângulo da relação entre culturas orais e cultura escrita escolarizada: narrativas orais do mito amazônico “Cobra Norato” (Miotello, 1996); uma forma específica de apropriação do alfabeto pelo povo indígena Jarawara (Vêncio, 1996) e vozes e silêncios de meninos de rua (Machado, 2000).
1. Como se sabe, somente nos fins do Século XV e na primeira metade do século XVI as variedades linguísticas, já escritas e associadas ao poder central dos estados ocidentais constituído ao longo da história pós-esfacelamento do Império Romano, passam a ter suas gramáticas escritas, num estudo que toma as línguas vernaculares – os vulgares – como objeto de descrição, obviamente sob os moldes das gramáticas das línguas clássicas, o grego e o latim.
Paradoxalmente, é no contexto da revitalização das culturas clássicas, incluídas aí a línguas grega e latina, que a valorização das línguas vernaculares inicia. É acompanhando a construção dos estados nacionais que elas vão adquirindo importância e foro de cidadania. Associam-se, pois, a importantes feitos de definição de limites e de sua expansão pelos descobrimentos os esforços de descrição de línguas longamente amadurecidas na história oral e também escrita. Não é por acaso: a corrida para as conquistas colônias e a concorrência entre Espanha e Portugal justifica o investimento. Já na Gramática de Antonio de Nebrija (1492) encontrava-se como justificativa de existência da primeira gramática da língua espanhola – e a primeira de uma língua que não fosse o latim ou o grego – a utilidade da sistematização gramatical para na difusão da língua entre os povos “bárbaros”:
A língua sempre acompanhou a dominação e a seguiu, de tal modo que juntas começaram, juntas crescera, juntas floresceram e, afinal, sua queda foi comum (Nebrija, apud. Gnerre, 1985:13)
Também Fernão de Oliveira menciona na introdução de sua Gramática de 1536 a expansão colonial portuguesa como justificativa de existência. E João de Barros, cuja gramática é de 1539, toma posição semelhante em seu Diálogo em Louvor de nossa Linguagem já que para ele
A língua é[…] um instrumento para a difusão da “doutrina” e dos “costumes”, mas não é somente instrumento de difusão, pois “as armas e padrões portugueses […] materiais são e pode-os o tempo gastar, pero não gastará a doutrina, costumes e a linguagem que os Portugueses nestas terras deixaram”. Quer dizer, a língua será o instrumento para perpetuar a presença portuguesa, também quando a dominação acabe. (Gnerre, op. cit.: 16)
Embora os primeiros gramáticos, tanto espanhóis quanto portugueses, tivessem consciência do significado da aquisição da língua da metrópole pelos novos povos das novas terras, o que de fato aconteceu, especificamente em “terras portuguesas”, não correspondeu à implantação da língua portuguesa entre os nativos. As necessidades de contato e mesmo de exploração, porque sem que haja comunicação é impossível a dominação – e as variadas línguas aqui faladas, muitas delas do mesmo tronco Tupi possibilitaram o surgimento de uma língua de contato, sistematizada especialmente pelos jesuítas, particularmente José de Anchieta em sua Arte da Gramática da língua mais falada na costa do Brasil. Trata-se da língua geral, que prevaleceria entre os moradores da terra – os nativos, os provenientes do continente europeu (colonizadores) ou os escravos provenientes da África.
O predomínio da língua geral pode ser comprovado em inúmeras passagens, entre outras aquela relativamente a sua proibição em instrução emanada do gabinete do Marquês de Pombal, em que se diz que os primeiros conquistadores só cuidaram de aqui estabelecer o que chamamos língua geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica. Citando Daphne C. Carvalho, escreve Magda Soares:
Em meados do século XVII, o padre Antônio Vieira […] afirmava, com relação à população de São Paulo: “as famílias dos portugueses e índios de São Paulo estão tão ligadas hoje humas às outras que as mulheres e os filhos se criam mystica e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala he a dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola. (1996, p. 11)
A expulsão dos jesuítas e as reformas pombalinas no ensino da metrópole e das colônias constituem-se em passos essenciais para o “apagamento” da experiência primeira de constituição de uma língua – ainda que esta língua viesse marcada pelo processo de exclusão daquelas línguas indígenas que não eram “boa língua” – NHEENGATU – disciplinadas pelos jesuítas. Certamente com um olhar contemporâneo, considerando a importância da linguagem na constituição das subjetividades, pode-se aquilatar a importância tanto do empreendimento de construção da língua geral, quanto da magnitude da empresa portuguesa de bani-la da vida cotidiana da colônia. Na segunda metade do Século XVIII, com a proibição do uso da língua geral, com a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa no ensino das demais disciplinas e com a expansão do domínio português aparelhando-se paulatinamente o sistema estatal, o português vai-se tornando a língua predominante na Colônia, de modo que a vinda da Família Real nos início do século seguinte vai consolidar a reafirmação da língua portuguesa e a implantação da cultura europeia entre nós.
