por João Wanderley Geraldi | fev 8, 2019 | Blog
Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão, a utopia é também um compromisso histórico. (Paulo Freire)
O objetivo deste ensaio é correr o risco de trazer para a criação das práticas políticas e pedagógicas um conjunto de conceitos formulados em outros contextos; ou mais concretamente ainda, organizar uma sequência de vozes extraídas propositadamente de seus contextos para atravessá-las por uma interrogação militante: a problematização do futuro, com o suposto fim das meta-narrativas, implica o esquecimento do amanhã em nome da ‘surfagem’ e leveza do deixar-se levar pelo presente? Mais especificamente ainda, o diálogo que gostaria de estabelecer tomar como fonte privilegiada, polifonicamente mediada por contrapalavras procedentes de outros lugares, o pensamento de Paulo Freire entrecruzado pela arquitetura do pensamento de Bakhtin, para com eles interrogar esta tão difícil passagem do pensamento sobre as origens para o pensamento que se propõe criar o novo sem perder compromissos de vizinhança com utopias passadas.
Sem dúvida alguma, os riscos maiores destas aproximações dizem respeito à noção de sujeito que resulta [ou se constrói a partir] da concepção de linguagem como atividade constitutiva com que se pode escapar da tranquilidade do estruturalismo linguístico que inspirou inúmeras reflexões sobre o sujeito e delas extraiu uma prima filosofia que define um modo de ‘movimento estático’ de estar no mundo. Em nome dos deslizamentos constantes, dos movimentos sem direções, propõe-se um radical desmantelamento de valores das origens, fazendo-se entender que o questionamento de essências fundantes implica estancar qualquer memória de futuro próximo. À recusa do exercício de uma subjetividade racional, crítica e consciente, soma-se a recusa da construção de formas de convívio capazes de incorporarem em sua arquitetura as instabilidades dos seres humanos, as suas multiplicas personalidades potenciais e suas condições de possibilidade de produzir acontecimentos ou reagir a acidentes que lhes sucedem. Para recusar a fixidez das origens, deitam-se fora água e bebê, recusando-se também a utopia de um futuro humanizado e humanizante.
Esboçados os riscos, o desejo é o de construir um lugar capaz de escapar aos questionamentos recentes à “pedagogia crítica”, contribuindo com alguns elementos de construção de uma concepção de sujeito que, por não aceitar qualquer essencialidade intocável, qualquer “alma governante”, qualquer princípio ou origem a não ser sua constante mobilidade e mutabilidade, tem que assumir uma ‘memória de futuro’, cuja concretização não resultará do ‘deixar-se levar pela onda’. Ao contrário, o futuro exige atitudes de pilotagem (Stoer, Magalhães, inédito). E esta parece implicar desenhos utópicos nos presentes, irrealizáveis como totalidade no futuro, porque este exigirá sempre novos esboços, porque o futuro “é uma tarefa permanente de transformação” (Freire, 1979).
Certamente uma tal construção não se fará sem os andaimes que nos fornece o pensamento de Paulo Freire: a conscientização “consiste no desenvolvimento crítico da domada de consciência”. A tomada de consciência é apenas o primeiro produto da adaptação ao disponível, resulta da “aproximação espontânea que o homem faz do mundo […]. A este nível espontâneo, o homem ao aproximar-se da realidade faz simplesmente a experiência da realidade na qual ele está e procura. Esta tomada de consciência não é ainda a conscientização. A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização”. (Freire, 1979)
O pensamento crítico deste final e início de século tem ramificações de toda ordem, ora apontando para “as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental” (Boaventura Sousa Santos, por exemplo, e sua trilogia de tensões: entre regulação social e emancipação social; entre Estado e sociedade civil e entre o Estado-nação e o que designamos por globalização), ora apontando para as crises dos paradigmas científicos, reintroduzindo o tempo, o acontecimento e o acaso enquanto a modernidade apostava na previsibilidade inscrita nas “leis da natureza” (Ilya Prigogine, por exemplo, e a reintrodução da seta do tempo e sua irreversibilidade que demanda o reencantamento do mundo), ora apontando para a construção de subjetividades autônomas, para o exercício da cidadania e para a construção de uma ação contra-hegemônica (conceitos tão presentes nos textos da pedagogia crítica quanto nos movimentos sociais contra-hegemônicos, de Paulo Freire a Edgar Morin, do MST ao movimento anti fast food).
