A bruxa de Amsterdã, de Jan Willem Van de Wetering

A bruxa de Amsterdã, de Jan Willem Van de Wetering

Um romance policial cuja trama envolve um assassinato (algum romance policial existiria sem um assassinato?) na pacata Amsterdã onde dificilmente a polícia se vê envolvida em casos de morte.

O Serviço Secreto havia pedido que a polícia ficasse atenta a um barco-residência. Nelo morava apenas uma mulher de extrema beleza, mas recebia visitas masculinas: homens importantes – um diplomata belga, um coronel que sabia segredos nucleares e um grande empresário holandês.

Maria von Buren vivia sozinha. Seu barco era muito luxuoso. A dupla de policiais constituída pelo sargento-investigador de Gier e investigador-assistente Grijpstra passavam pela rua, atentos a algum movimento, algumas vezes na semana. E eis que a Chefatura recebe um telefonema de um vizinho estranhando que o gato de Maria von Buren não saía de sua casa e que há dois dias não via sua vizinha.

Com um mandato judicial, os policiais vão ao barco, conversam com o vizinho, arrombam a porta e encontram Maria von Buren morta: uma faca arremessada pelas costas a matara há dois dias. Os policiais chamam a Chefatura para a polícia técnica e o médico comparecerem ao lugar. Procuram não tocar em nada para não desfazerem possíveis provas. Mas Grijpstra percebe que a vítima cultivava muitas ervas. Fala disso ao médico, que consulta um colega biólogo e descobrem se tratava de plantas venenosas, muito usadas em bruxarias…

E eis que está formulada a hipótese: ela seria uma bruxa. E a investigação começa, imediatamente com o interrogatório do vizinho, para descobrir informações sobre Maria von Buren. Será ele quem dirá as marcas dos carros das pessoas que frequentavam a mulher e também dará a informação sobre um homem que sempre vestia colete vermelho que aparecia sempre aos domingos, acompanhado de um menino com sua bola.

Este estranho visitante será a primeira hipótese dos policiais. No entanto ele lhes contou que sempre ia para aquela região da cidade para passear com o filho, que certa ocasião a bola caíra no canal e que a mulher havia permitido que pegassem de dentro do barco. Veio daí o conhecimento, e ela sempre lhe oferecia um café. Nada havia entre eles.

Seguem-se os interrogatórios com o coronel norte-americano que apresentou seu álibi; com o diplomata belga que também tinha um álibi e por fim com o empresário holandês, Drachtsma. Este disse que no sábado do crime estava com visitas em casa, empresários alemães. A polícia alemã confirmou o álibi. Assim, estavam os policiais praticamente sem pistas: nenhum crime passional, os três amantes com álibis confirmados. Sem muitas saídas, insistiam com o homem do colete vermelho, amedrontando-o ao o chamarem para vários depoimentos.

Na ficha de Maria von Buren descobrem que ela nascera em Curaçao. O comissário da polícia e chefe da investigação resolve ir para a ilha, tentar descobrir alguma pista. Lá fica sabendo que o pai da vítima a havia expulso de casa por ter descoberto que ela vivia como se fosse uma prostituta de luxo. Ele era um bem sucedido empresário, tivera outras filhas, mas não admitia o modo de vida de Maria. Fica sabendo também que nas últimas visitas de Maria à ilha, ela se hospedava num hotel e que frequentava um curandeiro, um bruxo, de nome Shon Wancho. O comissário resolve ir à sua casa para interrogá-lo, no entanto não consegue fazer isso: simplesmente fica em silêncio junto com Wancho na varanda da casa, depois de tomar um chá. Dorme e ao acordar vai embora.

Visitando um velho marinheiro, fica sabendo que Maria von Buren tinha um irmão por parte de pai, um filho bastardo que fora marinheiro, quer servira com o velho capitão, mas que desistira da vida de marinheiro, se tornara fanático cristão sempre com a Bíblia na mão. Rammy Scheffer vivia na Holanda, mais precisamente na mesma ilha em que vivia o empresário Drachtsma. Imediatamente as suspeitas recaem sobre este irmão, que vivia como guarda florestal na ilha.

