por João Wanderley Geraldi | dez 22, 2018 | Blog
Este romance do angolano José Eduardo Agualusa, que vive entre Lisboa e Luanda, tem como personagem-tema a língua portuguesa e dentro desta, o surgimento dos neologismos.
Uma língua falada por diferentes povos africanos, por brasileiros, pelos timorenses no Oriente, e pelos portugueses, obviamente, sempre se enriquecerá com a contribuição de um e outro povo, de uma e outra cultura. O português são muitos! E mesmo no que se costuma chamar de português padrão, mesmo mantidas as estruturas mais fixas da sintaxe (ainda que mesmo aí tenhamos mudanças consideráveis em que, por exemplo, no português oral do Brasil a estrutura é muito mais tópico/comentário do que sujeito/predicado), é particularmente no léxico que as variações acontecem mais rapidamente (inclusive por influência de outras línguas que não aquelas autóctones dos lugares conquistados no passado pelos portugueses).
Pois é a existência dos assim chamados neologismos que dá tema a este romance, e eu diria que eles se fazem tão presentes ao longo do enredo, que acabam se tornando também a personagem central da história.
A ideia de um romance que tematiza a própria língua e suas formas de produzir neologismos, sem cair na tentação técnica de analisar ou mesmo elencar qualquer deles, é brilhante. O que temos?
Uma pesquisadora de neologismos: uma jovem e bonita, Iara, tem por trabalho caçar, em todos os textos disponíveis na internet, vocábulos que não estão dicionarizados. Procura o seu velho “professor” – a personagem não será nominada, mas é a narradora da história – preocupada com fato de que lhe apareceram, de repente, um conjunto enorme de novas palavras, os neologismos perfeitos! E como não é costume, parece-lhe que existe uma fonte que está gerando estes neologismos.
Começa então uma espécie da “caça” à fonte geradora dos neologismos, viajando o professor – um homem acima de 80 anos – com uma jovem pesquisadora que utiliza seu programa para encontrar novas palavras.
Nestes deslocamentos espaciais – viagem à Angola, viagem ao Brasil – vão aparecendo os novos personagens, sempre escritores e poetas, com os quais conversam o professor (e escritor) angolano e a jovem Iara. Assim, no Brasil vão encontrar um suposto escritor, Alexandre Anhanguera, em Olinda, precisamente quando este recebia a visita de outro poeta angolano, Plácido Domingo. O nome deste poeta vai ser motivo de referências aos nomes comuns entre portugueses, que no entanto estranham os nomes dos africanos e brasileiros:
Chamo-me Plácido Domingo. Muitos riem sempre que me apresento:
Plácido Domingo?! Ah! Ah! Que engraçado.
Estendem-se a mão: António Barata, Joaquim Rato, Manuel Mosquito.
Barata? Rato? Mosquito? O senhor chama-se rato e ainda ri?!
Em Portugal há muito mais ratos do que leões. Conheço camelos, coelhos, aranhas, leitões, mas nunca tive o privilégio de ser apresentando a um tigre ou uma águia. Baratas, esses, são aos milhares. Uma verdadeira praga. Ao mesmo tempo, multiplicam-se por todo o lado as associações insensatas de apelidos, sem que a maioria das vítimas se aperceba. Esta chama-se Maria do Rego Leal, aquele José Penetra Murcho. Pior ainda são os antropónomos que as pessoas inventam, mutilando outros já existentes, ou recortando e colando partes de vários. No Brasil, os favelados baptizam os filhos com nomes jdos ricos e dos poderosos: Kenedy dos Santos, Washington Cardoso, Suyperman da Silva. Por fim, temos as jintanjáforas, palavras sem significado algum, escolhidas apenas pela sonoridade. Vale tudo.
