Homem comum, de Philip Roth

Homem comum, de Philip Roth

Esta seria a história de um homem comum, se não tivesse sido narrada por Philip Roth! Se a inexistência da estrutura de capítulos poderia fazer supor um livro escrito de um fôlego só, para uma leitura ligeira, é ledo engano! Porque o tema é aquele do encontro do homem com a sua própria morte, não a morte em seu sentido abstrato, distante, que virá, mas que a esquecemos no cotidiano. Aqui, a morte é constante, contínua.

A cena primeira é do enterro do herói. Num cemitério judaico praticamente abandonado, mas onde estavam enterrados seus pais. À cerimônia acorrem o irmão Howie; os dois filhos do primeiro casamento, já homens feitos, Randy e Lonny; a filha do segundo casamento, Nancy, além de alguns antigos colegas da Agência de Publicidade em que trabalhou. À beira do túmulo, Nancy explica a escolha por aquele cemitério – para que o pai descanse junto a seus pais; Howie recorda cenas da infância, do trabalho que o irmão mais novo fazia para o pai, sempre cuidadoso e diligente, na joalheria que sustentava a família em Elizabeth; depois Lonny tentou falar com um torrão de terra não mão, mas não conseguiu e seu irmão Randy o segurou dizendo apenas “Descanse em paz, pai”.

É depois desta cena no cemitério que começam as rememorações da vida, com um narrador em terceira pessoa: conta-se a vida deste “homem comum”, não nominado, que na infância foi operado de uma hérnia tendo mãe e pai a seu lado. Recuperar esta cirurgia fará sentido na sequência desta história de uma vida que não foi mas poderia ter sido: tudo girará em torno da doença cardíaca que o acomete ainda quando em plena atividade como Diretor de Artes da agência.

A cronologia da história pode ser recuperada depois da leitura, porque o presente é entremeado de memórias do passado, e estas não aparecem segundo seus acontecimentos na sequência temporal, mas segundo o que no presente faz emergir algo do passado. Este é um dos encantos deste livro!

A história seria simples e comum: menino que começa trabalhando para ajudar o pai; que entra para a Universidade e cursa Belas Artes pensando em um dia ser pintor: que conhece e se apaixona por Cecília, sua primeira mulher, com quem terá dos dois filhos homens Randy e Lonny. Os filhos fazem-no abandonar qualquer veleidade de sobreviver como pintor: emprega-se numa agência de publicidade e se torna um “artista comercial” de sucesso. Na agência conhece modelos, conhece mulheres e leva uma vida de um homem mulherengo. A separação ruidosa acontece quando ele se apaixona por Phoebe, que será sua segunda mulher e com quem viverá mais de 10 anos. Deste casamento nascerá Nancy, a filha generosa que manterá relações com o pai ao longo da vida. No entanto, aos cinquenta anos novamente uma paixão avassaladora com uma modelo dinamarquesa de 24 anos, Merete, que se tornará sua terceira mulher num casamento que terá pouca duração desde que os problemas sérios da saúde do “homem comum” surgiram. Esta seria a sequência de uma história sentimental sobrecarregada de traições, de mentiras, cuja narração vem carregada de arrependimentos e de angústia.

A segunda cronologia é aquela das doenças: primeiro, ainda na adolescência, a cirurgia da hérnia; depois no auge da carreira, já casado com Phoebe, começa a se sentir fraco, mal e ele mesmo vai para um hospital: diagnóstico de uma apendicite e peritonite. A recuperação foi difícil e demorada. Teve então toda a presença e constância de Phoebe. Depois começam a aparecer os problemas cardíacos. A primeira intervenção, demorada, derruba por completo sua então mulher, Merete, que não consegue acompanha-lo, o médico exigindo que fossem contratadas enfermeiras para cuidá-lo. Então conhece a enfermeira Maureen, com quem, obviamente, terá um longo caso. Depois da separação de Marete e com a aposentadoria, resolve ir viver na praia muito próxima àquela das férias de sua infância. Lá pretendia se dedicar à pintura. E o faz por um tempo. Mas os problemas cardíacos vão se avolumando e ele a cada ano tem uma internação e uma intervenção.

É deste período de vida solitária que vem toda a narrativa permeada pelas reflexões que o “homem comum” vai fazendo sobre sua própria vida, cuja história, se um dia ele a escrevesse, teria por título Vida e morte de um corpo do sexo masculino. Nenhuma crença num futuro depois da morte: ele abandonara o judaísmo logo após seu bar mitzvah. “A única coisa que havia era o corpo, nascido para viver e morrer conforme o que fora estabelecido pelos corpos que viveram e morreram antes.”

Mesmo tendo três filhos, mesmo tendo tentado, em sua casa da praia, ensinar pintura a outros velhos aposentados, é a solidão o que o acompanha depois de ter desperdiçado seu tempo, perdido suas mulheres em troca de outras mulheres. Seus filhos homens, criados pela mãe, odiavam-no! Sua filha mulher era a única que ainda o frequentava e que lhe dava qualquer apoio. Vivia solitário, na praia:

Quanto tempo uma pessoa pode passar olhando para o mar, mesmo sendo o mar que ela ama desde criança? Quanto tempo ela pode ficar vendo a maré subir e descer sem se lembrar, como se lembraria qualquer um num devaneio  à beira-mar , que a vida fora dada a ele, como a todos, de modo aleatório e fortuito, e apenas uma vez, sem nenhum motivo conhecido ou passível de ser conhecido?

