Mimimi

Mimimi

Uma tragédia é sempre uma tragédia.

Um dia e uma noite inteira. Semanas e semanas e não acontece nada. Já outros somos visitados por noites sem dormir. Prefiro sentir sempre ao invés do adormecer doente. A lente de aumentar e de diminuir está nas mãos midiáticas de quem tem poder, ou a mídia controla o poder. É sabido então que escolher quais notícias serão dadas e mesmo a ordem em que serão dadas modificará o sentido.

Se eu vejo uma foto com meu filho invariavelmente me trás alegria. Até que ela deixa de ser a imagem e se torna uma narrativa. As narrativas não são meu forte nesse aspecto porque em geral repetem minhas experiências.

Uma foto e várias dúvidas.

Uma festinha de aniversário: Com vários vivas! Parabéns! Até que o clique quebre em algum canto, em alguém o encanto. Novo clique e enviar: pronto! Na velocidade do mundo web a fotografia alcança destinos vários.

Lá está ela: A foto. Uma única e solitária imagem que consegue ativar a passividade do pensamento matutino.  O que teria permeado aquela organização, uns a frente, um ao fundo, bem atrás. Um sorriso sem sorriso. E imediatamente estabelecemos como um traço hereditário de timidez. Não é verdade, é estranhamento.

De um jeito e de vários outros nos ensinam desde muito pouca idade que os primeiros lugares, o shopping da elite, as universidades, os postos empresarias mais altos, os cargos mais bem remunerados, as propagandas, os exemplos gerais não é nosso aquele lugar. Para nós as margens, a apatia, a desinformação, e a exceção. Beyonce ? Pelé ? Obama? …

As coisas estão mudando. Não me iludo.

É uma foto. Um menino negro. Em outras poderia ser deficientes, portadores de síndromes, gordos, magros demais, de aspectros, de marcas. Como se o álbum da vida fosse para a capa de revista. Re – vista! É a imagem que fez um registro, e cabem várias versões. Penso nos meninos negros parados nas blitzes policiais em revista. Não dá capa.

Diferente da tragédia, uma foto são várias. Carregam versões, inversões e aversões.

Acostume-se com os silêncios. Não aconteceu o ciclone em Moçambique? Onde fica o Zimbábue? Luto pelos mortos e pelos vivos. Coisas mais importantes acontecem a todo o momento. Como em um zapping pela TV, o cérebro percorre as dores todas: parlamentares negras são barradas nos elevadores privativos, um corte para a música de Jorge Aragão, mais de mil mortos em Moçambique, nenhum envio de ajuda americana que resulte em petróleo, menino de 12 anos é morto quando sai para comprar lanche, a maioria dos meninos mortos na escola em Suzano são afrodescendentes, e então a crise no país brevemente sem previdência desaguará em uma Golden Shower.

Todos os assuntos e nenhum me choca mais que a foto do futuro pintado com meu filho no fundo. Assim, o texto é grito para ouvidos que se acostumaram com o racismo nosso de cada dia, que pode ser machismo, ou preconceito. Acusam a minha monotemática como se já tivesse bastante disso por aí:

– Mimimi. Vitimismo.

Não perca o raciocínio e se permita o espanto com o Ciclone Idai. Não se assuste porque morreram pessoas lá, como morrem aqui é verdade, mas é preciso se indignar para você não ser a tormenta de alguém. Não passou na TV. Se passasse, o que será que a imagem iria nos dizer?

Uma tragédia é sempre uma tragédia.

FINALIDADE DA VIAGEM DO PRESIDENTE: TROCAR CAMISETAS

FINALIDADE DA VIAGEM DO PRESIDENTE: TROCAR CAMISETAS

O negócio mais importante e de maior valor político e comercial da viagem do presidente do Brasil, em visita ao presidente dos Estados Unidos, foi a troca de camisetas das seleções de futebol dos respectivos países. O presidente Trump, com gesto carinhoso mal disfarçado, deu de presente ao presidente Bolsonaro uma camiseta da seleção americana de futebol, com o número 19 e o nome Bolsonaro. Em troca, com gesto muito delicado mal disfarçado, o presidente Bolsonaro deu de presente ao presidente Trump uma camiseta da seleção brasileira, com o número 10, em homenagem ao Pelé.