Todas estas direções remetem a concepções de sujeito, de forma explícita ou implícita, nem sempre partilhadas, mas todas elas com um denominador comum: compartilham crenças e certezas nas possibilidades de ação dos sujeitos sociais, que se definem de formas distintas relativamente aos condicionamentos históricos. Estas direções podem tomar diferentes fundamentos para o sujeito – uma vocação à eternidade? uma vocação à solidariedade? uma vocação à subjetividade eticamente fundada, razão convertida em paixão pelo humano de cada um e de todos? Mas nenhuma destas direções dispensa ou se dispensa de uma tomada de posição.
A essas concepções e a compartilha da crença de outros possíveis (para usar uma clave paulofreireana, outros inéditos viáveis) opõem-se não somente discursos pragmaticistas, com interesses a defender, em que a noção de “adaptação aos tempos” é o condão mágico do pensamento sobre a constituição das subjetividades, como se os tempos não fossem “regíveis”, mas regentes. Estes discursos podem ser encontrados na imprensa, na política, nos acordos de uma economia planejada para a liberdade dos mercados, nos planejamentos educacionais: o discurso hegemônico sempre encontrou porta-vozes eficientes.
Também no próprio campo crítico essas concepções e sua compartilha básica de possibilidades de construção de um outro futuro são postos sob suspeita (2). As críticas endereçadas ao pensamento crítico pelas análises foucaultianas, pelas desconstruções derridianas, necessariamente devem ser postas sob escrutínio, porque não representam mais uma diferença de opção entre campos de luta, mas resultam de um refinamento necessário às concepções para não cairmos no engodo da inovação que repete e reproduz os mecanismos mesmos que quer destruir.
Para exemplificar estas posições críticas, gostaria de retomar aqui uma passagem de Deleuze. A citação será longa, mas necessária para retomarmos a força propulsora da conscientização a partir de novas concepções sobre o sujeito, sem perder com isso que o futuro se constrói como possibilidade do que há de vir e não como produto constante de uma mutação contínua e sem rumos.
Se hoje em dia o pensamento anda mal é porque, sob o nome de modernismo, há um retorno às abstrações, reencontra-se o problema das origens, tudo isso… De pronto são bloqueadas todas as análises em termos de movimentos, de vetores. É um período bem fraco, de reação. No entanto, a filosofia acreditava ter acabado com o problema das origens. Não se tratava mais de partir nem de chegar. A questão era antes: o que se passa “entre”? E é exatamente a mesma coisa para os movimentos físicos.
Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar um peso, etc.: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se define cada vez menos a partir de um ponto de alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa delta – são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, “chegar entre” em vez de ser origem de um esforço.
E no entanto, em filosofia se volta aos valores eternos, à ideia do intelectual guardião dos valores eternos. É o que Benda já criticava em Bergson: ser traidor da sua própria classe, a classe dos clérigos, ao tentar pensar o movimento. Hoje são os direitos do homem que exercem a função de valores eternos. É o estado de direito e outras noções, que, todos sabem, são muito abstratas. E é em nome disso que se breca todo pensamento, que todas as análises em termos de movimento são bloqueadas. Contudo, se as opressões são tão terríveis é porque impedem os movimentos, e não porque ofendem o eterno. Sempre que se está numa época pobre, a filosofia se refugia na reflexão “sobre”… Se ela mesma nada cria, o que poderia fazer, senão refletir sobre? Então reflete sobre o eterno, ou sobre o histórico, mas já não consegue ela própria fazer o movimento. (Deleuze, 1992, p. 151-152)
Se a noção de conscientização demanda um compromisso histórico e se a inserção crítica na história implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo, que criam sua existência com um material que a vida lhes oferece (Freire, 1979), então encontramos nessa afirmação uma oposição entre os pontos de vista defendidos pela pedagogia crítica e pela crítica deleuziana (e de outros pensadores contemporâneos). Seria possível encontrar um outro posto de observação a partir do qual poderíamos construir pontes entre o fazer o deixar-se levar, entre criar a existência e o se fazer aceitar pelo movimento de uma grande onda? Em resumo, entre surfar e pilotar?