De Curaçao o comissário manda um telex para seus investigadores. E estes, sempre como acontece nos romances policiais, estavam precisamente na ilha onde pretendiam se passar por observadores de pássaros. Seu colega Buisman, habitante de ilha, ao descobrir que eles ‘gostavam’ de pássaros, leva-os numa madrugada a reserva para observarem as aves. Aparece o guarda Rammy: os policiais sem saberem de nada conversam com ele. Mas de repente a sirene de um barco policial chama e de Gier recebe o telex.

Rammy foge em seu barco. E começa a caçada… não sem tiros do assassino, não sem aviões de reconhecimento, e todos os ingredientes próprios do romance policial. Obviamente, Rammy é preso mas tem um ataque de pânico: vai para uma clínica para doentes mentais.

O comissário, retornado de Curaçao, também vai para a ilha e fica por lá uns dias. Buisman, que fora atingido pela espingarda de Rammy e Grijpstra que teve uma pneumonia estão sendo cuidados pela mulher do primeiro, uma antiga enfermeira. De Gier vai visitar o amigo, e a enfermeira lhe conta dos “amarilhos”, comuns na ilha. São árvores que secam, caem e os ventos rolam seus troncos pelas estradas e caminhos, parecem entes vivos a perambular, até que morrem no mar. E ela também fala do empresário: não gostava dele e disse ter ouvido uma conversa dele com o guarda florestal: dizia-lhe o empresário que o mal deve ser retirado da terra… uma referência óbvia a Maria von Buren, a bruxa. E então se fecha o círculo investigativo: Drachtsma usara o fraco Rammy como seu instrumento para assassinar Maria von Buren, que graças a suas bruxarias mantinha o empresário sob seu domínio.

Num jantar na casa do empresário, o comissário conta a história dos amarilhos… Na verdade, uma analogia. Os troncos dos amarilhos usam outros galhos, fazem-se viviso pelo vento, mas morrem na praia…

O último capítulo, como em todo romance policial, trará a chave e a explicação. Drachtsma quase morto revela ao comissário e a de Geir que ele usara Rammy para matar Maria von Buren.

O romance tem todos os ingredientes próprios do gênero: uma vítima, nenhuma pista, o trabalho de investigação que vai levantando suspeitas, vai descartando hipóteses, mas que sempre chega à revelação do criminoso e dos pormenores do assassinato. Tudo brilha sob a clareza da investigação, como muito bem apontou Roger Callois, em seu estudo sobre o romance policial.

Referência. Janwillem van de Wetering. A bruxa de Amsterdã. Tradução de Álvaro Hattnher. São Paulo : Brasiliense, 1988.

IMPOSTOS – SEM EIRA NEM BEIRA

IMPOSTOS – SEM EIRA NEM BEIRA

Infinidade de impostos. Impostos sem fim. Impostos ao infinito. Impostos sem eira nem beira. Impostos para além da conta. Impostos para a felicidade dos impostores e a infelicidade dos impotentes. O mundo de impostos. Todas estas denominações linguísticas são absurdamente verdadeiras e serviriam perfeitamente para o título desta crônica. Mas todas igualmente incompletas e incapazes para informar a infinitude e a imensidão dos impostos no imperialismo do Brasil. Se fossem tomadas todas juntas as palavras que iniciam com a letra “i” ainda assim não conseguiriam dar conta do tamanho dos impostos e expressar sua voracidade impiedosa. Talvez o mais justo seria clamar e rezar aos céus: oh deuses, livrai-nos de tantos impostos! Este seria o melhor título. Um clamor, nada mais. Porque nem uma boa reza e um santo exorcista são capazes de nos proteger e livrar de tantos impostos.

Impostos no Brasil são iguais às leis de trânsito. A gente nunca sabe ao certo quantos e quais são. Nem para que servem. A gente só sabe e aprende quando recebe os boletos e as multas. Imposto vem de impor. Do latim “impositus”, que significa “feito aceitar ou realizar à força”. Quer dizer, tornar obrigatório por lei. Às vezes, enganar os outros com boas maneiras, iludir. É o tributo, a contribuição e o ônus que os poderes públicos determinam por leis e exigem de cada pessoa física e jurídica para manutenção dos serviços, nem sempre especificados do Estado. Daí que “impostos” vem do verbo impor e instituir tributos aos outros. Todos? Bem, aí já é querer saber demais. Não é de hoje que os impostos/tributos existem. Não se sabe ao certo quem, quando, onde, como, para que e para quem foram inventados os impostos. A palavra parece ter o mesmo ventre de imperador, império, imperial, imperialismo. Aquele que impera, ordena, determina, impõe algo contra as vontades dos outros. É provável que os inventores dos impostos sociais, ao longo da história, tiveram a santa inspiração na sacralidade dos impostos das igrejas – quem não pagava o dízimo virava demônio e iria para o inferno.