[…]

… quanto tempo um homem pode ficar relembrando os melhores momentos da meninice? Por que não desfrutar os melhores momentos da velhice? Ou seria o melhor da velhice justamente isto – relembrar com saudade o melhor da meninice, aquele rebento tubular que era sue corpo, que acompanhava as ondas desde lá longe, onde elas começavam a se formar, vinha carregado por elas com os braços voltados para a frente, como se fossem a ponta de uma seta e o resto do corpo magricela vindo atrás fosse haste da seta…

Este desconsolo da velhice – “A velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre” – acompanhado de tantas dores e doenças, desta falta de horizontes que carrega a inveja dos corpos sãos, que enxerga na potência dos outros sua própria impotência, que traz a mesquinhez. Estes são os ingredientes com que o leitor se deparará e que ensinarão a dificuldade de assumir: “Estou com setenta e um anos, e este é o homem que fiz de mim. Foi isso que fiz para chegar aonde cheguei, e estamos conversados!

Um dos episódios mais insólitos e carregado de alusões é sua visita aos ossos de seus pais no velho cemitério judaico, e a conversa longa que mantém com o coveira que estava abrindo uma nova sepultura na terra. Ele vai perguntando pormenores, toda a técnica do cavar, do alisar o chão do fundo, as paredes laterais, para que tudo fique perfeito para a família e para o morto ali depositado, incluindo o recorte em quadrados da grama para ser posta sobre o monte de terra para que tudo pareça bonito e não revolvido.

O difícil, o quase impossível é assumir o “estamos conversados” quando, como é o caso deste nosso “homem comum”, o passado lhe traz tantos arrependimentos que somente aparecem quando a solidão se torna concreta, tão solitária que ele sozinho se interna no hospital para outra intervenção, desta vez na carótida esquerda, em que ele pede, ao contrário de quando da intervenção na direita, lhe dessem anestesia geral, de que não mais acordará.

 

Referência. Philip Roth. Homem comum. Tradução de Paulo Henriques Brito; São Paulo : Cia. das Letras, 2007.

Conteúdos de ensino e conteúdos escolares: em defesa de uma escola de sistematização de conhecimentos produzidos pelas práticas sociais

Conteúdos de ensino e conteúdos escolares: em defesa de uma escola de sistematização de conhecimentos produzidos pelas práticas sociais

Nesta conversa de muitas vozes, para discutir a questão do projeto político-pedagógico e autonomia das escolas indígenas, os professores Bruno, Isaac, Pierângela e Agnaldo (2) me deixaram em maus lençóis, pelas exposições que fizeram e que me cabe debater. Vou tentar, de um lado, organizar um pouco as quatro exposições para estabelecer um conjunto específico de questões que o debate poderá aprofundar e, ao mesmo tempo, fazer a correlação dessas questões com o que talvez eu pudesse trazer, da minha área, para esta discussão. Vou tentar isso muito rapidamente, para o debate ser mais amplo, já que como debatedor sou estranho à especialidade da educação indígena e devo, por isso mesmo, ter uma participação bem pontual.

Eu diria que nas quatro exposições há três pontos que são essenciais e comuns. O primeiro ponto é a correlação com a comunidade: a escola como algo que pertence à própria comunidade, uma instituição assumida pela própria comunidade indígena, mas que não é produto cultural dessa comunidade, tal como é assumida. Ao apontar esta questão estou querendo afirmar que a ‘importação’ pelas comunidades indígenas, quer como imposição de fora para dentro, quer como importação interna do que é externo, a instituição ‘escola’ entra para o meio indígena com problemas semelhantes àqueles presentes em toda a escola de nossa sociedade judaico-cristã-ocidental branca: o tempo da escola é um tempo em que você se separa do que é o tempo da vida para, supostamente, estar num tipo de instituição (culturalmente assim constituída no Ocidente a partir do Século XVI) que cria possibilidades de trabalho em seu interior mas, ao mesmo tempo, cria problemas precisamente porque concebe seu tempo como umt empo de separação da vida para preparar-se para a vida, como se estar na escola fosse uma espécie de ‘pausa’ no viver.

O segundo ponto que considero comum as quatro exposições é a definição ou redefinição do que nós poderíamos chamar de conteúdos escolares. Vejam que eu não estou falando “conteúdos de ensino”, eu estou falando “conteúdos escolares”, pensando em evitar o problema, digamos assim, que nós temos na nossa escola. Como a nossa escola é dividida em disciplinas, em função duma longa história da ciência e da relação da escola com o conhecimento, ou de um processo de seleção do que é julgado importante e correto da herança cultural – seleção que não se faz sem relações de poder e de exclusão. Ao conjunto selecionado chamamos de “conteúdos de ensino” de cada disciplina. Contrapondo a estes conteúdos de ensino, estou querendo chamar de “conteúdos escolares” ao conjunto de temas, de assuntos e de problemas ‘contaminados’, no sentido bom da expressão, do que nos mostrou o Isaac no vídeo e sobre que falou imediatamente, especialmente o exemplo do pai que busca a filha, que já está ficando moça, porque precisa aprender a fazer fazenda para vestir o marido e porque precisa aprender a fazer a cesta. Esta diferença entre “conteúdos de ensino”, produtos de uma seleção excludente realizada com base em relação de poder e “conteúdos escolares”, produtos das necessidades culturais de uma comunidade, parece mostrar que a instituição escolar, tal como ela foi criada no mundo ocidental, e a instituição necessária para as comunidades indígenas são coisas distintas. Quer dizer, é impossível você ensinar na escola a fazer canoa, e graças a Deus não se ensina na escola a fazer canoa. Porque, no dia em que se transformarem todas estas manifestações culturais e materiais, que são resultado de uma história de uma comunidade, em conteúdos escolares, ninguém mais vai saber nada, e o mundo em que se vive já será outro. Porque assim como nós não conseguimos aprender muitas das coisas que nos ensinam na escola, e se fazer coisas se transformar em conteúdo de ensino, deixaremos de aprender a fazer as coisas. E isso nos coloca, portanto, a questão de repensar a escola, não na perspectiva como eu a pensamos e com o conjunto de formas de conhecimentos retirados da história e transformados em conteúdos. Na nossa escola, tradições que nela são ensinadas já não são mais vividas, são história. Os exemplos apresentados [pelos professores indígenas] nos mostram a presença do vivido na escola como conteúdo escolar. Para nós é muito difícil repensar a escola engajando-nos nos acontecimentos do vivido, porque perderíamos nosso terreno firme, supostamente a ciência de onde retiramos o que ensinamos. As escolas indígenas retiram o que ensinam da vida, das necessidades da vida e estão organizando suas escolas considerando estas necessidades. Repensar nossos conteúdos de ensino como conteúdos escolares me parece bastante difícil e talvez este seja o ensinamento que a escola indígena pode transferir para a nossa escola, mas isso implicaria numa mudança não só da escola e de suas perspectivas mas de nossa cultura e de nossos modos de ser.

