por Mara Emília Gomes Gonçalves | fev 13, 2019 | Blog
Nos últimos dias tenho sido visitada pela lembrança de uma sensação experimentada quando há muitos anos atrás li Ninguém Escreve ao Coronel de Gabriel Garcia Marquez.
E como não estou presa, recebo as visitas que não se pode impedir. Eu e todos nós somos visitados, e não falo do sobrenatural.
Geralmente todos leem Gabo por seu livro mais famoso que é Cem Anos de Solidão, obra que talvez seja junto a Grande Sertão Veredas os melhores escritos latino-americanos.
Gosto da escrita do autor colombiano, acho-o merecedor de todos seus prêmios, mas volto-me a um dos seus livros menos afamado por vários motivos. A visita talvez aconteça pelo mote periférico do livro que é a sobrevivência de um casal de velhos que esperam o direito de aposentar e morrer com dignidade, tudo isso vai ficando muito próximo ao desejo encoberto de nossos governantes atuais de promover um reforma previdenciária que jogará, sobretudo os mais pobres e trabalhadores, na mendicância, na miséria absoluta até que a morte chegue.
Preciso confessar que voltei ao livro, parecia-me não suficiente às lembranças, então o li novamente, e a cada página entendia melhor o porquê do regresso às palavras, organizadas cuidadosamente, na narrativa do cotidiano moribundo do casal. É um livro sobre abandono.
Então não era só isso. Era preciso visitar meus fantasmas de compreensão e análise literária.
Não me levem a mal tampouco a sério. Aqui só caberão minhas sensações e divagações alucinadas. Enfim, deu certo.
E ela estava lá a sorrir generosamente com a boca escancarada. Encontrei-a facilmente oferecida e deslumbrante: esperança. Já velha e gasta, se apontava em cada grão de milho que os velhos tiravam de sua boca para atribuir ao galo Agustin. E ao se desfazer de seus próprios alimentos, bem como de todo o resto: roupas, saúde, remédios, pagar a hipoteca da casa, móveis que vão vendendo ao longo da narrativa vamos pensando que era a única coisa que poderia ser feita afinal. É preciso ainda pensar que os tempos são duros, existe uma ditadura em vigência. Assim, a expectativa de dias melhores vai se configurando em uma tortura, silenciosa e imobilizadora capaz de cegar e de adoecer toda a sociedade.
Durante a narrativa percebemos que a esperança é compartilhada por todos os que se opõem aos ditadores, ansiosos de que um galo seja capaz de fazer nascer um novo amanhã – como poetizou Cabral de Melo.
Um galo.
– É um galo que é dinheiro em caixa – disse ele. Fez cálculos enquanto sorvia uma colherada de papas. – Vai dar-nos de comer durante três anos.
– As ilusões não se comem – respondeu ela.
– Não se comem, mas alimentam – retorquiu o coronel. São uma coisa assim como as pastilhas milagrosas do meu compadre Sabas.
Dormiu mal essa noite, tentando riscar números de cabeça. No dia seguinte ao almoço, a mulher serviu dois pratos de papas de milho e consumiu o seu de cabeça baixa, sem pronunciar palavra. O coronel sentiu-se contagiado de um humor sombrio.
Durante muito tempo foi possível crer que um galo, na sua expressão de rebeldia e arte, acordasse outro, que acordasse outro e outros sucessivamente e até que tantos galos quanto possíveis e impossíveis fossem donos de cada dia, e assim o reino estaria de pé. Espinha ereta. E talvez estivéssemos errados, supor que as pessoas fizessem um tecido de muitas cores e contornos, muitas vozes, e cantos que alimentassem manhã de luz e poesia, diante da dureza e da aridez da vida.
Gabo meu querido, você está certo. A esperança não pode ser oriunda do verbo esperar. Sem ação e apenas imolação torna-se-á um castigo de vida em morte.
Assim um abandono de nós mesmos. Provocado, e produto de tantos mandos e desmandos, e de principalmente de não se fazer nada. Alguém entenderá do que falo, ou estarei abandonada em minha inquietações.
