Das Leben des Franz von Assisi in Fresken von Giotto

Das Leben des Franz von Assisi in Fresken von Giotto

Das Leben des Franz von Assisi in Fresken von Giotto, de Giuseppe Basile

(A vida de Francisco de Assis nos afrescos de Giotto)

Da série livros para ler e ver II

São conhecidos os afrescos que o então jovem Giotto pintou na Basílica Maior de Assis, dedicada a São Francisco, cujo corpo está enterrado na Basílica Menor, o que a ordem fez em segredo, temendo os caçadores de relíquias. Os afrescos retratam 28 cenas da vida do santo.

Na sua introdução, o crítico de arte narra a vida de São Francisco, traz informações sobre a fundação da ordem (sob o papado de Inocêncio III) e inclui até mesmo a  planta baixa da Basílica Maior, seguidas de fotos em preto e branco da nave e das 28 cenas dos afrescos de Giotto.

A ideia do livro não é mostrar todos os afrescos, mas alguns deles e escolher um detalhe que é aumentando na fotografia. Leva-se, assim, o leitor a uma atitude à Morelli, cujo método de atribuição de obras examinava precisamente os detalhes. Como sabemos, seu método associado ao raciocínio abdutivo (Peirce), levou Ginzburg à elaboração do conceito de “paradigma indiciário” utilizado na pesquisa, particularmente na História. E Umberto Eco, que também tratou do tema com Sebeok, imortaliza no romance O Nome da Rosa.

Assim, o leitor descobre nesta organização em duplas (do todo e do detalhe) particularidades que um visitante leigo – como foi o meu caso – dificilmente percebe. Assim, o trabalho do crítico de arte e do  fotógrafo ensina ao expectador leigo, dirigindo seu olhar para o que lhe escapa numa pintura: os detalhes. E neste caso, detalhes de uma perfeição que assombra.

Notem-se as perfeições, nos detalhes, da cena em que São Francisco recebe do Papa Inocêncio III a confirmação das regras da ordem:

Do afresco do recebimento dos estigmas, o crítico destacou um detalhe que no panorama geral fica praticamente desapercebido – o pé de flor que está abaixo do santo:

No afresco que representa os lamentos das Clarissas, quando da morte do santo, o crítico escolheu dar destaque a duas freiras que estão na porta da igreja:

 

Referência. Giuseppe Basile. Das Leben des Franz von Assisi in Fresken von Giotto (A vida de Francisco de Assis nos afrescos de Giotto). Freiburg im Breisgau: Verlag  Herder, 1999.

A linguagem em Paulo Freire

A linguagem em Paulo Freire

A linguagem em Paulo Freire, com comentário da Profa. Dra. Rosa Nunes

Cada homem é todos os outros. Esses outros não são apenas os viventes. São também os já transferidos, os nossos mortos. Os vivos são vozes, os outros são ecos. (Avô Mariano) (Mia Couto. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra)

 

O desafio de tratar da linguagem em Paulo Freire se expõe já no título, propositadamente apontando para três sentidos possíveis:

  1. Pode-se tratar da linguagem em seu sentido estrito de língua ou dos recursos linguísticos que Paulo Freire usou, e muitas vezes, criou em suas obras, e então a expressão poderia ser traduzida por outra: a linguagem de Paulo Freire.
  2. Pode-se tratar da linguagem enquanto estruturação discursiva do pensamento de Paulo Freire, buscando na sua “ordem” discursiva um conjunto de elementos que poderiam ajudar a caracterizar o ethos do locutor, o lugar que escolheu e de onde proferiu suas falas, e então a expressão poderia ser traduzida para outra: o discurso de Paulo Freire.
  3. Pode-se tratar da linguagem enquanto fenômeno ou categoria de pensamento tal como concebida pelo autor em seu funcionamento próprio a partir do qual outros fenômenos sociais e pedagógicos podem ser explicados ou pela qual estes outros fenômenos necessariamente transitam.

Certamente o primeiro aspecto, aquele mais superficial, ode ser imediatamente detectado pelo leitor nos inúmeros neologismos de que Paulo Freire lançou mão. Todos nós já tivemos a experiência contemporânea de citar o autor e ver nossos “guias lexicais ou ortográficos” automaticamente sublinhar, em chamativos traços vermelhos, palavras, locuções e até mesmo sentenças. Para dizer o novo, há que haver um modo novo de dizer. Mas este novo não pode ser tão distante do conhecido, sob pena de produzir o inverso de seus desejos: em vez da assunção radical de certos conceitos para com eles produzir um pensamento compartilhado, chega-se à incompreensibilidade jamais desejada pelo autor. Neste sentido, suas formas de construir itens lexicais, expressões, metáforas, estruturas sentenciais não fogem ao modo criativo com que a linguagem é empregada tanto nos contextos populares quanto nos meios mais formais. Estudar estas relações é um desafio a ser enfrentado, para reencontrar os caminhos da sua gramática de criação. Desde já, como leitores despreocupados com as formas e recursos linguísticos mobilizados, podemos encontrar “a boniteza de suas radicações” na encarnação de modos simples de dizer, modos populares de dizer, em que os floreios de estilo não são enfeites, mas tentativas de penetrar na especificidade da ideia e na compartilha destas ideias e sonhos de transformação.