O terceiro aspecto que me pareceu comum nas três exposições é relativo às dificuldades em pensar a educação. E “pensar a educação”, aqui, quando essas expressões apareceram, elas apareceram como educação escolar. Todos os vestígios, em todas as quatro falas que tocaram esse tema, apareceram não como dificuldade em pensar “a educação”, mas como dificuldade de pensar “a educação escolar”. E aqui eu estou querendo fazer uma distinção enorme, mais ou menos no estilo da distinção que Agnaldo trouxe, quando disse: “por que o projeto tem que ser pedagógico, quando ele, sendo um projeto político, já é automaticamente pedagógico?” Porque todo projeto político contém uma pedagogia e toda pedagogia contém um projeto político. Nessas dificuldades de pensar a educação – e aqui nos remetemos à educação escolar – e de fato o que talvez devêssemos fazer é retirar este adjetivo “escolar” para recolocar a questão da educação. Três pontos foram apontados ou três dificuldades: 1) como a comunidade pode pensar essa educação? Importante: como fazer emergir a educação como um tema da comunidade? – isto é comum a todos e a todo um grupo; 2) a dificuldade de formação dos professores; e aqui são apontadas como dificuldades a formação de professores da etnia como os não pertencentes à etnia e que atuam dentro da escola; 3) a presença, na escola, do professor branco; quer dizer, no sentido em que esse termo “branco” tenha o sentido mais profundo em que eu possa usá-lo, isto é, um sujeito não aberto a outras culturas, tipicamente europeizado, autocentrado em sua própria cultura e que impõe a sua cultura às demais culturas.

Eu queria também colocar aqui alguma coisa que eu tinha pensado como aquilo que gostaria de trazer ao debate, e faço portanto aqui uma segunda parte. Eu vou pensar em voz alta, com algumas anotações que fiz, e vou pensar com vocês porque, na verdade, só vocês é que têm condições de aprofundar as questões ou mostrar sua não pertinência – isto quer pelas suas práticas de trabalho na escola indígena, quer pelas reflexões que já vêm fazendo sobre essa prática (veja: esse é o quarto seminário, é o primeiro a que eu compareço, e compareço apenas a esta sessão). Pode ser que as ideias que vou levantar sejam absolutamente já vencidas, já discutidas ou ideias absolutamente inadequadas.

Já que nós falamos aqui em “projeto” e tentamos ligar a palavra “projeto” com a palavra “autonomia”, eu gostaria de discutir um pouquinho a noção de projeto. A civilização ocidental judaico-cristã em que nos constituímos, certamente se caracterizou por uma herança que nos vem desde os gregos e que se transformou, digamos, naquilo que é tão comum ao dia a dia, está tão incorporado em todos nós que nós, em geral, não o “sacamos” para fora para nele pensar.

Estou me referindo à seguinte questão: o espírito grego e, depois, toda a civilização ocidental, sempre projetou um ideal. Pensem aqui, por exemplo, em Apolo, enquanto a figura do homem; pensem, por exemplo, na escultura de Davi, de Miguelângelo e, portanto, também na figura da beleza humana; pensem isso na arquitetura ou na escultura. A nossa civilização projetou um ideal e a partir desse ideal projetado começa a trabalhar o mundo, as pessoas, as coisas e suas relações para realizar o que foi projetado. Isto é, a nossa cultura é uma cultura que projeta um ideal e cria a infelicidade por não encontrá-lo e por isso precisa torná-lo concreto, realizá-lo. Depois dos gregos, o cristianismo cria ou projeta a noção de santidade, por exemplo, e cria a noção de pedado, a noção de culpa. Todo e qualquer gesto que você faz e que não se conforma, não se coaduna com a vida cristã (santa), produz o sentimento de culpa. Penso que uma das características da nossa civilização – e sobre a qual nós, em geral, não pensamos – é esta projeção dum ideal, esse tentar, numa luta diária, contínua, constante, cotidiana, de transformar o real no ideal. Tomemos como exemplo a “anorexia” contemporânea do corpo feminino: projeta-se como ideal que mulher deve ser magra… e aí todas as  mulheres começam a fazer regime, a fazer isso ou aquilo para serem esbeltas, magras, etc.; muitas tornam-se anoréxicas, e é um processo de sofrimento. Nós projetamos algo, e o real já não nos serve, porque não é cópia dessa projeção. Nós mexemos, labutamos o tempo todo para alterar o real e torná-lo igual ao ideal projetado. Talvez isso seja uma característica dessa nossa herança grega e que vai no sentido contrário, enquanto cultura, de culturais orientais, e seguramente, das culturas dos quatro professores que acabam de falar. Em lugar duma projeção dum ideal futuro e um trabalho de formação de sujeitos à imagem e semelhança deste ideal, a educação que nos apresentaram olha para sua tradição, para os seus mitos, para sua história, para a vida cotidiana e flui segundo as coisas, segundo a natureza e não contra a natureza para transformá-la no ideal desejado.