Ao invés de acordar, morresse a cada dia.
Durante o conto o personagem descreve o clima temporal como outono, e com caracteriza o ambiente como úmido e sem calor, estes são restritos as febres dos personagens, no mais só frio, constipações, asmas, goteiras por toda a casa e como se mofassem por dentro, tornam se incapazes ou incapacitados de agir sobre seus destinos.
Em um dado momento as personagens conversam sobre a perda da dignidade. É um diálogo dos mais comoventes que podemos imaginar totalmente possível nas casas dos pais e mães de família de nossa sociedade, esses que encontram-se sem o mínimo para a dignidade, humilhados pelo desemprego, pela fome dos filhos e filhas, pela falta de moradia, pela ausência de saúde e pelo fim dos direitos: trabalhistas, previdenciários, e humanos.
Tornaram-se os próprios galos. Nas rinhas entregues ao destino de morrer matando-se uns aos outros.
O coronel deixou a candeia no chão. Começava a sentir-se esgotado. Apetecia-lhe esquecer-se de tudo, dormir de seguida quarenta e quatro dias e acordar a vinte de Janeiro às quatro da tarde, no pavilhão dos galos e no momento exato de soltar o seu galo. Mas sabia-se ameaçado pela vigília da mulher.
– É a mesma história de sempre – começou ela uns segundos depois. – Nós passamos fome para que comam os outros. É a mesma história desde há quarenta anos.
O coronel guardou silêncio até que a mulher fez uma pausa para lhe perguntar se estava acordado. Ele respondeu que sim. A mulher continuou num tom franco, fluente e implacável.
– Toda a gente vai ganhar com o galo, menos nós. Somos os únicos que não temos nem um centavo para apostar.
– O dono do galo tem direito a vinte por cento.
– Também tinhas direito a que te arranjassem um lugar quando te punham a dar couro e cabelo nas eleições – replicou a mulher. – Também tinhas direito à tua pensão de veterano depois de arriscares a pele na guerra civil. Agora toda a gente tem a vida assegurada e tu estás morto de fome, completamente sozinho.
– Não estou sozinho – respondeu o coronel.
É o destino dos que não lutam. E muitas vezes dos que lutam também que é para servir de exemplo.
É certo que mataram seu filho. Agustin morreu jovem. É um símbolo. Como a juventude pobre, sobretudo a negra tem sido.. Matam a juventude que ousa se rebelar. Agustin estava no local errado, o erro era distribuir panfletos numa rinha de galos. Panfletos revolucionários e proibidos. Descobrimos nas entrelinhas do texto que muitas coisas são proibidas, o padre se encarrega de fazer a classificação etária e a vigilância dos filmes exibidos.
O coronel sentiu-se ofendido.
– Isso é uma verdadeira humilhação – comentou.
A mulher abandonou o mosquiteiro e dirigiu-se para a cama de rede.
– Estou disposta a acabar com os fingimentos e as contemplações nesta casa – disse. A sua voz começou a turvar-se de cólera. – Estou mais que farta de resignação e de dignidade.
O coronel não mexeu um músculo.
– Vinte anos à espera dos sapatos de defunto que te prometeram depois das eleições todas e de tudo isso só nos resta um filho morto – prosseguiu ela. – Nada mais que um filho morto.
O coronel estava habituado a esta espécie de recriminações.
Ao ler somos imersos em uma atmosfera de reconhecimento do desconhecimento e da desesperança.
As pessoas não entenderam nada, no lugar de lutar pela justiça, por seus direitos, pela vida do filho… Invertem os valores e tomam-lhe o galo nas mãos como única herança. Todos os símbolos negados, então mergulhados em negações e privações agarram-se a sua própria condenação: a espera do dia que haveria de chegar.
Essa maldita espera de algo que não virá.