Por ironia da linguagem, e para perseverar na fidelidade ao seu sentido e significado, as siglas de impostos iniciam logicamente com a letra “i”. Querem ver? IR, IPTU, IPVA, IPTR, IPI, IOF, INSS, ICMS, IS, ISS, IRPJ, II, IE, ITBI, ITCMD, IMI, IT. Tem mais? Você sabe decodificar cada uma destas siglas e conhece seu  significado? Só não iniciam com “i” PIS, PASEP, COFINS e a infinidade e infinitude dos injustos, injustificados, ingratos, insanos, intoleráveis, infernais, ilídimos, ilícitos, ignóbeis, infelizes, intoleráveis, inaceitáveis, infames, intragáveis, ignominiosos, ímprobos, imerecidos, impudicos, indignos, indigestos e insensatos juros e taxas de serviços bancários. Quanta coisa ruim inicia com a letra “i”! Quantos e quão monstruosos impostos nos causam infelicidade, inquietação, insônia, incerteza, irritação,  inadimplência, insanidade, inimizade, ingratidão, indelicadeza, insensibilidade, incompreensão, inexcitabilidade, inexequibilidade, inexpiabilidade, imperdoabilidade e acima de tudo nos causam muita infâmia. Quem já teve ou tem seu nome na CERASA, que o diga. Quem já teve e ainda tem indústrias, empresas de comércio, de produção agrícola, mini empresas, produção familiar, bens imóveis e móveis (automóveis e assemelhados), escritório de prestação de serviços, está com a palavra. E o que falar e dizer dos assalariados, dos que vivem de salários? Tem gente que estuda a vida inteira para atingir salários mais elevados, quando atinge, o leão come 27,5%! E na fonte, ou seja, o trabalhador assalariado não tem nenhuma possibilidade de enfrentar o leão. Não é por outra razão que o signo do Imposto de Renda é o leão: a prepotência, a força, a ferocidade. Com o leão ninguém pode. E nem deve brincar. Menos ainda, enganar. Embora, sempre há os que podem e o leão não pega. Exatamente porque são grandes e poderosos.

O melhor estilo de linguagem para falar e escrever sobre impostos é a ironia. Na vida real, nós elegemos os governantes e os legisladores para eles inventar e instituir os impostos que temos que pagar. Por que será que os governantes e os políticos adoram tanto os impostos? E se algum dia não os elegêssemos mais? Como seria bom se um dia a nossa paciência e tolerância se esgotassem! Os governantes e políticos teriam que governar e legislar para o bem-estar de todos. Não somente para eles e os amigos deles. Enfim, é preciso lembrar que não é possível imaginar uma sociedade organizada (um país, uma nação, um principado) sem impostos. É preciso lembrar também que é perfeitamente possível uma sociedade organizada sem tantos e tão pesados impostos.

Hoje, os governantes e seus acólitos, não satisfeitos com a imensidão e a grandeza dos impostos, estão propondo e articulando com os políticos ajustes dos tributos da união. Às escondidas trata-se de aumento de impostos. “Sempre, e só, para a grandeza e o bem do Brasil”.

Ignorante é quem não percebe o blefe.

Preparando Maria Bonita, por Corinta Geraldi

Preparando Maria Bonita, por Corinta Geraldi

A proposta que recebi era esta:

Você tem uma bolsa usada que não quer mais? Sim?
Então coloque dentro dela: sabonete, creme dental, absorvente, batom, pente, o que você puder doar e quando encontrar uma mulher carente na rua dê pra ela de presente.
Essa é a campanha Maria Bonita no Natal.
Compartilhe para chegar a muitas mulheres.