Entremeados a este enredo de caça à fonte que gerara tantos neologismos, há dois movimentos distintos: um em que se reflete sobre a própria língua, sobre os modos de falar, sobre a vida da língua. Tomemos alguns momentos e enunciados a este respeito, iniciando pelo primeiro enunciado da história:
As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores, desenvolvem-se e fatalmente morrem. (p. 13)
Entre as palavras recém-nascidas a taxa de mortalidade é elevada. (p. 14)
Escreve Moisés da Conceição que a língua portuguesa, sendo já africana na sua matriz, pelo demorado convívio com o árabe, que muito a contaminou, necessita de enegrecer ainda mais, afeiçoando-se à geografia dos lugares onde estão os seus abundosos falantes. (p. 32)
Os livros reproduzem-se, multiplicam-se, quando guardados juntos em grandes quantidades. (p 37)
Anhanguera, a propósito, é um apelido tupi. Significa alma antiga, ou vida antiga, e nomeia uma entidade protectora das florestas e dos animais bravios. Os jesuítas, que no início da colonização portuguesa se dispuseram a catequizar os índios, confundiram Anhanguera com o diabo. (p.46)
“A saudade mais sofrida é a que não se pode partilhar na nossa língua”. (p.52)
Morança é um termo do crioulo guineense. Designa um agregado familiar. E desamparinho, em minha opinião uma das mais belas palavras do crioulo cabo-verdiano, dá nome àquela hora feliz, ao final da tarde, quando o dia cede lugar à noite, o calor esmorece, e os velhos se sentam nos passeios, fruindo o fresco e as cigarras, e vendo as moças passarem sacudindo as ancas. (p. 57
Aristófanes, meu avô paterno, padecia do vício da palavra. […] Conta-se (contou-me meu pai) que certa ocasião um advogado lisboeta, seu velho desafecto, o acusou de grandiloquente. Aristófanes riu largamente: Grandiloquente, eu? O que eu sou é um grande louco ente. (p. 165)
O segundo movimento é uma remessa constante a autores conhecidos, africanos, portugueses e brasileiros. O narrador tem uma particular predileção, confessa-a, por Camilo Castelo Branco (por muitas novas palavras), mas também saúda as novas sintaxes produzidas pelas sequências sintagmáticas exuberantes de um Manoel de Barros, ou um Guimarães Rosa, ou um Machado de Assis, ou Sophia de Mello Brayner Andresen. Esta aparece numa das notas do diário do narrador, quase no início do livro:
Esta noite sonhei com um verso de Sophia. Sonhei que o tinha escrito eu. Fiquei feliz que continuei a sorris mesmo depois de acordar. “O senhor professor parece que viu Deus em toda sua glória”, disse-me Gina enquanto me servia o café. Ter sido Sophia durante alguns segundos não anda muito longe, parece-me, da glória de ver Deus. (p. 16)
Entremeados aos episódios que, digamos, constituiriam um “enredo” linear de busca das fontes geradoras de neologismos, numa pareceria entre Iara e o professor, que acabarão, como é óbvio, fazendo amor, aparece o “milagrário pessoal”. São histórias em geral africanas, onde o diálogo entre as espécies é costumeiro; onde transformar-se de homem em animal e vice-versa é encarado com a maior naturalidade. É precisamente no diário que ele vai anotando estes milagres, passagens, observações do cotidiano. E histórias.
Esta estrutura do romance, em que aparece o milagrário, em que aparecem escritores, em que aparecem os neologismos, em que aparece uma paixão na velhice e sua realização sexual, abre o espaço para a “hipótese” do professor de que as palavras nos foram dadas pelos pássaros! Parece-me haver aí um jogo metafórico: os pássaros voam, cantam, assobiam… os escritores pairam acima do cotidiano… ambos seriam as fontes dos neologismos.
Somente no final do romance, quando o narrador volta para a Angola e de Luanda viaja para uma aldeia desaparecida, Massangano, onde deverá encontrar-se com desconhecidos membros da Associação dos Homens-Pássaros, que lhe cobram a devolução de algo que lhes pertence. Trata-se do “testamento” de Domingos Ferreira da Assumpção, o Quitibia. O documento ele o encontrou numa caixa de sapatos… e por ele se descobre donde nascem as palavras.
Na “economia” do romance, esta “devolução” significaria efetivamente a morte, para a qual ele caminha. O documento é uma metonímia: quem produz vocábulos que os logótetas (definidores de palavras, dicionaristas) recolhem são os falantes e entre eles principalmente os escritores. Ele mesmo fora a fonte dos neologismos perfeitos que tanto incomodaram Iara, e lhe chegaram às mãos por artes do velho professor apaixonado: uma forma de conquista de uma pesquisadora de neologismos…
Este final, esta entrega da voz que deixará de gerar novos vocábulos com outros vocábulos, encontra sua frase completa:
“Amanhã, nunca mais ninguém me acordará.”
Como se chama ao lugar onde dormem as palavras por estrear? Um Verbário?
É para lá que eu vou.
Referência. José Eduardo Agualusa. Milagrário pessoal. Alfragide : D. Quixote, 2ª. ed., 2010.