* * *
Quando comecei a escrever este texto, antes mesmo de digitar as primeiras palavras tinha um objetivo. Ele está escondido em meio ao texto. O tempo não é ainda de vigilância e repressão extrema, e ainda assim escondo muito do que digo em metáforas mal construídas.
É também um pouco do que acredito: não é preciso entregar as coisas todas de bandeja, envolvidos em reflexões e leituras todos podem acessar suas próprias construções de leitura. É a grande teoria que diz que a leitura se realiza no leitor.
Então Lula é o Coronel. É o galo. É a esperança. Pode não ser nada disso também. E seja só ausência, falta e abandono.
Muitas são as cartas possíveis. E elas existem e continuarão a existir, se pudesse escreveria uma carta curtinha assim:
Querido Lula,
Que nosso povo liberte o galo aprisionado,
Chegará ao fim o outono e o inverno, Passaremos.
Não é sonho, eu sinto que ninguém conseguira deter a primavera e tampouco o cantar do galo,
Que esse canto tome outro galo, que tome outro ainda, e mais outros tantos.
E que as manhãs que cada galo anuncie sejam de esperança e poesia.
Mara
por José Kuiava | fev 13, 2019 | Blog
– Garçom, me sirva um suco de laranjas. Puro e sem açúcar.
– Pois não. Com prazer. Suco pequeno, médio ou grande?
– Grande, caramba! Olha o meu tamanho. Mas, as laranjas estão boas? Quero dizer, limpas, higienizadas, maduras, enfim, sadias e saudáveis?
– Olha, sendo sincero, as laranjas aqui são pouco prestígio dos homens. Quase ninguém vai votar nelas.
– O quê? Como assim? Você enlouqueceu? Acha que sou um imbecil? Um babaca que não entende nada? Estou falando de suco de laranjas frutas cítricas!
– Ah!!! Pensei que estava falando de laranjas candidatas do PSL! Me perdoe pela minha ignorância.
– E cuidado! As mentiras e os roubos têm pernas curtas. Quer dizer, quem mente e quem rouba dinheiro público não chega muito longe porque é desmascarado, condenado e preso.
– Será? Tem certeza disso? Aqui no Brasil de hoje a casta política se popularizou tanto que mente e mente muito tempo todo e em todos os lugares; rouba dinheiro público sem limites e chega ao poder com os votos dos crentes, estes cada vez mais ignorantes e alienados. E o pior de tudo, os políticos mais demagogos e mais corruptos são inocentados por juízes do Supremo.
– É verdade. Você tem razão. Isso é muito triste.
Assim, o exemplo material real e mais recente no cenário político do governo Bolsonaro confirma a verdade da presente conversa. O laranjal de candidatas laranjas, no território do PSL, foi fertilizado com dinheiro público. O dinheiro de todos, em vez de ir à base, ao solo e fertilizar a vida – a saúde, a educação, o emprego, o transporte – dos brasileiros trabalhadores, foi parar nos bolsos e nas contas da casta de políticos de direita, inclusive nos bolsos dos Bolsonaros. Os filhos de Bolsonaro valeram-se de candidatas laranjas do PSL para embolsar o dinheiro público
Frente às inúmeras denúncias – pela imprensa e pela justiça – o pai Bolsonaro aparece em cena de constrangimento; o Bolsonaro filho diz que foi “mais uma facada”, encenada como a primeira facada; o presidente do PSL diz que a “culpa é da lei”, assim sem constrangimento e sem vergonha nenhuma.
Enquanto o desmascaramento dessa política corrupta sem ética vai se visibilizando a cada dia, o ministro do Supremo, Luiz Fux, suspende os processos contra o presidente Bolsonaro. Sempre cumprindo a lei.
Ave Cesar, morituri te salutant – Salve César, os que vão morrer te saúdam.
por João Wanderley Geraldi | fev 12, 2019 | Blog
A idade ia entre 5 e 6 anos. Numa tarde, a irmã mais velha interrompe a brincadeira (de que estaríamos brincando e com que continuamos a brincar?) para nos dar uma informação preciosa: nossa mãe iria receber a visita de uma mulher que pintava os cabelos… Ela vinha de outra cidade: São Luiz Gonzaga.
