A presença do texto na sala de aula

A presença do texto na sala de aula

Da minha língua materna eu aspiro esse momento em que ela se desidioma, convertendo-se num corpo sem mando de estrutura ou de regra. O que quero é esse desmaio gramatical, em que o português perde todos os sentidos. (Mia Couto, 2004)

Nos dias atuais, pelos indícios que pipocam de vários lugares, é possível perceber que um movimento de recrudescimento da correção gramatical está em gestação. Ou se não, vejamos: (a) o sucesso momentâneo de Pasquale Neto com suas ‘dicas’ do bem dizer através da televisão; (b) o retorno das crônicas jornalísticas a propósito da forma correta de se dizer o que se quer dizer (aliás, espírito presente em nossos computadores que sublinham em vermelho e verde o que escrevemos, obrigando-nos a uma padronização insuportável); (c) a reclamação dos estudantes de letras a propósito dos cursos que baseiam suas reflexões sobre a língua em estudos linguísticos – são jovens e por isso têm maior sensibilidade ao que lhes é exigido pelo ‘mercado’ (2); (d) a proliferação das ‘franquias’ dos métodos, incluídos instrumentos e conteúdos, de cursinhos antes apenas pré-vestibulares e agora ‘orientadores’ efetivos dos processos de ensino pelos brasis afora, uniformizando e ignorando as diferenças regionais e locais; a língua há de ser uma e apenas uma de suas inúmeras variedades.

Estes indícios, do meu ponto de vista, estão apontando um recrudescimento das exigências de correção gramatical, o que também pode ser traduzido como maior exigência de silêncio da população que “não sabe falar corretamente”. É preciso afastar os perigos para que tudo, mudando, permaneça como sempre foi: que a norma definida pelos modos de falar de uma minoria se imponha como razão para silenciar uma maioria.

Em nossa prática histórica, a maioria da população somente contou, foi importante, quando se tornou necessária para reabrir os caminhos do exercício do poder de forma compartilhada pelos ‘membros da cidade letrada’, aqueles que falam bem, escrevem bem, dominam mais do que a língua. Quando estes são alijados do poder em tempos sombrios de ditaduras, eles se voltam para os modos populares de falar, falam como e com o povo para construir um movimento de derrubada da ditadura. Conquistado este objetivo, não interessa mais ouvis as vozes que falam ‘errado’, de forma ‘grosseira’; a ‘casa grande’ dos letrados volta a ter ouvidos sensíveis, a corte não resiste ao assédio do populacho. É preciso que ele aprenda a falar, para depois falar.

Nada mais pertinente, nestes momentos históricos, do que o recrudescimento das exigências gramaticais. Silencia e faz retornar à ordem (3). Nada mais pertinente do que exigir que a escola exerça sua função de refrear a língua, que ensine o bem falar e que faça isso através do ensino da gramática (misturando nesta, ao gosto da tradição, prescrições e descrições). A língua a aprender se torna estrangeira (ou estrangeira de sua própria língua se torna a grande maioria dos falantes).

Creio ser este o contexto dentro do qual devemos refletir sobre a presença de textos na sala de aula, tanto nas práticas de produção quanto de leitura e de reflexão sobre os recursos linguísticos mobilizados nas suas elaborações (4). Isto porque um ensino lastreado na produção e leitura de textos é diametralmente oposto àquele que, neste momento histórico, parece estar sendo clamado pelos membros da ‘cidade das letras’: escritores, comentaristas, a maioria dos professores, a quase totalidade dos jornalistas (atuais guardiões da língua) (5).

Antecipo, pois, o ponto de vista que norteará as reflexões que seguem: um texto não é produto da aplicação de um conjunto de regras e nem mesmo o conhecimento as características genéricas do texto a ser produzido são suficientes para estabelecer um conjunto de regularidades predeterminado que, uma vez obedecido, daria como resultado um texto adequado à situação, significativo e respondendo ao querer dizer do locutor (Bakhtin, 1992, p.300). Se a estrutura de uma oração pode ser resultado da aplicação de um conjunto de regras (6), um enunciado jamais se deixa produzir como resultado da aplicação de um conjunto de regras. Mesmo a estabilidade relativa do gênero é insuficiente para garantir ou oferecer um caminho de produção: há que se associarem o querer dizer do locutor, que sempre remete à relação com seus interlocutores, e o estilo próprio do sujeito que fala, isto é, suas escolhas dentre as estratégias de dizer disponíveis ou suas elaboração de estratégias novas resultantes da articulação que realiza entre o disponível e o novo.