A troca de camisetas foi o gesto mais generoso, a cena mais espetacular e emocionante do encontro dos presidentes – um gesto de aliança e de subordinação do hemisfério Sul ao hemisfério Norte. Diante das crises que abalam o Brasil, os Estados Unidos e o mundo, nada melhor do que a troca de camisetas de futebol pelos presidentes, em nome dos torcedores aloprados assistindo o espetáculo ao vivo na TV.

Como se este gesto de corações grandes não bastasse, o presidente Bolsonaro agraciou o presidente Trump com outros presentes mais generosos. Liberou a entrada no Brasil a todos os americanos que queiram colonizar o Brasil, que queiram extrair o petróleo e os minerais do Brasil, que queiram desmatar e extrair as madeiras nobres da Amazônia, que queiram tomar os nossos bancos e os nossos aeroportos e levar tantos bens e riquezas do Brasil sem pagar quase nada. E tem mais, para entrar no Brasil de hoje em diante os americanos não precisam sequer apresentar “visto de entrada”. Estão liberados para entrar sem visto e sem dinheiro para buscar bens e capital.

E o coração grande do presidente Bolsonaro não parou aí, não. Bolsonaro entregou ao Trump e aos americanos a Base de Alcântara – lançamento de foguetes do Brasil –, permitiu aos norte-americanos o acesso das informações nas redes sociais. Tudo sem nada em troca. E Bolsonaro declarou apoio ao Trump na construção do muro na fronteira com o México e apoio à derrubada do Maduro.

Dessa forma, o encontro dos presidentes Bolsonaro e Trump não teve nenhum acordo, pois não houve troca de favores, de benefícios, de negócios mútuos, onde e quando as duas partes ganham e levam vantagens. No caso, só uma das duas partes levou vantagens e benefícios. A regra histórica e antiquíssima do “toma lá dá cá” foi abolida no encontro. O mais certo seria se esta regra fosse invertida: “dá cá e vá tomá lá”. Mas, prevaleceu a lei do mais forte, imposta aos submissos.

Enquanto o pai presidente estava viajando no céu infinito, por cima das nuvens ensolaradas; enquanto desembarcava no aeroporto recebido por atores e personagens risíveis, sob protestos acalorados; enquanto jantava com convidados muito estranhos; enquanto almoçava com Trump às escondidas da imprensa, o filho divertia-se brincando sentado na cadeira de presidente no Planalto do Brasil. Delirava dando ordens e despachando serviços aos ministros, aos assessores e funcionários, imitando o pai ausente, ao invés de estar em seu lugar na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Tal pai, tal filho. Faz de conta que é presidente do Brasil. Um espetáculo grotesco.

Assim, os problemas não resolvidos e cada vez mais cruéis e devastadores das vidas dos brasileiros sobram para o presidente em exercício – Hamilton Mourão – resolver em 4 dias. É possível?

Bolsonaro é o Trump da América do Sul.

A baleia e os corvos

A baleia e os corvos

Há tempos que os corvos andavam inquietos. Voejavam cá, davam uma descida acolá, buscando o corpo descuidado de suas presas. Antigamente, os corvos se contentavam com a carniça, quando já não havia vida. Atualmente, é a vida que eles mais querem. Voejam sobre quem ingenuamente passa; bicam os descuidados e trucidam os que têm como presas inimigas da raça.

Os corvos abocanharam os corpos dos predestinados a alimentá-los. E abocanharam com furor. Para conseguir isso, constituíram um grupo aparelhado funcionando a um só grasnar. Se fartaram com o que lhes tinha sido apontado. Depois, começaram a ter algumas dificuldades, de modo que também os da raça, mas de fora do grupo coeso, se tornaram objeto de caça. Assim, caíram alguns corvos, muito poucos, porque a raça não gosta de comer a raça. Não tem graça. O bom mesmo é comer a carne dos outros, dos de outra raça.