E percebam que uma das contaminações em que isso aparece, dessa projeção, de não seguir como a natureza é, projeta-se como consequência, por exemplo, na questão da terra, levantada pela Pierângela. A redução do espaço físico disponível reduz as possibilidades de caça e de pesca – e na natureza, tem tempo em que eu não posso caçar para que a caça continue existindo, tem momentos em que não há frutos a serem colhidos porque não é o período de coleta desses frutos e, por isso, quanto maior for o espaço que eu tiver, maiores as possibilidades de suprir as necessidade de comida com produtos de outro lugar. Esta restrição da terra, esta restrição do espaço produz a restrição do deslocamento dos sujeitos; produz a necessidade de você alterar o real para mater-se comendo, isto é, criar gado, arar a terra e torná-la agricultável mesmo à custa de agrotóxicos ou pesticidas. Outras alternativas se tornam difíceis quando o espaço é restringido. Percebam que a cultura era outra, a cultura era “hoje eu estou comendo abacaxi porque está na época da dar abacaxi”; em, julho vou comer laranja porque tem mais laranja em julho”, enfim, seguindo a natureza e como ela produz e se reproduz no ciclo das estações. Ora, o que é que de pior talvez nós tenhamos que repensar – e aqui vocês são os que estão nos ensinando isso cada vez mais – é que nós cristãos ocidentais, ao invés de pensarmos a natureza e vivermos harmoniosamente com ela, nós projetamos algo, por exemplo uma certa quantidade do que temos que comer, tornamos o projetado em necessidade e agimos para transformar a natureza para suprir uma necessidade que não é natural, mas cultural. Então, tem que ter uva o ano inteiro, e tem que ter uva mesmo onde não se produz uva; e tem, que se comer uva em São Paulo, tem que se comer uva no Nordeste, tem que se comer uva em qualquer lugar e em qualquer dia do ano. E aí nós alteramos a natureza e convivemos em desarmonia com ela. Essa projeção duma ideia de futuro não só produziu noções como a noção de culpa, mas também produziu aquilo que a natureza está nos mostrando, isto é, que o mundo é finito e que nós não podemos eternamente estar modificando esse mundo como se esse mundo voltasse ao equilíbrio natural, como acreditava o homem do Século XVIII. As questões ecológicas estão aí par anos mostrar o quanto estávamos errados ao imaginar a natureza como infinita e com o eterno retorno a seu próprio equilíbrio.

Eu vou brincar aqui com um exemplo didático meio inadequado. Qualquer outra cultura sabe disso, menos nós que esquecemos: a água que eu derramei aqui jamais será a mesma, porque se eu alterei a natureza, esta água só poderá se transformar numa água potável de novo, depois dum processo de transformação e a água que volta não é mais a mesma que saiu daqui. Ora, todas as outras culturas orientais ou não ocidentais sabem disto, menos os prepotentes ocidentais. E chegamos ao final do século XX, começo do século XXI, realizando um projeto que vem desde o século XVI, que o projeto de expansão do mundo europeu, de imposi9ção da cultura europeia aos povos americanos e o genocídio praticado ao longo desta imposição. Na verdade, esquecemos que as relações na natureza – se eu fiz X, digamos assim, eu tenho como consequência Y, isto é, se X produz como consequência Y, eu nunca mais vou ter as condições anteriores de mundo, porque agora existe Y no mundo.

Estando todas as coisas, todas as realidades correlacionadas, aquilo que nosso prepotente conhecimento ocidental afirmava – tudo voltaria ao estado de equilíbrio anterior (“eu posso produzir X de novo”), esquece que agora existe Y, e agora eu tenho que tratar do mundo com o que Y é, ou “das condições biológicas que permitem uma clonagem”, havendo clonagem, já é outro mundo, onde clonados já existem. Então eu tenho que pensar o mundo com esta nova realidade.

Bom, como é que a educação nacional, a educação neste mundo, se fez? Foi uma educação que projetou o Homem Ideal e com base nessa projeção, nessa ideia de Homem Ideal, aquele que se quer ou aquele que não existe, que se quer produzir, que é futuro, que é idealizado – olhou para o passado e selecionou da herança cultural somente o conjunto de instrumentos que, em certo momento desta sociedade, foi considerado como capaz de produzir, de funcionar como alavancas de construção desse Homem do futuro. E, portanto, também jogou, ao mesmo tempo, para a cesta de lixo, um conjunto das histórias, mitos, narrativas que não compõem mais a formação do homem idealizado, entre nós, racional, comedido e calculista.

Essa é, para mim, fundamentalmente – pensando fora da especialidade – a grande diferença entre uma escola indígena e uma escola branca. A escola branca não opera com o seu mundo, mas opera com uma idealização de um mundo que quer construir e sobre o qual, em geral, não se discute. Entre nós, esta educação do homem ideal, do homem inexistente, se condensa em três grandes eixos: a ideia de culpa por não ser o ideal; a ideia de trabalho como tarefa de construção do futuro e não como vida e a noção de incompetência contínua: estamos sempre incompetentes, sempre somos incompetentes, cada vez mais nós precisamos estudar mais para poder chegar a esse ideal a que não vamos chegar nunca.

Nós nos dedicamos, no momento presente, a construir o futuro, e não percebemos que estamos de fato vivendo este presente. Já a moça índica, que tece o tecido que o marido vai usar, isto é tempo de vida, não tempo de preparação para a vida. Para nós isso seria trabalho, no sentido de tarefa para construir o futuro de que nós próprios estamos alijados, porque nós temos um tempo limitado. Nosso consolo é ficar pensando nos outros que vão chegar lá. Por isso o trabalho não é alegria, é tarefa.