Lembremos também os seus “livros falados”, tão próprios de seu tempo de pós-exílio. Havia urgência em recuperar um tempo ausente e jamais passível de reposição. Havia excessos a dizer depois do silêncio da distância. Mas, sobretudo, havia um profundo respeito pela palavra dita, aquela em que a voz não se esconde – e muitas vezes tenta se apagar – sob os sulcos da linearidade das letras. Também aqui Paulo Freire nos dá uma li8ção: vivendo no meio da academia por razões de ofício, trouxe para este contexto o modo popular e singular da produção da cultura e do conhecimento: a oralidade. Estamos sempre a nos distanciar da oralidade principalmente porque consideramos que a escrita permite uma reflexão mais aprofundada, menos marcada pelas condições de sua emergência, mais pura e neutra em relação ao acontecimento do encontro entre os parceiros que se debruçam sobre o vivido para dele extrair sentidos e lições.  Escrever “livros falados” foi um exercício de reflexão marcada, sem qualquer vontade de neutralidade e falso distanciamento que a escrita supostamente produz.

Se juntarmos estes dois aspectos da linguagem de Paulo Freire, encontraremos mais uma marca de coerência: o fazer cognitivo não se afasta da vida, mas está prenhe dela e somente nela adquire direção e sentido. Também seus caminhos epistemológicos não recusam o que teoricamente defende: o necessário diálogo com o outro e a ousadia da construção de um novo dizer sem qualquer medo das ordenações das gramáticas e dicionários que pretendem estancar os processos de criação linguística. E isto num meio extremamente hostil à oralidade: o meio acadêmico.

Embora este primeiro aspecto da linguagem de Paulo Freire seja extremamente provocador, não e á ele que me dedicarei nestas minhas colocações. Vou preferir enxergar o autor a partir do que me parece ser o lugar privilegiado de sua estruturação discursiva, que pode ser resumida na fórmula do “narrar e pensar. Num segundo momento, pretendo levantar algumas hipóteses a respeito do significado da linguagem na obra de Paulo Freire, considerando-a como fenômeno e como categoria de compreensão do mundo, aproximando Paulo Freire a Bakhtin e a Vigotski, autores cujas obras me parecem compagináveis no que concerne à concepção e funcionamento da linguagem.

 

  1. Pensar e narrar

Todos nós que tivemos a oportunidade de ouvir Paulo Freire, ou mesmo lê-lo, reencontramos nas suas exposições um narrador, gostoso de ouvir, que se voltava para suas experiências e delas extraía as considerações que ia tecendo com invento e limpidez cativantes. Seguramente perdemos, com Paulo Freire, um certo modo de inventar-se como intelectual apaixonado pelas ideias que defende, comprometido com a construção de uma sociedade mais justa e sem qualquer vergonha por assumir opções políticas. É deste Paulo Freire que se pode dizer que foi um narrador que retirou da experiência a reflexão teórica que nos apresenta como conselhos.

Walter Benjamin no estudo sobre o narrador afirma que “são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. […] Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”.

Acompanhando o texto de Walter Benjamin, vamos encontrando alguns elementos que poderiam dar corpo à hipótese de leitura de Paulo Freire, complementando-a com outras perguntas que apontam para as possibilidades de definir um ethos do autor e ao mesmo tempo um modo de fazer ciência que se aproxima e valoriza os modos populares de construção de saberes e conhecimentos.

  • Entre as estabilidades e os movimentos do viajante: como “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”, estes são divididos em dois grupos que se interpenetram – “quem viaja tem muito a contar” e quem fica, conhece as histórias e tradições de seu país. O marinheiro e o camponês. O camponês e o marinheiro Paulo Freire poderia ter sido ambos? Suas obras remetem sempre à experiência do SESI e, posteriormente, a Angicos. O exílio o torna marinheiro e a experiência com a África inclui entre suas reflexões o corpo, seus gingados e suas danças.

 

  • As lições do vivido: a narrativa tem uma dimensão prática e utilitária. “Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. […] Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.” (Benjamin, 1960). Retiro um exemplo de Paulo Freire – depois de narrar sua relação de dor com a chuva, lama ou barro pegajoso, desvelando a razão de ser de sua experiência de sofrimento para dele libertar-se, aconselha: “… alcançar a compreensão mais crítica da situação de opressão não liberta ainda os oprimidos. Ao desvendá-la, contudo, dão um passo para superá-la desde que se engajem na luta política pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão. O que quero dizer é o seguinte: enquanto no meu caso, foi suficiente conhecer a trama em que me sofrimento se gestava para sepultá-lo, no domínio das estruturas socioeconômicas, a percepção crítica da trama, apesar de indispensável, não basta para mudar os dados do problema. Como não basta ao operário ter na cabeça a ideia do objeto que quer produzir. É preciso fazê-lo”. A história da mudança é uma história ainda a construir. Se o conselho não responde a uma pergunta, mas sugere uma continuação para a história, é este fim da história que não está fixado no pensamento de Paulo Freire, porque atingida a não opressão, outra história começa nesta eterna busca de “fazer-se homem”. Os conselhos, que demandam a sabedoria, que como lado épico da verdade demanda compromissos, sonhos e utopias, são tecidos de “saber de experiência feito” para construir o “inédito viável”.

 

  • As interpretações como forma de tornar as narrativas atemporais: exigindo uma comunidade de ouvintes, a narrativa contém informações plausíveis, retomadas no eterno recontar a história que se tece na rede das interpretações distintas e nos diferentes desempenhos de cada narrador, e destes em cada situação. “Contar histórias sempre foi a arte de conta-las de novo…” Em Paulo Freire, observamos a frequência com que reconta a experiência do SESI (por exemplo, em Educação como prática da liberdade e em Pedagogia da esperança), retorna a Angicos, volta a Recife e á casa paterna. A cada novo tempo, a narrativa narrada retorna, reinterpretada e fundamentando conselhos novos, porque dialogam múltiplos passados com o presente olhado com o desejo de futuro.

