Dois poemas de Walt Whitman

Dois poemas de Walt Whitman

A TI, Ó DEMOCRACIA

Venha, farei o continente indissolúvel,

Farei a mais esplêndida raça sobre a qual o sol jamais brilhou,

Farei divinas terras magnéticas

Com o amor dos camaradas,

Com o amor de toda vida dos camaradas.

Plantarei o companheirismo copioso como árvores ao longo de todos os

rios da América e ao longo das margens dos grandes lagos e por todas as pradarias,

Farei cidades inseparáveis, cada uma com os braços em volta do pescoço da outra,

Pelo amor dos camaradas,

Pelo másculo amor dos camaradas.

A ti, isto de mim, Ó Democracia, a fim de servi-la ma femme!

A ti, a ti estou trinando estas canções.

 

A base de toda metafísica

E agora cavalheiros,

Uma palavra digo para permanecer em vossas mentes e memórias,

Como base e também finale para toda metafísica.

 

(Assim para os estudantes o velho professor

Ao término de seu curso repleto.)

 

Tendo estudado o novo e o antigo, os sistemas Grego e Germânico,

Tendo estudado e exposto Kant, Fichte e Shelling e Hegel,

Exposto o saber de Platão, e Sócrates maior do que Platão,

E, maior que Sócrates pesquisado e exposto, Cristo divino havendo longamente estudado,

Vejo hoje em reminiscência aqueles sistemas Grego e Germânico,

Vejo os filósofos todos, igrejas cristãs e cédulas de dez dólares vejo,

No entanto sob Sócrates claramente vejo, e sob Cristo o divino vejo,

O caro amor do homem pelo seu camarada, a atração de amigo por amigo,

De cidade por cidade e de terra por terra.

 

(in. Grandes Poetas de Língua Inglesa do Século XIX, organização e tradução de José Lino Grünewald, RJ : Nova Fronteira, 1988)

“Difícil permanecer sensato no campo de gravitação da loucura”

“Difícil permanecer sensato no campo de gravitação da loucura”

Este enunciado é de Imre Kertész. Ele se referia a uma realidade, uso-a para pensar outra. Tenho feito o máximo de esforço para não tomar conhecimento do que acontece em meu país: gostaria de viver aqui como se fora estrangeiro, mas não consigo me desvestir do fato de ter nascido aqui, de ter vivido sempre aqui, de ter acompanhado a história daqui, de ter sonhado os tempos futuros daqui.

Minha decisão, que busco manter, é de que o Brasil está aposentado para mim. Mas quando um deputado federal eleito decide não assumir o cargo por causa das ameaças de morte que tem recebido, e sua decisão é recebida com alegria por aqueles mesmos que costumam encomendar mortes, não dá para ficar calado.

Ainda que não mais sonhe – e os sonhos sempre apontam direções, e portanto estou sem direção para qual olhar – não me tornei surdo, mudo, e cego. Jean Wyllys será, no exterior, não um foragido, mas um exilado. Exílio voluntário, como muitos daqueles que ocorreram depois de iniciada a ditadura militar. Desculpem nossa falha! Tenho que aprender a lição desarvergonhada de um chefe de poder do país: do movimento revolucionário de 1964, não ditadura de 1964.

Gravitando no mesmo território da loucura surda e muda – sem palavras além dos 140 toques de qualquer raciocínio bolsonárico – fica difícil sobreviver estrangeiro, num “exílio aqui”.

Assim, este registro de despedida de Jean Wyllys é também um pedido: me deixem em paz, parem de fazer tanta cagada, tanto recuo, tanto olhar aloucado, tanto silêncio sobre o que deve ser desvendado, tanta fome de tomar dos que já estão com fome.

Sei que sem sonhar, dormir já não adianta, acordar é inútil. Mas, acordado, dá para olhar para as flores, dá para ver beija-flores e dá para deixar aflorar a sensibilidade na roda de amigos salvos deste naufrágio que se revelou nos sufrágios da imbecilidade.

A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge

A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge

Este excelente romance da portuguesa Lídia Jorge desenvolve-se em dois planos distintos, tendo por pano de fundo as revoltas pela independência de Moçambique (ou a chamada “guerra colonial portuguesa”) e a movimentação da tropa na repressão aos rebeldes.