Ora, acho que a escola indígena se construirá, e na sua autonomia poderá se construir, jogando na cesta do lixo essa história de quintos anos. Ela deu no que deu. Nós próprios temos que jogar isso na cesta do lixo. E aí uma nova construção pode tornar possível, inspirada no que as quatro exposições trouxeram: a referência constante à sua comunidade, aos conhecimentos produzidos na sua comunidade, à vida na comunidade, ou seja, a escola não é um  espaço de construção do homem ideal do futuro, mas a escola é o lugar duma preservação, no bom sentido dessa expressão usada aqui pelo Agnaldo, de preservação daquilo que é uma cultura e não o genocídio e a morte de uma cultura. A escola ao estilo ocidental será uma escola – aqui, para os professores indígenas – não só de um genocídio, mas também de um suicídio.

A segunda grande questão, que me parece fundamental, é pensar se somos povos, estamos em correlação com outros povos, isto é, com outras culturas. E na nossa própria cultura e do nosso próprio interior, há os saberes que as práticas permitem. No filme que vimos há o pai que diz: “Veja, eu tenho uma força de cavalo!”, mas que não é só a força, é o toque do machado numa certa disposição – que não é do sentido contrário das fibras da árvore, mas no mesmo sentido das fibras da madeira – que permite o corte que vimos. Esses saberes, produzidos pelas nossas práticas sociais, no interior de uma cultura, eu chamaria de “artefatos”, como arte que fazemos e que nasceu na nossa própria cultura. Mas como há outras culturas que são a nossa alteridade, os artefatos da outra cultura entram na nossa cultura não como artefatos, mas como “tecnologia”. Veja, eu estou querendo aqui dizer que aquilo que é um modo de fazer canoa para os Ashinika é um artefato própria dessa cultura, enquanto a escrita não é um artefato para este povo, mas uma tecnologia. Aliás, o Isaac levantou isso todo o tempo: será que a prioridade é escrever, mesmo? É na verdade um artefato da cultura ocidental que entra para uma cultura, como a dos Ashaninka, como uma tecnologia externa; isto é, toda tecnologia é um corpo estranho dentro do corpo do movimento normal de uma sociedade. Notem, por exemplo, que a escrita não é tecnologia para nós; é um artefato na cultura ocidental. Você não sabe quem inventou o alfabeto, quando é que se começou a escrever no mundo ocidental. A escrita com que convivemos tem longa história. A entrada duma tecnologia tem data, tem autor, tem época e você pode traçar a história de cada “tecnologia importada” no interior da cultura que a importa. Na cultura que a produz como artefato, é preciso fazer uma arqueologia, buscar indícios de seus começos, contentar-se com os rastros e com os anonimatos.

Não se trata de nós nos transformarmos em sociedades fechadas, nem um povo indígena quer se transformar numa sociedade fechada. A única sociedade que se transformou numa sociedade extremamente fechada foi a sociedade judaico-cristã, que ficou impenetrável para as culturas de fora, e só no final do Século XX é que começa a ler coisas como o Taoísmo, que começa virar aquilo que a Pierângela apontou com precisão: “espero que essa moda dure bastante” [no contexto da fala, a educação indígena como uma moda entre os brancos]. Nós produzimos uma sociedade extremamente infeliz, de gente excluída, e a moda de querer olhar para vocês é como dizer: talvez nós tenhamos que aprender agora para trazer, da cultura de vocês, aquilo que são artefatos, que entrariam para nossa cultura como tecnologia.

O que não dá para pensar, então, é que a escola indígena, por exemplo, seja uma escola das tecnologias. Porque se eu pensar a escola indígena como a escola das tecnologias, eu estou sempre pensando essa escola como o lugar do estranho, do externo, do que vem de fora. É preciso encontrar o meio do caminho, em que as próprias experiências e saberes são sistematizados na escola, são os nossos próprios artefatos; e em que os saberes produzidos como artefatos de outra cultura nos permitem apropriar-nos da experiência humana. Assim, e nesse sentido, a escrita é para os povos indígenas uma tecnologia enquanto que, para nós, é um artefato. Agora, o que é que se faz com essa tecnologia, nesse contato entre os povos? Isso é, aquilo que eu busco de lá para cá e que passa a ter uma história, só passa a pertencer realmente aos sujeitos que a incorporam quando essa tecnologia passa a ser produzida pelos próprios sujeitos, isto é, quando aquilo que era tecnologia se transforma em artefato. A criação de gado entre os povos Wapixana entra hoje como tecnologia; só vai se transformar em artefato na medida em que essa tecnologia é alterada pelo próprio processo de produção de gado entre os Wapixana. E aí sim, nós teremos um artefato e, portanto, de novo uma coisa cultural Wapixana, porque nenhum povo ficou ou vai ficar eternamente fechado em si próprio.

Num certo sentido, todas as culturas funcionam – e sempre foram, só que hoje nós temos consciência disso – como uma espécie de esponja: elas sugam também a seiva que circula em seu outro, para poder existir; quanto maiores e mais amplas forem as relações com os outros, mais se enriquece a própria cultura e sua própria seiva. Mas para que este processo “esponjoso” se dê, não pode haver relações de imposição, relações de poder que não permitam escolhas.

