por José Kuiava | mar 6, 2019 | Blog
Esta é a triste e dolorosa constatação da história real material do Brasil de hoje – 06 de março de 2019, quarta-feira de cinzas, o primeiro dos quarenta dias da Quaresma depois do Carnaval. Amor rima com dor. Animação, com dominação. É doloroso constatar a transformação do Carnaval da festa e da alegria em espetáculo do “pão e circo” modernizado. Pobres vestidos e fantasiados com alegorias banhadas de ouro, prata e pedras brilhantes dando espetáculo e divertindo ricos nos camarotes.
Vivemos momentos das nossas vidas quando o amor que temos e vivemos em atos e sentimentos compartidos e dirigidos para o sentido mais elevado das nossas vidas, assim sem ódio, sem discriminação de raças, etnias, culturas, classes sociais, vem sendo barrado, agredido e suprimido aleatoriamente por alienados do bloco no poder político dominante.
Assim, estamos induzidos a perfilar os verdadeiros descaminhos da educação brasileira sob o poder e a ditadura da ignorância, da prepotência e da impostura política. Primeiro, os alienadores se propuseram a popularização de uma educação da disciplina, da ordem, da obediência, da desideologização da educação: “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”; a perfilação dos estudantes – crianças e adolescentes – em posição de sentido à imagem e semelhança dos soldados e militares nos quartéis, cantando o Hino Nacional, filmando a cena para mandar para o Ministério da (des)educação. Depois, as medidas radicais impostas (sem diálogo, sem discussão com os educadores, professores, políticos…): “a escola sem partido” – proibido falar, estudar, analisar, debater e criticar a origem, a história, a ideologia, a ética… dos partidos políticos nas escolas, principalmente os partidos rotulados de “esquerda”, é proibido falar, estudar, analisar, debater, conhecer as ideologias – suas origens, seus inventores proponentes, suas propostas e pretensões políticas, seus princípios éticos, seus vínculos com às classes sociais, etc. Aqui vai uma pergunta sem maldade: numa sociedade historicamente democrática, o que não é político? Ou seja, o que na vida real material da sociedade dos espaços e das obras públicas não é uma decisão “política” em suas escolas institucional, local, municipal, regional, estadual, nacional? Até o local dos postes de energia elétrica, telefonia é uma decisão política para atender interesses de uns poucos em prejuízo de todos. Claro, a política partidária fantasiada de tecnologia e bem-estar de todos.
Agora, vamos ter a “lava-jato da Educação”. É isso mesmo: a “lava-jato da Educação”. E viva a justiça! Acima de todos para a educação de qualidade para poucos de cima. Nesta última segunda-feira (4) o presidente Messias afirmou pelo Twitter que o “Brasil gasta demais com educação”. Afirmou que “há erros nas prioridades do o que é ensinado aos alunos e nos recursos aplicados na educação brasileira. E para corrigir e acabar este mal, esta perversidade, vai constituir um comissariado composto pelo Ministério da Educação, pelo Ministério da Justiça, pela Polícia Federal e pela Advocacia e Controladoria da União. É isso aí. Um ministro da educação estrangeiro que não entende nada de educação, a Polícia Federal instituindo e aplicando uma pedagogia militar e policial na educação brasileira.
Para a educação de massa – classes sociais de trabalhadores – a ignorância com bem comum.
por João Wanderley Geraldi | mar 5, 2019 | Blog
No reino dos corvos, o Corvo Bolso convocou uma reunião em seu palácio. Não compareceu nenhum dos príncipes herdeiros, o que transformou a reunião em mero convescote porque nenhum dos que tem poder de decisão e veto se fez presente por engano lamentável do protocolo convocatório! Corvo Bolso ainda não conseguiu retirar do palácio todos os dissidentes do passado remoto.
Mas forma servidos os comes e bebes de sempre. Entre um e outro aperitivo mais picante, a conversa começou a rolar.