O projeto é tão bem sucedido que, apenas cem anos depois (em meados do Século XIX) a questão da “língua brasileira” – note-se que a língua geral não é tratada como “língua brasileira” – surge como polêmica, mas o que predominou durante o período foi muito mais um purismo linguístico, com polêmicas constantes sobre como deveria ser a língua. As questões de correção gramatical dominaram mesmo quando os intelectuais debatiam a existência ou não de uma língua brasileira. Ensinava-se gramática e foram numerosas as gramáticas brasileiras que sempre tiveram – e continuam tendo – como objetivo corrigir o português que se fala para aproximá-lo do que supostamente se deveria falar. Citando Houaiss, escreve Magda Soares:
Um traço equívoco da política linguística adotada no Brasil e em Portugal durante um grande lapso de tempo (de 1820 [digamos] a 1920 [digamos] foi um ensino da língua que postulava uma modalidade única do português – com uma gramática única e uma ‘luta’ acirrada contra as variações até de pronúncia. (op. cit. p. 15)
É traço cultural, português e brasileiro, a importância dada aos estudos gramaticais. Note-se, por exemplo, a notícia que nos dá, não sem uma ponta de ‘orgulho’, Jeronymo Soares Barbosa, na Introdução de 1803 a sua Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (1801):
Portugal conheceu grammaticas portuguezas ainda antes que outras nações civilisadas tivessem uma na sua língua. Quando Ramos em 1572 publicou a primeira grammatica da língua franceza, já Portugal tinha a de Fernão d’Oliveira dada á luz em 1536, e a de João de Barros em 1539. Estas foram seguidas do Methodo Grammatical de Amaro de Roboredo, impresso em Lisboa em 1619, da Grammatica do P. Bento Pereira, em Lyão, no de 1672, da de D. Jeronymo Contador d”Argote, em Lisboa 1721, e finalmente da de Antonio José dos Reis Lobato, em 1771 (Jeronymo Soares Barbosa. Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, 5ª. ed., 1876, p. XII)
Acompanhemos com alguns poucos exemplos, o quanto é persistente esta nossa preocupação com a correção de linguagem, confirmando no Século XIX o traço apontado por Houaiss de unicidade gramatical e de “luta” contra desvios como uma política do ensino de linguagem.
Nos primeiros anos do Século XX, o jornalista e escritor Paulino de Brito sustentou polêmica com o gramático português Cândido de Figueiredo. O primeiro escreveu crônicas no Jornal da Província do Pará criticando regras de colocação de pronomes expressas nas Lições Práticas (1901) do segundo. As respostas de Cândido de Figueiredo, publicadas no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, foram organizadas na obra O problema da colocação de pronomes (suplemento às Gramáticas Portuguesas), cuja 5ª. edição é de 1928., sob o selo da Livraria Clássica Editora, de A. M. Teixeira & Ca. Filho, Praça dos Restauradores, 17 – Lisboa, com uma introdução de Gonçalves Viana, “Juízo Crítico”, extraído do Diário de Notícias de Lisboa, de 11 de abril de 1909.
Defendia o português a próclise do pronome; Brito defendia a ênclise. O enunciado estopim foi
“Um soneto pediste-me, criança.”
que segundo o português, somente poderia ser, em bom português,
“Um soneto me pediste” ou “Pediste-me um soneto, criança.