No primeiro plano, uma novela completa, intitulada Os gafanhotos, focaliza o casamento do Alferes Luís Alex com Evita, recém-chegada de Portugal. A festa se dá no hotel Stella Maris, na cidade da Beira. A descrição do ambiente, dos convidados (todos oficiais, com a presença até do Comandante da Região) e principalmente das convidadas, seus cabelos – insistentemente ao longo de todo o romance há uma repetição do fato de que as mulheres dos alferes passam a ferro seus cabelos, alisam-nos com cuidado para depois penteá-los soltos, elevados, etc…

Tudo corre bem na recepção. Chama a atenção de todas o capitão Forza Leal, carregado de medalhas por atos de bravura na Guiné, em que foi ferido e cuja grande cicatriz faz questão de deixar à vista, usando camisas quase transparentes. Também todos o invejam, e por dois motivos: ter tido a chance de se destacar como herói e ter uma mulher – a que todos chamam de Helena de Troia – de uma beleza estupenda. Se elas todas a invejam por ele, eles todos o invejam por ela e pelas medalhas.

A certa altura, o capitão dá ao noivo as chaves do seu carro e os noivos se retiram para um passeio com a capota aberta, andando pela Beira, pelo litoral para depois voltarem ao hotel e irem para seu apartamento (casualmente, trata-se de um apartamento que é separado do vizinho apenas por um tabique, de modo que os sons ultrapassam as paredes, o que leva o casal a fazerem amor deitados no chão da ampla casa de banho).

Mas são acordados por gritos e por uma movimentação inusual. Vestem-se parcamente e vão para o hall onde ficam sabendo que todos estão no terraço observando os dumper carregando cadáveres que apareceram na praia. E em grande número. Aconteceu que os ‘blacks’, como são tratados pelos militares em função das assessorias que lhes prestam os brancos da África do Sul,  estavam tomando álcool metílico que supostamente tinham roubado de um carregamento [bem mais tarde se saberá que é uma sabotagem, pois o álcool vinha engarrafado em garrafas com rótulos de vinho!]. Aqui aparecem claramente as manifestações de racismo enquanto se comentam as mortes. “São os senas e os chaganes esfaqueando-se. Que se esfaqueiem. São menos uns quantos que não vão ter a tentação de fazer aqui o que os macondes estão a fazer em Mueda. Felizmente que se odeiam mais uns aos outros do que a nós mesmo. Ah! Ah!…”. “As praias vão ficar coalhadas deles quando chegar a noite. Vocês vão ver. Os blacks! Vê-se mesmo que são ideias de blacks!”. Ou melhor ainda:

“África Austral? Que África Austral? Moçambique está para a África Austral como a Península Ibérica está para a Europa – estão ambas como a bainha está para as calças”.

E a culpa? E a culpa? – perguntou o major também já setnado, mostrando aqueles risonhos dentes sobre a mesa.

Deles, da qualidade dos blacks que nos calharam em sorte – disse o pára-quedista lesionado. Se tivéssemos tido uns blacks fortes, tesos, aguerridos, nós, os colonizadores, teríamos saído da nossa fraqueza. Eles é que são os culpados, e se lhes parecemos fortes é porque eles mesmos são extremamente fracos. Só temos de os recriminar… 

No dia seguinte, os convidados – todos hóspedes do hotel – se reencontram no salão agora com suas marcas de uma festa que teria acabado. Mas mesmo sem a orquestra, os pares voltam a dançar… e ficam dançando até escurecer. Lâmpadas acesas, de repente elas começam a ficar verdes: uma chuva de gafanhotos toma conta de tudo… Voltam todos ao terraço para acompanhar o espetáculo, enquanto os nativos acendem fogueiras em que assam gafanhotos com que, segundo os militares, se deliciam…

De repente, aparece um jornalista que quer ver também do terraço o que está acontecendo, porque os corpos continuam a aparecer na praia junto com esta inusitada chuva de gafanhotos. Mas os militares não gostam da presença do estranho, afinal alguém da área das comunicações civis… “A informação, venha ela de que lado vier, sempre incomoda, porque sempre constitui um perigo de se ficar com uma parte do nosso corpo invisível à vista. Ninguém gosta que a informação chegue, sobretudo quando se está à vontade.”

Como a presença do jornalista incomoda, o capitão chama subordinados para retirá-lo do ambiente, mas é o noivo que se oferece. E o capitão lhe passa uma pistola. O noivo empurra o jornalista para fora, somem na mata e de repente ouve-se um tiro. O major avisa ao capitão que seu subordinado havia ultrapassado os limites e que ele deveria registrar o ocorrido. Todos esperam o retorno do noivo… ele não vem. E descem a sua procura, encontrando-o morto com um tiro na testa. Suicídio de tanta felicidade… acontece.