Na elaboração do texto, a criatividade não é um comportamento que segue regras com as quais poderia construir um conjunto infinito de orações. A criatividade posta em funcionamento na produção do texto exige articulações entre situação, relação entre interlocutores, temática, estilo do gênero e estilo próprio, o querer dizer do locutor, suas vinculações e suas rejeições aos sistemas entrecruzados de referências com as quais compreendemos o mundo, as pessoas e suas relações. No texto, a uma criatividade aberta e infinita se contrapõem a finitude do momento e a concretude da situação. “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (Bakhtin, 1992 : 282). Por isso, é o texto o melhor lugar de expressão da dialética entre a estabilidade e instabilidade da língua. É por isso, também, que no texto se encontram os rastros da subjetividade, das posições ideológicas e das vontades políticas em constantes atritos.

Confessado o posto de observação, de imediato emergem perguntas: como poderia o texto, assim concebido, ser a base com que sustentar o ensino de língua materna? Uma base fluida, não redutível a regras, poderia efetivamente sustentar práticas de ensino? Como medir a eficiência deste ensino – questão essencial para o pensamento neoliberal – quando a fluidez de seu objeto necessariamente se impõe nos caminhos de seu ensino e se transporta para seus produtos? Talvez possamos expressar um paradoxo: a presença do texto na sala de aula implica desistir de um ensino como transmissão de um conhecimento pronto e acabado; tratar-se-ia de assumir um ensinar sem objeto direto; tratar-se-ia de não mais perguntar ‘ensinar o quê?’, mas ‘ensinar para quê?’, pois do processo de ensino não se esperaria uma aprendizagem que devolveria o que foi ensinado, mas uma aprendizagem que se lastraria na experiência de produzir algo sempre nunca antes produzido – uma leitura ou um texto – manuseando os instrumentos tornados disponíveis pelas produções anteriores.

  1. Um pouco de histórias dos lugares de construção das certezas

O retorno ao ensino da gramática pode produzir a tranquilidade de consciência que o paradoxo do ensino baseado em textos coloca para a escola e para a sociedade. Definidas as normas do dizer e definidos os conceitos com que descrever a língua, há um objeto a ser transmitido ou ensinado, em seu sentido tradicional. Há prescrições e descrições. Parece que hoje é esta tranquilidade que se busca, tranquilidade desejada e jamais confessada, porque é em nome de outras coisas que se pede o ensino da gramática: correção, competência, competitividade, produtividade e eficiência e, por fim, acesso aos bens culturais. Ou seja, volta-se a imaginar que de um conhecimento gramatical resulta necessariamente um bom desemprenho linguístico (7). Nossa questão pode ser resumida, então, numa dicotomia – um ensino baseado em textos ou um ensino baseado no conhecimento gramatical.

Gostaria de começar esta discussão procurando na história alguns elementos que possam ajudar por que estamos sempre às voltas com a questão do ensino gramatical. Talvez revisitar a história ajude a compreender esta constância de forma mais densa, já que ensinar gramática ou não ensinar gramática não é um dilema surgido nos últimos anos. Como sabemos, e às vezes esquecemos, este é um problema bem mais antigo e sua persistência revela muito mais do que um simples enfileirar-se de um ou de outro lado. Nesta disjunção, optar por um sim ou por um não é expor-se, por desvelar mais do que uma concepção sobre a língua (e a linguagem). Escolher um lado ou outro é também se filiar a diferentes concepções dos modos de pensar a vida social e as relações entre os sujeitos e de ponderar o peso da pressão do passado sobre o futuro.

É instrutivo lembrar certos pontos cruciais de nossas representações para ter presente a constância do problema que a linguagem é e aquilatar o peso da tradição em que nos movemos, tradição que encontra abrigo mesmo nos textos sagrados.

Podemos retornar ao mito de Babel (Gênesis, capítulo 11, versículos 1 a 9) para encontrar nosso dilema. Antes de Babel, todos se compreendiam? É o que a representação mitológica quer que admitamos; depois do ‘pecado’ do orgulho de querer tocar a divindade pelo engenho humano, o castigo: a diferença linguística aparece como pena imposta e repete materialmente a expulsão do paraíso. A diferença torna presente o pecado e seu castigo. Buscar a unidade linguística seria purgar o pecado e reencontrar a felicidade perdida. Se Babel introduz as diferentes línguas, introduz também um outro conceito: o de estrangeiro, cujo sentido somente pode ser composto pelo seu inverso, aquele que é natural, aquele que pertence ao grupo. Assim, a diferença linguística diz também quem é o estrangeiro: aquele que fala diferente. É o conhecido outro episódio bíblico (Juízes, capítulo 12, versículos 1 a 6): há que se pronunciar adequadamente shibolet para escapar da morte e mostrar o pertencimento ao grupo. A diferença identifica. Neste sentido, há dois movimentos paralelos e opostos: o sonho da unidade perdida e o convívio com a diferença.