Em uma das crônicas, reproduzidas na obra acompanhando-se a discussão com vasto material comprobatório da prática de bons escritores portugueses e brasileiros, poetas e prosadores, escreve
Assegura o Sr. Paulino de Brito que as regras por mim preconizadas “perturbaram profundamente a posse mansa, pacífica e imemorial de colocar os pronomes…” na sua nação; e que pus em debandada os que usavam dos pronomes à maneira dos bons escritores brasileiros, como Gonçalves Dias, etc. Sucede, porém, o contrário, exatamente. […]
Na demonstração desta segunda parte da minha tese, poderia eu recorrer aos primeiros escritores brasileiros do século findo, e citar, por exemplo, Tomás Antônio Gonzaga, que, na sua Marília, usa destas maneiras:
– De que te queixas?
E não: de que queixas-te?
– Mal se move e mal se arrasta.
E não: mal move-se…
– Enceu-se de gosto o peito.
E não: se encheu de gosto o peito.
[…]
Deste primeiro exemplo, escolhido dentre outros possíveis, uma lição a extrair quase cem anos depois: o uso – e neste uso incluam-se escritores de diferentes matizes – consagrou a próclise, cada vez mais comum inclusive no início de enunciados, donde se pode concluir que apesar dos esforços normativos, em matéria de linguagem o que vem a acontecer independe da vontade legisferante de gramáticos e professores.
Embora não possamos nos desvestir da história, e portanto de um de nossos traços culturais que dá à “correção linguística” valor elevado, e tampouco possamos retornar a uma oralidade primeira, para sempre perdida (Zumthor, 1987), foi olhar para o uso da língua, especialmente em sua modalidade oral, que nos estudos linguísticos introduziram entre nós, a parti dos dos anos 60 do Século XX. É verdade que, enquanto sujeitos históricos, herdeiros de e pertencentes a uma cultura letrada, não deixamos nunca de reconhecer a existência de uma cultura oral, popular, transmitida de geração a geração. Nem deixamos de reconhecer que, no cotidiano distante dos bancos escolares, gestam-se outros modos de conceber o mundo, outras linguagem e mil formas outras de sobrevier na “cidade das letras” (Rama, 1984).
Mas continua raro olharmos efetivamente para este lugar outro, do mundo da oralidade, para tentarmos extrair dele elementos para a compreensão do mundo letrado. No contexto de uma discussão que toma as línguas como “pontes culturais para o futuro”, num contexto em que nos tornamos cidadãos do mundo e neste somente temos identidade à medida que nos diferenciamos – e a língua é um lugar de inscrição esta diferença – talvez valha a pena olharmos para a dicotomia oralidade e escrita no interior de nossas próprias culturas para apreendermos, com as diferenças locais, estratégias de sobrevivência linguística na avalanche de um mundo que se pretende não só economicamente globalizado, mas também culturalmente uniformizado. Em outras palavras, se as forças econômicas contemporâneas parecem apontar para o mercado único e a cultura se deixa embalar pelo universal em detrimento do local, é a defesa do local, do diferente, que é preciso exaltar. Isto porque as línguas somente serão pontes culturais do futuro se o futuro preservar as diferenças. E as diferenças linguísticas parecem ser essenciais para compreendermos que “não existe certeza além dos grupos” (Glaserfeld, 1996:76).
Neste sentido, vivemos um momento diametralmente oposto àquele dos primórdios da modernidade: enquanto naquela época emergiam as inspirações culturais com diferentes leituras das mesmas fontes clássicas, floresciam os estados nacionais num movimento de aglutinação regional das dispersões iniciadas com a queda do Império Romano e com eles a valorização das línguas vernaculares – cuja existência se deve também às variedades linguísticas de que o latim vulgar é apenas um exemplo; hoje vivemos um movimento de uniformização sob um pensamento suposto único, economicamente mais do que imperial e politicamente exigindo alinhamento a suas convicções e idiossincrasias. Talvez o que de melhor temos a aprende com o passado – mais especificamente com a empreitada de implantação da língua dos descobridores, de que recordamos alguns elementos – é que a perda da língua é também a perda da identidade. Por isso, a importância a ser dada no momento presente ao que é diverso, ao que é diferente, ao que discursivamente circula nos meandros da cultura letrada.
2. Se pouco mais de 100 anos foram suficientes para esquecer uma língua de livre curso e implantar a língua portuguesa como a nossa língua – as mais de 130 línguas indígenas ainda faladas e as línguas das minorias imigrantes, ainda que reconhecidas, não encontram guarida nos processos escolares nem nos procedimentos da administração pública – bem mais tempo do que isso está sendo necessário para elevar o nível de escolaridade do brasileiro, e através dele incluir a escrita como modalidade de circulação de discursos entre nós.
