por João Wanderley Geraldi | jan 19, 2019 | Blog
É divertido ler hoje um livro de 1641. Perdem-se as referências mais ou menos diretas às personagens históricas das críticas irônicas e mordazes. Perdendo o particular, ganha-se na compreensão do que permanece como fundamento constitutivo das relações sociais nesta estrutura que então se conformava: se ultrapassamos no tempo histórico a “nobreza”, continuamos com a aristocracia cujo “sangue” parece se transmitir por hereditariedade como os títulos de nobreza dos séculos modernos que já se foram.
Seguindo a tradição de Dante, em que Virgílio conduz o poeta em sua descida aos Infernos, aqui a personagem “Dom Cleofas Leandro Pérez Zambullo, fidalgo aos quatro ventos, cavalheiro furacão e encruzilhada de sobrenomes, galã dos noviciados e estudante de profissão”, fugindo da polícia que o caçava por ter supostamente desonrado Dona Tomasa, entra no escritório de um astrólogo onde encontra o Diabo Coxo preso numa redoma. A seu pedido, solta-o e a aventura começa.
Serão nove “trancos” (em vez de capítulos, já que o Diabo Coxo anda aos trancos e o deslocamento também é aos trancos). Em cada tranco um espaço geográfico diferente é desvendado
– Dom Cleofas, desde esta picota das nuvens, que o lugar mais alto de Madri (mal ano para Menipo nos diálogos de Luciano), vou te mostrar tudo de mais notável que acontece neste horário nesta Babilônia espanhola.
E uma Madri que dorme é mostrada, com os mais diferentes personagens – em geral simplórios. Há barbeiros que aplicam ventosas; há uma parturiente e seu marido ansioso; há ladrões que arrombam o cofre de um estrangeiro rico e assim por diante.
Mas já o dia não nos deixa seguir adiante, e já vem o sol fazendo cócegas nas estrelas que estão brincando no céu, e dourando a pílula do mundo, tocando a arma a tantas bolsas, e contradizendo tantas panelas, frigideiras e tigelas; não quero que se valha de minha habilidade para ver os segredos que a noite lhe negou; que lhe custe bisbilhotar por fendas, claraboias e chaminés.
No tronco seguinte, aparecem os nobres que vão à Rua dos Gestos, com espelhos de ambos os lados, onde treinam os gestos que repetirão na Corte. Seguem caminho e entram na casa dos loucos, e vão encontrando os mais esdrúxulos motivos de loucura: um arbitrista que escreve sem parar para que reduzam os quartos; um gramático enlouquecido em busca do gerúndio de um verbo grego; um historiador que perdeu três décadas de Tito Lívio… e vão se embora porque “podem nos pegar por alguma loucura que ignoramos; porque no mundo todos somos loucos”.
O astrólogo de quem fugira o Diabo Coxo recama com Satanás que lhe fornece outro demônio, mas também determina que o Cem-chamas, ajudado por Chispa e Redina, corram mundo para prender o Coxo, razão por que fogem para Toledo. Neste tranco Cleofas descansa à noite enquanto o Diabo vai a Constantinopla e depois aos Cantões suíços… No entanto, a noite é interrompida por um hóspede poeta que grita “Fogo!” e a todos acorda. Na verdade o poeta grita seus versos, porque as “consoantes lhe subiram à cabeça”. Neste tranco aparecerão inúmeras referências literárias a mitos da antiguidade e a título de comédias de época.
No dia seguinte, reencontram-se os guia e seu guiado. Conta o Diabo Coxo sua viagem da noite, e fogem pela janela da hospedaria rumo a Sevilha. No caminho encontram uma “trupe” de atores. Como em muitas comédias representavam o diabo, resolveu o Coxo dar-lhes uma lição: na distribuição dos papeis de uma comédia desentendem-se e começa o reboliço. O Diabo Coxo e Cleofas os deixam embolados e seguem viagem.