 

  • A conexão entre a fluidez da vida e as estabilidades instáveis dos conhecimentos: no narrador, os desígnios do futuro, as reminiscências do passado, o sentido da vida, a autoridade da experiência vivida, o curso das coisas sobrepõem-se à tentativa de encontrar explicações lógicas, coerentes e coesas, porque se assume que as vidas dos homens e das mulheres são prenhes de saberes e desejos. Talvez nestas “operações” próprias à narrativa possam ser encontrados indícios da explicação para um processo de produção que me parece uma constante em Paulo Freire: todo ciclo de reflexão teórica, em que os pensamentos se organizam em obra, vem precedido de um ciclo de experiências multifacetadas, de modo que a obra final condensa em um gesto pontos diversos de uma trajetória prévia. Pedagogia do Oprimido, por exemplo, é precedida por obras que remetem à experiência no SESI, Educação e realidade brasileira, depois com retoques, Educação como prática da liberdade, mas também por um texto a propósito da gestão de João Alfredo Gonçalves da Costa Lima como reitor da Universidade de Recife, pelos livros e cadernos de exercícios de alfabetização e pelo livro Alfabetização e Conscientização. Em resumo, a obra-prima de Paulo Freire condensa a experiência brasileira pré golpe militar de 1964 e as primeiras experiências no exílio, especialmente o trabalho realizado junto aos camponeses chilenos, de que Extensão ou Comunicação? possivelmente seja a obra mais conhecida entre nós. Somente para citar outro exemplo, Pedagogia da autonomia se torna uma necessidade das lições extraídas do exercício de cargo público. De modo geral, os dirigentes das secretarias de educação, especialmente de governos mais identificados com a esquerda, constroem um projeto pedagógico que procuram implantar na rede de ensino pelas quais respondem. Em geral estes gestos de implantação desconhecem a história da própria rede de ensino, desconhecem as dificuldades cotidianas dos professores, seus anseios e seus preparos. Certamente a construção da autonomia do professor é a única maneira de lutar contra estas formas de gestão que acabam reduzindo tudo a um tempo zero pela descontinuidade e pelos re-começos constantes.

 

  • Subjetividades expostas: segundo Walter Benjamin “a narrativa … é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. No modo Paulo-freireano de falar, corpo, gesto e voz se unem na forma estética de defender a ética. São conhecidos seus neologismos, suas metáforas, seus contornos frasais que, ao contrário do rebuscado modo acadêmico de se expor, são de fácil compreensão, parecem dizer precisamente aquilo que devem dizer.

 

Paulo Freire, como narrador, soube extrair da experiência seus conselhos, e seguindo seus próprios conselhos construiu uma teoria pedagógica, dela extraiu uma metodologia de trabalho e com todos compartilhou seus achados. Fez isso na forma da valorização da narrativa e se esta hipótese tiver algum significado será o de extrair mais um ensinamento da obra e vida de Paulo Freire: as verdades são gestadas nos processos de interlocução que tomam o mundo vivido como seu tema para dele extrair o conhecimento de experiência feito. Foi assim que nos legou uma obra. Para aqueles que querem ultrapassar o comentário, deixou-nos um exemplo.

  1. Linguagem: dialogia e alteridade

Certamente estaríamos quase todos propensos a aceitar que o século XX se caracterizou também por uma mudança inigualável nos processos de comunicação social. Desde a invenção da imprensa não assistíamos a algo semelhante: neste século foi popularizado o jornal, pelo desenvolvimento de máquinas gráficas que foram da impressora manual e suas formas de composição em pranchas, passando muito cedo para as linotipos, com as impressoras rotativas para chegar à impressão offset, à composição por filme, chegando às impressoras eletrônicas. Mas isto seria pouco, porque manteria os mesmos princípios originais de Gutenberg. Popularizaram-se também o rádio e a telefonia; na esteira da fotografia e do cinema, inventou-se a televisão. Passamos da transmissão do estúdio às transmissões ao vivo. Hoje canais de acesso restrito, nas transmissões a cabo. Usamos a fita de vídeo e nem bem acostumados a ela, começamos a operar com gravações em disco rígido e populariza-se o DVD. Sobre tudo isso, reina quase absoluta a “máquina universal” , o computador, e através dele a rede da Internet. Esta longa enumeração, restrita ao desenvolvimento das tecnologias, apenas ressalta o quanto estes tempos estiveram preocupados com a comunicação social. Mas a centralidade da linguagem não resulta deste desenvolvimento tecnológico. Talvez ele apenas nos tenha confirmado o que já nos inícios do século estava posto pela reflexão filosófica e pela psicologia cognitiva. Este foi o século da “virada linguística”: a categoria da linguagem passa a fazer parte de nossas atuais respostas a questões cruciais da filosofia, da psicologia e da epistemologia: o desenvolvimento cognitivo, a memória, o pensamento, a constituição da consciência e das formas de compreensão do mundo são hoje tratadas a partir da linguagem.

De modo extremamente resumido, podemos dizer que a linguagem, tanto para Paulo Freire quanto para Vygotsky e Bakhtin, tem uma função constitutiva dos sujeitos. Os três autores compartilham um ponto de partida: a dialogia como espaço de construção do humano. Não há diálogo sem a construção de recursos expressivos, através dos quais pensamentos são organizados e expostos, compreendidos e modificados.