Parece-me que é precisamente nos percursos dessa busca de respostas a perguntas que não se deixam apagar, porque são perguntas constantes de respostas provisórias, que poderíamos encontra categorias com que reconstruir nossas noções de sujeito, sem perder esperanças num momento propício à desistência e à inação política. Sem defender qualquer perenidade a não ser o movimento permanente e, nesse sentido, os direitos do homem não são valores eternos, mas valores a que outros se acrescentam, no movimento da história, reconfigurando cada um deles – talvez possamos encontrar no ‘modelo’ não estruturalista de funcionamento da linguagem algumas pistas para uma inserção no movimento, sem com isso recusar a existência de pontos de energia material e social.
Um dos processos mais notáveis da linguagem é sua vocação constante à repetição e à mudança. Se não houvesse repetição, a cada nova enunciação, teríamos que construir os recursos expressivos mobilizáveis para sua realização: isso impediria qualquer possibilidade de partilha de sentidos. Se não houvesse mudança, toda enunciação seria citação constante dos mesmos enunciados. A linguagem não funciona nem sobre a permanência dos recursos expressivos, nem sobre a criação ininterrupta que não produz história. Por isso a linguagem é uma atividade constitutiva de si mesma, uma sistematização em aberto, produto do passado e projeção do futuro. Talvez possamos extrair desse modo de funcionamento uma primeira lição: nenhuma sociedade é uma estrutura em cujo movimento temos que nos inserir, mas uma arquitetura que demanda enunciações singulares a cada momento histórico em que o que se repete muda de sentidos e o que se altera adquire sentidos no que se repete. Indeterminação com história, movimento com futuro.
Em consequência, para aceitarmos a linguagem como atividade constitutiva, somos forçados a reconhecer que a relação entre o mundo da cultura, em que os sentidos circulam, e o mundo da vida, em que os atos são executados – incluindo entre eles nossos atos discursivos – é também uma relação constitutiva, em que um mundo somente existe porque constituído pelo outro. Um mundo mudando o outro permanentemente. Reencontramos o movimento, mas agora com história, que funda raízes não para garantir o futuro, como se dele fosse a origem, mas para tornar possível o próprio movimento comi criação e não repetição do já dado. Tal como os recursos expressivos permitem a enunciação sem, no entanto, fixar-lhe os limites de sentido, permite enunciados nunca antes ditos e jamais repetíveis em sua singularidade.
Acrescentemos a esta concepção de linguagem as implicações que dela extraem Bakhtin na filosofia e Vygotsky na psicologia e reencontraremos a questão da construção da consciência e da conscientização. Se nossa consciência é sígnica, está repleta de signos nunca neutros porque são produtos da história, somos todos produtos da história: mutáveis, múltiplos e singulares. Irrepetibilidades e responsividades irreversíveis. Não podemos alegar qualquer álibi para a existência: não podemos dizer “não estamos aqui”. E estar aqui é uma resposta a si mesmo e ao outro, com o qual necessariamente estamos e a quem dizemos “estou aqui”. Conscientizar-se é ser esta resposta à alteridade.
Dispúnhamos, no passado, de certas palavras pouco precisas, mas extremamente mobilizadora. Seria paradoxal, em nome da inexistência da fixidez de valores eternos, exigir precisão matemática de conceitos abstratos como “estado de direito”, “direitos do homem”, “justiça social”, etc. A concretude, produto da totalidade, é sempre uma abstração a nos mostrar que estamos sempre incompletos em nossos conceitos e em nossas vidas. Não sabemos com precisão que toque, que palavra, que gesto produzirá o encontro com outro toque, outra palavra, outro gesto e, na faísca deste encontro, escreverá em sulcos no ar uma outra imagem, uma terceira palavra capaz de criar uma compreensão nova, exigir um investimento intelectual e desencadear este encanto que é o pensamento crítico. Pensar exige liberdade. Pensar exige silêncios e vazios. E terá valido a pena pensar, mesmo que o pensado se esvaia no momento mesmo de sua emergência.
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim este atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios.
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha foz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
(Manoel de Barros. O Apanhador de Desperdícios)
Referências bibliográficas
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.
_____________. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza (para uso didático e acadêmico). Título original: Towards a Philosophy of the act. Austin : University of Texas Press, 1993.