Cheguemos mais próximos de nosso tempo. Podemos pensar sobre o mito de Pentecostes e o domínio das línguas na pregação que segue e que funda a cultura ocidental cristã em que nos movemos. Aqui, à diferença escapam apenas aqueles enviados em pregação: unidade de pensamento e de concepção na diversidade linguística ultrapassada pela intervenção do Espírito. A comunidade cristã se faz una em várias línguas, mas por breve tempo: a língua do império também se torna a língua de Deus e as celebrações rituais católicas somente forma conhecer as línguas vulgares muito recentemente. O tempo já não era de construir a unidade, mas de sobrepor à diversidade apenas uma língua – aquela do poder – para nela e com ela exercer o poder.

Neste tempo de estrita separação – uma língua suposta fixa e imutável para a religião e a ciência; outras línguas se festando na vida pública das feiras e das praças -, o acesso à cultura exige o aprendizado do latim, e para aprender o latim o caminho a percorrer implica conhecer sua gramática e seu vocabulário. Aprender a língua que não se fala tem sua ‘via-crucis’ na gramática e no dicionário. Mata-se a língua para dominá-la em seu esqueleto; domínio paradoxal, porque, posto em movimento o saber adquirido através do uso da língua, ressuscita-se a diversidade. Mesmo o latim das ciências e da Igreja não se manteve uniforme ao longo do período histórico de alguns séculos em que foi a língua privilegiada e dominante.

Na experiência histórica de aprender uma língua que não se fala, aprendeu-se um caminho para aprender: o estudo da gramática. Quando as línguas que se falam – as línguas maternas – tornam-se objeto de estudo, o modelo didático é aquele do estudo do latim, que acaba sobrepondo-se a outras possibilidades. É interessante observar a defesa do ensino da língua materna, antes de ensinar o latim, que desenvolve Comenius, por exemplo, em pleno século XVII.

Se surgiu a necessidade de ensinar uma língua para aqueles que a falam como língua materna, certamente é porque como a falam não se coaduna com a imagem de como esta mesma língua é ou deveria ser! E eis que, de fato, aparece a diversidade e reaparece o mito da unidade, agora de uma e mesma língua. Unidade que seria produto não do uso da língua – este sempre está a produzir estabilidades instáveis, mas produto do estudo da língua, da sua descrição e da definição de suas normas do ‘bem dizer e escrever’.

Pode-se defender que esta unidade responde à necessidade da comunicação entre os membros de uma mesma comunidade, espaço em que uma tendência à estantardização se constrói, exercendo sobre os falantes uma pressão no sentido da estabilidade das formas da língua. No entanto, a vitalidade da língua expressa-se no fato de que seu uso implica mudança: o retorno do estável é espaço de instabilidade. É este movimento constante entre estabilidade e instabilidade que torna a língua o que ela é: uma atividade com que organizamos nossas próprias experiências, sempre únicas e irrepetíveis, e compartilhamos os quadros instáveis de referências comuns onde o que é único adquire algum sentido. Da necessária padronização para a partilha, parte-se para uma divisão que institui o certo e o errado em termos de língua. Desliza-se do padrão para a norma. O padrão se fixa, se imobiliza, como se sua vocação fosse a esterilização da vitalidade da língua.

Nesse contexto e com essa história, cheia de matizes, é óbvio que nosso dilema “ensinar ou não ensinar gramática” aparece e se mantém constante, sempre a interrogar o que fazemos no ensino da língua materna. Em um sentido, ensinar gramática é ensinar as normas do padrão, na vã ilusão de que todos se adaptem a um só modo de dizer e na esperança iludida de que o padrão não se altere no tempo e no espaço. Trata-se de pressionar o tempo futuro – e o futuro dos falantes – com o padrão construído no passado, imaginando-o superior aos novos padrões que o tempo fará surgir.