Nos mapas da exclusão social, podemos verificar o lento avanço da melhoria das condições de vida (2). O jornal Folha de S. Paulo elaborou, com o índice de condições de vida (ICV) elaborado com base em dados estatísticos e dados do Programa de Desenvolvimento Humano da ONU (índice de Desenvolvimento Humano), mapas históricos comparativos para três décadas, tomando os municípios brasileiros como referência. Considerando o índice de condições de vida uma medida de 0 a 1, e dividindo os municípios brasileiros nas faixas:
Alto: 0,80 a 1,00
Médio: 0,50 a 0,80
Baixo: 0,30 a o,50
+ Baixo: 0,00 a 0,30
E teremos os seguintes dados em três décadas consecutivas:
Número de municípios por faixa
ALTO MÉDIO BAIXO + BAIXO
1970 0 1.336 2.142 473
1980 5 2.392 1.571 23
1990 217 3.127 1.147 0
Fonte: Folha de s. Pualo, 26/09/1998
No entanto, a visão otimista que estes dados poderiam produzir dilui-se quando tomamos outros elementos, que não consideram como unidades os municípios brasileiros. Na mesma época, considerando os mesmos itens, os miseráveis chegavam em números absolutos à cifra de 25 milhões!
Dados disponíveis de 1996 sobre a escolaridade mostram que 44% dos chefes de família do país têm menos de quatro anos de estudo, e mais de metade desses não tem nenhuma instrução. Outros dados referentes à avaliação da rede escolar mostravam, em 1995, que apenas 1% dos alunos do último ano de estudos pré-universitários, residentes na região Sudeste, a mais rica do país, conseguia ler textos reconhecendo o sentido figura e dominando vocabulário e conceitos complexos. Este índice reduz-se à metade nas regiões Norte e Nordeste.
Ainda que estes dados estatísticos estejam desatualizados, em termos percentuais a mudança dos últimos anos não alterou significativamente a realidade, já que a obtenção de novos escores nestas áreas resulta de um trabalho de longo prazo. Eles são, no entanto, suficientes para o que se quer defender aqui: a baixa escolaridade do brasileiro faz supor que a cultura letrada tenha baixa circulação entre nós. Isto não quer dizer que a escrita não circule, não só no sentido de que sendo esta uma sociedade letrada, todos os sujeitos têm um certo grau de convívio com a escrita, mas no sentido da circulação de textos de leitura, manuseados especialmente pelas camadas sociais de mais baixa escolaridade(3). Infelizmente, estes textos propõem muito mais uma leitura de reconhecimento de sentidos conhecidos e compartilhados do que uma leitura polissêmica capaz de gerar nos sujeitos leitores outros modos de conceber a vida.
- Como critica Fernandes (2000 : 10)
Não enxergar as bases sobre as quais os excluídos produzem os seus sentidos, considerados menores, é a maneira mais eficiente de tornar ineficiente toda e qualquer ação de conclamá-los à ascensão a outros patamares de sentido, a outros objetos recobertos de valor socialmente reconhecido. O insucesso do ensino da literatura na escola, bem como de todas as iniciativas de levar a cultura “onde o povo está”, talvez não passe de mimese do dever cumprido, por causa dessa cegueira, pois, no mais das vezes, ignora-se esse lugar, os sujeitos e os sentidos que os constituem.
Para redirecionar minha câmara, buscando focar as falas de outros sujeitos que de diferentes formas constroem astuciosamente suas mil formas de caça (Certeau, 1994), mesmo dentro de uma sociedade que se construiu beneficiando uma minoria e que tem como um de seus traços culturais considerar “erro” toda e qualquer forma de falar ou escrever que não corresponda a suas próprias práticas, retomo três estudos com sujeitos pertencentes a grupos sociais em que predomina a oralidade, cada qual com uma relação muito específica e diferente com a cultura escrita.
3.1. Instigado pelo poema épico de Raul Bopp baseado no mito “Cobra Nonato” (4), documentado por Martius em 1819 e registrado por Câmara Cascudo (1954) em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, Miotello (1996) estuda este mito que “não há ribeirinho que não o conte ou não o tenha ouvido de seus pais ou companheiros”.