Havia algo na história de vida da Josefina que jamais compreendi direito: uma desilusão amorosa com alguém próximo da família. Ela se perdeu… diziam. Ficou sozinha, mas sempre um pouco em torno da família lá em São Luiz e vinha pela primeira vez visitar minha mãe, trazida por minha avó para Santo Ângelo.
Pois ficamos no aguardo. Quem nos avisou que havia chegado foi a irmã mais velha, que também liderou a todos nós: não podíamos invadir a sala de visitas – lugar que muito raramente frequentávamos, com seus sofás de veludo vermelho. Havia na frente da casa o que então chamávamos de “área”, uma espécie de pequena varanda, com a porta de entrada oficial e uma janela.
Combinado: minha irmã abriria a janela. Nós faríamos uma espécie de procissão, cada um espiando por sua vez, pela janela a “mulher de cabelos pintados”. Hoje diria que havia um frenesi na criançada toda: a brincadeira na rua parou. Fizemos uma fila.
Lá se forma todos a espiar pela janela… e ninguém contava nada a ninguém! Provavelmente porque não queriam parecer ‘bobos’ por não terem visto os cabelos pintados!
Quando chegou minha vez, fui à janela e enxerguei uma mulher conversando com minha mãe. O cabelo pintado que eu imaginava fosse de cores, muitas cores, bem pintado, não passava de um cabelo meio ruivo e um pouco alvoroçado… Uma verdadeira decepção. Tanta espera para nada… E não tive dúvidas: da janela mesmo gritei que o cabelo não era pintado, era da mesma cor do cabelo ruivo da vizinha, outra companheira da brincadeira que também estava na fila ansiosa para ver “a mulher que pintava o cabelo”!
Lembrar isto tudo agora… por quê?
Acontece que em cerimônia cheia de efes e erres, uma secretária de educação, de um município governado por prefeito “socialista” (ele é do PSB), assinou na frente de todas as diretoras das escolas municipais, convocadas para a efeméride, um contrato de assessoria pedagógica com o Pastor Ock Soo Park, um sul-coreano, fundador de uma organização missionária e independente da igreja batista independente, a Missão das Boas Novas!
Pois o homem prega, porque o homem teve seus pecados perdoados e ganhou como presente a salvação eterna! Já se sabe salvo, já se sabe habitante futuro dos céus. Pois com estes qualificativos todos, passou a assessorar a rede municipal de ensino de Campinas, dando formação aos professores da rede!
E prega o pastor: a educação vai mal porque as mulheres e as professoras, em vez de se preocuparem com seus filhos e com seus alunos, PINTAM O CABELO! E a gente que pensava, imaginava – vã filosofia – que os escores altos dos coreanos nas avaliações internacionais fosse resultado do esforço educacional do país, do investimento, das condições sociais. Não, tudo vã imaginação. Para que Campinas chegue aos mesmos resultados, basta algo tão simples: as mulheres e as professoras não pintarem mais o cabelo!!!
Vejam só: foi a Josefina que começou isso tudo e prejudicou tanto a educação brasileira… agora, estaremos salvos eternamente pelo Pastor e pela brilhante ideia da secretária de educação em contratá-lo para orientar para o bom caminho as professoras e os professores (mas se estes pintavam o cabelo, então a culpa somente pode ser do PT, não da Josefina).
por João Wanderley Geraldi | fev 10, 2019 | Blog
Não cantarei amores que não tenho,
e quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o outro suposto é nele cobre e estanho,
estranho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.
Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive e já prospeta
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.
Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.
Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos,
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos: a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.
(Um eu todo retorcido. Antologia poética. RJ : Record, 40ª. ed, 1998)
por João Wanderley Geraldi | fev 9, 2019 | Blog
O suíço do cantão de Berna, falante de alemão, se notabilizou como dramaturgo, mas também escreveu romances ou novelas, contos, poemas, roteiros de cinema… Seu trabalho de modo geral é sarcástico, já que para ele “o mundo é alguma coisa monstruosa, um enigma de calamidade que tem de ser aceito, mas diante do qual não deve haver conformismo”.