Barros, Manuel. Memórias inventadas: a infância. São Paulo : Planeta, 2003.
Deleuze, Gilles. Os intercessores. L’Autre Journal, n. 8, outubro de 1985, entrevista a Antoine Dulaure e Clare Parnet. In. Conversações 1972-1990. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992.
Freire, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.
Geraldi, João W. Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. O encontro que não houve. In. Normam Sandra de Almeira Ferreira (org) Leitura: um cons/certo. São Paulo: Cia. Ediotra Nacional, 2003.
Morin, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Lisboa: Instituto Piaget, [s.d.] Original de 1997.
Silva, Tomaz Tadeu (org) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Stoer, Stephen e Magalhães, António M. Mapeando decisões no campo da Educação numa época de globalização. Texto inédito.
Notas
- Este texto foi escrito para o IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, realizado na Universidade do Porto em 2004. Em certo sentido, ele é uma resposta muito provisória a certos incômodos com algumas teses pós-modernas, de alguns pós-modernos, que decretaram o fim da história, o fim das grandes narrativas (utopias neste ‘sistema de pensamento’ são narrativas, isto é, uma narrativa do que não há). Minha preocupação na época, talvez possa ser resumida numa pergunta: sem qualquer sonho que mostre o caminho, como caminhar? Certamente a resposta daqueles que decretaram o fim da história, é não caminhar, viver a onda do presente, entrar na onda, deixar-se levar pela onda. E meu texto encarando “os grandes pensadores” é uma tentativa de problematizar esta “narrativa” que se limita ao presente. Creio que apresentei este mesmo texto num evento sobre o pensamento crítico na Universidade Católica de Pelotas, mas não lembro o ano. O texto foi publicado nos Anais do IV Encontro em 2004, em publicação eletrônica da Universidade do Porto. Depois foi publicado na Revista Ecos, Ano V, número 5, da Universidade Estadual de Mato Grosso. E ainda autorizei sua publicação em Barbosa, Adriana M. de Abreu e BIONDI, Silvana Oliveira (org) Olhares sobre o texto: o lugar do texto e o texto como lugar (Anais do 1 Fórum Nacional Discurso e Textualidades). UESB, Jequié, 2007, p. 8-17. Infelizmente, do ponto de vista material, me sobrou somente um exemplar da revista Ecos. Incluí-o na coletânea de textos meus Ancoragens – Estudos Bakhtinianos, São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
- Do embate, certamente o debate entre Telmo Cracia e Rui Gomes (Revista Educação, Sociedade e Culturas 18, Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, 2002) é um exemplo recente, que retomamos no texto “Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: O encontro que não houve” (Geraldi, 2003). [já publicado neste blog]
por Mara Emília Gomes Gonçalves | fev 7, 2019 | Blog
Eu deveria. Tantos temas. Veja bem.
Acontecem coisas e estamos de novo envoltos em temas políticos. Embora pensar politicamente em situações cotidianas não seja no momento atual uma medida saudável.
Adoece. Preciso tomar os remédios para febre, já vai passar logo, é apenas um resfriado próprio da mudança de tempo.
Algumas coisas são muito estranhas, de todos os lados, ou, melhor dizendo, em nossa volta. Neste Brasil quintal. Percebemos isso, fatos e acontecimentos sem nexo algum, ou mesmo fora da nossa compreensão. Então entre incompreendidas vitórias e derrotas, vamos defendendo ideias a partir de nossos pontos de vista, muitas vezes míopes, fazendo monólogos, quando seriam necessários diálogos vários.
Meu cérebro explora a minha paciência, e pergunto-me muitas vezes se o óbvio é para todos, talvez sim, talvez não. Lembro-me e esqueço-me de um pensador que acredita que a universidade deve ser reservada para alguns.
Nenhuma novidade.
Se o saber é para poucos, devemos entender que existem muitas formas desse desejo ser alcançado a principal delas é negando acesso, privatiza-se o espaço e lá só entrarão os que puderem pagar; outra é não desenvolvendo, em espaços de formação e educação, o desejo de saber e o pensamento crítico; e ainda o método ou fórmula, como queiram, igualmente eficaz é a desvalorização da cultura e da diversidade.