Em geral, os novos guardiões da língua e de sua pureza equivocam-se num deslize que vai da padronização instável ao purismo linguístico. Quando um padrão é predicado como ‘certo’, como ‘correto’, já não se está mais falando da padronização que os falantes constroem para suas partilhas, mas se está falando da imposição imobilizadora do certo/errado, construída fora dos usos da língua, nas relações de poder.

Observe-se, pois, a existência de duas funções a que a gramática serve: enquanto escrita sobre a língua, procura regê-la e fixa-la para que, com base no passado, a instabilidade seja afastada e a unidade – retorno ao mito de Monos, da unidade pré-babélica (ao menos dentro de uma mesma língua…) – reapareça. Sujeitar a instabilidade, garantir a fixidez e, a partir daí, buscar a unidade perdida.

2. O texto: um pouco de história das instabilidades

Privilegiar o estudo do texto na sala de aula é aceitar o desafio do convívio com a instabilidade, com um horizonte de possibilidades de dizer que, em cada texto, se concretiza em uma forma a partir de um trabalho de estilo. E ainda mais: é saber que a escolha feita entre os recursos expressivos não afasta as outras possibilidades e que seguramente algumas delas serão manuseadas no processo de leitura.

Um texto é sempre uma possibilidade dentre múltiplas possibilidades, mesmo consideradas as constrições da situação em que é produzido. Não por acaso, a personagem de José Saramago de História do Cerco de Lisboa, o revisor, afirma que todo revisor sabe que um texto nunca está pronto e sempre pode vir a ter outra forma.

Ora, introduzir o texto na sala de aula é introduzir a possibilidade das emergências dos imprevistos, dos acontecimentos e dos acasos. Para escapar desta teratologia, há que cercar a introdução por cuidados de múltiplas ordens, para estabilizá-lo, fixá-lo e impedir sua adulteração significativa. O ideal, do ponto de vista da estabilidade paradoxal que a escola assume – ela, ao mesmo tempo, se diz formando para o futuro, mas faz isso forçando para que o futuro seja a repetição do passado – seria afastar de vez o texto da sala de aula. Mas isto é impossível por uma razão mais ou menos óbvia: o processo de fixação de valores demanda o convívio com discursos cujas materializações se dão nos textos; os valores e as concepções circulam através dos textos e, sem eles, a escola não cumpriria com uma de suas funções mais sofisticadas: a reprodução de valores com que compreender o mundo, os homens e suas ações. De um lado, o texto traz o perigo da instabilidade; de outro lado, o texto é um lugar privilegiado para construir estabilidades sociais. Não há escapatória: no ensino de língua materna o texto há de estar presente.

Como lidar, pois, com este objeto ímpar, necessário e indesejável? A título de ilustração, consideremos dois compêndios didáticos: a Selecta em prosa e verso, de Alfredo Clemente Pinto, cujo prólogo é datado de 1883 (manuseia a 40ª. edição, de 1930), e a Grammatica e anthologia nacional – 3ª. e 4ª. série, de J. Mesquita de Carvalho (editada em 1936, manuseio a 1ª. edição) (8).

A Selecta contém um prólogo, eloquente por si só no que concerne às funções que a leitura dos textos deve preencher. Como se trata de obra de acesso mais difícil, não resisto à transcrição de partes do prólogo.

Para além do que o próprio prólogo aponta no que tange aos aspectos de valores que nortearam a seleção dos textos, no que concerne à forma de linguagem e no que se refere ao uso a fazer dos textos – decorar bom número deles para adquirir dicção correta e elegante -, as notas de rodapé, acrescentadas aos textos, atendem a questões de várias ordens que merecem ser destacadas:

a) a grande maioria são de vocabulário, apresentando o sentido de palavras supostamente desconhecidas pelo leitor;

b) outras dão informações de ordem gramatical, para extrair uma norma e apontar um desvio aparentemente detectável no uso comum da língua, já que merece ser apontado: Ex. Proceder é verbo intrans. e exige um compl. regido da prepos. a. ex. proceder a um inquerito, á leitura da acta, etc., e não proceder um inquérito , a leitura da acta. (p.9)

c) há também observações sobre novas expressões: Ex: Todas entregues; todas aqui está em lugar de totalmente, completamente. Por attracção empregam os escriptores modernos em vez do adverbio o adjectivo todo, toda, todos, todas, concordando-o com o substantivo ou pronome; ex: Estava todo molhado; toda molhada, isto é, completamente. Elle era todo ouvidos. Ella era toda ouvidos. (p.. 26)

d) outras dão informações biográficas e bibliográficas sobre os autores dos textos.