Paulo Freire inúmeras vezes chama a atenção para a importância do processo comunicativo e para as formas da linguagem nestes processos. Ao defender que a leitura do mundo é anterior à leitura da palavra, não ignorou que o mundo é lido através de nossas compreensões e estas não se dão no vazio, mas na experiência social, no convívio com o mundo e com os outros: expressa-se em linguagem. Mesmo quando usava conceitos como “consciência ingênua”, defendia que o conhecimento crítico, o apossar-se da realidade resulta de uma educação dialogal e ativa, e por isso mesmo sempre recoberta pela palavra. Já em sua crítica ao “mutismo” da cultura brasileira, faz a defesa dos processos dialógicos como essenciais na construção social das subjetividades. “As sociedades a que se nega o diálogo – comunicação – e, em seu lugar, se lhes oferecem “comunicados”, resultantes de compulsão ou “doação”, se fazem preponderantemente “mudas”. O mutismo não é propriamente inexistência de resposta. É resposta a que falta teor marcadamente crítico”. (Freire, 1971:69). É desnecessário buscar mais exemplos: os leitores de Paulo Freire conhecem o quanto para ele os processos interlocutivos, as interações sociais, e dentre elas as interações verbais, são essenciais na construção do pensamento crítico e, portanto, na construção das consciências.

Vygotsky debruçou-se sobre as relações entre linguagem e pensamento, cunhando o conceito de “ação reguladora da linguagem”: sem o concurso da linguagem não há pensamento. Como a linguagem é compartilhada entre sujeitos, cada sujeito teria na própria linguagem uma espécie de “voz descontextualizada” que, em oposição à voz contextualizada, participaria da solução da construção das compreensões sobre as situações empíricas, em si mesmas incompreensíveis se não postas em relação com a totalidade. Esta é atingível apenas pelas generalizações, de que os sentidos das palavras são o primeiro exemplo com que convive a criança.

Para Bakhtin, a linguagem é constitutiva da consciência e de toda atividade mental. O sujeito constitui-se nas interações de que participa. Bakhtin estuda a relação da consciência com o sistema de signos, e também passa pela questão das atividades mentais do eu e as atividades mentais do nós. Textualmente, em Bakhtin/Volochínov, pode-se ler:

É preciso insistir sobre o fato de que não somente a atividade mental é expressa exteriormente com a ajuda do signo (assim como nos expressamos para os outros por palavras, mímica ou qualquer outro meio) mas, ainda, que para o próprio indivíduo, ela só existe sob a forma de signos. Fora deste material semiótico, a atividade interior, enquanto tal, não existe. Nesse sentido, toda atividade mental e exprimível, isto é, constitui uma expressão potencial. Todo pensamento, toda emoção, todo movimento voluntário são exprimíveis. A função expressiva não pode ser separada da atividade mental sem que se altere a própria natureza desta. (1919:51)

Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação. (1929:112)

A atividade mental tende desde a origem para uma expressão externa plenamente realizada. […] Uma vez materializada, a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental: ela põe-se então a estruturar a vida interior, a dar-lhe uma expressão ainda mais definida e mais estável. (1929:113)

É graças à indeterminação relativa dos significados que a linguagem torna possível a interlocução, o ato singular da enunciação e, ao mesmo tempo, possibilita que o singular tenha interferência nas generalizações, pois os significados não saem incólumes de seus usos.

Os modos de funcionamento da linguagem, em que nos atos singulares da enunciação retornam os recursos expressivos compartilhados e procedentes de outras enunciações, estão a nos mostrar que a totalidade é sempre algo a ser alcançado, e por isso nosso pensamento concreto, nossas teorias, nossos conhecimentos têm que abrir sempre as portas para se deixar percorrer por outros e novos sentidos. A linguagem nos ensina a todo o momento “testar os “achados” e se dispor sempre a revisões” (Freire, 1971:61).

Talvez encontremos aqui uma consequência ainda não suficientemente explorada nos estudos sobre as teorias dialógicas: elas parecem demandar um compromisso com o futuro, com o provisório, com o sempre em construção. Todo o ponto de chegada é também um ponto de arrancada nesta transformação perene, porque sempre há algo a ser alcançado, algo que não está na origem como essencialidade do humano, mas que está sempre se fazendo. É esse compromisso com o futuro que levam

– o psicólogo a cunhar o conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, mais importante do que qualquer estágio concluído de desenvolvimento;

– o filósofo a defender em sua filosofia do ato ético a responsividade de cada ação como um processo de construção de algo que opera com o já dado para alcançar o ainda não conseguido;

– o educador a apontar a tarefa permanente da transformação.

Toda a arquitetura do pensamento dialógico se sustenta na relação com a alteridade. É a presença do outro na constituição da subjetividade, na formação da consciência, no desenvolvimento das funções psíquicas superiores que dá originalidade e radicalidade às perspectivas de Paulo Freire, Bakhtin e Vygostky. É neste ponto que efetivamente o encontro destes autores acontece.

E aqui o sentido de “a linguagem em Paulo Freire” ultrapassa toda e qualquer perspectiva superficial: nós nos fazemos o que somos nas relações dialógicas que mantemos com a alteridade. Sem o outro, não há vozes. Sem o outro, não há ecos. O sujeito e o outro. Relações dialógicas que não se dão no vazio: são relações sócio-históricas, sobrecarregadas das condições de seu exercício, estando os interlocutores condicionados pelo caráter destes encontros que, não obstante suas determinações, são lugares e tempos de construção de novas condições. Sujeição e criação concomitantes, porque a dialogia se dá sobre o estável e sobre o instável da relação com a alteridade. É por isso que somos, numa voz, muitas vozes.