Acontece que devastada a floresta, restou pouca caça. Era preciso aparelhar melhor a coesão do grupo, fortificá-lo, mandar afiar os bicos e as garras. Não era permitido mostrar qualquer cansaço.

A liderança do grupo dos corvos teve que ser trocada. O corvo sabido mas não sábio, o Corvo Estogado, o mais esperto deles, foi guindado para as alturas para ampliar o campo de visão e para alargar os espaços da caça. Assim, esta subida aos ares foi saudada pelo grupo como augúrios de um futuro muito feliz.

Apressadamente um corvo ainda jovem teve que tomar as rédeas, tornar-se de chofre bem sabido sem sabedoria. Liderar implica em ser sabido.  Como o corvo sabido mas não sábio, lá das alturas, foi se tornando distante, nada mais falava, nada mais ouvia, nada mais via, a ‘manada’ de baixo ficou sem parâmetros. Um pouco perdida como acontece quando as cadeiras são movidas. Voejaram, farejaram, encontraram alguns podres com poderes para contar histórias. Mas gananciosos e com fome, já não queriam os corvos de cá ouvir histórias, registrar queixumes, conviver com choramingos. Precisavam de uma presa grande o suficiente para garantir o voo do velho líder lá nas alturas e alimentar regiamente ao seu grupo que engrossava a olhos visto. É que a fama chama.

Então o novo líder descobriu que poderia fazer uma negociação vantajosa com corvos distantes: receberiam parte suculenta de seu despojo desde que voassem intermitentemente para lá levando informações sobre como se movimentavam por cá corvos e não corvos.

Por isso surgiu na praia uma baleia forçada a encalhar: com 2.500 toneladas de peso! Era carne para ninguém botar defeito. Refeições para muitos meses, anos até, se o grupo soubesse fazer render o que lhes chegara depois do acordo.

Os corvos se pavoneavam. O novo líder se achando o mais líder, o mais sabido, candidato a voos emparelhados com o velho líder sabido mas não sábio. Nas alturas com o Corvo Estogado apareceria como o Corvo Imberbe. Todos estavam felizes com as 2.500 toneladas de carne fresca e disponível.

Mas então a inveja de outros corvos apareceu. Eles já até pensavam que tinham liquidado a estes adversários da ganância, até ordens já lhes davam. Mas a inveja corrói submissões. Era muita coisa: 2.500 toneladas! E então começou a briga. Intestina e pelos intestinos. Ainda não se sabe o resultado final, mas já é certo que ninguém pode, por enquanto, locupletar-se com as toneladas que começam a feder e enojar os demais bichos deste mundo sob corvos.

“Conde Claros Preso”

“Conde Claros Preso”

Conde Claros c’o amor, não podia repousar,

foi-se ter com Clara-Linda debaixo do seu rosal.

Clara-Linda, que o viu, ficou mui admirada.

– Conde Claro vem armado, pra comigo brigar?

– Melhor vo-lo tereis, senhora, para convosco conversar.

– Eu não quero ganhar nada, porque nada me hão-de dar.

[…..] Isto que aqui, a el-rei vou contar.

– Eu darei-te o meu vestido d’ouro que na corte não é achado.

– Não quero o seu vestido, porque nada me há-de dar,

isto mesmo que aqui vi, a el-rei vou contar.

– Eu darei-te o meu cavalo, bem selado, bem ferrado,

com cem dúzias de botões d’ouro, na roda do peitoral.

– Eu não quero o seu cavalo porque mo não há-de dar,

isto mesmo que aqui vi, a el-rei vou contar.

– Beijo-vos a mão, senhor, a vossa coroa real,

alvíssaras vos tenho trazer, se vós mas quiseres dar,

que eu bem vi estar Clara-Linda, com conde Claro falar.