– Chamei a todos aqui porque estando reunidos os poderes de meu reino, posso compartilhar minha augusta preocupação. Entraremos pelo vizinho adentro com nossa humanitária mão?
Os comensais se entreolharam, meio chocados. Um deles, muito apressadinho, precisamente o Corvo Togado, representante do apequenado poder de resguardo da Constituição, começou a falar:
– Fica Vossa Excelência, Corvo Bolso, absolutamente livre e com carta branca para fazer o que lhe vier à cabeça [por pouco não comete o Corvo Togado o vexame de dizer “às cabeças dos três que o comandam”]. Qualquer problema que os aloprados apresentarem a nossa Corte, nós cortesãos lhes garantimos o que desejarem, sob os efeitos da lei. A Constituição é o que queremos que seja. E como nosso querer é subordinado a seus quereres, estamos prontos para o serviço.
Outro membro da corte, este recém-chegado pelas graças do Palácio, seguiu na mesma toada:
– Não tenho a carta, mas se tivesse lhes daria: carta branca.
Então o Poder veio às falas. Afinal, entre os poderes, há o Poder, este exercido em uníssonos uniformes, diversos de cara mas coesos na ação. E o Poder já havia anunciado: nada de invadir coisa alguma, que não temos sequer munição para os dois primeiros dias.
Secundou-lhes com voz branda outro cortesão, este vindo da chamada Casa do Povo, onde povo algum entra:
– Temos presente, Excelências, a voracidade do Corvo do Norte. Mas não podemos ser somente capacho como desejam outros poderes. Há 150 anos não há guerra por cá. Eles de lá que guerreiem acolá, nos deixem ir lhes dando tudo segundo a pauta das votações: entregas pequenas passam, uma só entrega não passa não!
E assim, reunidos os cortesãos, foi preciso que o Corvo Bolso prometesse que não adentraria no país vizinho pela mão do Corvo do Norte. Avisou que levaria muitas bicadas de lá vindas, mas que ficaria por aqui mesmo.
Informado disso tudo pelo painel, extrai logo um conselho ao Corvo Togado: não se fala antes dos generais. Mas quis saber e fui correndo perguntar ao Corvo Estogado, que não é sábio mas é sabido, sua opinião sobre este encontro palaciano:
– Como analisa, Excelência, esta reunião de palácio dos poderes?
Infelizmente, o Corvo Estogado se mostrou cego, surdo e mudo. Isto parece ser uma doença própria do subpalácio da justiça. Um outro, um Falcão que por lá esteve, sempre falava: – Nada a declarar.
O Corvo Estogado não se dá nem a este desgaste. Teme a boca que pode fazer perder a boca futura.
por João Wanderley Geraldi | mar 3, 2019 | Blog
Dona Ximena exige justiça ao rei D. Fernando
Passou pela minha porta, às minhas terras foi caçar,
Matou-as minhas pombinhas que eu tinha no meu pomar.
Matou-mas de uma em uma, juntou-mas de par em par,
matou-me as mais bonitas, para mais pena me dar.
Fui eu ter com el-rei que mas mandasse pagar,
el-rei, por eu ser mulher, não me quis escutar.
El-rei que não faz justiça, não deveria governar,
nem comer pão do Alentejo, nem com a rainha falar.
Desta sorte se castiga a quem não sabe reinar.
(Versão de Santa Cruz das flores (concelho de Santa Cruz das Flores), ilha das Flores. Recolhida por João Maria de Caires Camacho, antes de junho de 1905)
Queixas de Dona Urraca
Passeava-me Silvana, por um corredor acima,
seu pai estava mirando, paços donde ela vivia.
– Bem puderas tu, Silvana, gozar minha campanhia.
– E as penas do inferno, pai meu, quem as passaria?
– Passava-as eu, Silvana, por ter um gosto na vida.
– Mas deixai-me ir a palácio, vestir outra camisa,
que esta que tenho no corpo pecado não o faria.