por João Wanderley Geraldi | dez 21, 2018 | Blog
Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem ideias de formação, sem politizar, não é possível. (Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia)
La libertad es el otro lado del limite, de la línea, supera todas las condiciones de determinación impuestas por la epistêmê, escapa a todos los determinismos, y por eso deve permanecer como algo radical y absolutamente incognoscible, por eso hemos de respetar su incompreensibilidad. […] No basta con decir de qué nos liberta la liberdad. Haca falta además decir para qué nos hace libres. Pues bien, nos hace libres para darnos una ley. Para inventarla de forma totalmente incondicinadas: eso – y no una invitación al libertinaje o a la barbárie, sino mas bien a la moderación o a la modulación – es lo que significa que todo está permitido. La libertad, para decirlo em uma clave sartreana, nos condena a darnos una ley (pero no nos disse qué ley hemos de darnos). La ley qe nos damos presupone la libertad, pero una libertad que nos es “nuestra”, de la que no somos dueños, una libertad que sólo se convierte en nuestra libertad cuando efetivamente nos damos una ley, una libertad de la que sólo nos adueñamos invertando una ley. (José Luis Pardo. El sujeto inevitable)
Nota introdutória
Para além dos riscos próprios da aproximação de conceitos elaborados em tempos, espaços e condições diferentes, no contexto de programas de pesquisa, e também de ação, diferenciados, propor um encontro que não houve demanda assumir a não neutralidade da mediação feita pelo leitor. Afinal, os processos de compreensão de uma e de outra obra são executos pelas contrapalavras do leitor que patrocina o encontro, e resulta muito mais de sua busca de respostas a suas próprias inquietações do que do registro do entrelaçamento de discursos demonstrados pelas citações, referências e compartilhas.
No fluxo ininterrupto da cadeia contínua e infinita dos discursos, a leitura é sempre já uma resposta em elaboração que, explicitada, demanda por seu turno futuras leituras e a elas desde sua formulação já tenta responder. Assim, nada mais juto que o encontro que não houve, e que se deseja delinear, apresente suas justificativas próprias para que a aproximação faça sentido no contexto em que ela se elabora.
- As insatisfações com a teoria do sujeito
O pensamento crítico deste final e inícios de século têm ramificações de toda ordem, apontando ora para “as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental” (Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, e sua trilogia de tensões: entre regulação social e emancipação social; entre o Estado e a sociedade civil e entre o Estado-nação e o que designamos por globalização); ora apontando para as crises dos paradigmas científicos, reintroduzindo o tempo, o acontecimento e o acaso onde a modernidade apostava na previsibilidade inscrita nas “leis da natureza” (Ilya Prigogine, por exemplo, e a reintrodução da seta do tempo e sua irreversibilidade que demanda o reencantamento do mundo); ora apontando para a construção de subjetividades autônomas, para o exercício da cidadania e para a construção de uma ação contra hegemônica (conceitos tão presentes nos textos da pedagogia crítica quanto nos movimentos sociais contra hegemônicos, de Paulo Freire a Edgar Morin, do MST ao movimento anti fast food).
Todas estas direções remetem a concepções de sujeito, de forma explícita ou implícita, concepções nem sempre partilhadas, mas todas elas com um denominador comum: compartilham crenças e certezas nas possibilidades de ação dos sujeitos sociais, que se definem de forma distintas relativamente a seus condicionamentos histórias. Estas direções podem tomar diferentes fundamentos para o sujeito – uma vocação à eternidade? Uma vocação à solidariedade? Uma vocação à racionalidade? Uma vocação à subjetividade eticamente fundada, razão convertida em paixão pelo humano de cada um e de todos? – mas nenhuma destas direções dispensa ou se dispensa de uma toma de posição.
A estas concepções e a compartilha da crença de outros possíveis (para usar uma clave paulofreireana, outros inéditos viáveis), opõem-se não somente discursos mal intencionados, pragmaticistas, com interesses a defender, em que a noção de “adaptação aos tempos” é o condão mágico do pensamento sobre a constituição das subjetividades, como se os tempos não fossem “regíveis”, mas regentes. Estes discursos podem ser encontrados na imprensa, na política, nossos acordos de uma economia planejada para a liberdade dos mercados, nos planejamentos educacionais: o discurso hegemônico sempre encontrou porta-vozes eficientes.
Também no próprio campo crítico estas concepções e sua compartilha básica de possibilidades de construção de um outro futuro são postos sob suspeita. Do embate, certamente o debate entre Telmo Cracia e Rui Gomes (revista Educação, Sociedade e Culturas, 18, Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, 2002) é um exemplo recente. As críticas endereçadas ao pensamento crítico pelas análises foucaultianas, pelas desconstruções derridianas, necessariamente devem ser postas sob escrutínio, porque elas não representam mais uma diferença de opção entre campos de luta, mas resultam de um refinamento necessário às concepções para não cairmos no engodo da inovação que repete e reproduz os mecanismos mesmos que quer destruir.
Como ilustração dos diferentes lugares ocupados, comparemos as duas passagens seguintes, cada uma delas definindo territórios diferenciados a partir dos quais tecem a crítica ao mundo contemporâneo:
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de quem transgride a própria ética. (Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, p. 146)
O ponto de partida do nosso argumento é o seguinte: o novo discurso sobre a autonomia não foi conquista dos de baixo, uma recusa ou uma resistência a um estado-maior constrangedor, mas é antes uma nova forma de regular e governar a educação escolar. […] o conceito de si como nódulo que passa a articular todos os restantes discursos, esgotando-lhes qualquer energia emancipadora. A questão da contra hegemonia é, portanto, para mim, um problema da ordem do empírico: trata-se de descobrir nos discursos-práticas os movimentos contra hegemônicos que pusessem em causa a sua energia reguladora. E esses movimentos continho a não saber onde encontrá-los (Rui Gomes. “Tecnologias e discursos da autonomia: a regularidade a várias vozes”. Educação, Sociedade e Culturas 18, 2002, p. 202).