– Se mo dissesses oculto, alvíssaras te havia dar,

como mo dissetes em público =….]

a ti sentença de forca e a ele de degolar.

– O meu cabelo desatado, eu não o possa atar,

palácio d’ el-rei meu pai, não mo posso alcançar.

Mas o pai, à maior pressa, para casa a foi buscar.

– Se eu tiver outra filha, que no meu reino reinar,

até vós, Clara-Linda, havia mandar matar.

Por espaço dalgum tempo, o rei ouvira cantar:

– Vinde vós cá, Clara-Linda, vindo ouvir belo cantar,

ou são os anjos no céu, ou são cerejas no mar.

– Não são os anjos no céu, nem são cerejas no mar,

conde Claro é, senhor, se vós o mandais soltar.

Se vós o quereis por esposo, por genro o hei-de tomar.

– Se meu pai me dá licença, à prisão o vou buscar.

– Esperai por mim, minha filha, que eu vou vos acompanhar.

– Conde Claro, dai-me a mão que meu pai a manda dar,

dize-me, mexeriqueiro, quanto vieste ganhar?

– Ganhei a morte, senhora, que a vida me podeis dar.

– Para dar exemplo aos mais, logo vais a degolar.

(Versão da Lomba do Botão (concelho de Povoação), ilha de S. Miguel (Açores). Cantada por Ana Jacinta Botelho em setembro de 1878)

(Referência: Pere Ferré. Romanceiro português da tradição oral moderna. Versões publicadas entre 1828 e 1960. Vol. I  Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2000)

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer

Raramente um romance tem como herói um idoso. Obviamente, há Úrsula Buendia desde sempre com 100 anos; há Ana Terra que envelhece; há Policarpo Quaresma. Mas aqui temos uma personagem que domina toda a história, inclusive um triângulo amoroso que se desvela já na segunda e terceira partes do romance. O tema que percorrerá toda a história é a mudança de costumes, de comportamentos com a entrada da televisão para dentro dos lares, mesmo este que distava 6 kms da cidade. O embate será entre um Bruno Stein religioso, leitor da Bíblia e as netas que veem a novela, que querem silêncio na casa quando começam seus programas…

Bruno Stein desde moço compreendeu que “somente os proprietários são livres”, e por isso economizou o que pode, comprou terras perto da vila de Pau d’Arco e se estabeleceu com uma olaria. Fabricava tijolos, deu duro a vida toda.

O enredo começa com Gabriel, um trabalhador rural de empreitada, que caminha para a Olaria na esperança de conseguir um emprego. É contratado por Bruno Stein para palear o barro, serviço pesado, enquanto Erandi cortava os tijolos e Mário carregava carrinhos e mais carrinhos do produto para estocagem e aguardo da queima. Estes os trabalhadores da olaria Stein: Gabriel, Erandi e Mário.

O velho Stein ajuda, mas na velhice lhe aparece outro dom: começou a fazer esculturas. Dedica-se a elas. Ao longo do tempo do romance [do ponto de vista da história do Brasil, estaríamos no governo Figueiredo, no fim da ditadura militar] esteve fazendo esculturas de todos os membros de sua família: a mulher Olga, o filho Luís, a nora Valéria, e as netas Verônica, Sandra, Luísa e Eunice. Estas últimas três praticamente desaparecem ao longo do enredo. No trabalho de escultura, não consegue fixar o olhar e a alma de Verônica no barro!

Seu filho Luís não conseguiu introduzir qualquer modernização no fabrico de tijolos, e desistiu de assumir o comando da olaria: tornou-se caminhoneiro, ausentando-se frequentemente de casa. Valéria, sua mulher, ainda na força da maturidade, sente a indiferença do marido. Masturba-se com frequência… Apaixona-se pelo sogro, um amor proibido e perigoso.