Confrontando com as aparentemente diferentes versões do mesmo mito, o pesquisador analisa as narrativas do diferentes sujeitos com base em duas perspectivas. De um lado, seguindo Lord (1960), reencontra em cada narrativa os elementos comuns extraídos do “baú de tradições” e destaca nas composições, únicas e irrepetíveis, os investimentos da performance do narrador. De outro lado, tendo presente estas distinções, utilizando-se do conceito de “projeto de dizer” de Bakhtin (1952/53), reencontra em cada narrativa uma diferente orientação discursiva resultante da situação social mais imediata da interlocução e de sua inserção no horizonte social mais amplo tal como o concebe o seu narrador.
Assim, no ribeirinho residente a 190 quilômetros de Porto Velho (Rondônia, estado da Amazônia brasileira), rio Madeira abaixo, margem esquerda, na foz do Jamari, os elementos composicionais remetem à necessária ordem das coisas segundo a natureza, concebida imóvel e disposta a castigar quem a desorganiza; no pescador reencontra o trabalho no rio, tarrafas presas desenganchadas com a ajuda de Cobra Norato, a solidão do meio do rio rodeada por seres encantados; no narrador do mercado, ex-seringueiro urbanizado e evangélico, a composição que orienta a recolha no baú das tradições vem marcada pela ética familiar, religiosa e rígida, que impõe a Cobra Norato os deveres de filho que “permanece com a mãe até a morte”.
3.2. Vencio (1996), em seu estudo sobre a apropriação da escrita pelos Jarawara, aponta:
Quando pela primeira vez chegamos em Água Branca (1986), vimos uma placa pendurada em uma vara erguida no centro da aldeia com várias letras escritas. Eram letras maiúsculas, algumas de cabeça para baixo, outras ao contrário e aiunda alguns riscos imitando letras. A placa tinha sido feita por um dos rapazes e estava representando o nome do lugar, Fasawa (Água Branca). (Vencio, 1996:35)
Sociedade de tradição oral, certamente a necessidade de identificar por escrito o lugar deriva do convívio inicial com a escrita consequência do contato com a sociedade branca, acentuado pelo “relacionamento comercial” com patrões, os seringalistas e os comerciantes da região que anotam as operações comerciais, registrando principalmente as dívidas da população local (ribeirinhos e povos indígenas).
Foi o contato com o outro, letrado, que levou o povo Jarawara a querer aprender a escrever, a ter escrita. Feita a descrição fonológica da língua e elaborado um material didático inicial em Jarawara, instaurou-se um processo de ensino em que “cada um ensina um”. Presumivelmente, a alfabetização destinava-se a resolver os problemas trazidos pelo contato, mas ao processo de apropriação da técnica da escrita aliou-se também um processo de construção de uma prática social jarawara: o uso da escrita para a produção de cartas, com características muito particulares:
A característica mais marcante da carta Jarawara é o seu caráter público. Em outras palavras, a carta, embora dirigida a uma pessoa em particular, é livremente lida e compartilhada por todos. É fato que existem cartas que circulam secretamente. Porém, a natureza coletiva impressa na circulação de cartas faz com que essas “cartas secretas” sejam cobiçadas por todos e cercadas de cuidados muito particulares dos correspondentes: portadores especiais, pseudônimos. Escrita por indivíduos e lida por todos, a carta Jarawara ao circular no espaço social da comunidade articula desejos pessoais e o do conjunto do povo. (op. cit.: 82)
Conforme a pesquisadora, a rapidez com que o povo assumiu o controle do novo conhecimento transformou o sistema “cada um ensina um” em “muitos ensinam a um”, de modo que “alguns que ainda não sabem pedem a outros para escrever suas cartas mas ninguém se acomoda nesta posição. Cada um , por si mesmo, quer escrever cartas. Por isso continuam estudando até conseguir aprender.”