Eu acho que hoje, no final do século XX, nós estamos tendo consciência de que aquilo que nós impusemos, como ocidentais, a todos os demais povos produziu uma Terra triste. E como o homem não nasceu para ser triste, mas nasceu para ser feliz, nós temos hoje uma consciência trágica da infelicidade que produzimos. Ora, a tecnologia só faz sentido se ela virar artefato e produzir, para o povo que a incorpora, maior nível de felicidade. A modernidade que nos ofereceu, em seus estertores, a ideologia neoliberal, por exemplo, com a entrada do Brasil no mundo global: produziu só infelicidade para o Brasil. Infelicidade que vai desde você não ter para quem reclamar se a tua conta de telefone vem com cobranças de várias ligações pelo mundo, que você não fez, mas vai ter que pagar porque tem que ter um laudo técnico que diga que não foi você que fez, e não sei mais o quê. Neste momento estou vivendo o inferno da burocracia incompetente resultante da privatização dos serviços telefônicos: a Embratel está me cobrando ligações que não fiz, reclamei e ela me mandou para a Telefônica, que me mandou para a Embratel, que me mandou para Anatel. E eu passei assim, no telefone 0800 o dia inteiro, ligando para ver se conseguia não pagar ligações para vários países, onde nem conheço ninguém.

Uma tecnologia nova, que é incorporada para produzir maior infelicidade, não merece a incorporação, mesmo quando essa tecnologia seja algo aparentemente tão útil, como é a nossa inútil escrita. Inútil inclusive para nós, entre nós, porque ela não produziu, entre nós, felicidade e nem memória, produziu depósitos. Depósitos de memórias e não memória. Nesse sentido, ela é responsável por uma espécie de produção duma infelicidade.

Suponho que a distinção aqui traçada entre artefato e tecnologia também é uma questão que precisa ser discutida, porque ela aparece precisamente na dificuldade que vocês colocaram como a redefinição ou definição do que seriam conteúdos e do que seria a educação indígena.

Não sei se o que eu trouxe ajuda a clarear os pontos de discussão. Há muitos outros pontos, mas estes são aquele que pude apontar, neste momento, para abrir o debate.

 

Notas

 

  1. Este texto é resultado de minha participação, como debatedor, na mesa-redonda “Projeto Político Pedagógico e Autonomia”, no IV Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, durante o 13º. COLE, realizado em julho de 2001. A mesa era composta por quatro professores indígenas, do chão da escola e minha função era ser o debatedor de suas exposições. Assim, este texto é uma transcrição de uma fala, depois revisada, mas como sempre mantendo suas origem na oralidade, para publicação no volume organizado por Juracilda Veiga e Wilmar da Rocha d’Angelis (orgs) Escola indígena, identidade étnica e autonomia. Campinas, ALB/Instituto de Estudos da Linguagem/Unicamp, 1a. Edição 2003, p. 65-71.
  2. Referência aos quatro professores indígenas cujas exposições antecederam a sua na mesma mesa-redonda.
Tudo depende, não é D. Rosa?

Tudo depende, não é D. Rosa?

Donde procede o discurso de defesa dos direitos humanos feito pela presidenta do TSE na diplomação de Jair Bolsonaro? Sua defesa dos direitos das minorias, sua defesa dos direitos fundamentais do homem, tudo isso tão ausente em seus votos “pela colegialidade”, tão longe de sua falta de determinações de investigação do que aconteceu nas eleições que presidiu, tudo isso faz perguntar de onde procede, afinal, este discurso.

Disse a ministra: “a garantia à estabilidade dos direitos essenciais é uma das funções mais relevantes e irrenunciáveis do Poder Judiciário”. Mas que poder judiciário? Onde ele estava quando se jogava na lama a honra do candidato oponente? Um ministro do tribunal que ela preside chegou a defender a liberdade às mentiras (chamadas com o nome pomposo de “fake news”) porque havia espaço nos comentários para desmentir… e que qualquer ação contra as mentiras, contra as calúnias, era impossível, nada se poderia fazer porque é livre a manifestação da opinião!!! A honra e o respeito à honra não faz parte dos direitos essenciais: é isto que deveremos deduzir juntando discurso e ação deste tribunal.

Agora, diplomando seu candidato ou no mínimo o candidato que saiu beneficiado pela ausência do Judiciário, pelo acovardamento do judiciário, não adianta fazer discursos. Aliás, se ela não sabe, eles nem o compreendem e nem o ouvem. Porque a questão, D. Rosa, qualquer que seja a argumentação que se lhes oferece, é respondida com a mesma frase: “mas estamos livres do PT”, lema que o judiciário brasileiro ajudou a construir com esmero.

Num judiciário em que provas técnicas não importam, que ausência de provas não derrubam convicções, de nada adianta pensar que agora, dadas as “garantias” que quer oferecer este poder, ficaremos todos tranquilos nos próximos anos, que os direitos serão respeitados! Diga isso ao bombado bolsomínio que bate no primeiro gay que encontra pela rua! Sua violência vai diminuir por que a D. Rosa diz disse que o Poder Judiciário estará atento?

Nada de seu discurso me convence, principalmente porque proferido pela mesma pessoa que arrazoa juridicamente a favor de uma causa, mas contra seu próprio arrazoado, vota pela “colegialidade”… ou que condena reconhecendo não haver provas do crime, mas a literatura lhe permite condenar!!!

Desculpe D. Rosa, foi longo seu discurso. Aparentemente apropriado, uma aula longa sobre direitos humanos, mas do meu ponto de vista sua procedência real não é a defesa dos direitos para todos, é o medo de que o apequenado STF venha a ser tão vilipendiado como serão as minorias deste país nos próximos anos.

O camarote está cada vez mais confortável

O camarote está cada vez mais confortável

Todos aqueles que em 28 de outubro passado adquiriram o direito ao camarote estão rindo à toa. É que o espetáculo se iniciou antes do esperado e de forma surpreendente.