Neste romance o tema é a caça aos nazistas, a calamidade que se abalou sobre a Alemanha e toda a Europa. O ambiente do romance é o trajeto de Berna e Zurique, na verdade dois hospitais e o ano é 1948, precisamente no tempo em que ainda se processavam os julgamentos dos crimes de guerra e a caça aos nazistas que praticaram infâmias nos campos de concentração permanecia extremamente ativa.
Nesta história, em Berna, o velho comissário Hans Baerlach sofreu uma intervenção cirúrgica efetuada pelo Dr. Samuel Hungertobel. Recuperando-se no leito do hospital, folheava velhos números da revista Life de 1945, e numa delas encontra uma reportagem, com fotografia, do médico nazistas que realizava cirurgias sem anestesia no campus de Stutthof. Vendo a foto, o Dr. Hungertobel ficou pálido, o que levou o paciente à suspeita de que seu médico conhecia o criminoso ou reconhecera sua fotografia. Está criado o fio condutor da narrativa.
Na verdade, Hungertobel reconheceu na foto o médico Emmenberger. O detalhe é uma cicatriz na sobrancelha direita, resultado de uma cirurgia que fizera o próprio Hungertobel no então seu colega Emmenberger. Neste tempo o médico dirigia uma clínica para ricos na cidade de Zurique, o que lhe proporcionou o apelido de “Tio rico”, pois muitos de seus pacientes antes de morrerem deixavam tudo o que tinham para sua clínica.
Segue-se, na primeira parte da narrativa, uma troca constante de informações – com empréstimo de revistas científicas médicas – entre o médico e o paciente. Emmenberger fizera uma intervenção sem anestesia em um colega quando subiam os Alpes, ainda estudante de medicina. Depois, oficialmente, teria ido para o Chile, donde mandara para publicação diversos artigos científicos para revistas suíças.
Oficialmente quem tinha realizado as cirurgias criminosas em Stutthof teria sido o médico do campo, Dr. Nehle, que teria se suicidado a 10 de agosto de 1945 num hotel de Hamburgo. Na autópsia, todos os detalhes foram confirmados: a cicatriz na sobrancelha e uma marca de queimadura no braço. De modo que não havia dúvidas quanto à identidade do nazista.
No entanto, Baerlach, o comissário que no hospital recebe a informação de seu chefe de que seria aposentado, mantém sua suspeita: afinal, seriam duas pessoas. Emmenberger se fizera passar por Nehle e este, com o nome de Emmenberger, teria vivido no Chile, sempre um álibi difícil de verificar. Ao retornar o verdadeiro Nehle para a Alemanha, depois da guerra, poderia ter sido assassinado por Emmenberger. Esta a suspeita de Baerlach.
Ainda no hospital de Berna o comissário recebe uma estranha visita, que chega ao quarto por subterfúgios, subindo pela parte externa do prédio usando as reentrâncias da construção: Gulliver (uma mais do que óbvia referência a As Viagens de Gulliver, de Swift). Misto de duende e investigador, dedica-se Gulliver à caça de nazistas, viajando incógnito pelo mundo e de uma forma mais ou menos maravilhosa. Gulliver explica a Baerlach quem foi Nehle, que ele próprio se deixou operar sem anestesia porque o médico oferecia a esperança de liberdade, que ele próprio havia fotografado Nehle em ação e que também ele tinha fornecido a foto à reportagem da Life. Gulliver deu certeza de que Nehle havia se suicidado, ele mesmo havia participado da verificação dos detalhes físicos do médico nazista.