3.3. Nos cruzamentos das grandes cidades brasileiras, em esquinas de maior movimento de carros, o passante encontra meninos e meninas que oferecem o serviço de “limpar o para-brisa de um carro”, ou vendem qualquer guloseima (balas de goma, ou outro tipo qualquer de doce), ou simplesmente mendigam. Quando a coragem permite e o tempo de passagem do sinal fechado ao sinal verdade ajudam, é possível ouvir mais do que o mero pedido: estes meninos e meninas tentam persuadir os passantes para conseguirem obter o que desejam: algum trocado. Eles têm histórias para contar, têm opiniões a propósito da vida, mas silenciam ou porque não há escuta ou porque a escuta é temida.
Procurando detectar as representações destes meninos e meninas a propósito da família, da polícia, da desigualdade social e da escola, Machado (2000) entrevistou quinze deles, em momentos em que se encontravam em instituições sociais para pernoite ou para atividades dirunas (5). O objetivo do entrevistador era obter falas em que eles discorressem sobre os temas que lhes eram propostos, para nestas falas detectar as representações sociais construídas e compartilhadas por estes sujeitos. O equívoco da pesquisa – que só se tornou óbvio depois do início das entrevistas – era que estes sujeitos tomariam posição e argumentariam a favos de seus pontos de vista a propósito dos assuntos a eles submetidos pela pesquisadora.
No diálogo, forçado, o que se tornou evidente é que os entrevistados podem até contar algumas passagens, responder a algumas perguntas, mas o tempo maior da entrevista acabou sendo a fala da própria pesquisadora que tentava, de todos os modos, obter opiniões e defesa de opiniões dos meninos e meninas de rua. Não é que eles não as tenham, mas o silêncio a que sempre se acostumaram e a desconfiança nas instituições sociais de que ao mesmo tempo foram expulsos e para as quais pretendem as organizações devolvê-los que, nesta pesquisa, não conseguiram ser ultrapassados.
Duas passagens destas entrevistas são significativas:
(1)
– Tá cansada né, tia? Não vamos demorar muito não (pausa). Tem gente rica e gente pobre, não tem?
– Não, a gente toda são po… somo tica, mas só que a gente não tem dinheiro. Não tem dinheiro. E o rico é pobre. Somo tudo… os pobre somo tudo rico.
– Os pobres são todos ricos e os ricos também são pobres?
– É. Mas só que eles têm dinheiro e a gente não tem. (c)
(2)
– Claro, você é um menino, tem opinião, não tem?
– Tenho.
– Isso.
– Mas essa opinião não tá circulando. (A.S.S.)
O primeiro exemplo, um indício entre outros, mostra que a informante, pelo replanejamento da fala, oscila entre dois discursos: aquele que lhe ensina o cotidiano, onde “a gente toda é pobre” e aquele de que querem convencê-la as instituições sociais: todos somos “ricos”. No sentido de que todos temos potencialidades, temos valores, temos em nós próprios algo em que vale a pena investir. Trata-se aí de “duas noções” de riqueza. Uma material, outra espiritual. A primeira fica para alguns, a segunda é distribuída equitativamente. São dois discursos (entre)cruzados: aquele da igualdade nas qualidades e potencialidades do ser humano e aquele proveniente da experiência vivida, em que as desigualdades se expõem. Para poder conciliar a ambos, a informante introduz um outro critério de distinção: ter dinheiro/não ter dinheiro. Em consequência, há ricos que têm dinheiro; há ricos que não têm dinheiro.
Por que teria a informante se desviado de seu primeiro caminho, replanejado e introduzido uma noção de igualdade? Porque sendo entrevistada no interior de uma instituição, por um sujeito que não pertencendo ao mesmo grupo social e estado dentro da Casa, vestida como os agentes educativos, com linguagem semelhante, cor igual, etc. somente poderia ser uma das pessoas autorizadas e para elas é preciso dizer o que a instituição ensina. A informante devolve à entrevistadora o discurso de sua classe social.
No segundo exemplo, é o silencia que se impõe a sujeitos sempre silenciados. O informante resume muito bem esta relação social, que dele é constituía “essa opinião não tá circulando”. O que pensam os excluídos não é entregue tão facilmente àqueles que vêm buscar informações.