Referências bibliográficas

Benjamin, Walter (1994). “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai leskov”, in. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo : Editora Brasiliense.

Benites, M., Fichtner, B. e Geraldi, J. W. “Sob o signo de Vygotsky. Arte, linguagem e educação” in.  ______ Transgressões convergentes. Campinas : Mercado de Letras, 2006.

Freire, Paulo (1979) Conscientização. Teoria e prática da liberação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo : Cortez & Moraes.

__________ (1971) Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 3ª. edição.

__________ (1996) Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro : Paz e Terra.

Geraldi, J. W. (1999) “Paulo Freire: narrador e pensador” in. Valdir Heitor Barzotto (org) Estado da leitura. Campinas : ALB?Mercado de Letras, 207-215.

__________ (2003). !Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. O encontro que não houve” in. Norma Sandra Almeida Ferreira (org). Leitura: cons/certos. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 45-66.

Vannucchi, Aldo (1983) (org) Paulo Freire ao vivo. São Paulo : Edições Loyola.

Volochínov. V/Bakhtin, M. (1981) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec (original de 1929).

 

COMETÁRIO DA PROFA. DRA. ROSA NUNES

A pretexto da conferência de Wanderley Geraldi “A linguagem em Paulo Freire”

Com o tema “A linguagem em Paulo Freire” Wanderley Geraldi veio aqui partilhar conosco a sua compreensão criativa dessa linguagem. E não é inocentemente que, ao apresenta-lo, faço referência a este conceito. Compreensão criativa é um conceito que percorre a obra do filósofo russo Mikhail Bakhtine. O nosso encontro intelectual tem a marca de uma paixão comum por este autor.

Todo o texto é percorrido pela preocupação Freireana, e também de W. Geraldi, com a emergência de um sujeito forjado num eu-tu interconstitutivo, remetendo para uma relação dialógica.

Para isso, Wanderley justapõe à voz de Paulo Freire outras vozes – Bakhtine e Vygotsky – que deixam o rasto de outras significações, porque ele sabe que a recusa de uma significação única é o que mantém o texto em estado de enunciação e não de enunciado.

É também este sentido dinâmico de incompletude – outro conceito bakhtiniano – que nos estimula para a partilha de sentidos.

Nesta justaposição assume-se o risco hermenêutico de inferir similitude onde outros podem ler diferenciação.

O Wanderley foi arguente da minha tese de doutoramento. Um dos subtítulos dessa tese é uma pergunta que a minha neta me fez, tinha acabado de fazer 3 anos: “Avó, porque é que a gente não vê a nossa cabeça?”.

Nesta pergunta ela situou o determinismo da nossa condição dialógica: nós não vemos a nossa exterioridade. Tampouco o espelho no-la devolve.

Quando olhamos para o espelho é sempre falso o que vemos, porque não vemos o que os outros veem quando nos veem. É através do olhar dos outros que eu me construo, enquanto imagem de mim própria.

Para Bakhtine, é impossível a construção do eu a partir da consciência individual. Tal como Paulo Freire, ele vê um núcleo dialógico em toda a sociabilidade, que é construído por uma resposta existencial activa, construída na própria interacção.

Em qualquer situação de comunicação intercultural ou interpessoal nós criamos imagens dos outros e imagens de nós próprios para os outros – o que remete para o conceito de exterioridade. No âmbito da construção e uma cidadania multicultural, este conceito pode ser muito produtivo pra a reflexão sobre diálogo, porque qualquer cultura tem significados que ela própria não conhece, de que ela própria não tomou consciência. Eles estão lá, mas como um potencial. Este potencial cria-se e desenvolve-se pelo diálogo, já que toda a linguagem transporta uma antecipação de se juntar a quem a receba.

A visão alargada que Bakhtine tem de cultura, que se refere a todos os fenômenos culturais enraizados na linguagem, tem o efeito salutar de deitar abaixo as fronteiras entre cultura popular e cultura das elites, mas também entre texto e contexto. Tal como Vygotsky, para quem o extralinguístico e o linguístico são inseparáveis.  E, sem bem que este último tenha demonstrado que as origens filogenéticas e ontogenéticas da linguagem e do pensamento são diferentes, para ele, pensamento, linguagem e acção constituem um todo que, se se separam, se desvirtuam, sendo a palavra um modo de agir sobre e reagir à realidade de um determinado grupo social.

Como em Paulo Freire, Bakhtine rejeita qualquer modelo que investigue os processos culturais em termos de regras ou sistemas. Ele argumenta que o processo cultural original desaparece sob esse escrutínio. As relações interculturais apenas são significativas quando a autenticidade e a qualidade das mundivisões relacionais são avaliadas pelo ângulo dialógico, no qual uma consciência é justaposta a outra. Os temas “geradores” em Paulo Freire resultam de uma situação de comunicação, pela entrado num mesmo universo de sentidos, em si mesma propulsora de outros sentidos, num quadro dialéctico de superação do imediato no mediato.

Mas Wanderley Geraldi também fala de silêncios e na recuperação de um tempo ausente e jamais passível de reposição, quando convoca o tempo de pós-exílio de Paulo Freire. É o silêncio de quem é silenciado.

Mas há também o silêncio, não de quem é impedido de dizer o que quer, mas que não tem como dizer aquilo que poderia ser dito. É um silêncio que dói.