Para os atentos expectadores dos movimentos dos atores, chamam atenção:

  1. as frituras de nomes para os ministérios. Eles surgem aqui e acolá, às vezes até em tweet de membros do clã. Depois desaparecem se a força do nome não tem força. Mas se tem força, abre-se novo ministério para acomodar o nome com força. Tanto que dos 15 ministérios prometidos na campanha, já temos mais de vinte e o governo de transição não acabou ainda. Um espetáculo digno dos expectadores;
  2. alguns nomes nomeados espantam, como o do ministro das relações exteriores, o homem que propõe uma diplomacia exoplanetária para incluir nas relações de amizade outros povos ainda não contatados, para além da submissão à diplomacia mimética, isto é, a de espelho do que quer Trump;
  3. um segundo futuro ministro que espanta é aquele que ocupará a pasta da educação e cultura: a favor do Escola sem Partido (que até o guru filosófico do grupo, o Sr. Olavo Carvalho, considera uma besteira), já a favor da profissionalização no ensino médio e defendendo a estapafúrdia ideia de que nem todos querem fazer curso superior, de modo que a rede de ensino superior federal poderá ser reduzida se não em número de universidades, ao menos nas vagas que oferece;
  4. não deixa de levar ao riso outro ministro poderoso, o Sr. Onix Lorenzoni, que confessou ter recebido dinheiro de caixa 2, um crime eleitoral, de que pediu desculpas e foi absolvido por seu futuro colega de ministério e Pai Supremo, o Sr. Sérgio Moro. Mas ele não se cansa de dar espetáculo como a declaração de que o assunto já foi resolvido entre ele e Deus e ele está agora de consciência tranquila (aquela mesma que logo após a primeira comunhão, chegavam os meninos depois de confessarem sua masturbação aí pelos 8 ou 10 anos);
  5. obviamente, a Agricultura foi entregue à Rainha do Agrotóxico. Resta saber se os compradores da soja brasileira vão querer o produto com que alimentam seus porcos europeus… ou fazem suas comidas típicas chinesas. Mas isso não é problema algum, que por aqui tudo pode;
  6. fica por conta da ministra-pastora, para quem “Não é a política que vai mudar esta nação, é a igreja” de modo que caminhamos a largos passos para um comando teocrático por inspiração de pastores que vem propondo a “cura gay”. Quem não consegue rir com estas piadas, confortavelmente instalado em seu camarote, já perdeu por completo o senso de humor. Informo que o lugar de deus no comando já está ocupado pelo superministro que tem poder de absolvição dos pecados. Bolsonaro que se cuide, pois pode virar uma “rainha da Inglaterra”;
  7. de qualquer forma, os apoiadores ‘nacionais’ todos podem ir e voltar à vontade ao Posto Ipiranga, sabendo de antemão que nas primeiras viagens irão bem vestidos e perfumados, mas logo perderão o perfume, depois a camisa, depois as calças e logo, muito logo, até as vestes íntimas irão a leilão para agradar ao mercado e aos capitais. Quando todos estiverem nus, ninguém perceberá a nudez do rei.

Fiquemos neste número cabalístico. Como disse alguém, cujo nome esqueci, se não nos baterem, teremos muito do que rir nos próximos anos. A questão é saber se a força dos risos não preocupará a força das armas. Que São Mourão não nos acuda, que queremos rir no sofrimento: dói menos.

PROCURA DO AZUL, de Thereza Cristina Pusch

PROCURA DO AZUL, de Thereza Cristina Pusch

A grande pureza das coisas

é serem apenas coisas

por isso são reais

e sua voz inconfundível

e serena

 

elas têm todas as palavras

que precisam

e precisam apenas

a palavra que são

e a dizem

perfeita

 

a grande poesia das coisas

é não ultrapassarem

sua própria matéria

existem simplesmente

sem outra razão

ou propósito

que existir

 

Nem tudo que existe

existe realmente

a maioria das coisas

são apenas sombras

de outras coisas

que já forma

que ainda não são

vistas

por um telescópio

 

só o presente é rea

e nesse presente

quantas ilusões de ótica

(Thereza Cristina Pusch. Procuara do azul – extrato)

No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda

No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda

O historiador Michel Pastoureau, que abraça a perspectiva de recuperação da história da vida cotidiana, debruça-se neste livro sobre um período de mais ou menos 75 anos (de 1154, ano do início do reinado de Henrique II Plantageneta – Inglaterra – até a morte de Filipe Augusto, 1223, rei da França). Para apreender a vida cotidiana, o historiador dispõe de documentos, utensílios, móveis, alguma tapeçaria, retratos, brasões e… a literatura.

Pastoureau diz já na introdução:

… um lugar privilegiado coube à literatura cortês, e mais especialmente à arturiana, às obras de Chrétien de Troyes e seus continuadores. Por que esse privilégio? Porque essa literatura, longe de ser simplesmente recreativa, é uma literatura militante, que procura impor sua visão do mundo e da sociedade. Porque, dos meios que representa, ela oferece uma imagem ao mesmo tempo fiel e falaciosa, passadista e visionária, e que ao fazê-lo, pode proporcionar ao historiador ensinamentos mais ricos e matizados que um documento jurídico ou arqueológico.

Em seu estudo, vai traçando um desenho que permite ao leitor aprender – e se informar –  a respeito de um período histórico relativamente obscuro no que concerne ao conhecimento sobre o cotidiano. Ele dedicará seu livro ao estudo desta vida cotidiana, tal como levada pelos membros da pequena nobreza rural, de suas cortes, de seus castelos. E traçará os laços entre esta vida e as instituições então muito fortes: a Igreja e a vassalagem.