É precisamente no percurso desta busca – encontrar categorias com que reconstruir nossas noções de sujeito, sem perder esperanças num momento propício à desistência e à inação – que me parece útil aproximar Paulo Freire e Mikhail Bakhtin, apesar das distâncias de programas de reflexão que os separaram mais do que os espaços geográficos: Paulo Freire tendo sempre em mente o fenômeno da educação: Mikhail Bakhtin tendo em mente a linguagem e as manifestações artísticas (a literatura, sobretudo). Em suas histórias de vida, ambos compartilham o fato de terem produzido sua obra sob as condições adversas dos regimes políticos de ditaduras em suas pátrias, mas ambos apostando em futuros menos sombrios do que seus presentes: ambos viram ruir as ditaduras brasileira e russa.
- Primeiras tomadas de posição
Talvez este seja um tempo em que as imagens que projetamos como futuro tenham deixado de nos ver porque nós, vivendo o presente de uma ordem mundial globalizada e assentada no movimento de capitais virtuais e de seus lucros, deixamos de enxergar quaisquer caminhos alternativos de construção de uma nova ordem. Na seriedade superficial e cotidiana de uma imprensa que comenta fatos e prega o discurso hegemônico e com pretensões de ser único, os discursos que apontam as desgraças, as misérias e os sofrimentos são ironizados. De qualquer voz contrária que se levante, cobra-se a proposição de um mundo acabado e sem as mazelas contemporâneas. Cobra-se que da proposição surja uma realidade por passe de mágica. Não havendo tal proposição nem sua magia, o discurso é tornado vazio de sentido pela imposição dos sentidos pré existentes. Trata-se de encontrar no presente como realidade empírica o que se projeta como possibilidade de vida. Quer se fazer crer que estamos para sempre presos à racionalidade das técnicas e mecanismos de controle, para o sucesso do descontrole dos mercados. A ordem está dada, como se a ela não tivéssemos chegado depois de um longo percurso histórico, um tempo em que as imagens não eram cegas porque enxergavam pelos nossos olhos que ainda carregavam sonhos. Será possível escapar à ordem sem compor imagens de futuro?
Talvez este seja um tempo de purgar a desqualificação: apostamos tanto em nossos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade – e tínhamos fé no caminho do progresso como forma de sua concretização – que esquecemos de compreender qualquer outra fé, qualquer outra ideia, qualquer outra pessoa. Empacotamos nossos modos de ser e os espalhamos por toda a parte como “informação e modernidade” no mercado da cultura de massa construída pelos processos mediáticos, e no mercado da especulação transformamos a todos em devedores, e quando a dívida não foi suficiente para imobilizar, de exércitos lançamos mão para impor aos outros serem espelhos de nós mesmos. O mundo viu desaparecerem outros saberes, tornou-se pobre em narrativa e em narradores, apequenou-se no grande feito de desqualificar o diferente e moldá-lo à imagem real e concreta do homem branco, ocidental e europeizado. Para fugir a este mercado mundial da cultura sobraria apenas a submissão aos autoritarismos das comunidades, aos fascismos societais, muito próximos aos fundamentalismo de todos os matizes? O conjunto de conflitos dos mais diferentes níveis – desde as entusiastas e pacíficas manifestações do Fórum Social de Porto Alegre, pelas formas de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra do Brasil, chegando às resistências dos zapatistas no México ou mesmo aos desesperos dos gestos suicidas de palestinos, iraquianos e tantos outros – não estaria a mostrar que é pequeno demais o uniforme com que se quis vestir o mundo? Mesmo sob peles aparentemente bem comportadas de um mundo desejado uniforme, dos conflitos parecem emergir diferenças insubmissas.