Chegam a Córdoba, “entrando pelo Campo da Verdade (poucas vezes pisado por gente desta laia) para a Colônia, populosa pátria dos Sênecas e um Lucano, e do pai da Poesia espanhola, o celebrado Gôngora, no dia que se celebravam festas de touros, e outras festividades; chegaram e tomaram pousada na taverna das Rejas, que estava cheia de forasteiros”. Depois passam por Ecija [em verdade a terra natal do autor] e chega a vez das críticas às beatas, “porque não há no mundo quem não as queira mal, e nós temos grandes obrigações com elas, porque nos ajudam com nossas mentiras; são diabas fêmeas”.
Será em Sevilha que verão as “maravilhas” dos comportamentos humanos mostrados a Cleofas pelo Diabo Coxo. Iniciam com um cortejo de Fortuna, e o diabo lhe vai chamando atenção aos primeiros lacaios da Fortuna que passam a pé: os maiores engenhos que já teve o mundo – Homero, Píndaro, Anacreonte, Catulo, Dante, Camões, apenas para citar alguns dos nomes elencados. E segue-se um diálogo pitoresco:
– Certamente cresceram pouco – disse o estudante – pois não passaram de lacaios da Fortuna.
– Não há em casa sua – disse o Coxo – quem tenha o que merece.
Como o cortejo continua, aparecem então as damas de companhia: a Necessidade; a Mudança; a Lisonja; a Beleza (uma dama muito nobre e muito esquecida de sua ama); a Inveja, a Ambição (que está hidrópica de desejos e de Imaginações); a Avareza. Depois seguem as donas da Fortuna: a Usura, a Simonia, a Fraude, a Fofoca, a Soberba e a Invenção…
No tranco seguinte, descansados os dois até às duas da tarde, sobem ao terraço a que também comparece a mulher do hospedeiro. Usando o espelho que esta trouxera, o Diabo Coxo mostrará aos dois o que está acontecendo na Rua Maior, de Madri onde desfila a nobreza. Este é talvez o mais cômico dos “trancos” porque os títulos pomposos dos nobres aparecem em todo seu ridículo e tradição.
Os dois trancos seguintes serão destinados aos “acadêmicos das letras”: ambos entram em uma reunião de acadêmicos, e são bem recebidos como estrangeiros que são. Declamam seus sonetos, e muito aplaudidos, passam a fazer parte da academia, em que cada um terá um nome que lhe siga ao nome próprio. E escolhem: O diabo Coxo será o Enganador; Cleofas o Enganado. E torna-se este o presidente da Academia.
Na reunião seguinte, presidida pelo Enganado, este traz para a academia um “decreto”, com “premissas e ordenanças” dentre as quais saliento:
Inicialmente, manda-se que todos escrevam em espanhol sem introduzir outras línguas, e que quem diga fulgor, libar, nume, purpurar, meta, trâmite, afetar, pompa, trêmula, âmago, idílio, e outras iguais a essas e introduzir posposições desatinadas, fique privado de ser poeta por duas Academias, e na segunda vez, sejam confiscadas suas sílabas e consoantes, como traidores a sua língua materna. [para que melhor crítica ao estilo embolado das Academias?]
[…]
Chegou até nós a notícia de que há uma linhagem de poetas e poetisas para palacianos que levam uma vida mais estreita que os monges de Paular, porque com oito ou dez vocábulos somente, que são crédito, descrédito, recato, desperdício, desvalido, baixa fortuna, estar falido, espraiar-se querem expressar todos os conceitos e deixar para Deus somente que os acenda; mandamos que lhes deem outros cinquenta vocábulos mais de ajuda de custo, do tesouro da Academia, para se valerem deles, para que, se não o fizerem, caiam na na pena de minguados e de não ser entendidos, como se falassem basco. [para que melhor definição dos economistas neoliberais que tudo reduzem a poucos termos, mas que os explicam de forma embolada]
Deixo de lado que Dona Tomasa, abandonada por Cleofas, arruma outro amante (de quem Cleofas terá ciúmes, mas o Coxo o consola dizendo que isso passa) e passa por Sevilha, donde foge para as Índias com o amante…
E a história se encerra com o Coxo voltando para os infernos, Cleofas retornando a seus estudos em Alcalá depois de saber da prisão de seu Diabinho, decepcionado porque até os diabos têm seus delegados e os delegados têm os diabos.
E segue-se a surpreendente ironia aos trâmites das censuras e autorizações de publicação, com “Laus Deo et Beatae Virgini Mariae, Sub correctione Sanctae Matris Ecclesiae Ramanae”.