Bruno Stein se sente atraído pela nora. E busca na Bíblia e na sua leitura alívio para o que chama de sua “lascívia”. Sente ainda desejos, mas a mulher Olga há muito desistiu de qualquer relação sexual.

Um dia, Bruno abre a porta do banheiro. E Valéria tomava banho, nua sob a água do chuveiro. Ele não resiste a olhar, fica um tempo vendo aquele corpo iluminado pelas águas e pelo sabão. Espumas e águas. Fecha a porta. Mortifica-se. Controla-se.

Tenta trabalhar em seu atelier, mas não consegue. Não vê “alma” nas esculturas de seus familiares. Destrói tudo. Mas no atelier se refugia: que faz ele? A curiosidade levou Valéria a abrir a porta quando o viu trabalhando na olaria. E descobre: ele está emoldurando em barro a própria Valéria. Desde então sabe: Bruno a ama como ela o ama. Grandes páginas do romance são escritas sobre a resistência religiosa, sobre o medo do pecado, sobre a idade de não mais se apaixonar…

Enquanto num nível da história se desenrola este vai-não-vai entre Bruno e Valéria, Verônica, a neta mais velha, comporta-se de modo “moderno” para um reacionário como seu avô. Visita o namorado, Carlos, um bancário da cidade. Frequenta seu quarto. Negaça mas se entrega. Depois disso, nos próximos encontros, Carlos já se torna afoito, não mais as carícias, os dedos, o fogo. Valéria

Aprenderia mais tarde, quando já não mais o amasse, ser impossível aprisionar um homem apenas com o anel do fogo do sexo, porque depois de saciado – e ainda que retorne milhões de vezes – é como um animal: desdenha as sobras e adormece.

Valéria e as irmãs veem novelas; veem a vida nas grandes cidades, as luzes. O horário sagrado da novela é também o horário do silêncio na casa: só falam as personagens enquadradas no écran, para o qual se dirigem olhos e ouvidos. Bruno reage. Não gosta da TV e sua modernidade. Não gosta sobretudo dos maus exemplos, de gente que casa e se descasa, de gente que se beija na frente de todos. Tudo uma vergonha para um leitor da Bíblia e frequentador do culto dominical.

No outro plano, aquele dos trabalhadores, Gabriel consegue ir-se impondo e vai-se tornando amigo dos companheiros. Um dia ajuda Mário a levar para casa seu pai, Arno Wolff, que apareceu na olaria bêbado. Na casa, vê a irmã de Mário, Neli. É com ela que sonhara a partir daí. Como ele não sabe ler, ela se oferece para lhe ensinar aos domingos… a proximidade está estabelecida. Tanto Mário quanto Erandi sabem o que eles ainda não sabem: vão namorar.

No que pode ser chamado de “conflito geracional”, precisamente Valéria, a neta cuja alma Bruno não conseguiu fixar em sua escultura, decide abandonar o namorado e a vidinha marrenta e mansa. Não quer para si o futuro da dona de casa frustrada. Avisa a família: vai para Porto Alegre estudar. E vai mesmo.

Bruno, que não gosta da televisão, às vezes, foge da casa:

A noite, de temperatura agradável, convidava ao passeio. Andou um pouco, detendo-se aqui e ali, fazendo hora, à espera de que passasse o horário das novelas, período em que as netas mantinham a televisão em volume insuportável. Noite após noite aquilo se repetia: casais se separando, casando outra vez, tornando a se separar, num carrossel de desregramentos, maus costumes, exemplo pernicioso para a juventude. Não entendia por que a censura permitia tais aberrações. Fosse pouco o tempo que as mulheres perdiam vendo aquelas bobagens, ainda comentavam capítulos e cenas no outro dia, previam novos acontecimentos, como se os personagens fizessem parte de suas vidas, como se fossem vizinhos de porta ou parentes. E ele obrigado a ouvir tudo, ou a fugir da mesa, comendo em horários diferentes. O deus de écran, o bezerro do século vinte, a desviar o povo do caminho verdadeiro, a destruir as bases morais da família.