Imagino que a política que impingiu a universidade brasileira um maior diversidade não é combatida apenas pela questão estética ou mesmo pelo atraso em um ano ou dois na entrada na universidade dos filhos de ricos, sim porque não foi negado o acesso, e eles continuaram a entrar, no máximo tiveram que postergar um ano ou dois, coisa que se resolve com férias e viagens, depois matriculam-se em colégios, cursinhos, aulas específicas, maratonas, estimuladores, facilitadores, mastigadores de fórmulas e conteúdos, que garantem a entrada.
A questão não é essa. Não sejamos parte da mentira.
O problema é que filhos de pobres, negros, afrodescendentes, indígenas e deficientes passaram a esfregar na cara da meritocracia fajuta e burguesa a verdade, cotidianamente.
Cotistas – sem ajuda de babás, domésticas, cursinhos caros, contas pagas, melhores e caras escolas, aulas de esportes e línguas estrangeiras, curso de violão, férias, alimentação balanceada, terapias, guias espirituais e tantas outras bolsas que seus adversários – ditos de ampla concorrência, dispõem ao longo de suas vidas, ao entrar na universidade seus desempenhos se igualam e até superam os afortunados pelo sistema capitalista.
E o descrito acima ainda não é a pior parte.
O pior mesmo deve ser para os filhos dos ricos, criados a pão de ló ter que conviver com a classe trabalhadora, encarar que seus méritos não são assim tão seus, porque na universidade com raras exceções o senso crítico e aguçado. Então ver que aquela menina que vende sanduíche na faculdade mesmo com bolsa de permanência, não comprou um livro sequer durante todo curso porque ajuda nas contas da família, saber que aquele cara inteligente pacas, aquela jovem que escreve e fala tão bem que poderia ocupar o cargo que lhe foi prometido pelo amigo do papai, ou mesmo pela madrinha não terão a menor chance, afinal não existem cotas nas empresas privadas, no universo privado. É duro ter que assumir a verdade, mesmo que ela permaneça oculta, de que a riqueza no final é fruto de roubo, de exploração covarde de quem está abaixo de você na pirâmide social. Enfim que a manutenção do sistema desigual também é seu, e que roubo é muito diferente do assalto, e por vezes até pior.
O comunismo não destrói a cabeça de ninguém, e nem se aprende sobre comunismo nas universidades, por incrível que pareça essas instituições são bem meritocráticas, com tantas as safadezas que podem caber nessa teoria. O problema é que a prática é o critério da verdade, e essa destrói muito. Então o que fazer? Tirar dos alunos o senso crítico.
– Existem líderes e liderados! É muito esforço! Muitas noites sem dormir! Muitas aulas! Quem estiver mais bem preparado alcança as melhores colocações.
Então parabéns! Você venceu! Mas no fundo, sabe-se que não é bem assim, agora você já sabe. Então deve ser lobotomizado, incapaz de sentir a dor do outro, de chorar e sofrer com as injustiças. Parcele a ética em 24 vezes no cartão de crédito. Sem restrições no CPC ou Serasa. E você ainda vai dormir sabendo que não existe justiça alguma nisso, e é preciso garantir que as consciências estejam tranquilas, acalmar os mais exaltados. Compre um discurso para chamar de seu. Qualquer um que beneficie você individualmente, ou aos seus iguais: hierarquia e conservadorismos servem para manter o jantar servido pontualmente.
Depois faça um discurso de amor e ódio que deixe os esquizofrênicos com inveja. Se ainda assim forem insatisfatórios os mecanismos de alienação, pode-se sempre usar a força.
Mudar as leis e desfazer o mal/bem feito.
Matar e matar. Essa prova de admissão não requer provas. Nessa cotização, os negros, pobres, indígenas, e mulheres, sobretudo merecem amplo e irrestrito acesso.
A universidade não é pra qualquer um, afinal. Aqui não é nosso quintal.
por José Kuiava | fev 6, 2019 | Blog
– Nada es mejor que
Una copa de vino.
– Bueno…mejor dos!
A ideia e a imagem de beber vinho é sempre uma atmosfera de prazer, de uma atitude elegante e de uma postura de elevada verdade cristalina. O vinho abre cancelas aos crentes e praticantes do prazer da vida. Antes e acima de tudo, o vinho espanta a tristeza e afugenta a solidão. Quem não acredita nesta verdade e pensa ao contrário destes pressupostos é aquele que nunca bebeu vinho de boa qualidade e de maneira certa.