Na longa conversa regada a vodca, Gulliver confirma que Nehle tinha sido um torturador, um dos anjos mais malvados e impiedosos daquele paraíso de juízes e carrascos e que ele próprio se deixou operar sem anestesia, porque acontecia que as vítimas de Nehle se ofereciam para a tortura com a esperança de liberdade que ele oferecia:
– A esperança – riu o gigante. Seu peito arfou. – A esperança cristã. – Seus olhos brilharam com uma ferocidade impenetrável, bestial, as cicatrizes de seu rosto elevaram-se perceptivelmente, as mãos jaziam como patas sobre a coberta da cama de Baerlach. A boca rasgada, que insaciável absorvia sempre mais vodca naquele corpo torturado, gemeu num lamento distante: – Fé, esperança e amor, os três, como se diz tão bem no capítulo XIII da epístola aos coríntios. Mas a esperança é a mais tenaz deles, está gravada em mim, o judeu Gulliver, em minha carne, com marcas vermelhas. O amor e a fé iam para o diabo em Stutthof, mas a esperança permanecia, com ela ia-se para o diabo. A esperança, a esperança! Nehle a tinha pronta no bolso e a oferecia a quem quisesse tê-la, e muitos queriam. É inacreditável, comissário, mas centenas deixavam-se operar sem anestesia, depois que, tremendo e com a palidez da morte, tinham visto outros perecerem sobre a mesa de operações, e podiam ainda recusar. Tudo isso pela esperança de obter liberdade, como lhes prometia Nehle. A liberdade! como o homem deve amá-la, a ponto de estar disposto a suportar tudo para recebe-la, tanto que naquela época em Sutthof descia voluntariamente ao inferno mais torturante para abraçar esse miserável fantasma de liberdade que lhe era oferecido.
Como Baerlach continuasse firme em sua suspeita e como comissário queria fazer uma investigação ainda que solitária, pede ao médico Hungertobel que lhe arrume uma vaga na Clínica Sonnenstein, dirigida por Emmenberger. Antes de sair para Zurique toma a providência de chamar um jornalista fracassado que publica uma revista sem periodicidade, fornece-lhe todos os dados para um texto sobre a suspeita de que na verdade sob o nome de Nehle se escondia um médico suíço que hoje dirige uma famosa clínica de Zurique, num texto em que o jornalista deveria enfatizar que dispunha de todas as provas para incriminar tal médico. Ao mesmo tempo, o comissário financia uma fuga para Paris imediatamente depois que a revista fosse distribuída, pois temia por sua vida após a publicação.
A segunda parte do romance se inicia com a internação do comissário na Clínica Sonnenstein, com o nome de Kramer. No entanto, ele é reconhecido pelo médico, pois havia saído em jornal de Berna uma foto sua noticiando a aposentadoria. O comissário nem desconfia que seu nome falso de nada lhe adiantaria.
Nesta parte, tudo vai rápido: o comissário é “posto fora de combate” por cinco dias depois da aplicação de uma injeção. Ao acordar, lê os jornais e fica sabendo que o jornalista Fortschig havia morrido, e a morte fora atribuída pela polícia a uma queda dentro do banheiro.
O médico Emmenberger o visita neste mesmo dia e lhe avisa que será operado dentro de 11 horas e meia, e sem anestesia. Confirma que ele mesmo se fez passar por Nehle, que mandou para o Chile. No retorno deste, assassinou-o em Hamburgo, fêz-lhe as marcas na sobrancelha e da queimadura no braço, para que o identificassem. Assim, reassume seu nome efetivo e dirige agora com sucesso clínica. Com a morte do jornalista e com a operação que sofreria o comissário, mais uma vez Emmenberger lograria a busca que lhe faziam os caçadores de nazistas.
As horas passam, o comissário começa a entrar em desespero, até que, milagrosamente e mais uma vez aparece Gulliver! Desde que compreendeu a suspeita do comissário, Gulliver passou a acompanhar tudo o que ele fazia. Não conseguira salvar o jornalista, mas recuperara o anão que Emmenberger/Nehle usava em seus crimes, um anão que vivera com Gulliver nos campos de concentração e lhe servia de “mascote”. As passagens que se referem ao anão estão sobrecarregadas de preconceitos… Enfim, Gulliver mata Emmenberger, e liberta da morte seu amigo, o comissário Baerlach.