Desconfiança e silêncio são estratégias de sobrevivência no meio da rua. E para estes sujeitos sociais, se integrados à “sociedade organizada”, no lugar subalterno a eles destinado, o silêncio mais uma vez será a estratégia de sobrevivência. Como afirma a pesquisadora:
Falando de lugares distintos daqueles definidos pelos mecanismos controladores da sociedade para serem ocupados por crianças e adolescentes, os meninos de rua também apontam para significações que não são aquelas desejadas. É por isso mesmo que eles são tidos como sujeitos que nada têm a dizer, especialmente sobre os temas dessa pesquisa. Seguramente, o recorrente silêncio dos entrevistados é consequência deste lugar à margem que lhes destina a sociedade, e paradoxalmente este silêncio indicia o lugar social que estes sujeitos assumiriam se reintegrados à sociedade: aprender a nela viver adaptado é aprender a silenciar. (Machado, 2000 : 24)
- Estes três estudos, trazidos para o contexto de nossa história linguística, estão mostrando diferentes características entre as culturas orais e as culturas escritas. Foi longo o processo de constituição de nossa cultura oficial, escrita, letrada e ela se construiu alicerçada no abafamento de uma língua franca e geral. Ao mesmo tempo ela se fixou na modalidade escrita, de modo que apenas cem anos depois, quando escritores discutem “a língua brasileira” discutem, na verdade com certo nacionalismo, diferenças próprias no interior de uma mesma língua. Certamente, hoje, as variedades do português brasileiro e do português europeu estão se distanciando, mas não tenho certeza se podemos reconhecer duas línguas distintas, já que em matéria de língua está afastado o mito da unicidade linguística.
Mais longo ainda foi e está sendo o processo de integração de diferentes grupos sociais à cultura oficial, escrita e letrada. O distanciamento entre oralidade e escrita resulta de diferentes trabalhos discursivos, como tais marcados pelos processos sociais de apropriação das diferentes modalidades da linguagem. A escrita, exigindo aprendizagem formal e transmissão social marcada, sofre um processo de apropriação social por certas camadas da população que nele foram imprimindo seus modos de apreciação do mundo, seus modos de fala, suas palavras – no sentido de logos – de modo que qualquer outra escrita que não se conforme ao discurso proferido pelas camadas que se apropriaram de um artefato coletivamente construído é considerada não escrita, quando na verdade o que se está excluindo são os discursos proferidos e seus sujeitos sociais.
Os três retratos três por quatro aqui apresentados nos revelam diferentes relação entre as culturas de que são amostras. O que os ribeirinhos e seus mitos, o povo Jarawara e suas cartas e os meninos e meninas de rua e seus silêncios têm a ensinar a uma cultura letrada?
Afastemos de imediato que os dados nos ensinem a tolerância: a luta contra o preconceito linguístico, um dos mais arraigados entre nó sporque esquecemos origens e porque nos construímos querendo “dizer certo” (o que é diferente de dizer o certo), é apenas uma faceta de uma luta mais ampla e pesquisas sociolinguísticas já nos mostraram de sobejo que a “correção linguística” deriva de relações de poder e não de condições estritamente gramaticais e linguísticas.
O que de comum gostaria de ressaltar são os aspectos discursivos presentes nas falas dos três grupos: à nossa costumeira rigidez em separar oralidade e escrita, os dados respondem que as culturas veiculados por estas diferentes modalidades se deixam interpenetrar. Assim, o mito Cobra Norato é contado a partir das posições sociais ocupadas por seus “contadores”, deixando-se influenciar ora pelo ambiente natural onde vive isolado o narrador, ora pelo ambiente de trabalho (a pesca), ora é atravessado pelo discurso religioso dos deveres dos filhos para com os pais; os Jarawara ao se apropriarem de um sistema de escrita fizeram deste sistema um uso social muito particular: as cartas endereçadas a indivíduos são compartilhadas pela comunidade; nas entrevistas com os meninos e meninas de rua foi possível detectar, por entre os seus silêncios, o (des)encontro entre dois discursos, aqueles que a vida da rua ensina e aquele proferido pelos agentes sociais que têm tentado trazer para o meio social “organizado” os sujeitos sociais que esta mesma organização marginalizou.
Certamente a convicção hoje generalizada de que a linguagem é uma atividade constitutiva das consciências humanas e a certeza de que os sistemas linguísticos nunca estão prontos e acabados, mas se vão construindo na história, levam a retornarmos à história, mesmo à história da transplantação de uma língua europeia para o novo continente, com um olhar muito mais instruído pela política e pela “seta do tempo” (tal como reintroduzida nos novos paradigmas das ciências da natureza). É conscientes da irreversibilidade da história, nela reconhecermos que bem serviram a seus reis e a seus tempos mais os gramáticos do que os marqueses.