Ao longo da história dos seres humanos, conhecemos e aprendemos belas e deslumbrantes lições de vida por força dos poderes e dos efeitos prazerosos do vinho.
Os imperadores mais antigos, quando aprisionavam seus inimigos e conspiradores e não conseguiam que eles falassem e confessassem seus planos ocultos e seus segredos políticos, mesmo sob a dor das torturas e ameaças de morte, aprenderam que era mais fácil e seguro obter a verdade – a delação – oferecendo a eles banquetes regados a vinho. Depois de comer comida da nobreza e beber muito vinho bom, os conspiradores falavam a verdade por livre e espontânea vontade. Confessavam seus planos políticos e delatavam as tramas sigilosas dos inimigos do imperador. Aí foi inventada a expressão que virou dístico popular: “in vino veritas” – no vinho está a verdade. Ou seja, dê vinho a ponto de embebedar o cidadão e ele dirá a verdade em estado de alegria e sinceridade. Essa estratégia é usada ainda hoje em inúmeras e infinitas circunstâncias de controle político e ideológico. Embora as estratégicas e as práticas contrárias – a tortura em múltiplas modalidades, a delação premiada, as condenações judiciais injustas – continuam sendo os mecanismos de manutenção das elites sociais no poder.
Já no mundo sagrado, de acordo com os escritos do Novo Testamento, Jesus Cristo consagrou e recomendou o vinho nos seus dois momentos mais marcantes de sua vida: as Bodas de Canã e a Santa Ceia. Primeiro, lá pelas tantas da festa de casamento faltou vinho. O vinho acabou e a alegria sumiu. A Mãe de Jesus, Maria, falou: “eles não tem mais vinho”. Jesus, então, mandou encher de água seis talhas de pedra. E a água se fez vinho. A festa continuou com muita alegria. No segundo momento da vida, quando Jesus já sabia que seria condenado à morte por Pilatos, convidou seus melhores amigos para a ceia de homenagem e despedida. A celebração principal da ceia – o brinde – tornou-se sagrado e é consagrado no mundo inteiro pelos seus seguidores cristãos. Primeiro, Jesus tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, e disse: “tomai e comei, este é o meu corpo”. Em seguida, tomou o cálice e deu aos discípulos, dizendo: “bebei dele todos, porque este é o meu sangue do novo testamento, que será derramado por muitos para remissão de pecados”. Este brinde de Jesus virou sagrado e é consagrado pelos padres sacerdotes até hoje em todas as missas em todo mundo.
O fato estranho é que muitos pastores de igrejas que seguem a doutrina de Cristo proíbem os seus fiéis a beber vinho.
As homenagens e as reverências ao vinho estão em todas as artes – pinturas, esculturas, literatura, poesia, arquitetura, música, ferramentas – barris, garrafas, taças…
Fico encantado e emocionado pela beleza das poesias do poeta Omar Khayyám – 1040-1123, Pérsia.
“Vinho! Mais vinho! Em turbilhões e em ondas
que me faça esquecer quanto eu sofri.
Não fales mais, tudo é mentira. Vem,
depressa – a taça! Eu já envelheci…”
…“És senhor do vinho!
Não te arrependas de bebê-lo
antes e depois
do pôr-do-sol!”
…“Esta noite,
aveludada pela carícia do luar,
sorverei a bebida
crepitante na taça alabastrina”.
…“É bom que te rejubiles,
que alegres,
vez por outra,
o coração com taça de vinho”.
…“Bebe o vinho dourado!
É repouso para o espírito,
bálsamo providencial
para alma e coração feridos.
Se fores assediado
por um dilúvio de tristeza, se te vires,
por todos os lados,
acometido de pesares,
agarra-te, sem receio,
ao delicioso vinho dourado.
É o barco de salvação.
…“Se bebes vinho,
bebê-lo-ás em roda de amigos,
ou acariciando nos braços
mulher sorridente,
saltitante de alegria,
de faces rosadas
e olhos ternos”.
Para finalizar, uma verdade inquestionável: o vinho melhora com o tempo. Eu melhoro com o vinho.