Chegara donde a mãe estava, justiça do céu pedia,
justiça do céu à terra, que no mundo não na havia.
– Um pai que Deus me dera, de amores me cometia.
– Despe esses trajos, Silvana, que deles me vestiria,
irei aonde o rei estava, pois muito bem no sabia.
Tanto cego estava o pai, cuidava que era a filha.
– Se eu sabia tal pecado, pois dele não cometia.
– Não tive senão dois filhos, D. Pedro e a Silvaninha.
– Filha que chocalha o pai que castigo merecia?
– O pai que acomete a filha mil infernos merecia.
Mandou fazer altas torres, a fim dele lá não ir;
ao cabo de sete anos, a mãe as mandou abrir.
Chegara onde o pai estava, estava o pai p’ra acabar:
– Ó meu pai da minha alma, vós estais para acabar,
lembrai-vos da grande conta que a Deus tendes para dar.
A D. Pedro deixais tudo, só a mim nada deixais.
– Que mulher é esta aqui que tanto está de enfadada?
– É vossa filha Silvana que a deixais deserdada.
A D. Pedro deixais tudo, a ela não deixais nada?
– Deus se não lembre de mim, se tal filha me lembrava
aqui tem um punhal de outro, para seu brio sustentar,
agora que a tua mãe que te acabe de herdar.
(Versão da ilha de S. Jorge (Açores). Coleção de João Teixeira Soares de Sousa)
(Referência: Pere Ferré. Romanceiro português da tradição oral moderna. Versões publicadas entre 1828 e 1960. Vol. I Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2000)
por Mara Emília Gomes Gonçalves | fev 28, 2019 | Blog
Enfim, chegamos ao lugar comum.
Explico-me sem grandes pretensões, o que não significa que não tenha cá meus objetivos. É sobre previdência que tratarei hoje. E como sou leiga no assunto posso falar sobre expectativas que passei a nutrir sobre o assunto, desde que foi colocado na ordem do dia, melhor seria eu ser a expressão: balcão governamental.
Muita gente não entende, e não vai. A juventude negra, em especial a urbana, assim como indígenas e quilombolas tem como expectativa uma vida curta em qual não cabe se aposentar, na real? Durante muito tempo sequer trabalho formal, assim como postos de trabalhos mais avançados. Era muito sonho pra quem tinha o pé no chão.
Então porque reclamar agora que uma parcela de trabalhadores não vai conseguir se aposentar? Porque devemos nos unir prioritariamente a essa pauta? Eu que já tive tantas vagas, ambientes e oportunidades retiradas pela minha pele escura, pelos meus cabelos arrepiados e indomados, pela minha boca grossa. Eu que abaixo minha cabeça frente às mentiras que contam para justificar a minha ausência na lista vip.
Não me entenda mal, eu sei que é preciso lutar por todos nós. Mesmo quando o nós não é tão nós assim, é muito mais nó na garganta. Veja bem, uma massa inteira precisará de um pouco mais. Até os que não sabem que no final do arco- íris não tem pote nenhum. Empreendedorismo tupiniquiquim? Eu sei bem. Vou ser honesta, como há algum tempo tenho sido, se você quiser manter o respeito e até apreço pode parar por aqui.
É certo que a negritude vai somar força, nas pioras e derrotas somos a grande maioria, mas aprenda bem como é se aquilombar. Vamos nos unir porque seremos como sempre fomos os primeiros da fila das mazelas. É preciso que se diga, que para muitos trabalhadores, desempregados, subempregados, terceirizados, precariados: A aposentadoria não vai acontecer. Pensando bem, a gente já sabe disse quando as leis trabalhistas foram subtraídas, parece-me agora a lei do sexagenário: “Liberdade ainda que tardia” é uma falácia. Queremos ser livres agora, já.