Referência: Guevara. O Diabo Coxo. Tradução de Liliana Raquel Chwat. São Paulo : Escala, 2006.
por João Wanderley Geraldi | jan 14, 2019 | Blog
Estavam todos cansados com os desmandos do chefe dos animais daquele grande potreiro da Fazenda antigamente chamada de Modelo por um poeta e cantor; hoje o nome mudou, é Fazenda da Fazenda Maior. Nada mais. Ainda assim continua grande, com campos, brejos e florestas.
Os animais andavam descontentes: havia muito desmando e ordens contra natureza, desde que forma os macacos autorizados a comerem também frutos que caíssem das árvores. Os porcos de todos os tipos, alguns gordos que sequer conseguiam se movimentar, fizeram barulhentas manifestações: se eles não podiam subir aos altos galhos das árvores para pegar os frutos, devendo se contentar com a quase totalidade dos frutos que, seguindo uma lei que outros tentaram anular, caiam ao solo e os engordava, por que agora este direito aos macacos de virem pegar seu sustento precário? Diziam os slogans da passeata: “Se nós não subimos, eles não descem”.
Foi uma passeata-estopim. Os parentes próximos dos porcos, que recém começavam a engordar, acharam que realmente isso não podia ser. Assim não dava. E se disseram cansados com esta distribuição anormal do que deveria ser somente deles. Porque eles tinham o mérito de fuçar, enquanto aqueles macacos pegavam tudo com as mãos! Sem mérito algum.
E então, pelas redes sociais dos animais, uma assembleia foi convocada. Todos compareceram ao descampado, até os bichos-preguiça: queriam fazer parte do acontecimento histórico.
Imediatamente tomou a palavra um touro bravio e em oratória inflamada defendia que era preciso retornar aos tempos em que a força comandava, pois eram tempos de ordem, honestidade e segurança. Vociferou, chamou para seu lado os mais exaltados. Candidatava-se a chefe para substituir o clã dos carneiros que não faziam outra coisa que não beneficiar animais sem mérito!
Enquanto o touro falava, o lobo, caviloso como é, foi conversando em pé de ouvido, em mensagens curtas, com os bois: vejam vocês que perderam os bagos a injustiça destes carneiros que não mudaram isso daí e estejam alertas, que o touro quer as vacas para eles e vocês continuarão a levar esta vida de boi! Vamos mudar isso aí.
Os bois conversaram com as lagartixas e todos os animais que rastejam: baixavam a cabeça como se estivessem pastando, mas na verdade falavam para os bichos menores que eles deviam se cuidar: o touro era da força, e eles não tinham força. E com os carneiros não dava para continuar, não que os rastejantes estivessem perdendo alguma coisa, mas porque os grandes gorilas vinham recebendo ração menor do que aquela a que sempre estiveram acostumados.
Minado o campo, com os bois da reserva apoiando, viu-se o touro levado a um segundo plano e o lobo se candidatou a substituir os cordeiros que já estavam bem afastados por um golpe da tartaruga.
E assim a Assembleia dos Animais resolveu: o Lobo se tornou o chefe, o touro se contentou em ficar em segundo lugar e os cordeiros foram todos condenados à reclusão num pequeno potreiro cercado e vigiado por grandes gorilas mal encarados.
E tudo ficou em paz!!! A paz dos cemitérios.
por João Wanderley Geraldi | jan 13, 2019 | Blog
- Os campos
O DAS QUINAS
Vendem os Deuses o que dão.
A gloria compra-se a desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
Baste a quem basta o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Christo definiu:
Assim o oppoz à Natureza
E Filho o ungiu.
- Os castellos
Ulysses
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Fernando Pessoa. Mensagem. Edição fac-similada dos originais do poeta. Mantive a ortografia. Nesta edição se percebe que o título inicial para o livro seria PORTUGAL, sob o qual o poeta passou dois traços a lápis, e escreveu Mensagem. Há a indicação da data: 1934, e a informação “PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA RUA AUGUSTA 44-54 [estes números escritos a lápis].
por João Wanderley Geraldi | jan 12, 2019 | Blog
Este é um romance regional, cujo ambiente é o sertão goiano, o norte de Goiás (grande parte do território em que se dão os fatos da narrativa está hoje localizada no estado de Tocantins). Os tempos são aqueles do coronelismo em que cada chefe de clã, com suas vastas terras, imperava e impunha a sua lei. O regime com os trabalhadores, os vaqueiros e “a gente de casa” era o da “escravidão” do trabalhador supostamente livre, sempre devendo ao patrão e jamais recebendo qualquer pagamento em “efetivo”.