Este trecho das reflexões de Bruno mostram como ele encarava a vida, que valores defendia. Ao mesmo tempo em que se debatia com o desejo pelo corpo da nora. Por fim, quando o telhado da olaria, numa queima de tijolos, pega fogo, ele entra varanda adentro, onde estava Valéria, a única que acordara com o barulho. Ela estava nua sob a camisola. Eles nem precisaram se falar. Entraram para o escritório do velho, e no sofá realizam o que vinham adiando há tanto tempo.

Depois do ato, Valéria deixou o gabinete silenciosa. E Bruno teria dormido, não fosse o latido dos cães que anunciavam a presença de alguém: era Arno Wolff bêbado mais uma vez. Bruno sai para noite. E ouve num assobio a valsa que seu pai, no violino, lhe tocava em sonho. Arrepia-se, confuso e culpado. Mas descobre: é o bêbado que grita “Uma valsa para Bruno Stein” e segue assobiando-a.

Bruno volta para dentro de casa, sem sono, passa pela sala, vê a televisão e resoluto dirige-se a ela e aperta o botão. Transmitiam um baile de carnaval.

Devia desligar o maldito televisor, destruí-lo – como fizera Deus com Sodoma e Gomorra – mas não foi capaz sequer de abandonar o sofá em que se deixava derrear, magnetizado pela sensualidade dos requebros das mulheres, pelo movimento incessante dos corpos molhados, desculpando-se com a alegação íntima de que talvez pudesse ver a neta divertindo-se no meio do salão.


Sem o saber, Bruno Stein acabara de acrescentar mais um prazer à sua já longa e atribulada existência.

Este final do romance simbolicamente não só representa a derrota do que pensava Bruno Stein, a vida e costumes que defendeu, os valores morais que se esvaíam quando o desejo aparece. Representa também uma vida outra, aquela que ele nunca teve e que a paixão de velho lhe trouxe. Também o prazer faz parte da vida… e a vida pode ser mais leve do que aquela que prega o Deus vingador da Bíblia.

Referência.

Charles Kiefer. Valsa pra Bruno Stein. São Paulo : Círculo do Livro, s/data.

Marielle em nós

Marielle em nós

Alguns assuntos me são caros, e por isso prefiro introduzi-los de forma leve, uma amiga disse que lembra uma conversa informal, de buteco – o que considero um elogio, e vocês o que acham?

Confesso que já inicio esse texto tendo os olhos marejados, são olhos pequenos, durante a maior parte da minha vida acreditei ter olhos enormes, talvez eles tenham diminuído com o passar dos anos. É possível! – dizem alguns, eu gostaria de pensar na diminuição de algo que me incomoda tipo: nariz. Quem me conhece deve ter pensando em barriga, e quero desapontá-los dizendo que ela não me incomoda, talvez, um pouco, às vezes, mas definitivamente não o suficiente para um texto sobre isso. Também não sobre meu nariz.

Sabia que experiências neurolinguísticas dizem que a maioria das pessoas parou a leitura e foi conferir se meu nariz era enorme? E, ao final pensaram: – não é assim tão enorme. Eu sei que não, outro dia explico sobre o nariz, por hora confesso que o fato de tê-lo herdado do meu pai me deixa mais feliz, aproxima-me do meu pai, e sinto-me feliz. Interessante pensar sobre isso, que as coisas vão tomando outra dimensão, formas, contornos e gostos a partir de nossas experiências, não necessariamente do tempo que passa.

Agora, o real problema era a boca. Sim, a boca era enorme. Muitas vezes ouvi da minha mãe que eu tinha que aprender a ouvir mais do que falar. Sei que não tratava da boca fisicamente, até por que essa herança é dela. Dizia que era melhor a gente se calar, mas seu exemplo nunca era esse. Fale, fale, fale. Se tiver certeza, vá até o fim. Na igreja ouvia sobre o silêncio de Maria. Entendia a expressão como: – seja resignada, virtuosa! Não deixa de ser interessante, uma estratégia boa se aplicada a: – Não jogue pérolas aos porcos. Ainda assim, a voz me é muito preciosa. (Já assistiram esse filme: Preciosa ?)