Talvez este seja um tempo de retorno às perguntas cruciais: quem somos? Perturbados pela consciência da mortalidade, e consequente desassossego dos sentidos, parece que estamos condenados a significar:
… nós, os humanos, não podemos crescer, viver e envelhecer sem instituir um tempo, sem fragmentar, pautar e contabilizar seu devir e seu passar; não sabemos deixar transcorrer nossa vida sem nomear, sequenciar, ordenar e esclarecer o sentido do que passa e do que existe, do que permanece e do que se desvanece; não desejamos viver sem especificar o indivíduo próprio e o alheio, o que nos une e nos separa, o que nos diferencia e nos iguala. (Placer, 2001, p. 82)
Projetar, qualificar e significar. Memória do futuro, cálculo de horizontes de possiblidades e acabamento transitório do presente: três aspectos de uma mesma, complexa e contínua perturbação: a das perguntas fundamentais, que deveriam acompanhar-nos sempre como sinal de uma capacidade, essa sim, comum a todos os seres humanos: a capacidade que mantém viva a pergunta precisamente porque, sabendo que não há resposta, obriga-nos a continuar perguntando. (Ibañez, J. El regreso del sujeto, apud. Ferre, 2001, p. 206)
Estes três pontos de partida – incidindo inicialmente sobre a projeção de futuros possíveis, e portanto incluindo os sonhos e as utopias como parte constitutiva da subjetividade; em segundo lugar, incidindo sobre a turbulência da construção das hegemonias e insistindo na escuta do discurso silenciado que não sabemos ouvir e que precisamos aprender a ouvir e aceitar seus mutantes significados; e em terceiro lugar recuperando perguntas insolúveis, para as quais as respostas produzidas são provisoriedades com que convivemos – todos eles constituem um posto de observação e leitura que iluminou a definição de alguns lugares de encontro entre Paulo Freire e Mikhail Bakhtin.
Para justificar os recortes feitos, a partir da elaboração de três teses que, parece-me, poderiam ser subscritas pelos dois autores e às quais conduzo um conjunto de passagens de um e outro, nada melhor do que recordar o irônico conto de Borges a propósito do rigor da ciência a lembrar-nos que os mapas são somente guias imperfeitos cuja utilidade está em permitir construir um caminho.
Do Rigor da Ciência
… Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Como tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era inútil e não sem Impiedade o entregaram à Inclemência do Sol e dos Invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Cartográficas. (Suárez Miranda. Viaje de Varanes Prudentes, lviro 1uatro, cap. XLV, Lérida, 1658).
(Borges, O fazedor, 1999, p. 247)
- Teses co-enunciávies
A construção do estudo partiu de início de recortes temáticos de passagens de dois livros de Paulo Freire: Pedagogia do Oprimido (1969/1970), aqui abreviada como PO(2), e Pedagogia da Autonomia (1996), aqui abreviada como PA; e de duas obras de Mikhail Bakhtin(3): Marxismo e filosofia da linguagem (1929) aqui abreviada como MFL e “O Autor e o Herói” (1920-1930), texto de arquivo publicado em Estética da Criação Verbal, aqui abreviado como AH. Os recortes iniciais levaram em conta a referência à consciência, linguagem, ideologia, intersubjetividade, utopias, educação. Num segundo momento, a leitura destes recortes permitiu a expressão de um ponto de vista a propósito de três temas necessariamente presentes na construção de uma teoria do sujeito, eu que vão aqui expressas na forma de “teses” que poderiam ser subscritas por ambos os autores.
Na apresentação do resultado do estudo, retomo algumas passagens para facilitar aos demais leitores sua avaliação de co-enunciações das teses elaboradas, considerando suas pertinências ou inadequações. Os breves comentários que seguem as citações são apenas produto da leitura de outras passagens dos mesmos autores e que não foram aqui apresentadas. Obviamente a limitação deste primeiro estudo aproximativo se deve tanto ao interesse momentâneo das minhas leituras sobre a questão da subjetividade quanto à limitação do número de obras postas em paralelo. Estudos subsequentes poderá refinar as teses co-enunciáveis pelos dois pensadores quanto poderá aprofundar os lugares de aproximação e distanciamento.