O livro abre com uma explicação inusitada para o leitor contemporâneo:
UMA EXPLICAÇÃO
Com exceção de pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram realmente em Goiás. Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social que representam, são fictícios. O autor não quis retratar ninguém, nem copiou de nenhum modelo vivo ou já morto.
Entretanto, os sobrenomes das personagens são conhecidos ainda hoje: os Melos, os Lemes, os Caiados… de modo que a ficção de então mantém traços do que realmente aconteceu e continua a acontecer nos rincões interiores do país, mas com seus grandes chefes de clã urbanizados e se revezando no exercício do poder político, sem que nenhum dos clãs tenha de fato perdido o poder econômico de que sempre dispuseram, com as terras repartidas entre os inúmeros herdeiros, cuja posse tem suas origens nos esbulhos e na simples ocupação como seu do que era comum.
O pequeno lugarejo, palco das ações do enredo, é denominado “Duro”. Ao final do volume, há um curioso ‘mapa’ com a indicação das casas dos moradores-personagens da história. E também outro mapa, este de parte do então estado de Goiás, mostrando o caminho percorrido pelas forças policiais de Goiânia até ao povoado de Duro.
Como em todos os povoados, com grandes fazendas a seu redor, cujas distâncias se medem em dezenas quando não centenas de léguas, as relações familiares entre as “pessoas de bens” é um emaranhado em que se compartilham tias, avós, primos… Obviamente, isto entre “gente de bens”, porque os sem-nada não contam, não existem ainda que copulem e produzam outros tantos “humanos” para viverem sob as ordens e comando dos patrões de seus avós, pais e irmãos a cuja “tribo” o recém- nascido haveria de se juntar. Só quando aconteciam grandes ‘convulsões” alguns conseguiam fugir e sair do jugo do mesmo e eterno patrão:
– Pessoal ingrato, – berrava a velha. Tinha de um tudo e foi só pegar uma folguinha, abriu a pala no mundo! Onde é que vão encontrar o trato que tinham aqui! – Camila, uma preta velha, filha de escravos, é que se multiplicava para atender à velha, indo e vindo pela casa, no seu passo manco, os pés cheios de cravos. Camila não abandonava a velha e a servia com carinho, a que Aninha [a velha] respondia com gritos e maus tratos. Para Aninha, servir era apenas obrigação da preta.
Nesta história se contrapõem duas perspectivas de mundos possíveis: aquela da manutenção do coronelismo e do esbulho representado na história pelo coronel Pedro Mello e seu filho Artur Melo, e aquela representada por Vicente Lemes (parente dos Melos, obviamente) em que as relações sociais efetivas deveriam se conformar às leis existentes, num processo de construção de uma modernidade num espaço social habituado aos desejos e mandos dos coronéis. Vicente “acreditava em lei, acreditava em justiça e probidade, não podia pactuar com tais bandalheiras…”.
Quando o exercício do poder político do estado tinha nos Melo sua base, estes mandavam e desmandavam na região, como seus vice-reis. Artur Melo, então juiz local, “nomeia” Vicente para o cargo de escrivão. Ele quis impor a lei, mas percebeu logo ser impossível acabar com as roubalheiras do foro onde as decisões eram ditadas segundo o interesse em se apropriar das terras dos condenados ou das viúvas. Vicente vai embora do Duro, e na capital há uma mudança política. Com as benesses da nova situação, retorna a Duro como coletor estadual.
E então o motivo da briga aparece: no rol de bens do inventário da viúva de um assassinado, não aparecem terras e gado, somente quinquilharias. O coletor não aceita porque isso representava sonegação de impostos da Fazenda Estadual. O juiz, de seu grupo, Valério Ferreira, despacha notificando Artur Melo, advogado da viúva, de que teria de refazer o rol de bens. Foi o estopim.