Eu decidi aderir à proposta da Maria Bonita no Natal. Comecei a buscar bolsas e as coisas que poderia partilhar. Achei 3 bolsas boas, que guardei esperando a volta das modas. Duas delas de couro. Pensei comigo: é agora!!!

Fui à farmácia pegar os artigos de higiene pessoal que não tinha em casa: 3 escovas de dentes, pasta dental, absorvente higiênico, desodorante pequeno. E eu tinha sabonete, pacote de lencinho de papel, fio dental, pente ou escova de cabelo. Fui montando as 3 bolsas.

Aí decidi procurar as bijuterias que estavam guardadas, as que já usei muito, as que enjoei, ou que ganhei e acabei não usando porque não era muito meu estilo… Foi uma sessão de desapego.

Também esmaltes, batom, sombras, blush, creminhos e perfumes de embalagens, miniaturas que a gente ganha quando compra perfumes ou em alguns hotéis: tinha perfuminhos, creme anti-rugas, hidratante, protetor solar…

Fui montando as três bolsas. Peguei 3 correntinhas de prata que acompanharam diferentes bijus ou mesmo joias com pedras brasileiras e busquei 3 pingentes.

Das bijus mais novas fiz um saquinho de presente e também coloquei nas bolsas.

Nem todas tinham tudo porque era o que eu tinha, na verdade, pra mais!

Conclui com um cartão de Natal onde escrevi uma mensagem de Feliz Natal. E peguei uma nota de 10 reais e enfiei na bolsa.

Eu estava tão envolvida com as montagens, que esqueci de fotografar as três bolsas. Talvez não fosse pra isso. Era pra ser um gesto mais invisível.

Como estava na hora da minha fisioterapia, o Wanderley levou as bolsas a  Praça onde ficam as moradoras de rua. Eu pedi para ele escolher mulheres de meia idade pra mais velhas. Queria que esse segmento fosse contemplado!

Diz ele que ficaram desconfiadas no início, mas quando viram o presente (Wanderley procurou uma sacola bonita pra colocar a bolsa como presente!), elas se emocionaram e perguntavam: “mas é pra mim mesmo?”

Estou sorrindo à toa, pra além das minhas dores na perna e nos dois braços. Fez muito bem pra mim, pra minha alma e agradeci a Deus por nos ter abençoado com uma chance de rezar na caligrafia do amor ao outro!

É isso! Obrigadíssima a Nice Luconi por ter partilhado comigo essa mensagem/convite do Natal Maria Bonita, e ter me proporcionado esses momentos de elevação do cotidiano pela relação com outras que não conheci, mas para quem destinei coisas que escolhi doar pra essas Marias Bonitas. Falamos pela linguagem do gesto.

Corinta Geraldi

Possui graduação em Pedagogia – Licenciatura Plena pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Santo Ângelo(1975), especialização em Aperfeiçoamento Em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(1975), especialização em Aperfeiçoamento em Educação pelo Fundação de Integração Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado(1975), especialização em S D B Alfabetização pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia Ciências e Letras de São João Del Rei(1970), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas(1980), doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas(1993) e curso técnico-profissionalizante em Normal pela Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora(1971). Atualmente é Professora (Assistente/Doutor) da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino e Formação de Professores. Atuando principalmente nos seguintes temas:Ensino-pesquisa, Trabalho docente, Currículo em ação, Curso de Pedagogia.

Ponte de Zila Mamede

Ponte de Zila Mamede

PONTE

Salto esculpido

sobre o vão

do espaço

em chão

de pedra e de aço

onde não

permaneço

                        – passo.

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 MÃE

A mulher fia o filho

No silêncio do corpo

Inaugura-se: mãe.

O ventre: curvatura de sol

levantando-se

em mansidão de horizonte.

De si própria se esquece:

tecelã da rosa que já aflora

em crescimento lento

no seu sangue.

(Navegos, Belo Horizonte : Editora Veja, 1978)

Le temps et l’autre, de Emmanuel Levinas

Le temps et l’autre, de Emmanuel Levinas

O que me levou a estudar este livro foi o “l’autre’ do título: sempre tenho interesse em saber algo sobre o conceito de alteridade, já que ele é muito importante para os estudos bakhtiniano. Portanto, foi Bakhtin que me levou a Levinas. O texto é difícil. E há muito já não lia em francês… duas dificuldades ao mesmo tempo: da língua e da filosofia de Levinas.