*Os poemas foram extraídos de Khayyam, Omar. RubáiyáT. São Paulo: MARTIN CLARET, 2003.
por João Wanderley Geraldi | fev 5, 2019 | Blog
Tanto tempo sem. Agora chove. Chove muito. As ruas do bairro estão alagadas: rios compridos de baixa profundidade escoam as águas que descem das montanhas verdes que contornam esta pequena enseada chamada Barequeçaba.
A chuva traz água limpa que se mistura com as águas que descem carregando terra pouca, mas o suficiente para sujá-las de um marrom claro. Não é sujeira, é terra. Nilda chegou com atraso e filme: atravessando molhada as ruas, segurando um guarda-chuva e assim mesmo conseguiu filmar. Não venta, assim mesmo acho uma proeza segurar o guarda-chuva, andar neste rio longo e filmar… Para fazê-lo, há que ter a calma que não teria: minha pressa seria maior do que minha capacidade de olhar e filmar.
Abrigado na varanda da casa, eu lia. Lia o primeiro volume de “Os Vivos e os Mortos”, O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa. Vivia este tempo de chuva com Ana das Almas, com o menino, com os afogados, com a falação do mar que não escuto, mas que ambos, vivendo na Ilha do Espia, tudo escutam e compreendem.
Suspendo a leitura: preciso encher a cuia para continuar tomando meu chimarrão. Os olhos se dispensam do livro, livres. Na minha árvore da frente, um chapéu de praia, se abrigam pardais e canários da terra. Movem-se buscando a folha sob que se abrigar. Chove. Chove muito. Com a cuia na mão, vejo as gotas grossas da caem da árvore na água da piscina. Dois tipos de gotas d’água: as que vêm da árvore, a água da piscina responde abrindo espaço, incorpora-as com movimento e beleza; as gotas que vem do céu abrem pequenos furos para se alojarem: nada de espelho, somente movimento.
Ao calor de ontem, uma aragem leve: começo a espirrar: meu corpo enfizemado avisa que é preciso tapar o peito. Busco uma camisa regatas. Pronto, posso voltar ao meu ponto, os olhos podem voltar às páginas escritas por Rio Apa: volto para a Ana das Almas, volto para a ilha, volto para as divagações do menino que sonha com a menina de névoa, mas desenha no chão o corpo de Joana, aquela que Elesbão trouxe um dia e com a qual brincou até brigarem.
Pausa. Preciso de mais um mate! Outra folga nesta leitura aos solavancos. Encho a cuia e enquanto sorvo o mate, não leio. Olho e penso: nas personagens, nas gentes imaginárias que refletem gentes não imaginadas de que não são cópias. Mas aprendi com o poeta que é falso tudo o que não inventa, penso que mais concretas e compreensíveis são as imaginárias de vida curta no fim do volume, e portanto passíveis de completude, do que as não imaginadas, mutantes que são, jamais completadas.
Olho para o lado, abandono o que penso: enxergo a gaiola aberta. Desde ontem. É que ontem, quando limpava a gaiola do Epaminondas, um canário da terra, todo listado e de uma amarelo pálido, esforçou-se para entrar na gaiola! Fome, sede? Ou havia fugido de outra gaiola e, habituado, queria retornar? Que fiz eu? Arrumei uma outra gaiola, pus sementes, a comida dos canários belgas, arrumei água, e deixei com a porta aberta: se quiser comer, há de comer. Mas a porta nunca será fechada: visite-nos quando quiser. Ao mesmo, que não sou caçador, coloco lá fora um bom bocado de quirera de milho: para as rolinhas, para os pardais, para os canários da terra. E aquele canário listado não voltou mais… mas a gaiola ficou ali, esquecida e aberta. Quem sabe, não hoje, em outro momento a fome bata e ele volte e nos visite novamente, mas livre para ir e vir. Presos, somente aqueles que não sobrevivem na natureza porque exóticos aqui: meu Polidoro, meu Democritus, meu Epaminondas. Nilda acha “Democritus” um nome difícil… é que a democracia sempre esteve longe de quem trabalha e sustenta a democracia dos de cima.
Chove. Chove muito. Novamente os pardais e os canários se movem no chapéu de praia. E então tomo consciência: hoje não haverá beija-flores beijando as flores, nem tomarão água no bebedouro: quando muito chove, eles somem. Sem beija-flores, por ora vejo o mundo sendo lavado.