E também o silêncio gerado num quadro agonístico da luta pelo reconhecimento, em que o diálogo tende para o silenciamento do outro. E isso pode não ser tão distante assim do que são as nossas práticas. Concomitantemente com as bem intencionadas reflexões e argumentações, tantas vezes somos participantes activos de um confronto entre um saber prestigiado, que a si mesmo se legitima, com outros que não passam nesse crivo. E Wanderley também nos dá esse toque na recomendação de um fazer cognitivo que não se afaste da vida.

A resposta será a saída (difícil) desse quadro agonístico para um diálogo descentrado do eu e do outro. A conversação desloca-se do centro eu e do centro outro para o médium que está deslocado do centro, envolvendo uma multiplicidade de vozes e de contextos: a tal polifonia bakhtiniana.

É para esta descentração que tende a proposta de Paulo Freire, aqui mediada pelo encontro a três, tão criativamente engendrado por Wanderley Geraldi. E que, finalmente, pode acolher diferenças substanciais e mesmo conflituais, de resto, muito caras aos três autores que convoca.

E acedo a Paulo Freire narrador, em contraponto à lembrança de que ler Marxismo e Filosofia da Linguagem de M. Bakhtine é enfrentar um monumento intelectual construído sobre a maior sofisticação discursiva. Já na Pedagogia do Oprimido… sentimo-nos aconselhados. O que não obsta ao reconhecimento de convergências dos três autores no carácter socialmente construído da consciência, em resultado da irredutível incompletude humana. Será este o registo em que Wanderley situa as teorias dialógicas quando estas parecem demandar um compromisso com o futuro, com o provisório, com o sempre em construção. É esse o alcance da memória do que há de vir.

Contato: rosanunes@fpce.up.pt

Referências bibliográficas

Bakhtine, M. (1977). Le marxisme e la Philosophie du langage. Paris : Ed. Minuit

Freite, Paulo (1981) Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro : Paz e Terra

Min, E. (2001) “Bakhtinian perspectives for the study of intercultural comunication”. Journal of Intercultural Studies, vol. 22, 1, 5-58.

Vygostky, L. S. (1979) Pensamento e linguagem. Lisboa : Edições Antídoto

 

Nota

*Este texto é resultado de um engano! A Prof. Luiza Cortesão me convidou para uma exposição em mesa-redonda no IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire: Caminhando para uma cidadania multicultural. Ao mesmo tempo que me falava da exposição, também falou de “conferência”, de modo que eu fiz uma compreensão inadequada: que estava sendo convidado para uma exposição em mesa-redonda e para uma conferência. Preparei dois textos de intervenção, para as duas oportunidades. E encaminhei para o Instituto Paulo Freire de Portugal. Recebo então uma mensagem da Profa. Luíza Cortesão de que minha participação estava prevista somente para a exposição na mesa-redonda, e não uma conferência, e  que ela havia mandado meu texto da conferência para parecer de membros do Fórum, de modo que estavam alterando o programa e incluindo uma fala minha em horário não previsto pelo programa. Assim, tive duas oportunidades de intervenção no Fórum, uma delas – precisamente deste texto – feita envergonhado por estar me oferecendo para mais do que havia sido convidado. Embora tenha insistido para que não alterassem a programação, Luíza e a comissão organizadora consideraram que o texto merecia ser tornado público. Depois do Fórum, ele foi publicado nos Anais do evento (Universidade do Porto, 2004 – publicação eletrônica) e na revista Educação Sociedade & Culturas, vol. 23, 2005, p. 7-20. Tive o prazer de ter a Profa. Rosa Nunes como coordenadora e comentadora do texto na conferência. Seu comentário foi publicado na revista e com sua autorização estou reproduzindo seu texto aqui, logo após o meu.

De um outro jeito

De um outro jeito

Começarei pelo começo, os que ainda lembram de minhas escritas sabem que este não é meu feitio, aos desavisados pode parecer redundante. Não é, embora em geral meus textos sempre sejam circulares, vão e voltam numa cadência sem muitas explicações formais, avançamos.

Então vejam que me perco sempre tentando me fazer entender, como se compreender o tempo atual fosse questão de leituras, e explicações. Não é.

Fato é que começo desse jeito porque não é possível outro. O fim não está dado, mas pode vir a ser a qualquer momento: tal qual a esperança. Começo pela ausência e pela lembrança de um texto que desde que li pela primeira vez, marcou-me profundamente, danadamente.

Talvez já o tenha citado em outros textos que escrevo, e ainda o vá fazer sempre. Este é um dos truques do texto literário: provoca-nos até que façamos cada linha, cada espaço, cada palavra e significado, um experimento para momentos vários em que precisamos dele.  O texto  a que me refiro é de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina.

Durante muito tempo eu não entendia como tal conto podia me tocar tão fundo.

Um enredo simples até. A história de uma menina apaixonada por livros e leituras que tem como oponente uma outra menina, que é filha de “dono de livraria”. A trama se dá no fato de que a menina possui um livro: As reinações de Narizinho de Monteiro Lobato e promete-o para a narradora. Essa pequena personagem, que é Clarice, adolescente, cabelos lisos, alta, magra, loirinha e sem posses em tudo se opõe a outra. O que me iguala a Clarice é a classe social e a sede de leitura e conhecimento. As questões étnicas e estéticas talvez me exigissem o contrário, mas deu que a classe que nos orienta fizesse o contrário possível.