Artur Melo tenta uma reconciliação, esperando que juiz e coletor dessem a bênção: ele ficava com o gado todo e terras, comprando-as da viúva, sem pagamento dos impostos devidos. Não houve concordância.
A viuvez motivo do inventário era consequência de dois crimes: Vigiliato havia se enamorado pela mulher de um parente e protegido dos Melos. Vivia assediando a mulher. E esta não gostou da história e contou tudo ao marido, que se armou para matar o sedutor. Mas este foi mais rápido e matou o marido. Como vingança, Pedro Mello o mata e se vangloria do fato, mandando inclusive construir um marco no local onde o assassinado caiu. É da viuvez do protegido dos Melos que vem o inventário com um falso rol de bens. Dois crimes no passado, uma falsidade ideológica no presente.
Sem acordo, o assunto seguiu rendendo. Artur Melo se recusou a refazer o rol de bens, juntou seus capangas na fazenda “Grota”, e vem para Duro, invade o foro e dele retira tanto o processo de inventário como outros processos de seu interesse.
Assim, a perspectiva legalista de Vicente é derrotada. Ele vai para a capital e retorna acompanhado do juiz, Carvalho, e de grande força policial. Abre-se inquérito de apuração dos fatos. E desta vez esperava Vicente que a justiça seria feita, e não se repetiria o mesmo que acontecera no passado – e aqui há um feedback no enredo, mostrando outra comissão chefiada por juiz com aparado policial, mas tanto o juiz quanto os policiais sendo cooptados pelos poderosos Melos, de modo que tudo se resolveu a seu favor.
Agora, tudo parecia correr a favor da lei e da justiça. O grande número de soldados e as relações do grupo de Vicente com a capital fizeram Artur e seu pai se refugiarem na fazenda chamada “Grota” e aí formam um exército de jagunços. O juiz Carvalho vai à fazenda e faz acordo: Artur Melo dispensaria seus homens, entregava o processo de inventário, e o juiz impronunciaria o clã. Artur fecha o acordo e entrega o processo ao juiz, que retorna para Duro vitorioso nesta etapa. Mas nenhum deles pensava em cumprir o acordo. Artur enviou seus homens para outra fazenda de sua propriedade, na divisa com a Bahia; o juiz Carvalho aproveitou-se imediatamente disso e mandou os policiais irem à Grota prender os acusados.
Na ação, a polícia mata o todo poderoso chefe do clã, Pedro Melo; Artur escapa escondendo-se na tulha de farinha. Hugo Mello é preso e trazido para a cadeia de Duro. O juiz Carvalho pronuncia todo clã dos Melos e dá por finda sua tarefa, retornando por caminhos tortuosos para a capital, deixando o grosso da tropa em Duro para garantir a ordem. Ele sabia que Artur reagiria.
Este, Fugindo, organiza uma grande força contando com os grupos de dois chefes de jagunços: Roberto Dorado e Abílio Batata, que efetivamente, a partir de então, passam ao comando porque do bom resultado da ação sairiam enriquecidos saqueando todas as fazendas das redondezas e roubando todo o gado. Artur passa então a “presidiário” de seus próprios jagunços.
Os dois lados sabem que haverá “guerra”. Quatro “quarteis” são organizados, cada um sob o comando de um alferes: Xavier, Eneias (na casa onde estavam presos os homens parentes de Artur), Severo (na casa em que ficava a cadeia, onde estava preso Hugo Mello) e o quartel de Mendes de Assis, o oficial que comandará a ação em que Pedro Mello foi assassinado.
Os policiais, mal armados e sem munição sabem que não poderão sair vitoriosos. Os oficiais então constroem um estratagema: trazem os familiares de Artur da Grota e prendem os homens, deixando as mulheres – chefiadas pela matriarca Aninha, viúva de Pedro Melo – na grande casa do fazendeiro em Duro. A ideia é fazer chegar a Artur a informação que no primeiro tiro de um assalto à vila, a polícia mataria todo o clã: Severo mataria Hugo Melo; Eneias mandaria matar os homens presos; e Mendes mandaria matar as mulheres.