Chove. Chove muito. Quando parar, ponho água doce no bebedouro!
por João Wanderley Geraldi | fev 4, 2019 | Blog
Os cristãos têm um livro santo que se divide em duas grandes partes: o Velho e o Novo Testamento. Neste, as referências ao “Mestre” são sempre a Jesus Cristo. No Velho Testamento, aquele mais lido entre os evangélicos e os pentecostais – o Novo Testamento não lhes agrada muito porque há pouca vingança e muito amor, excesso de andanças do Mestre com pobres, com pescadores, com raia miúda – a palavra mestre às vezes é usada para se referir aos profetas…
Na antiguidade clássica também aqueles que ensinavam eram tidos como mestres. E não é raro encontrarmos o jovem chamando de mestre a seu amigo, sempre mais velho e seu iniciador nos segredos da vida.
Os conventos, os mosteiros estiveram sobrecarregados de mestres durante toda a longa Idade Média. E neste contexto, permaneceu a expressão “mestre de noviços” para aquele que orientava (ainda orienta?) o tempo em que os candidatos à ordem religiosa faziam sua iniciação, seu “noviciado”.
Depois, a palavra se espalhou para as professoras, para os professores. Uma forma de tratamento respeitoso nos começos da modernidade. Com o avanço da escolaridade de um modo geral – ainda que haja não escolarizados – a palavra quase que regrediu: era pouco usada. Depois foi se especializando, mantendo em alguns contextos de suas origens, por exemplo, quando de fala em “mestre de capoeira”: é o que sabe muito e por isso pode ensinar, é “o cobra”.
Hoje, retornada ao vocabulário destes tempos de escolaridade alastrada, em que se percorre longo tempo nos bancos escolares, do ensino básico à graduação, e desta à pós-graduação, a palavra “mestre” passou a ser um título acadêmico concedido por uma Universidade àqueles e àquelas que cumpriram um conjunto de exigências e defendido uma dissertação. Um nível acima, a palavra “doutor”, antes usada para todo o graduado (em Portugal, este uso permanece), passou também a ser um grau acadêmico concedido aos que defendessem uma tese.
As palavras mudam de sentido, as palavras deslocam-se semanticamente, ganham novos contornos e novas almas. Agora estamos aprendendo a acompanhar uma destas migrações da palavra “mestre” graças aos ensinamentos de uma pastora: o título pode ser concedido pela Bíblia! Como a expressão foi usada num contexto em que a sábia falava de títulos ‘acadêmicos’, e em que disse ser “mestre em educação”, “mestre em direito constitucional também”, não fez arredar pé aquele sentido de título acadêmico. Mas como nenhuma universidade lhe concedeu o título de ‘mestre em educação’, perorou a autoridade: seu título é bíblico… Para os estudantes de semântica, eis um bom momento de observar como a mudança de significações pode provir de uma falsidade afirmada…
Talvez um segundo exemplo deste novo dicionário, desta nova gramática nos tempos de mudança e cansaço com a “política antiga”, porque agora são tempos milicianos, da nova política, seja o emprego do “gerúndio” na conhecida espinafrada que nos passou, a todos nós brasileiros, o colombiano elevado a Ministro da nossa educação: “O brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola”.
Aqui temos um emprego “adjetival” de uma oração reduzida do gerúndio: “viajando”. Assim, podemos dizer que o canibalismo do brasileiro se revela, se desvela, aparece quando ele está viajando. E ser canibal agora significa “furtar” (não podemos falar em ‘roubo’ do ponto de vista jurídico, e em tempos de uma justiça alastrada, é bom ficar atento). Nova mudança no dicionário da língua: ser canibal é ser ladrão. Como todo brasileiro já fez alguma viagem, mesmo que seja o deslocamento dos grotões para a vila ou para a cidade, todos fomos chamados de canibais “quando viajamos”. E ladrões. Por isso um homem educado no ambiente do tráfico colombiano vem ao Brasil para educar os brasileiros. Depois dele, todos seremos puros, sem falhas, imaculados.
Os semanticistas e os lexicólogos terão muito trabalho pela frente, que a coisa recém começou.
por João Wanderley Geraldi | fev 3, 2019 | Blog
Vamos, não chores
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuís casa, navio terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizaram.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
(Um eu todo retorcido. Antologia poética. RJ : Record, 40ª. ed, 1998)
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