E para não repetirmos o mesmo serviço nos tempos que correm, talvez tenhamos que abandonar um dos traços de nossa cultura letrada – o da escuta preconceituosa das falas de culturas não letradas – para nos reencontrarmos nos discursos proferidos pelas culturas orais, ouvindo as vozes que modificam nossas vozes. Talvez neste intervalo das diferenças, algumas resultantes dos processos cotidianos de exclusões sociais que incluem as exclusões linguística, encontremos os motivos para o reencantamento do mundo, construindo utopias com que nos definir hoje perante o que amanhã será história.
Notas
- Este texto foi escrito para a minha participação no Congresso Internacional Línguas – Pontes para o futuro, realizado na Universidade do Porto, de 15 a 16 de outubro de 2001, como parte dos eventos do “Ano das Línguas” da União Europeia. O leitor notará que quase todo o item 1, que aqui serve de introdução, é retirado do texto Notas sobre a exclusão da língua geral e a introdução da língua portuguesa, já publicado aqui. Para facilitar e dispensar releituras, todas a parte que é repetição está marcada graficamente. A repetição se justifica em função do público a que o texto se destinava, mas digitalizando o texto agora, percebo que toda a primeira parte é dispensável porque a análise dos “retratos” apresentados não está articulada em profundidade com a história apresentada na primeira parte. O texto foi publicado em Portugal em duas revistas: Palavras 21, Lisboa, Associação de Professores de Português, 2002:49-60. Republicado em Educação, Sociedade & Culturas 18, Porto, Universidade do Porto, 2002:105-121. Com modificações, inclusive do título, inclui-o na coletânea “A aula como acontecimento”.
- “O IVC é composto por 22 indicadores básicos que são convertidos em cinco indicadores sintéticos: renda, educação, infância, habitação e longevidade. […] abrange medidas como a renda familiar per capita, percentagem de pessoas com renda insuficiente, concentração de renda, analfabetismo, média de anos de estudos da população, percentagem de crianças que não frequentam a escola e que trabalham, defasagem escolar, percentagem da população vivendo em habitações feitas com materiais duráveis, acesso à água e esgoto, esperança de vida ao nascer e mortalidade infantil, entre outros” (Folha de S. Paulo, Cadernos Especial, “Mapa da Exclusão”, 26 de setembro de 1998).
- É necessário estabelecer aqui uma diferença entre a cultura letrada, universitária e a circulação de textos escritos, em produções populares de almanaques, cordel, livros de autoajuda, livros sentimentais. Só o Almanaque Iza, do Laboratório Kraemer, teve uma tiragem de 2.500.000 exemplares em 1999 (Park, 1999 : 18). Em 1983, a Editora Abril vendeu mais de 1.000.000 de exemplares da série Sabrina, uma das séries de romances sentimentais que edita (Fernandes, 2000 : 16).
- Uma das práticas culturais de apropriação da cultura oral pela escrita é a transformação de contos, lendas e repentes ou trovas em textos escritos, trabalhados literariamente e, por isso mesmo, transformados em “outra coisa” que não mais a narrativa que se ouve do contador de histórias, o canto que se escuta do cantador ou trovador.
- As entrevistas com meninos foram na Casa Dom Timóteo, instituição do Programa Cidade-Mãe que acolhe meninos para pernoite; as entrevistas com as meninas foram realizadas na Casa de Oxum, que acolhe meninas para pernoite mas também para atividades diurnas (oficinas, cursos de artesanato, penteados, leituras, jogos, etc.)
Referências bibliográficas
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Certeau, Michel (1994). A invenção do cotidiano – Artes de fazer. Petrópolis : Vozes.
Fernandes, José Genésio (2000) Leitoras de Sabrina: usuárias ou consumidoras? (Um estudo da prática leitora dos romances sentimentais de massa) Tese de doutoramento em Semiótica e Linguística, USP.
Figueiredo, Cândido. Problema da colocação de pronomes (suplemento às gramáticas portuguesas). 5ª, ed, Lisboa : Livraria Clássica Editora, de A. M. Teixeira & Cia. Filho, 1928.
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