3.1. A consciência é produto inacabado, de (re)elaboração constante
Paulo Freire
… nadie se concientiza separadamente de los demás. La conciencia se constituye como conciencia dels mundo. Si cada conciencia tuviera su mundo, las conciencias se ubicarían en mundos diferentes y separados, cual nómadas incomunicables. (Prefácio de Ernani Maira Fiorie a PO, p. 17)
… el mundo de la conciencia no es creación sino elaboración humana. Ese mundo no se constituye en la contemplación sino em el trabajo. (idem, p. 19)
Humanización y deshumanización, dentro de la historia, en un contexto real, concreto, objetivo, son posibilidades de los hombres como seres inconclusos y concientes de su inconclusión. (PO, p. 38)
Los hombres, diferentes de los otros animales, que son sólo inacabados más no históricos, se saben inacabados. Tiene conciencia de sua inconclusión. Así se encuentra la raíz de la educación misma, como manifestación exclusivamente humana. Vale decir, en la inconclusión de los hombres y en la conciencia que de ella tienen. De ahí que se ala educación un quehacer permanente. (PO, p. 96)
… la situación clncreta en que se encuentran los hombres condiciona sua conciencia del mundo condicionando a la vez sus actitudes y su enfrentamento. (PO, p. 169)
Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. (PA, p. 36/37)
(Ensinar exige consciência do inacabamento) Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente. (PA), p. 55)
De um lado a compreensão mecanicista da História, que reduz a consciência a puro reflexo da materialidade, e de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da consciência no acontecer histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históri8cos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos. (PA, p. 111)
… se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer. (PA, p. 153)
Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. (PA, p. 153)
Mikhail Bakhtin
O idealismo e o psicologismo esquecem que a própria compreensão não pode manifestar-se senão através de um material semiótico (por exemplo, o discurso interior), que o signo se opõe ao signo, que própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos. (MFL, p. 33)
Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico). (MFL, p. 34)
A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. (MFL, p. 35)
A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem. (MFL, p. 35/36)
Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. […] Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (MFL, p. 108)
… não existe atividade mental sem expressão semiótica. Consequentemente, é preciso eliminar de saída o princípio de uma distinção qualitativa entre o conteúdo interior e a expressão exterior. Além disso, o centro organizador e formador não se situa no interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação. (MFL, p. 112)
Fora de sua objetivação, de sua realização num material determinado (o gesto, a palavra, o grito) a consciência é uma ficção. (MFL, p. 117/8)
… a consciência torna-se uma força real, capaz mesmo de exercer em retorno uma ação sobre as bases econômicas da vida social. Certo, essa força materializa-se em organizações sociais determinadas, reforça-se por uma expressão ideológica sólida (a ciência, a arte, etc.), mas mesmo sob a forma original confusa do pensamento que acaba de nascer, pode-se já falar de fato social e não de ato individual interior. (MFL, p. 118)
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Ao defenderem o ponto de vista de que a consciência é produto do trabalho, não pré-existe ao próprio trabalho e ao convívio com os outros, à internalização dos signos sociais, sempre ideológicos, que somente se tornam do sujeito á medida que não lhes pertencem, mas pertencem a um conjunto social, ambos os autores remetem ao papel de retorno da consciência socialmente constituída: a possiblidade de ação dos sujeitos, fundada em sua própria incompletude, donde uma concepção de sujeito agentivo e não meramente passivo diante dos mecanismos de sua constituição social. Talvez possamos adiantar que a aposta bakhtiniana é na constituição sígnica da consciência, por natureza material e social, que resulta dos processos interativos de que tomamos parte e que por isso mesmo está sempre em constituição; a aposta d Paulo Freire é na constituição de diferentes níveis de consciências em função dos processos políticos de conscientização, Mas esta diferença está ainda a ser perseguida por estudos mais aprofundados.
3.2. O futuro como centro de gravidade das decisões do presente
Paulo Freire
La esperanza está en la raiz de la inconclusión de los hombres, a partir de la cual se mueven estos en permanente búsqueda. Búsqueda que […] no puede darse en forma aislada, sino en una comunión con los demás hombres, por eelo mismo, inviable en la situación concreta de opresión. (PO, p. 109)
Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável. (PA, p. 21)
Gosto do ser homem, de ser gente, porque si que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada. (PA, p. 58)
Só há História onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História. […] A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. (PA, p. 81)
A proclamada morte da História que significa, em última análise, a morte da utopia e do sonho, reforça, indiscutivelmente, os mecanismos de asfixia da liberdade. Daí que a briga pelo resgate do sentido da utopia de que a prática educativa humanizante não pode deixar de estar impregnada, tenha de ser uma sua constante.
Mikhail Bakhtin
Uma efetiva vivência interior minha – na qual tomo parte ativa – não pode ser tranquila, deter-se, terminar-se, findar-se, acabar-se, não pode escapar a minha atividade, cristalizar-se de repente numa existência autônoma, concluída, com a qual minha atividade nada mais teria a ver, pois o que vivo é vinculado às coerções do pré-dado, e, de dentro, nunca pode deixar de ser vivido, ou seja, não posso livrar-me da minha responsabilidade para com o objeto e o sentido. […] Para mim, a memória é memória do futuro, para outro, memória do passado. (AH, p. 139)
… é somente no futuro que se situa o centro de gravidade efetivo de minha própria autodeterminação. Por mais ingênua e aleatória que seja a forma que o-que-deve-ser e o-que-é-esperado podem revestir, o importante é que eles não se situam aqui, nem no passado, nem no presente. E o que quer que se obtenha no futuro, mesmo que seja tudo o que eu anteriormente antecipara, o centro de gravidade de minha determinação não deixará de ser arrastado numa evolução que o impelirá para frente, para o futuro, e eu me apoiarei em meu próprio por-vir. (AH, p. 141)
Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver, devo estar inacabado, aberto para mim mesmo – pelo menos no que constitui o essencial da minha vida -, devo ser para mim mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade. (AH, p. 33)
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No campo dos acontecimentos da vida, campo próprio do ato ético, estamos sempre inacabados, porque definimos o presente como consequência de um passado que construiu o pré-dado e pela memória do futuro com que se definem as escolhas no horizonte de possibilidades. Nosso acabamento atende a uma necessidade estética de totalidade, e esta somente nos é dada pelo outro, como criação e não como solução. A vida, concebida como acontecimento ético aberto, não comporta acabamento e, portanto, não comporta solução e fixidez. Está na incompletude a energia geradora da busca da completude eternamente inconclusa.