Fim da novela. Na página seguinte, começa o romance que se desenvolverá por nove capítulos de rememorações, trinta anos depois dos fatos narrados na novela. Eva Lopo, antes Evita, é quem narra em primeira pessoa, às vezes interrompidas por outra voz, da “autora” da novela, a escritora a quem fala agora Eva Lopo. Com suas recordações, comparando com a “ficção” da novela precedente, ao mesmo tempo se conforma a narrativa novelística em todos os detalhes dos acontecimentos, de modo a produzir o efeito de que agora, sendo memória, fala-se o que efetivamente aconteceu, até porque frequentemente Eva Lopo se dirige à autora avaliando a novela, sua não veridicidade, mas como ela tornou os fatos mais dramáticos e que nada precisa ser mudado.

Assim, ficamos sabendo ao acompanhar as memórias de Eva Lopo, naquele tempo Evita, que três dias depois do casamento, a tropa foi para Mueda para debelar a revolta dos Macondes. Ficam em campo de batalha por três longos meses. Antes de viajar, o noivo pedira a Evita que lhe prometesse, se o amasse tanto, que não saísse de casa durante sua ausência, coisa que Evita não aceitou. Mas Helena de Troia aceitou isso mesmo que o Capitão lhe pediu… Durante os longos tempos de três meses, as coisas fluíram no Stella Maris e na cidade da Beira.

Helena constantemente ligava para Evita e lhe pedia que fosse à casa. Lá conversavam e nestas conversas, fica sabendo que Helena prometeu ao capitão ficar reclusa – e foi percebendo que seu “noivo” agia como cópia do capitão que estimava. Noutra visita foi apresentada ao acervo de fotos da guerra que o capitão guardava, pois eram em si uma bomba se chegassem ao conhecimento público: cenas de torturas, cenas em que o noivo não só executa um nativo, mas coloca a cabeça num pau e sobe ao alto do casebre para tentar mostra-lo a outros rebeldes. Descobre então Eva Lopo com quem efetivamente se casou: o Alferes Luís Alex não era o estudante de matemática por quem se apaixonou que vivia então às voltas de encontrar uma fórmula para resolver equações de qualquer grau, o que lhe valeu o apelido de Galois, mas um imitador do seu capitão. “Pobres daqueles que tendo vocação para imitarem alguém, nunca encontraram o modelo na vida”.

Numa das ocasiões de confidências, Helena lhe conta que tivera um verdadeiro amor, um despachante. Que o Capitão ficara sabendo. E como homem de honra, decidiu que um dos dois estava sobrando. E pela sorte da roleta russa, um deveria morrer. Morreu o despachante, e desde então Helena de Troia sofre a perda e apanha do marido.

Também descobre que as mortes por consumo de álcool metílico era causadas por um crime: o engarrafamento em garrafas com rótulo de vinho. Vai à sede do jornal fazer a denúncia. Nada é publicado pelo jornalista. Mas eles passam a se encontrar. O jornalista lhe mostra o que é efetivamente a cidade da Beira, o que é a África. E quando Evita depois de saber com que se casara, ficam amantes.

No retorno do Alferes, Evita tenta lhe contar que tinha outra relação, mas Luís Alex somente dorme em sobressaltos. Enquanto tem seu primeiro descanso, o general em conferência de imprensa diz que a operação foi um sucesso, mas Luís Alex revela a verdade: um fracasso total. Os macondes continuariam a sua revolta por muito tempo e outras tribos ainda haveriam de aderir no movimento pela independência, que o general queria que fosse, no modelo da África do Sul, uma independência de brancos, com ele de presidente…

A cena final: enfim Luís Alex sabe que fora traído, e copiando seu capitão, propõe a roleta russa. Neste jogo de morte, dos dois primeiros cliques não saiu qualquer tiro. Na segunda rodada, o jornalista de borra de medo, mas passa mais uma vez. O tiro coube ao Alferes…

Evita volta para Portugal… e trinta anos depois rememora toda história num diálogo com a autora do livro, a mesma que fora a criadora de Os gafanhotos com que se inicia o livro.