Estas notas de rodapé e os objetivos apresentados no prólogo nos ensinam que esta presença do texto, aparentemente nem sempre na sala de aula, tem por objetivo tanto extrair normas quanto ideias do bem dizer. Inúmeros destes textos devem ter servido para leituras silenciosas e extra-classe; outros foram lidos em aula pela professora ou professor e depois, em voz alta, repetidos pelos alunos, lendo melhor quem melhor se aproximava da dicção da professora ou professor.

Outra forma desta presença é aquela apontada por Franchi (1088): o professor fazia mudanças no trecho de um autor e pedia que os alunos reescrevessem. Acertava quem, na reescrita, melhor se aproximasse do original. Muito mais recentemente, os textos têm sido ocupados para um exercício de pontuação: o texto original sobre a mutilação de seus sinais de pontuação e depois é apresentado ao aluno que tem a tarefa de pontuá-lo. Acerta quem descobrir a pontuação original. Como se pode ver, nestes dois últimos casos, as incertezas, as instabilidades são afastadas pela garantia que fornece o original!

Consideremos agora a Grammatica e Anthologia Nacional. Neste volume não há apresentação, e o livro se inicia com a apresentação do programa oficial das séries III e IV. Este compêndio se parece com os livros didáticos em circulação nos anos 1960/1970, mas os textos aparecem na ordem inversa daqueles dos modernos livros didáticos. Há uma lição de gramática; segue-se um conjunto de textos. Qual o uso previsto para estes textos? Certamente permanecem alguns ndos usos apresentados no prólogo da Selecta antes referida. Mas as pistas de manuseio deixadas no exemplar que estou manuseando são impressionantes. Não há observações ao estilo daquelas das notas de rodapé. Parece que o uso feito pelo estudante que manuseou este exemplar foi o de mostrar que aprendeu o conhecimento gramatical estudado imediatamente antes: noto, por exemplo, que o texto “O liberal e o magnânimo”, um texto de Aristóteles (p. 94-96), foi impresso com todas as ocorrências da palavra que destacadas, e a lápis o estudante escreveu qual a classe gramatical ou qual a função exercida pela palavra. Não é necessário dizer que este texto faz parte do conjunto de textos que segue à lição intituladas FUNÇÕES DO QUE (iniciada na p. 87).

Em outro estudo (Geraldi, 1991) apontei algumas das formas perigosas de entrada do texto para a sala de aula e certamente outras ainda podem ser apresentadas. Quando se aponta para o fato de que o texto tem sido um pretexto para o exercício de gramática ou para a ideologização do estudante, também se está apontando para a existência de outras possibilidades e certamente estas outras possibilidades foram exploradas, muito mais por alunos do que por professores. Muito mais fora da sala de aula do que em seu interior.

Conversando certa vez com um aluno da escola básica, ouvi surpreso que ele gostava muito do livro de português., só que ele imediatamente perdia a graça porque, ao recebe-lo no início do ano, lia todos os textos e depois era somente repetição. Os textos lhe interessavam, e deles fazia uma leitura não escolar, não autorizada, não de exercícios. E, ao ler, certamente operava com suas contrapalavras para construir suas compreensões. Do contrário, desistiria da leitura no primeiro texto da primeira lição, como se faz na escola, onde não há espaço para a contrapalavra do  leitor, já que ela pode trazer para a sala de aula a presença do acaso, da inexatidão, do fugaz, do possível, de que darei outro exemplo.

Tenho frequentado sebos, onde adquiro livros já manuseados. Há poucos dias encontrei, num destes sebos, o livro Os 422 soldadinhos de chumbo do Senhor General, do austríaco Rudi Böhn (uma edição primorosa da Editora Sophos Ltda, 2003). Os soldadinhos de chumbo, revoltados pela convocação semanal para uma guerra comandada pelo General Floriano Aragon de Albuquerque, elegem três representantes que saem da caixa escura em que são guardados e vão ao mundo em busca da resposta do porquê se fazem guerras e de um lugar para viver onde não existam guerras. Ao final do livro, nesta edição, há cinco páginas em branco. Na primeira delas, há quatro traços feitos com régua, como se fossem linhas. Em três destas linhas está escrita, em letra cursiva, à caneta esferográfica, caligrafia clara e pedagógica, a seguinte pergunta:

– O que você(s) colocaria(m) no museu para que ficasse somente na lembrança das pessoas?

A resposta, escrita a lápis, com letra infantil:

– As botas do general e a inveja.