Os dois autores fazem sua aposta no futuro: as utopias de Paulo Freire; a memória de futuro de Mikhail Bakhtin. Na arquitetura de suas reflexões, estas apostas somente fazem sentido se considerado o inacabamento do ser humano e sua relação com a alteridade como forma de sua própria construção. Em Bakhtin não se encontra diretamente a defesa de um futuro visualizado a partir do presente, em outras obras poderemos complementar as passagens aqui estudadas, especialmente em função da defesa que faz o autor da responsabilidade do artista e a defesa de construção de um mundo ético (4). Em Paulo Freire a filiação a sonhos politicamente compartilhados é extremamente explícita, e certamente relevam de seu trabalho militante. As duas obras aqui estudadas são produtos de reflexão que resultam e ultrapassam duas experiências vividas pelo autor : a alfabetização de adultos em Pernambuco em fins da década de 1950 e começos da década de 1960 e a gestão da secretaria municipal de educação da cidade de São Paulo na década de 1990. Entre uma e outra, na distância de 30 anos, mantém-se a coerência política do autor.
3.3. O diálogo, forma privilegiada de relação com a alteridade, materializa-se pela palavra ao mesmo tempo própria e alheia: o sujeito se faz com o outro.
Paulo Freire
En la subjetividade, las conciencias también se ponen como conciencias de un certo mundo común e, en ese mismo mundo, se oponen como conciencia de sí y conciencia de otro. Nos comunicamos en la oposición, única vía de encuentro para conciencias que se constituyen en la mundanidad y en la intersubjetividade. (Prefácio de Ernani Maria Fiori a PO, p. 18)
… este mundo es común, buscarse a sí misma es comunicarse con el otro. El aislamiento no personaliza porque no socializa. Mientras más se intersubjetiva, más densidade subjetiva gana el sujeto. (Idem, p. 19)
Em verdade, no existe un yo que se constituye sin un no-yo. A su vez, el no-yo constituyente del yo se constituy en la constitución de yo constituido. De esta forma, el mundo constituyente de la conciencia se transforma en mundo de la conciencia, un percebido objetivo suyo, a la cual se intenciona. (PO, p. 93)
Los hombres no se hacen en el silencio, sino en la palavra, en el trabajo, en la acción, en la reflexión. (PO, p. 104)
El dialogo es este encuentro de los hombres, mediatizados por el mundo, para pronunciarlo no agotandose, por lo tanto, en la mera relación yo-tú. (PO, p. 105)
Se diciendo la palavra con que proncunciando el mundo los homebres lo transforman, el dialogo se impone como el caminho mediante el cual los homebres ganan significación em cuanto tales. (PO, p. 105)
El yo dialógico […] sabe que es precisamente el tú quien lo constituye. Sabe tambi´ne que, constituido por un tú- un no yo – ese tú se constituye, a su vez como yo, al tener em su yo un tú. De esta forma, el yo y el tú pasan a ser, en la dialéctica de esas relaciones constitutivas, dos tú que se hacen dos yo. (PO, p. 219)
O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se consfimra como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História. (PA, p. 154)
Mikhail Bakhtin
A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos […]. (MFL, p. 112)
… toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (MFL, p. 113)
Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política etc. ) (MFL, p. 123)
… o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da sua memória; memória que o junta e o unifica e que é a única capaz de lhe proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. A memória estética é produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez num novo plano de existência. (AH, p. 55)
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Dialogia e alteridade são os dois pilares sobre que se assentam as reflexões dos dois autores em estudo. Obviamente defender a dialogia enquanto relação entre um eu e um tu não quer dizer defender o consenso ou defender que todo o diálogo se faz harmoniosamente. Ao contrário, ambos os autores reconhecem que há polêmica, há lutas de classes, há interesses antagônicos entre as partes em diálogo. No entanto, ambos defendem que um e outro polo se constituem concomitantemente, um polo não existe sem o outro. Paulo Freire, em carta passagem de Pedagogia do Oprimido defende que a libertação do oprimido é também a libertação do opressor. Mikhail Bakhtin explicitamente afirma que “classe social e comunidade semiótica não se confundem. […] Assim classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.” (MFL, p. 46)
Considerando-se que as consciências se constituem nas relações sociais, e que nestas relações sociais a linguagem exerce papel material de mediação, e que em todo o signo se confrontam diferentes valores, pode-se concluir que para ambos os autores a relação é constitutiva das subjetividades e que a materialidade do sujeito (sua consciência) tem a natureza da linguagem. Daí a importância atribuída por Bakhtin à interação verbal, e a importância crucial atribuída por Paulo Freire à aprendizagem da modalidade escrita da linguagem, pela qual se ampliam ao infinito as possibilidades de relações interlocutivas.