Acrescentemos o que diz o próprio autor como uma terceira dificuldade: o texto é uma transcrição de três conferências proferidas no Collège Philosophique fundado por Jean Wahl. Os tempos eram aqueles do pós-guerra (no caso, 1948) e no Collège se exploravam aberturas, possibilidades, normalmente aprofundadas em obras posteriores. O autor, ao decidir uma publicação independente destas três conferências, não fez alterações. No prefácio remete a outras obras em que aprofundou alguns dos conceitos aqui trabalhados em situação de fala, com seus torneios e sintaxes próprios.

Da minha leitura – insisto aqui que não é a leitura de um filósofo – retiro três questões que me parecem fundamentais, uma relativa ao ‘ser’, outra relativa ao ‘tempo’:

  1. A ‘hypostase’ é o acontecimento pelo qual o existente contrata seu existir. Para defender este ponto de vista, o autor toma como ponto de partida um “il y a”, um existir anônimo em que o ser concreto, o sujeito, se faz existente.
  2. O tempo é uma relação do ‘si inassimilável’ com o que (ce qui) é absolutamente outro, que não se deixa assimilar pela experiência ou o que (ce qui) em sua infinitude não se deixa com-preender.
  3. Ao ter o domínio do existir, o existente inevitavelmente se liga a si mesmo, não pode abandonar a si mesmo. Assim, sua liberdade no existir é de imediato limitada pela responsabilidade por si mesmo: “este o grande paradoxo do ser livre: um ser livre já não é mais livre porque é responsável por si mesmo”.   

Se compreendi razoavelmente o texto, a admissão deste ‘ce qui’, este existir dentro do qual penetramos e passamos a ter um domínio, isto é, nos fazemos sujeitos, não remete a um “espírito de época’, a um ‘modo de viver’, mas a uma relação da solidão e unicidade do sujeito com a própria existência, que implicará um contínuo retorno a si mesmo. E nesta relação sempre num tempo presente (o passado é um presente como lembrança) se constitui a identidade do sujeito consigo mesmo. O futuro será sempre algo projetado (e por isso mesmo, um presente) de que efetivamente o existente não tem domínio: o futuro é o outro! Ele não se deixa dominar, ele não se deixa pegar: ele nos sobrevêm, e nossas projeções são apenas projeções e não garantias de domínio.

Para demonstrar esta tese, na segunda conferência Levinas tomará a morte como este outro inassimilável, como Mistério. O outro que a morte representa e com o qual estamos sempre em contato não é dominada por nós, nela somos passivos. Ela nos acontece. Por isso representa uma alteridade que não deixa prender, tomar, dominar.

O segundo grande campo em que se demorará para sustentar suas principais teses será o amor: o amor é gratuito, ele nos acontece. Novamente aqui somos passivos, sem domínio. E a alteridade a que apontará o autor será “o feminino” não como uma mulher concreta, mas no mistério do feminino que como tal atrai e trai nosso domínio: o feminino não deixa pegar, é uma alteridade radical que também reside em nós próprios.

Neste sentido, a diferença de sexo não será tomada simplesmente como se ela fosse o mesmo que o eu, mas como perpassada pela feminilidade misteriosa que nos toma quando o amor acontece. Na solidão do ser cada um é, e nenhum se deixa pegar.

Ora, no sexo e no amor há a fecundidade, o que leva a um terceiro componente: a paternidade (ou maternidade) de que resulta um Outro que não me é assimilável, no qual permaneço, no qual estou, mas que não é um ‘eu’, e sim um radical outro. E eis aí um fundamento da alteridade concreta: enquanto existentes passamos a dominar o existir, mas no existir a alteridade se impõe e não temos qualquer domínio sobre ela. Nos pontos de reflexão do autor, as alteridades radicais serão a morte (o mistério de um devir que nos acontecerá e em que somos passivos), o feminino (com a radicalidade que representa o que é desejado como posse e que sempre escapa) e a fecundidade que leva a outro existente que sendo nossa permanência é radicalmente outro.