Inicialmente, considera o ritmo do tempo: o calendário pertence à Igreja, que define os dias de festas, os dias de trabalho, os dias possíveis para batalhas, os jejuns, os períodos em que o casamento era proibido (aliás, quando vai tratar dos “divertimentos” dos cavaleiros, seremos informados que a Igreja havia proibido não só os jogos (baralho, dados) mas também os torneios que eram chamados e organizados por algum nobre, fora de seu castelo, no campo aberto, e a que compareciam os cavaleiros organizados em grupos. Um torneio era também uma feira: tinha de tudo, ainda que a “batalha” fosse o centro da festividade. Para quem não conhece muito a história da Idade Média, como é meu caso, chamou atenção o fato de que o “duelo” entre dois cavaleiros, tal como vemos nos filmes, é muito recente. Antes, nos torneios, tratava-se de ‘batalhas’ entre grupos. E nestes torneios não havia qualquer pretensão de infligir a morte – ocorrendo, era acidental. Na verdade, o cavaleiro tentava capturar seu adversário e depois negociar sua liberdade. Foi deste sistema que viverão muitos cavaleiros e alguns chegaram a fazer fortuna.

Outra característica é a da hierarquia entre os civis: o sistema de vassalagem. Das terras não há, de fato, uma propriedade garantida. Ela sempre é uma concessão de um senhor mais poderoso, de modo que muitos dos pequenos nobres rurais, mesmo tendo seus castelos, não eram assim tão livres: devia vassalagem ao senhor mais poderoso que lhe concedera seus domínios. E a este senhor devia prestação de serviços, inclusive aqueles de guerras contra outros senhores, através das quais iam aumentando (ou diminuindo) seus domínios. Parece que sempre alguém é vassalo de alguém, vavassalos de vassalos, chegando ao rei que, no entanto, também ele tem que se impor e até mesmo lutar contra senhores de feudos nos limites do seu reino… Aliás, os domínios ingleses no continente, a variação destas fronteiras, se deve precisamente a este jogo de traição a um senhor e a vassalagem a outro senhor…

Os cavaleiros surgem deste meio da nobreza rural. Saem da casa paterna – ou porque sendo primogênitos, têm que aguardar o tempo para assumirem a herdade (embora frequentemente o feudo possa ser dividido entre os vários filhos), ou porque não herdarão e terão que “fazer a vida”. Não é o pai, mesmo sendo nobre e cavaleiro, que treinará o filho. Ele irá viver noutra corte, será aí sagrado depois de seu treinamento (tempo em que age como escudeiro de cavaleiros).  Eles formam um bando de homens preparados para a guerra, que não é frequente – as batalhas efetivas são raras. Andam de feudo em feudo, circulam, buscam aventuras, participam das caçadas dos senhores e vão aos torneios com o objetivo de fazer fortuna.

Outro aspecto que chama atenção é o emprego de brasões neste período. Na verdade, o que hoje chamamos de “família brasonada” como um sinal de distinção, somente se tornou isso muito mais tarde. No período histórico que Pastoureau estuda, qualquer um podia ter um brasão: desde trabalhadores especializados até o senhor do castelo… Em geral, os cavaleiros usavam em seus escudos os brasões do senhor que os sagrara, enquanto estavam em sua corte e participavam de sua vida. Mas outros, que acabavam enriquecendo e formando seus próprios grupos, desligavam-se destas referências de pertencimento para terem seu próprio brasão, suas próprias cores, seus “animais-símbolo”.

Obviamente há um capítulo dedicado às “realidades afetivas”, ao amor cortês, expressão “jamais empregado pelos autores medievais; eles se referem a boné amor, vrai amor e sobretudo fine amor”.

Numa sociedade em que, em geral, os casamentos são acertos entre pais e entre senhores, segundo interesses e alianças, não é o amor e sequer a atração física que costura o encontro entre marido e mulher. Claro que há muitos casamentos clandestinos. Talvez nosso exemplo clássico, mas muito posterior, seja aquele de Romeu e Julieta. Mas como a maioria dos casamentos é um acerto de interesses, a dama vive o tédio do castelo e a ausência de seu marido. E é cortejada pelos seus cavaleiros… que nem sempre visam a posse física (“Raramente se ama o que se possui”), o amor cortês se definindo sobretudo como uma “devoção do amante para com sua dama”.

Aqui, como diz o historiador

Como sempre acontece em história, quando se busca atingir as verdades da alma e do coração, os documentos são mudos. Neste domínio, é ainda a literatura que fornece as melhores hipóteses; mas não passam de hipóteses.

Assim, no Le Chevalier de la charrete” (Chrétien de Troyes, cerca de 1180),  a descrição do encontro de Lancelot com a rainha Guinevere nem há alusão à relação sexual, ela é claríssima:

Lancelot chega enfim ao que buscava: a rainha acolhe sua presença e seu desejo; ele a segura entre os braços; ela o segura entre os seus. A troca de beijos e carícias é tão doce que eles sentem uma alegria incomparável, uma felicidade como ninguém jamais conheceu. Mas do restante guardarei silêncio; são coisas de que não se deve falar. Os prazeres mais deliciosos são aqueles que o narrador não conta.

Como história da vida privada, não poderiam deixar de aparecer no estudo várias questões que fazem este cotidiano: a arquitetura da morada (do castelo, da casa senhorial, a do vassalo), as relações internas ao domínio – a pequena corte e os servos; a alimentação, neste período e entre os nobres, essencialmente carnívora (entre os pobres serão sopas com farinhas e legumes); o vestiário; os hábitos noturnos: dormem em grandes camas e normalmente acompanhados, numa mesma cama chegando a dormir oito pessoas; os serões familiares – nem sempre estes acontecem no salão, mais frequentemente são nos quartos; a hospedagem do viajante que sempre é bem-vindo porque altera o ritmo tedioso da vida no castelo.

E no final, para alegria do leitor, há seis episódios extraídos da literatura cortês! Nada melhor do que, depois de ler o historiador, chegar a partes do que foram suas fontes!

 

Referência. Michel Pastoureau. No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda: França e Inglaterra nos Séculos XII e XIII. São Paulo : Cia das Letras : Círculo do livro, 1989.