No diálogo encontra-se a estratégia de construção social apontada pelos autores; na alteridade encontra-se a forma única de constituição da subjetividade; na linguagem, o ugar do encontro e desencontro dos homens. Significar o mundo, tornando a vida existência parece ser o ponto nevrálgico de aproximação dos dois autores. E esta se constrói na relações sociais, nas instituições sociais, apesar e a despeito dos seus mecanismos de objetivação e subjetivação: as histórias de interações nunca são idênticas entre si, e daí a irrepetibilidade de cada homem; as memórias de futuro são possibilidades, compagináveis em outros sonhos, mas não redutíveis ao mesmo e ao idêntico.
Talvez sejam estes os ensinamentos maiores de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: a grandeza da inconclusão humana e a partilha de um futuro em que a diferença sobrepuje a desigualdade. Por isso, a importância para ambos da ética, da estética e da política.
Notas
- Este texto foi escrito no período em que estive como professor visitante na Universidade de Aveiro, por provocação do Instituto Paulo Freire de Portugal, que me convidou para uma palestra em seu ciclo de conferências do período de 2003/2004. Minha fala foi realizada no primeiro semestre de 2003, quando ainda estava em Aveiro, onde ministrava curso sobre o pensamento do Círculo de Bakhtin e sobre possíveis caminhos metodológicos de pesquisa em linguagem. Esta mesma fala seria repetida no COLE/2003, mas a diretoria da Associação de Leitura do Brasil decidiu publicar um livro comemorativo aos 25 anos de COLE, distribuindo-o gratuitamente entre os participantes. Assim, o texto foi publicado em livro organizado por Norma Sandra de Almeida Ferreira – Leituras em Concerto, Cia. Editora Nacional/ALB, 2003. Como o texto da minha fala estava disponível nas pastas dos congressistas, em minha fala produz uma troca de tema e apresentei um texto recentemente escrito: “Depois do show, onde buscar encantamento?”, que trata de questões epistemológicas nas ciências humanas. Somente no ano seguinte, 2004, é publicado um pequeno volume – Diálogos através de Paulo Freire – com o conjunto das conferências do Ciclo de Conferências do IPFP e do Centro de Recursos Paulo Freire, da Universidade do Porto, a que o texto se destinava inicialmente.
- As passagens de Pedagogia do Oprimido estão em espanhol. Estou manuseando a 7ª. edição argentina da obra (12ª. edição da obra em espanhol), de maio de 1974. A insistência no manuseio da edição em espanhol para além de razões de ordem pessoal (foi neste exemplar que conheci o pensamento de Paulo Freire, trazido da Argentina escondido num capuz), deve-se à vontade de não esquecimento de que a primeira edição ocorre no Chile, em 1968 (a obra foi concluída em 1968), com uma introdução do Prof. Ernani Maria Fiori, tendo sido logo editada em língua inglesa nos EEUU. Como se sabe, a primeira edição brasileira vai ocorrer em fins de 1974, com Paulo Freire ainda no exílio.
- Estou atribuindo aqui a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem a Mikhail Bakhtin acompanhando a primeira edição da obra em português, que estampa Mikhail Bakhtin (Volochínov) como autor. Como se sabe hoje, a obra foi publicada na Rússia sob o nome de Volochínov, e os estudos, com que concordo, atribuem este livro a um trabalho mais ou menos conjunto dentro do que hoje se chama de “Círculo de Bakhtin”.
Referências bibliográficas
Bakhtin, Mkhail (Volochínov). Marxismos e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1981 (original de 1929)
_____________ “Autor e herói” in. ______ Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992 (textos de arquivo).
_____________ “Arte y responsabilidad” in. _____ Estética de la criación verbal. Madri : Siglo Veintiuno Ediotres, 2ª. ed., 1985.
_____________ Hacia uma filosofia de lacto ético. De los borradores e otros escritos. Barcelona : Anthropos; San Juan: Universidad de Puerto Rico, 1997.
Freire, Paulo. Pedagogía del Oprimido. Buenos Aires : Siglo Veintiuno, 1974 (7ª. edição argentina)
__________ Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1996.
Pardo, José Luís. “El sujeto inevitable”. In. Manuel Cruz (org). Tiempo de subjetividade. Barcelona : Paidós, 1996.
Ferre, Núria Perez de Lara. “Identidade, diferença e diversidade: manter viva a pergunta” in. Jorge Larrosa e Carlos Skliar (orgs) Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte : Autêntica, 2001.
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