Trata-se, realmente, de um livro que merece leitura. Ao mesmo tempo faz uma crítica à guerra colonial, e na operação específica que aparece neste romance, o exército de ocupação, segundo o general em sua conferência de imprensa, tinha-se atingido os objetivos: “atingido os santuários fundamentais do inimigo, capturado armas, munições, víveres, desfeito cultura por incêndio e bombardeamento, afugentado vinte mil macondes espavoridos com a invasão – não era um êxito? O general não tropeçava numa única sílaba de tal modo que a verdade se impunha e a realidade borbotava. Aliás, era comovente dizer. Fazíamos o nosso Vietnam sozinhos, com o Mundo contra nós, quando defendíamos a Civilização Ocidental. Mas quando os americanos perdessem a guerra do Vietnam – porque eles haveriam de perder – Portugal teria há muito vencido a guerra das suas províncias por determinação dos altos comandos.”

E faz uma crítica às relações machistas existentes na tropa, ao racismo presente entre os brancos portugueses, a existência de uma divisão de interesses, alguns dos brancos defendendo uma independência “branca” que, a exemplo da África do Sul, manteria a ordem e o apartheid.

Sobretudo, neste pano de fundo que é a guerra colonial se sobressai, na vida privada de um casal recém formado, a mudança provocada no ‘noivo’ que de estudante de matemática torna-se um quase monstruoso torturador e um imitador nos mínimos detalhes de seu capitão da tropa. A tropa a que fora convocado se incrustou na alma de Luís Alex, não como um metal preciso, mas como um material corrosivo que destruiu a personalidade daquele que Evita amara.

Referência: Lídia Jorge. A costa dos murmúrios. Lisboa : Publicações Dom Quixote, 1988.

Reunião do Conselho Superior

Reunião do Conselho Superior

Graves, sisudos, eles vão chegando e tomando assento naquela ampla sala com a longa mesa e com cadeiras de espaldares altos. Nada que lembre as atuais salas de reuniões de executivos de uma grande empresa. Não: tudo ainda é antigo, digno, severo, austero.

Foram convocados pelo Reitor da Universidade. A questão parecia grave. A velha Coruja, representando a filosofia, estava de olhos arregalados querendo entender e buscando responder: “onde estão as raízes profundas desta manifestação?”; o Sapo, representando as matemáticas todas e as improváveis, calculava a ação, a reação e os efeitos, e se perguntava: “sobrarão restos?”; a Onça Pintada, espevitada e ativa, representando as engenharias, nem queria sentar: “tenho tantas coisas a fazer, para que perder tempo com essas ninharias?”; a Pomba Branca, pregando a conciliação entre os extremos das ideologias das ciências humanas, dizia: “Calma, minha gente! Temos explicações, mas não podemos ser coniventes: a paz se conquista com a ação em casos que tais.”; entra rompante o Elefante, representante dos cursos mais procurados, os das ciências médicas: “Não podemos deixar de considerar os recursos carreados para a universidade pela classe social do suspeito, do indigitado. Por isso, sejamos magnânimos com nosso querido aluno!” O Pavão chegou de penas erguidas. Representava as Ciências Jurídicas. E alertava: “as regras sempre têm diversas interpretações, e a interpretação que vale é aquela de quem tem dinheiro… cuidado, os Patos Amarelos são donos do dinheiro e do poder”.

E assim foram chegando todos. Até a Gata caseira mas universitária, representante do corpo discente e autora da denúncia: “Nós, os Gatos e as Gatas, sempre convivemos e aceitamos os Patos Amarelos, mas este Pato amarelou demais, numa universidade tudo se aguenta, menos isso!”

O Leão, reitor, entra e toma assento. Lê a pauta de reunião: aplicação de penalidade de expulsão de estudante. E passa a palavra à Gata representante:

“O pato amarelo XY explicitou publicamente o que pensam os Patos Amarelos: que com B em pouco tempo matariam toda essa negraiada. A negraiada, como sabem, são as laboriosas formigas que nunca tiveram e nunca terão assento aqui nem lá nas salas de aula. Nós, os Gatos e Gatas, somos solidários com as formigas. Por isso denunciamos e exigimos que o artigo 124 do Regulamento seja aplicado no caso, por violação do comportamento acadêmico esperado de um Pato Amarelo, sempre proveniente das boas famílias da nossa sociedade. É o que tenho a dizer!”

O reitor Leão olha cada um de seus sábios conselheiros. Apenas o Elefante pede a palavra: “Não esqueçamos que dos recursos… vivemos deles… eles financiam nossas atividades… e ele é Pato Amarelo, como reagirá a família Pato-amarelense do país? Sempre penso que devemos ser magnânimos…”

O Sapo das matemáticas fez olhar de paisagem: “nada do que não é exato me interessa…”. Dona Coruja, ocupada com as questões fundamentais da vida esqueceu qual era mesmo o assunto em pauta. Dona Onça traça planos, folheava e não encontrava um foco de atenção definitiva.