O assalto acontece, porque para Dorado e Batata, tanto lhes fazia se os parentes de Artur morressem. A narrativa deste assalto é o ponto alto de todo o romance. Obviamente as forças policiais são batidas. Mendes não cumpre a matança das mulheres por intervenção e exigência de Vicente, mas no quartel de Eneias os presos são assassinados e Severo manda matar Hugo Melo, antes dos policiais que sobraram do embate fugissem, sempre perseguidos pelos jagunços.
Vicente é instado a fugir, junto com os companheiros que não foram mortos, pela matriarca Aninha, a cujo guardo deixou a mulher e filha. Segue-se então a narrativa desta fuga e as reflexões de Vicente que deveria começar vida nova, no sul de Goiás. Enquanto a região de Duro era saqueada pelos jagunços e ficava agora sob o poder o coronel Artur Melo com o que lhe sobrou da família.
Como romance regional, obviamente ao longo da narrativa aparece o falar dos policiais, dos jagunços e dos vaqueiros, uma representação desta fala feita pelo escritor, de que o parágrafo a seguir é exemplo. Trata-se de resposta de um policial a Vicente que lhe manda sair da casa de Aninha, depois que Vicente consegue salvar a vida das mulheres. Quem fala é o policial Fabriciano:
– Tenho nada com isso, – resmungava Fabiciano. Me dero orde pra fica aqui e pronto. Mecê tá pensano qui eu sô aquele sem vergonha do Mané Vitô? Tá munto ingandado demais. Mané Vitô véve falando qui eu sô covarde pramode num matei o véiu. Covarde é ele que já fugiu. Agora qui eu quero vê quem qui é valente, quem qui tem saco. Eu num saio da vila. Quero mostra presses jaguncinho quem é o sordado Fabriciano…
Há também passagens que mostram as posições políticas do narrador. São falas de suas personagens, mas são discursos políticos sobre as relações de poder existentes numa sociedade como a que este romance retrata. Tomemos dois exemplos, o primeiro de uma conversa que ocorre entre soldados, antes do assalto à vila:
– Jagunço é que é bão, – repetia o tal soldado que enaltecia o cangaço, sob protestos do praça velho: – Soldado é otoridade. Afirmou sua verdade, olhou para a cara de uns soldados próximos que o fitavam e repetiu de novo a frase: – É otoridade. É! É otoridade. Nisso, a prosa pegou fogo. Um soldado estava dizendo que jagunço lutava de besta que era. Jagunço eram os vaqueiros, eram as pessoas pobres que Artur Melo vivia explorando, matando e espancando. Jagunço eram pessoas como Berandolina que os patrões não deixavam viver em paz. O soldado molhado tinha sua opinião e todos ouviram em silêncio, pois ele era o polo das atenções, no momento: – Eu acho que soldado e jagunço é a mesma coisa. Agora, o que eu acho besta é soldado e jagunço brigar, pra mode defender o coronel João Alves e o coronel Artur Melo. Soldado vai morrer, jagunço via morrer pros coronéis ficarem mais ricos, mais gordos, mais poderosos.
O segundo exemplo é uma reflexão de Vicente em fuga que ouve os gemidos de um homem ferido:
Quem seria que gemia daquela forma? Quem seria esse homem valente, esse herói que entregou sua vida pela defesa de uma causa que Vicente não tinha coragem de defender? Certamente era algum jagunço, algum sertanejo completamente alheio a todo aquele conflito de interesses, arrastado à morte pelo espírito de aventura, pelo ingênuo sentimento de solidariedade para com algum amigo ou patrão que o explorava impiedosamente, que o trazia escravizado e dominado.
Algumas curiosidades do exemplar em que leio a história: trata-se de exemplar da primeira edição (1956), que contém uma dedicatória do autor a Artur Neves. O exemplar foi encadernado (capa dura), a capa original da brochura foi conservada, mas solta. A quarta capa se perdeu, e com ela a segunda parte da orelha do livro. Até a página 85 há marcações de algum leitor, em caneta vermelha, sublinhando termos ou passagens, datando o ano da febre espanhola, e uma passagem sublinhada – “A claridade das estrelas coava-se pela palha do rancho e pelos buracos do pau-a-pique, iluminando os cômodos” – em que à margem está escrito: “citar no “Ouriote” ou no “Quiriote” – a letra é pouco legível.