A outra menina tem cabelos crespos e arruivados, bustos enormes, gorda e baixa… São descrições do conto que vão construindo as diferenças. Clarice é judia, nessa época morava no Recife e ela nos diz do que é ser uma menina excluída, e do outro lado a sua rival ganha contornos e características próprias de uma adolescente moura. Mas o cerne do conto nada tem de étnico. O cerne é o que sempre é. Como os pobres devem ser castigados e torturados por ousar querer acesso a pequenas coisas.

A menina sequer gostava de ler. Ainda assim usa de toda sua maldade para punir a narradora:

Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.

Esse é o começo.

Não vou dizer sobre o que este texto nos fala.  Não mesmo. Para mim este tempo passou. Agora é preciso que as pessoas sejam provocadas pela sua própria dor. Embora no fundo, no fundo, a gente saiba quando lê este conto que a maldade de uma classe social sobre os pobres não tem limites, e bom que se entenda.

Vejamos ainda esse trecho

O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

O texto é indicado para jovens leitores, é importante porque fala que mesmo diante da adversidade não podemos cair, e precisamos ter alegria em nosso caminhar. Os dias não tem sido fáceis: – Eles venceram e o sinal está fechado para nós.

Embora as pessoas que sempre estiveram às margens não saibam muito bem sobre os sinais fechados, pois sempre inventam novos caminhos.  Também agora será preciso aprendizagem e amadurecimento, não será mais possível fingir que não vê, pois será cada um de nós em pé ao portão: mulheres, negros, LGBTI, estudantes, professores, alunos… sobretudo pobres.

Espero que cada um aproveite essa leitura, e finalizo deixando meus sentimentos de pesar a família do presidente Lula da Silva e a cada um dos brasileiros que perdeu um ente seu no crime de Brumadinho.

A visitação dos mortos

A visitação dos mortos

Há quem diga que aquele que comete uma injustiça contra alguém, mesmo que aparente tranquilidade, vive com seu fantasma. Há até a expressão “estar com o morto debaixo da cama”. O ato cruel e injusto destrói tanto a vítima quanto o desumano e criminoso agente. É o que dizem, é o que dizem…

E a voz do povo parece ter razão. Há pessoas que mesmo tendo chegado aos mais altos cargos do poder que vivem sob a angústia do defunto que o acusa em silêncio. O resultado desta acusação silenciosa é que o criminoso enverada cada vez mais pelos caminhos da prática criminosa de injuriar e vilipendiar de forma desonesta e ilegal aquele a que, por circunstâncias momentâneas, está sob seu poder, pequeno poder que não perdurará e que será julgado pela história.

O “diabo está no meio do redemoinho”. E quem entrou no redemoinho da prática desumana e ilegal se faz semelhante ao rei do redemoinho… e se pensa rei com brilhos platinados.

Assim, estas vítimas, que o povo chama de mortos, mas que estão vivas, assombram aqueles que sabem que lhes devem muito. Mas há mortos reais, efetivos. E estes não retornarão e não haverá tempo para um reencontro pacificador.

A visitação destes mortos irredutíveis, já de dentro da cova, tornam-se fantasmas inafastáveis, irredutíveis, constantes, martelando as consciências daqueles que sequer permitiram um enterro entre entes queridos.

A proibição do luto e do velório há de emergir como culpa, como chaga, como ferida que os mortos visitarão. Cutucarão a ferida que não adormecerá na inconsciência dos desumanos.

E os mortos humanos não são pastos de corvos togados ou extogados, quando vão à sepultura. E assim a imagem completa permanecerá para assuntar e assustar o dia-a-dia dos que não deixaram que fosse velado.

Para estes, a visitação dos mortos é esta visão sorrateira, constante, futricando lá no fundo a maldade que lhes é natural e que civilização alguma consegue lhes extrair, sejam estes desumanos elegantes mulheres elevadas a julgadoras, sejam triunfantes homens com caneta na mão: seu triunfo será sempre o triunfo do mal.

Ganham, mas perdem sempre e cada vez mais. Mesmo aqueles que, para não ficarem mal na fita, autorizam que o morto visite o vivo, já que proíbem que o vivo vele o morto, mas autorizam no dia e no momento em que o morto segue em procissão para a cova. Nem o vivo visitou o morto, nem o morto visitou o vivo.

Mas ambos estão em visitação constantes às consciências pesadas: esta a visitação dos “mortos” que merecem. E que na visitação, os visitantes aferrolhem, aferrolhem até que a culpa os leve aos quintos de onde saíram.

TRAGÉDIAS! MAIS TRAGÉDIAS! QUE TRAGÉDIAS!

TRAGÉDIAS! MAIS TRAGÉDIAS! QUE TRAGÉDIAS!

Tragédias Humanas

Tragédias Ambientais

Tragédias Ecoambientais

Tragédias Ecossociais

Tragédias Biológicas

Tragédias Ecológicas

Tragédias Extrativistas

Tragédias Políticas

Tragédias Éticas

Tragédias Ideológicas

Tragédias Governamentais

Tragédias Educacionais

Tragédias …

 

Todas estas tragédias – e muitas outras mais – são catastróficas. As tragédias acontecem cada vez mais intensas e frequentes por planos, projetos, obras, ações e pela ganância possessiva de bens e capital sem limites de alguns seres humanos. Vivemos um ecocídio cotidiano. Na sua essência, as tragédias são destruidoras da vida das espécies animais – da própria espécie humana – e das espécies florais. Vivemos no Brasil – e no mundo – sob o comando e mando da atual onda devassaladora do populismo da extrema direita. Vivemos no mundo cada vez mais globalizado, mais cheio de fronteiras intransponíveis.