Libertar as vozes significa liberdade e paz. Todas as pessoas devem ter o que dizer, e todos os discursos merecem ser pronunciados, e escritos, e lidos. Sem isso, temos o apagamento da memória. Esquecer não é libertador, mas a compreensão sim. Não podemos viver com fantasmas e sombras de nossas memórias, tentando desesperadamente que elas deixem de existir. (Outro filme é Brilho eterno de uma mente sem lembranças, já viram?)

Na literatura policialesca ou mesmo de novelas e filmes, quando uma pessoa vai matar alguém, costuma dizer que vai silenciar.  É verdade, silenciando uma pessoa, outras tantas ficam sem ter narrativas que as representem ou mesmo que as inspire, em alguns casos até sem testemunhas, sem validação de argumentos. Quando a tentativa de silenciamento é mais cruel e brutal torna a vítima até um exemplo a não ser seguido, ou poderia ter o mesmo fim. Seria o silêncio afinal.

E todas as regras tem exceção. E periga mesmo é quando a excepcionalidade deixa de ser um desvio, e passa a ser a regra.

Assassinaram Marielle. Um ano. E não silenciaram sua voz, não silenciarão. Impossível não pensar na jovem, mulher, lésbica, negra, favelada, mãe, vereadora, socialista, empoderada, e com um sorriso nos lábios. Uma mulher que explicava com tranquilidade e doçura que temos direito de existir, de falar, de amar, de viver como bem entender.

Na noite que antecedeu seu assassinato ela vibrou sua voz perguntando até quando vão nos matar, ela não era uma exceção. Tinha que ser. Somos muitos. Muitas vozes.

Deixamos para trás os chicotes, os grilhões, os açoites, o navio negreiro, as noites ao relento, as faltas de direitos, a fome, o desamor, as ofensas, o preconceito, a negativa de dignidade, a brutalidade, a exploração, o desprezo, a invisibilidade do triunfo do mal. Deixar para trás não significa que ficou no passado a opressão, o racismo e todas as formas de intolerância, o sentido hoje é de liberdade.

Só agora entendo o real sentido da polifonia no discurso. Um discurso é atravessado por outros, tantos e mais, inclusive dos que se calam e se calaram por tanto tempo. E ainda teremos o dia-a-dia: notícias de mulheres mortas, vítimas de feminicídio, violência doméstica, jovens negros sendo dizimados, alijados do mercado de trabalho, com baixa escolarização, uma escola que não dá conta, herdeiros da exploração, felicitados por seus subempregos…  Morte na escola. Mortes.

E o vídeo circula na velocidade dos cliques atuais, todos veem os corpos estendidos no chão. Não são os meus filhos, não conheço seus pais. Então minha e a sua dor será uma dor quente. É a cena que meu olhinho registrou. Sinto-me invadida pela barbárie. Não é natural mesmo conhecendo as estatísticas. São meninos na escola. Meus alunos todos caberiam ali. Os que já foram e poderiam ser. Eles estão no chão e não dormem. Se fechar os olhos não consigo ter bons sonhos: Longe da armas, da violência,  do desamor.

Mataram Marielle.

– Até quando vão nos matar?

E aquilo que a gente não entende, e sem entender a gente sabe que faz sentido, é certo e exato. Nosso sangue é outro? Quase me perco nos meus traços negroides associados a outros fatores que me empurram para as margens: fora dos padrões de liberdade, fora dos padrões de felicidade. E são tantos noves fora que não sobra nada. Somos nada? Quem somos afinal?

E ouço ainda tantos passos junto aos meus. Sigo. Até que caminhando comece a se achar no outro, nas dores, nas perdas, nas lágrimas. Até que todos sejam nossos filhos e filhas, e não corpos estendidos no chão.