Por fim, a leitura deste romance remete o leitor a suas antigas leituras: Chapadão do Bruge e Vila dos Confins, de Mário Palmério; os clássicos Vidas Secas e São Bernardo de Graciliano Ramos e o monumento literário brasileiro: Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. O ciclo dos romances regionalistas em nosso tempo foi retomado por Francisco Dantas a partir de Coivara da Memória (1991).
Referência: Bernardo Ellis. O tronco. São Paulo : Livraria Martins Editora, 1956.
por João Wanderley Geraldi | jan 7, 2019 | Blog
Tenho somente uma sobrinha-tataraneta, uma menina sapeca que gosta muito de “cocó”, e tem sua cocó preferida que não pode sequer ser lavada, pois quando a lavam, ela a esfrega no chão para que volte a ter o mesmo cheiro…
Pois minha sobrinha-tataraneta é fruto da mistura de cores. E ela definiu com clareza meridiana sua divisão de cores: o avô e a mãe são marrons; ela, a tia e a vó são brancas e o pai é cor-de-rosa!
Vejam vocês: um pai cor-de-rosa na pele, não na roupa. E é do sexo masculino, foi menino, hoje é homem feito.
As distinções coloridas de Loreta revelam percepções mais das cores: não só o preto e branco, mas também o cor-de-rosa. E o cor-de-rosa, já havia definido outra criança nos idos dos fins dos anos 1970, é “um vermelho devagarinho”.
Ao associar as duas lembranças, temo ter tocado num limite: o cor-de-rosa das meninas se aproximando vagarosamente do vermelho… que desgraça, uma desgraça total! Avermelhar o cor-de-rosa é um desatino. Logo o rosa feminino, e logo o feminino que é mãe do azul.
Foram estas duas crianças que me levaram a lembranças de leitor. Uma passagem do argentino Ernesto Sábato (Sobre tumbas e heróis) em que se fala do começo da investigação da personagem sobre o mundo dos cegos, estes que por razões físicas não percebem o colorido da humanidade (e às vezes quando cegos não físicos, reduzem as cores a uma dicotomia de preconceitos). Para aqueles que viveram e viram e viverão e verão, a metáfora é mais-que-perfeita:
Eu caminhava, enquanto ouvia a campainha que tentava penetrar nos estratos mais profundos de minha consciência: ouvia-a, mas não a escutava. Até que, de repente, aquele som, tênue mas penetrante e obsessivo, pareceu tocar alguma zona sensível do meu eu, algum desses lugares em que a pele do eu é finíssima e de sensibilidade anormal: e despertei sobressaltado, como ante um perigo repentino e perverso, como se na obscuridade tivesse tocado com minhas mãos a pele gelada de um réptil. Diante de mim, enigmática e dura, observando-me com todo o seu rosto, vi a cega que ali vendia bugigangas. Havia parado de tocar sua campainha; como se a tivesse movido unicamente para mim, para despertar-me de meu insensato sono, para advertir que minha existência anterior havia acabado, como uma estúpida etapa preparatória, e que agora deveria enfrentar a realidade. […]
Vigiava e estudava os cegos, no entanto.
Sempre me haviam preocupado e em várias ocasiões tive discussões sobre sua origem, hierarquia, maneira de viver e condição zoológica. Apenas começava então a esboçar a hipótese da pele fria e já havia sido insultado por cartas e de viva voz por membros das sociedades vinculadas ao mundo dos cegos. E com essa eficácia, rapidez e misteriosa informação que sempre têm as lojas e seitas secretas; essas lojas e seitas que estão invisivelmente difundidas entre os homens e que, sem que saibamos ou sem que cheguemos a suspeitar, nos vigiam permanentemente, nos perseguem, decidem nosso destino, nosso fracasso e até nossa morte. Coisa que acontece em sumo grau com a seita dos cegos, que, para maior desgraça dos incautos, tem a seu serviço homens e mulheres normais: em parte enganados pela Organização; em parte, como consequência de uma propaganda sentimentaloide e demagógica, e, por fim, em boa medida, por temos aos castigos físicos e metafísicos que recebem, segundo se murmura, os que se atrevem a indagar seus segredos.
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