No Brasil, o mais triste e desolador é ver, a cada dia, o atual governo substituir a pedagogia do diálogo civil e consciente pela pedagogia militar da ordem, impostora e autoritária. Escutamos na mídia televisiva e eletrônica os gritos: “Direita volver! Marcha!”! Assim, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento mortal de instituições democráticas críticas. As crises das democracias tradicionais, cada vez mais intensas, geram e gestam riscos mortais à democracias representativas globalizadas e impedem a gestação das democracias vivas, substantivas, participativas.

A pedagogia autoritária do governo Bolsonaro a cada dia adquire mais feições militares. Assim, essa pedagogia militar consolida sua hegemonia política de governo com 7 ministros militares e 45 assessores militares e ex-militares, além do próprio presidente Bolsonaro de autêntica e rigorosa formação militar e do vice presidente Mourão, um general. Por conta desta feição, o governo Bolsonaro não permite “reflexão”, só exige flexão. Os comandantes só emitem ordens. Não fazem propostas de programas. O princípio supremo – e único – da pedagogia militar é: cabe aos comandantes superiores dar ordens inquestionáveis e cabe aos súditos cumprir as ordens em obediência tácita, sem discordar, sem divergir, sem opinar, sem criticar. Portanto, na pedagogia militar não há lugar, vez, possibilidade de ousar, de criar, de inventar o novo e diferente, o original, o melhor. Em contraposição à pedagogia do diálogo, a pedagogia militar autoritária não permite a conversa dialógica.

Vimos e assistimos inconformados estes absurdos desde a campanha. O então candidato Bolsonaro, em ato de encenação teatral ao vivo, recebeu uma facada para não participar de debates na televisão ao vivo e não responder a perguntas dos adversários e dos jornalistas. Acontece que o debate público de candidatos à presidente da República exige conhecimento. O diálogo, por sua vez, exige argumentação, portanto, conhecimento. Riqueza que não pode faltar a um presidente do Brasil. Somente ao Bolsonaro.

O fato mais cabal da falta de conhecimento e de argumentos, visto e  testemunhado pelo mundo inteiro, foi não comparecer à entrevista marcada para a imprensa universal, dias atrás, em Davos, por Bolsonaro. Nem ele, nem os seus assessores compareceram. Uma vergonha mundial. Dizem que foi o medo da bolsa romper e derramar o material do baixo corporal. Seria uma indecência malcheirosa. Indecentes, mesmo, são as palavras faladas de improviso.

O moedor de carne

O moedor de carne

Até quando me casei ainda se dava de presente de casamento um moedor de carne: assim como se batia bife, moía-se em casa. As facilidades oferecidas pelos açougues fizeram com que a máquina de moer carne caseira se transformasse em peça de museu ou de antigualha.

Em minha casa, a mesma máquina também era usada, colocando-se alguns acessórios, para fazer bolachas amanteigadas. Uma festa rara na casa, mas o sabor das bolachas compensava o tempo e a força para fazer a máquina girar com a massa.

Mas também moíamos o amendoim com que fazíamos, na Páscoa, nossos ovos de Páscoa: durante toda a quaresma nós, as crianças, montávamos guarda na cozinha: qualquer ovo que fosse usado deveria ter apenas uma abertura pequena. Guardávamos as “casquinhas” para fazermos nossos próprios Ovos de Páscoa. Torrávamos amendoim, moíamos o amendoim, misturava com açúcar cristal e enchíamos as casquinhas, não sem antes as pintarmos. Os ricos pintavam as casquinhas com tinta óleo, de várias cores, de modo que cada uma acabava com um desenho diferente. Nós pintávamos com algo que também deve ter desaparecido: tinta para tingir roupa – e aí tínhamos vermelhas, amarelas, verdes, azuis… (não havia cor-de-rosa nem para as meninas!)

Mas havia ainda uma terceira técnica: enrolávamos as casquinhas em “papel de seda” de várias cores, molhávamos o papel e colocávamos as casquinhas para secar no forno do fogão de lenha: depois de secos, desembrulhar a casquinha era sempre um gesto de curiosidade: que cores ‘pegaram’, que desenhos apareceram.

Pois vejam só: quantas utilidades domésticas dávamos para as máquinas de moer carne! Aquela que ganhamos de presente de casamento se perdeu nas inúmeras mudanças: em algum momento a abandonamos sozinha em alguma casa ou a colocamos entre os “bagulhos” que se ninguém quisesse se tornariam lixo. A máquina era de ferro e certamente ninguém a quis: jaz morta em algum aterro sanitário. Naqueles tempos não havia recolha de lixo reciclável…

Agora só temos máquinas semi-industriais que enxergamos nos açougues. E “máquina de moer carne” se tornou apenas uma expressão que se usa metaforicamente como quando nos referimos ao modo de funcionamento do judiciário, particularmente o atual judiciário do Brasil: “A justiça dos sistemas totalitários funciona ininterruptamente, como um moedor de carne que gira sem parar” (Imre Kerstész). Mas no bojo da máquina, somente entram carnes escolhidas a dedo, de corpos condenados porque suas mentes pensam ou agem segundo uma lógica que os sistemas à Moro rejeitam. Outras carnes, mesmo de corpos marcados por ações pouco louváveis, jamais irão para a máquina de moer carne que maneja, sem parar, aquilo a que chamavam de Justiça.