Nunca nos demos conta do absurdo que foi sessenta anos sendo escravizado, para depois sair com a mão na frente e outra atrás, sem nada, nenhum direito, sequer teto ou chão. Não é tempo de recomeçar. Não cuidamos de nossos fantasmas e eles voltam a nos visitar, e o pior se autoproclamam (termos atualizados) convidado de um banquete de misérias e fracassos que sentarão junto aos nossos filhos e aos filhos destes. Assim sendo, eu sei a hora de falar sobre o que quero, não me diga qual a pauta do dia, e sobre o que realmente eu devo escrever ou falar, a minha urgência antecede a sua em séculos que andei sozinha, e se agora voltamos ao tempo da escravidão, de matar negros ao bel prazer da branquitude e do mercado, e acrescentou-se a isso a inseguridade social, não há pauta mais ou menos importante: Aprenda!
Se assistimos a previdência tornar-se uma esperança quase religiosa e post-mortem, e dada à apatia e ao desconhecimento um fator contrarrevolucionário, há muito trabalho para ser feito, e temos lutado para colocar essas discussões na ordem do dia, sob o nosso prisma.
E durante muito tempo não foi possível, assim construímos nossas mentiras de cada dia, não reparando nas nossas próprias contribuições para o caos. Quantos trabalhadores ajudamos a manter na informalidade, com nossas desculpas esfarrapadas, com nossa economia sovina? Quantos rapazinhos do almoxarifado poderiam ter aquele pedido de atenção especial que foi dado aos seus filhos e filhas? Mas sempre tem a exceção. E nem todos nós fazemos isso, só alguns.
Existe um déficit na previdência, e os juros que pagamos são exorbitantes. É real. Assim como existem bancos que tem os lucros anuais em torno de bilhões devendo a previdência, como eu disse acima, entendo pouco, e assim como eu, são milhões de não entendedores, e talvez não dê tempo da gente entender sem muito perder antes. Porque muitos de nós não queremos explicar, despidos de nossos preconceitos e de nossas sabedorias, e preciso falar não como quem fala com quem será lesado, mas com quem sempre foi, mas que poderá compor junto conosco as filas das misérias, falar sobre como é difícil não ter garantias no futuro com quem sabe disso desde a origem.
Explicar porque o governo consegue pagar a previdência e garantir minimamente a dignidade humana de todos. Falar sobre coisas que eles nem imaginam, mas que você sabe como funciona.
É sabido que dá pra aumentar a arrecadação com mais gente trabalhando e contribuindo para a previdência, se o governo for competente, consegue garantir postos de trabalho e quando for possível alavancá-los, negociar com devedores, ao tempo em que se é enérgico em cobrá-los, e ao fim e a cabo se for preciso aumentar o tempo de contribuição, porque não diminuir nos últimos 10 anos a jornada de trabalho? Embora ainda não esteja convencida dessa ardilosa proposta.
Hoje estou danada a especulações, então mais uma não nos fará mal algum: é preciso colocar na pauta do dia a redução da jornada de trabalho – essa sim deveria ser a pauta atual. Se diminuíssemos a jornada, sem prejuízo salarial, talvez mais trabalhadores fossem inseridos em postos de trabalho e teríamos mais contribuição previdenciária e mais tempo cotidiano para ser livres durante a vida.
É preciso ser livre antes dos sessenta, na verdade o que disse acima coaduna com o que Lula disse de sua cela em Curitiba. Não é contraditório que um homem livre consiga pensar além das grandes, já os homens vis são presos aos seus próprios demônios e mesquinharias.
Lula livre já!
por João Wanderley Geraldi | fev 24, 2019 | Blog
Nenhum igual àquele.
A hora no bolso do colete é furtiva,
a hora na parede da sala é calma,
a hora na incidência da luz é silenciosa.
Mas a hora no relógio da Matriz é grave
como a consciência.
E repete. Repete.
Impossível dormir, se não a escuto.
Ficar acordado, sem sua batida.
Existir, se ela emudece.
Cada hora é fixada no ar, na alma,
continua soando na surdez.