E então a Pomba Branca se sentiu na obrigação de aconselhar: “A paz do nosso campus não pode ser perturbada… melhor seria que os Gatos e as Gatas tivessem ficado calados. Mas já que denunciaram, nas ciências sociais e literárias sabemos que “negraiada” é uma expressão do racismo e que dizer “mataremos” é uma ameaça. De modo que temos aqui dois crimes tipificados: racismo e ameaça. Não é possível esconder o sol com a peneira. Teremos que aplicar a expulsão.”

Satisfeito com seus conselheiros, o reitor Leão põe em votação e tendo os conselheiros percebido que ele era favorável à expulsão do Pato Amarelo, todos votaram pela aplicação da pena, até o Elefante com jeito apático e com cara de quem está dizendo: “eu avisei…”

Foi pois o Pato Amarelo X expulso da universidade, uma decisão soberana de uma entidade universitária e privada. A comunidade dos Gatos aplaudiu, os Patos Amarelos não apareceram no campus naquele dia. Mas os princípios confessionais que regiam a instituição foram salvaguardados.

Mas então – e nestas histórias sempre há um “mas” – o Pato Amarelo consultou os outros Patos Amarelos; os pais do Pato Amarelo não gostaram nada da decisão e foram atrás de seus mais fieis servidores, aqueles Pavões com banca e plumas.

Todos os consultados foram unânimes: não é crime! No país temos um princípio constitucional que defende a livre expressão da opinião. Trata-se de opinião, nada mais.

E assim foram feitos papeis, chamadas testemunhas, até que um Corvo Togado concluiu: “Pato Amarelo jamais comete crime. Condene-se a Universidade e todos seus conselheiros a rematricularem o expulso sob as penas pretas das nossas leis, pois elas servem aos Patos Amarelos como nós. Registre-se. Publique-se. Cumpra-se.”

E o Pato Amarelo voltou com a mesma cara de sempre, grasnando, grasnando… e assustando todos os Gatos, Gatas, Corujas, Onças Pintadas, Leões e Elefantes… Só os Pavões se pavoneavam respeitosos diante de seus patrões, os Patos Amarelos.

AGORA SIM, ARMADOS – CUIDADO!

AGORA SIM, ARMADOS – CUIDADO!

Os que mandam no Brasil, hoje, acreditam que a melhor maneira de encarar, enfrentar e combater os criminosos é estar armado. Ser como eles, os criminosos, com revolver na cintura, na bolsa, na mochila, na gaveta, no armário, debaixo do travesseiro…Por vontade, obra e força de Jair Bolsonaro temos o decreto das armas assinado. Agora é ser armado ou não ser armado, eis a questão. Cada um decide. E viva o mercado de armas e escolas de tiro!

Na condição de possíveis e prováveis vítimas, até então, indefesos à violência de assaltantes, de ladrões, de criminosos, podemos agora comprar armas e andar armados. Temos o direito por lei de nos armar.

Este ato poderoso do presidente me faz lembrar do velho credo demagógico, inventado, proclamado e praticado por imperadores da história bem antiga. Os imperadores diziam e proclamavam aos seus povos, para justificar as invasões e o domínio de povos, civilizações e nações vizinhas: si vis pacem, para bellum. Isto é: “Se você quer paz, prepare-se para a guerra”. A lógica racional é: se você estiver bem armado e preparado para a guerra, o inimigo vai pensar duas vezes antes de te atacar. Porém, se você não estiver bem armado e treinado para lutar, qualquer bunda mole te ataca e domina.

O fato triste e desolador é que esta declaração imperial e inventada e proclamada na história antiga, virou demagogicamente um provérbio popular. E pior, está em vigor hoje no mundo inteiro. Por conta e força desta declaração, imperadores, presidentes, ditadores do mundo inteiro e de todos os tempos, mal intencionados, mentem, convencem e seduzem demagogicamente seus povos a acreditar e a apoiar a organização e manutenção de forças armadas – exército, marinha e aeronáutica – sem limites de tamanho, de poder tecnológico e de custos elevados, sempre e só por conta do estado.

Nos primórdios da história, os vastos e mais poderosos armamentos causavam as tragédias mais devastadoras e bárbaras na terra e nas águas. Mais tarde e atualmente as armas mais potentes e devastadoras da vida dos seres humanos, dos animais, da vida ecossocial do planeta terra, servem-se dos céus, do espaço cósmico, provocando tragédias que podem por fim à vida no Planeta Terra. A ciência e o capital estão a serviço do poderio bélico destrutivo devastador.