Isto não é um resumo da argumentação do autor, o que seria impossível. Esta é uma leitura de um texto difícil, mas que leva a pensar sobre a radicalidade da alteridade, não simplesmente pensada como outro idêntico a si próprio, mas como aquele que jamais se deixará pegar como objeto do eu. Um ‘tu’ radicalmente outro.

Para fazermos uma analogia – uma analogia de linguista – a linguagem (e a língua em seu sentido sociológico) é um existir, um ‘ce qui’ anônimo, eterno (enquanto dura), dentro da qual nos constituímos existentes, sujeitos: dominamo-la no presente das enunciações, tomamo-la como nossa (o existir) mas não temos álibi para nos escusarmos da responsabilidade pelo dizer. E esta responsabilidade é para com o outro, não apenas como parceiro de um processo de comunicação, mas como um devir sobre o qual não temos domínio, temos no máximo uma projeção. E neste devir estará nosso dizer. Daí deriva a responsabilidade que em Levinas aparece como responsabilidade sobre si próprio, um limite à liberdade, mas que não pode ser compreendida como uma indiferença: porque aos ‘filhos’ (a paternidade/maternidade também do dizer) não de pode ser indiferente: “Não-indiferença pela qual um Eu é possível para além do possível”. Um Eu que encontra a alteridade radical do mistério da morte e que no entanto permanece no “existir” anônimo e eterno, em que se fez existente num tempo limitado mas que permanece como algo que não se deixa com-preender.

Infelizmente, ao menos nestas conferências, para além de remessas esporádicas à comunicação, mas não exploradas filosoficamente, Levinas não trata da linguagem, uma necessidade também para sua filosofia porque o retorno sobre si mesmo, a relação entre o Moi e o Soi demanda a existência de uma linguagem.

Referência. Emmanuel Levinas. Le temps et l’autre. Paris : Presses Universitaires de France, 1983.

OS MISTÉRIOS E OS SEGREDOS DA NATUREZA

OS MISTÉRIOS E OS SEGREDOS DA NATUREZA

Os encantos dos recantos

As belezas da natureza

Fascinam o sentimento

Os mistérios e os segredos

Do vasto mundo do além firmamento

Purificam os meus segredos

Alegram a vida e o pensamento.

Já disse que passávamos horas e horas em cima das árvores, e não por motivos utilitários como fazem tantos meninos que sobem nas árvores apenas para apanhar frutas ou ninhos de pássaros, mas pelo prazer de superar difíceis saliências do  tronco e forquilhas, e chegar o mais alto possível, e encontrar bons lugares para ficar olhando o mundo lá embaixo e brincando com quem passasse por ali (CALVINO, Ítalo, Os nossos antepassados. Cia. das Letras, p. 125, 2001 ).

Toda vez que vou e fico no sítio é sempre como se fosse a primeira vez. Fico encantado. A natureza me fascina, me seduz, me emociona.

Ainda no caminho, me deparo em diversos pontos, à beira da estrada com quero-queros. Sempre juntos em casais feitos namoradinhos. Às vezes, em bandos, turmas de dezenas, como se estivessem em festas de casamento, assembleias para discutir as invasões destruidoras dos seres humanos. Passo por corujas sentadas em pontas de palanques de cercas, de olhos bem abertos como se fossem vigias. É claro, em baixo na terra há uma cova, onde constroem seus ninhos e criam os filhotes.

Ao chegar no sítio, preciso ter muito cuidado para não atropelar e passar por cima de lagartos comendo pitangas, guavirovas, acerolas, cerejas, jabuticabas, que cobrem o chão debaixo dos pés de árvores, muito cheirosas e gostosas. Os lagartos, de rabos bem compridos, ficam andando, rebolando, calmos, lentamente, sem medo aparente. Ao chegar na sede do sítio, me sinto como se estivesse no paraíso. Nunca estive no paraíso místico, mas me sinto como se estivesse lá.