Onde não há mais ninguém, ela chega e avisa
varando o pedregal da noite.
Som para ser ouvido no longilonge
do tempo da vida.
Imenso
no pulso
este relógio vai comigo.
(Suplemento à 5ª. edição. Antologia poética. RJ : Record, 40ª. ed, 1998)
por João Wanderley Geraldi | fev 23, 2019 | Blog
O carioca Bernardo Carvalho é um colecionador de merecidos prêmios. Este Nove Noites recebeu o prêmio Portugal Telecom 2003.
Desde as primeiras páginas, este livro enreda o leitor numa investigação iniciada 62 anos depois dos fatos. O fato: o etnólogo – às vezes antropólogo – norte-americano Buell Quain, aluno de Franz Boas, orientado por Ruth Benedict, vem ao Brasil para seu trabalho de campo a investigar as formas de vida de indígenas brasileiros. Matou-se na noite de 1 de agosto de 1939.
O tempo narrado é, portanto, aquele do Estado Novo no Brasil e da deflagração da 2ª. Grande Guerra na Europa. O tempo da narração é dos inícios dos anos 2000: “Ninguém nunca me perguntou. E por isso nunca precisei responder. Não posso dizer que nunc ativesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Segunda Guerra.”
Na técnica narrativa, dois narradores falam, em primeira pessoa, paralelamente – o ‘corpo’ das letras mostra a mudança de narrador e de tom da narrativa. O primeiro narrador a aparecer conviveu com a personagem central da história; o segundo narrador investiga a história de vida de Buell e possíveis razões para sua morte. Estas narrativas de entrecruzam no percurso da leitura de modo que o leitor vai reconstituindo um quadro dos acontecimentos, mas sem conseguir fechar as peças do quebra-cabeça.
A narrativa da testemunha dos acontecimentos, o gênero é uma “carta” destinada a alguém desconhecido, mas esperado. Repete-se várias vezes o mesmo enunciado quando este narrador: “Isto é para quando você vier”. Aqui você encontrará um conjunto de informações sobre Buell, desde suas viagens pelo mundo, a passagem por tempo em Fiji, de que resultaram dois livros publicados postumamente, seu contato com os Trumai no centro-oeste brasileiro, de que foi expulso pelo Serviço de Proteção ao Índio sem que as razões fiquem muito claras. Depois, toda a descrição de sua chegada a Carolina (Sul do Maranhão) cidade da qual partirá para a aldeia dos índios Krahô, com os quais conviverá até o suicídio. O engenheiro-narrador foi um dos que o recepcionaram quando da chegada a Carolina. Foram apresentados, mas Buell não deu muita atenção ao apresentado. Depois se tornaram amigos, e quando vinha à cidade o antropólogo sempre o visitou, sempre lhe confidenciou suas andanças, sua passagem pelo Rio de Janeiro. Da última vez, esperava cartas da família e pediu que assim que recebidas, fossem levadas por portador para a aldeia. Foi o que aconteceu. Segundo a narrativa dos índios, o antropólogo teria lido as cartas, teria ficado desesperançado e as queimou todas. Então decidiu voltar.
Dois índios acompanharam o antropólogo que voltava para Carolina e que tinha se despedido dos Krahô. A certa altura da viagem, ele pediu para descansar. Mandou que um dos índios fosse à fazenda mais próxima, com um bilhete em inglês que obviamente o portador não saberia ler. Pedia pás e enxadas. Eram os materiais com que queria que fosse cavada sua sepultura. E então começou a escrever cartas, oito no total, destinada a diferentes pessoas. O outro acompanhante dormiu, mas preocupado: acorda-se quando ele estava se mutilando, se cortando com gilete. Tenta convencê-lo a parar. Consegue e vai dormir. Quando o primeiro rapaz retorna da fazenda sem nada, porque o dono – Sr. Balduíno – estava viajando e nenhuma outra pessoa sabia ler na fazenda, encontra o Dr. Buell enforcado, pendurado de uma árvore. Foi enterrado ali mesmo, onde morreu e onde queria ser enterrado. Apavorados e com medo de serem acusados de assassinato, os índios levam tudo o que pertencia ao antropólogo a seu amigo. Todas as cartas e as narrativas os inocentavam. As cartas foram remetidas para os destinatários, mas uma delas o engenheiro guardou. É para o desconhecido destinatário desta carta que ele escreve, porque esperava sua chegada, mas com ficou velho, achou que deveria preparar este amigo que viria com certeza.