E por falar em capital, fica aqui uma pergunta, uma questão, sem respostas. O decreto que o Bolsonaro assinou, por acaso não estaria atendendo interesses do capital – indústria e comércio das armas? Neste modelo capitalista, o criminoso não estaria produzindo fortunas para poucos? Ou, o que seria das forças armadas, das polícias civis e militares, federais e estaduais, das armas, dos equipamentos de guerra, dos fóruns da justiça, dos juízes, dos advogados… se não tivesse os criminosos em alta e elevada escala?

Por fim, cuidado! A violência gera violência. Este dístico é verdadeiro, científico. O princípio mais verdadeiro, pedagógico, humano, ético, de combater o criminoso é a educação. Educar todas as crianças, os adolescentes e os jovens até à escala de universidade. Se começar hoje essa educação de qualidade para todos, daqui a 20 anos não teríamos novos criminosos.

Última pergunta: armar as pessoas – os cidadãos de bem – reduz crimes e acaba com os criminosos?

A elegância dos quero-queros

A elegância dos quero-queros

Como são habitantes dos campos do sul da América Latina, particularmente nos pampas, fico imaginando que viagem fizeram aqueles poucos quero-queros que habitam a praia de Barequeçaba. Teriam sido trazidos por alguém? Teriam voado para cá e ficaram perdidos numa praia? Algum navio os trouxe e os largou por aqui?

Não vou pesquisar a origem desses nossos quero-queros. Antigamente eram 5 ou 6 que via passeando pela praia. Foram diminuindo: só vejo dois ou três.

Ontem, no entanto, dois deles gritavam toda vez que eu me aproximava da ponta esquerda da praia: pareciam irritados e querendo atacar a todos os banhistas. E como sempre vinham os “kero-kero-kero-kero” além de um chiado estridente, o grito de guerra dos quero-queros.

Vivi nos pampas, então sei: fizeram ninho por aqui. E temendo um ataque, gritam e pedem ‘briga’ para salvarem os ovos e a prole.

Mal sabem eles que anunciam aos predadores que aqui há alimento. Como temos muitos gambás por aqui – seus predadores estão desaparecendo, particularmente a jaguatirica – os quero-queros com seus rompantes dão a pista!

Pois hoje já não estavam por lá. Certamente já perderam o ninho. Anunciaram o produto, os predadores chegaram. Os rompantes anunciam o que se esconde.

O casal já não estava na praia nesta manhã, mas nesta tarde encontro um deles em seu caminhar elegante no meu trajeto de casa à padaria. Vejo-o andando de um lado para outro, em passos rápidos, olhar desconfiado. E pousado num muro, um gavião – ave que raramente vejo por aqui. Espanto-a querendo a continuidade da vida do quero-quero.

É que os quero-queros, como gentes, sempre estão querendo, querendo. E tanto querem que acreditam em seus gritos. As gentes querem mitos, salvadores e descobrem que encontraram e apostaram em predadores. As aves querem se reproduzir sem serem incomodadas: aqui, não conseguem.

É que o mundo está preenchido: os predadores já tomaram conta, e agem como gambás: bebem o sangue de suas vítimas, embebedam-se e acreditam que são eles próprios “mitos” capazes de esconder suas garras de predadores.

Pedrar e depredar, irracionalidade da natureza a que a racionalidade humana se subjuga? Neste século, parece que sim. Como escreveu Imre Kertész, no século XX aperfeiçoamos tudo:

“O soldado tornou-se assassino profissional, a política virou criminalidade, o capital virou uma grande indústria equipada de incineradores de cadáveres para exterminar seres humanos, a lei virou a regra do jogo sujo, a liberdade mundial virou a prisão dos povos, o anti-semitismo virou Auschwitz, o patriotismo virou genocídio. Nossa época é a época da  verdade, quanto a isso não há dúvida. No entanto, todos continuam mentindo, pela pura força do hábito, mas ninguém se deixa enganar mais; quando se ouve o grito: amor – todos sabem que chegou a hora do assassínio; ao ouvir: lei – é a hora do furto, do roubo”.

Acrescento: Marielle para o bem, para o amor: assassinada. Flávio Bolsonaro para o mal: fez leis, fará leis.

Somente os elegantes quero-queros ainda não compreenderam o novo espírito, o novo ciclo, a divisão entre o cor-de-rosa e o azul das pregações da moralidade no templo e na imoralidade no tempo.