Os sabiás cantando em melodias, um pouco tristes; os bem-te-vis voando sobre as pontas das árvores algazarram gritando: bem-te-vi, bem-te-vi; os tucanos (pássaros!) muito coloridos e de bicos enormes, gorjeiam ruidosamente; as gralhas azuis, os rabos-de-palha, os pica-paus comendo pitangas, guavirovas, todos muito felizes, sentados nos galhos repletos de frutas. Logo vem dois beija-flores voando de maneira incrível, sem que a gente perceba o vibrar das azinhas, sugando o mel das flores no jardim. As pombinhas ficam chocando os ovinhos no ninho que construíram na aba do alto do telhado da casa. Quando o vento é forte derruba os ninhos e os ovinhos se espatifam na calçada. Coitadinhas das pombas. Os joão-de-barros construíram duas casinhas de barro em dois galhos dos pinheiros – araucárias pertinho de casa. Certa vez, os joão-de-barros construíram a casa com a porta para o lado norte. Veio o vento forte e derrubou. Aí eles construíram a próxima casa com a porta para o lado leste. O vento nunca é forte. Assim, já criaram diversos filhotes. Os quero-queros passam o dia e noite na grama escondendo e vigiando os ninhos e os filhotinhos. Ai dos cachorros, dos gatinhos, dos gaviões que se atreverem chegar perto. Cada vôo rasante assusta até a gente.

Tem uma história dos bem-te-vis muito engraçada. Mas verdadeira. Certo dia, o meu neto de 8 anos estava lá no sítio correndo, subindo e descendo barranco, rolando na grama, trepando num pé de canela bem frondoso e lá pelas tantas gritou:

– Vô quero fazer pipi!

– Sem problemas, vai aí naquele barranco e mija lá de cima. Você vai ver o mijo cair lá em baixo. Não teve dúvida. O neto correu, tirou o pinto e deu aquela mijada ao ar livre. Quando foi guardar o pinto na bermudinha, lá na ponta do pinheiro mais alto  alguém cantou:

– Bem-te-vi, bem-te-vi!

– Viu coisa nenhuma, seu mentiroso! Respondeu o neto.

Teve outras histórias muito interessantes dos bichinhos selvagens da natureza, que servem de lições para nós, seres humanos inteligentes.

Certo dia, já no entardecer, uma turma de macacos-prego veio aí no pomar para pegar laranjas. Eram mais de 30 macaquinhos. Vieram em silêncio pulando das árvores da floresta e trepavam nos pés de laranja. Cada um colhia duas laranjas, uma na boca e outra em uma das mãozinhas, pois a outra precisava estar livre para trepar nas árvores de volta na floresta. Mas aí, um amigo, meu vizinho, viu um macaco bem alto na árvore mais alta, pé de louro, olhando lá de cima para detectar algum perigo. Era o vigia, o macho mais forte e valente, escolhido pelo bando. Ele não ia buscar as laranjas. Lá na floresta, depois da colheita, ele ganhava dos demais companheiros e companheiras pela tarefa de vigiar na colheita.

Acontece que esse meu amigo, maldosamente, se escondeu por detrás de um pé de laranja e se aproximou da turma de macacos. Deu um pulo e gritou bem alto para dar um susto na macacada. Aí foi um desespero. Num instante todos os macacos estavam no alto das árvores no mato gritando de medo. Alguns correram atrás do vigia e começaram a bater nas costas e morder nas pernas dele. Foi o castigo por ele não ter dado o grito de alerta do perigo.

Assim, foi mais uma lição que aprendi da vida da natureza. Esta, a vida da natureza não possui limites.

O convívio dos seres animais com os seres vegetais – flora e fauna – é de vivência e sobrevivência recíproca. Uns não vivem e sobrevivem sem os outros. Os macacos, os lagartos, os tucanos e todos os pássaros – menos os corvos, os gaviões – comem frutas, flores, folhas e ao cagarem as sementes, estas no solo acabam germinando e nascendo, garantindo a perpetuação da floresta. Há um dístico popular muito verdadeiro: “o melhor e maior reflorestador da natureza é o bum-bum de passarinho”.

Ao contemplar as árvores, os pássaros, os macacos, os lagartos, os lambaris, fico embugalhado de dúvidas e inquietudes diante das harmonias e desarmonias da natureza e do mundo. Fico pasmo diante de tantos seres humanos destruindo, devastando, queimando, envenenando as condições de vida do planeta terra.

Até quando?