Nesta longa “carta” ao desconhecido, inúmeras vezes o leitor é levado a imaginar ‘coisas’ sobre Buell: questões de relações sexuais, família nos EEUU, traição da mulher, gosto por prostitutas, relações homossexuais, e sempre uma possível doença de que sofria o antropólogo. Todas estas “insinuações” fazem o leitor ir tentando construir uma explicação para o inesperado suicídio.
O segundo narrador é um investigador. Vai atrás de documentos, das cartas, das notícias. Vai a um encontro de povos indígenas, porque a eles compareceriam membros do povo Krahô: quer informações. No entanto, ninguém que tenha convivido com o antropólogo está vivo. Somente um idoso conhecia a história porque lhe haviam contado. Ele tenta desesperadamente obter novas informações, mas nada descobre. Compulsa as cartas e a cada vez mais desconfia de que a outra história não contada que esclareceria o ocorrido. Alguns indícios nas cartas de Buell confirmariam isso, desde uma frase que ficou sempre martelando: numa das cartas escritas na noite do suicídio, ele diz que “os índios felizmente estão salvos”. Salvos de quê, se pergunta o narrador-investigador. Neste segunda narrativa, com seus avanços e recuos, com as hipóteses formuladas e abandonadas, o leitor acompanha três histórias que vão emergindo: aquela de Buell; aquela da vida do próprio narrador; e por fim a história da própria investigação.
Como se pode ver, o entrelaçamento de tantas histórias mantém o leitor em atenção constante. A partir de certo momento da leitura, tudo o que se quer saber é: há razões para além daquelas do próprio suicida, para que ele cometa o suicídio?
A investigação do segundo-narrador, buscando em todos os cantos algum elemento que justificasse o suicídio (ou o assassinato), acaba por ter contato com o suposto filho de um fotógrafo que fora amigo (amante?) de Buell: no hospital em que estava internado o pai do “investigador”, no mesmo quarto, estava hospitalizado um senhor desconhecido para o investigador. Ele sempre esperava a visita de alguém. Confunde o investigador com este alguém que esperava, e o que o investigador escuta é “Well”… mais tarde se dá conta: o moribundo falava “Buell”! Assim, descobre que este era o fotógrafo a que já havia chegado em sua investigação. Vai atrás de seu filho, consegue contatá-lo e por fim, por um acaso, consegue ser recebido por ele. Descobre a semelhança física entre Buell (que ele conhece somente por fotografia) com este suposto filho do fotógrafo, que lhe conta sua própria história: a mãe o deixara, o pai o entregara aos avós, quando chegou aos 17 anos fica sabendo que não era filho do fotógrafo e os avós o expulsam de casa!!!
São muitas histórias intercaladas… e o suspense do narrativa deixa o leitor cada vez mais ávido por saber: afinal, o que aconteceu? Se no final, fica sabendo que Buell tivera um filho que não conheceu, com a mulher que amou e que o traiu, fica sempre a dúvida: se descobre que é pai, por que se suicida?
Por fim, uma nota sobre o título: foi durante nove noites que o engenheiro de Carolina acompanhou Buell na última de suas viagens de Carolina para a aldeia Krahô! Nestas noites, ouviu as histórias de vida do antropólogo. É daí que vem o título do romance.
Referência. Bernardo Carvalho. Nove Noites. São Paulo : Cia. das Letras, 2002.
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