Esta segunda parte do romance deixa muito a desejar, e a intervenção nada verossímel de Gulliver nos dois momentos cruciais da “investigação”, num expediente típico de romancistas inexperientes que precisam apelar para uma força externa para dar conta da trama, não fazem jus ao escritor que é Friedrich Dürrenmatt.
Referência. Friedrich Dürrenmatt. A suspeita. São Paulo : Círculo do Livro, s/data.
por João Wanderley Geraldi | fev 8, 2019 | Blog
Jorge Amado imortalizou o nome “Gabriela” no mundo da literatura. Mulher de beleza muita, feliz no seu gingado, dança e ama com fervor. Nacib que a encontrou no Mercado, que a contratou como cozinheira e outros afazeres, amou-a e com ela se casou. Mas Tonico Bastos, o garanhão de Ilhéus, não deixou escapar Gabriela…
Sônia Braga deu à Gabriela de Jorge Amado corpo e carne: beleza e sensualidade somadas – personagem e atriz. E na novela da Globo, inesquecível as andanças de Gabriela da casa do marido Nacib para a casa do amante, em vestido branco, sob a chuva, com os panos grudados no corpo queimado, moreno, aparecendo sob o branco, dando a entender o que aí havia para todos com capacidade de imaginação, nem precisava muito.
Gabriela em corpo de Sônia Braga… E nome se firmou: desceu do olimpo da literatura para o mundo das estrelas. Gabriela foi, por muito tempo, sinônimo de beleza feminina, sensualidade, sexo e tal. Cheiro de cravo, cor de canela. Especiarias. Olfato e carne. E muita história. É reler Gabriela, Cravo e Canela.
Agora outra Grabriela tenta superá-la, mas com cravo e martelo. Para além de dar nome a flor e ser especiaria (sempre houve os que usaram cravo para fazer desaparecer da boca o cheio da cachaça…). Mas foi com “cravos” que os soldados romanos fixaram Cristo na Cruz e usaram martelos.
Imitando mais a estes do que àquela, a nova Gabriela é hard, forte, bate pesado, seu martelo não é certeiro porque não há certezas em seus golpes, apenas cumprimento de ordens dadas, sem se dar muito ao trabalho de deslocar os cravos para aparentar obra própria.
Gabriela quer se inscrever nas letras jurídicas. Mostrar que cumpre bem o que lhe é mandado cumprir. E que sabe cumprir também prazos: sabe da necessidade de cheirar o timing perfeito para o golpe do seu martelo.
Assim, a nova Gabriela tem charme, mas não chega perto de cozinha, não lava nem serve. Talvez como a outra Gabriela tenha seu Nacib e seu Tonico, mas ninguém sabe… publicamente só disse que era descasada, sem marido… em audiência pública. Nada mais sabemos de panos ou requebros. Não os há. Há diferentes entre uma e outra Gabriela, a primeira levada, a segunda, séria e circunspecta como convém a quem tem a obrigação de obedecer às leis, fazê-las serem o que os que mandam querem que seja, mesmos sem muito capricho na elaboração dos sentidos. Às vezes, até com erros de considerar uma pessoa duas, uma respondendo pelo apelido, outra respondendo pelo nome de batismo. É que a nova Gabriela enxerga as almas que se delatam nos nomes, dois para confundir!
Tem a nova Gabriela uma vantagem absoluta sobre a velha Gabriela: ela enxerga o que ninguém vê, ela prova sem precisar mostrar provas. Ela sabe.
Gabriela usa com vontade o martelo para cravar os ‘cravos’ sobre o corpo que prende, mas jamais conseguirá cravar a alma que lhe sobrevoa e habita em tantos outros corpos que dão carne as ideias que devem ser aprisionadas custe o que custar.
Saudades da Gabriela, a primeira. Triste fim está a nova Gabriela dando ao nome que foi alma e corpo tão cobiçados.
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