A sequência “e a inveja” foi apagada. Uma resposta não desejada. Aliás, quando mostrei esta descoberta para um professor, imediatamente ouvi a admirada pergunta Como colocar a inveja num museu? No entanto, esta resposta indesejada mostra o nível de compreensão a que chegou o leitor: não basta guardar as botas do general ou o uniforme dos soldados nos museus. É preciso que uma das causas das guerras seja museificada, isto é, deixe de existir no mundo da vida. Provavelmente, a inveja motivou brigas de que participou este pequeno leitor. Ao trazer a vida vivida para a leitura do texto, ele está nos mostrando os perigos que a presença do texto traz para o funcionamento da aula: o texto abre as portas para o inusitado, para o mundo da vida invadir a sala de aula, para o acontecimento conduzir a reflexão, sem que os sentidos se fechem nas leituras prévias e privilegiadas com que os textos têm sido silenciados quando presentes na sala de aula.

É muito mais fácil e muito mais consoante com os modos de funcionamento da escola lidar com conhecimentos gramaticais. Mas mesmo quando se pretende um trabalho ‘científico’ de descrição deste objeto que é a língua, facilmente se desliza pra o prescritivismo: da descrição de uma estrutura linguística de um certo momento – por exemplo, de que uma oração normalmente se compõe de sujeito e predicado – extrai-se que toda oração deve ter sujeito e predicado. Ora, sabemos que hoje a estrutura da frase, no uso corrente mesmo jornalístico, já não obedece mais à estrutura sujeito/predicado, mas tópico/comentário.

Consideremos apenas alguns exemplos de boa intenção no ensino de gramática descritiva. Ensina-se a classificar palavras ou orações de um período e pretende-se justificar este ensino com a necessidade que têm os estudantes de aprender a classificar. O essencial do raciocínio classificatório, no entanto, é a aprendizagem da construção de critérios que servem de base para a classificação. Aprender a definição de uma classe e depois procurar exemplos desta classe é um exercício mecânico e normalmente de difícil resolução quando os critérios a partir dos quais as classes foram obtidas não é estudado. As gramáticas escolares, todas inspiradas na gramática tradicional, vão muito pouco além das classificações (há mais ou menos dois séculos, fazer ciência era classificar os objetos e processos, e hoje a ciência está longe de ser meramente taxonômica). Estudam um pouco de funções sintáticas, sem que o processo de construção sintática seja focalizado, de modo que o estudo das funções resulta novamente numa classificação dos componentes de uma oração ou período! De resto, quando vão além, caem na construção de normas!

Como todos os raciocínios que poderiam ser desenvolvidos no ensino gramatical podem ser desenvolvidos no ensino de outras disciplinas científicas, e como maior proveito para a capacidade de observação, abstração e generalização, pessoalmente considero o ensino de gramática, na escola, uma perda de tempo lastimável.

Em seu lugar, há muito para refletir sobre a linguagem e sobre o funcionamento da língua portuguesa, de modo a desenvolver a competência linguística dos já falantes da língua, permitindo-lhes um convívio salutar com textos e com a observação dos recursos expressivos postos a funcionar nos textos. Muito mais do que classificar, trata-se de perceber relações de similitudes e de diferenças. Nesse sentido, o que teoricamente se chama de atividades epilinguísticas são mais produtivas, até mesmo para o desempenho de um purismo linguístico – que Deus dele nos livre! Apenas para ficarmos no terreno extremamente produtivo do cotejo das diferentes formas de dizer alguma coisa a alguém, e das seleções entre estas variações que necessariamente as condições da situação impõem, pense-se por exemplo nas inúmeras formas de dizer em educação, importa pouco chegar ao que já foi, porque seu compromisso é trabalhar para se chegar ao que sempre estará por vir.

Notas

  1. Este texto foi elaborado com base em várias intervenções orais em cursos de formação de professores ou eventos a eles destinados em tempos passados. Escrevê-lo adveio do convite que me fez a organizadora do volume em que foi publicado, minha ex-orientanda de mestrado na UFMG. Do ponto de vista pessoal, observando os anos de publicação, nota-se que entre este texto e o texto anterior se passaram dois anos: foram os primeiros anos da aposentadoria em que, embora tenha permanecido vinculado ao programa de pós-graduação em Linguística da Unicamp, afastei-me bastante das atividades acadêmicas, por várias razões, entre outras a perseguição descarada que sofreram orientandos meus no programa, chegando ao ponto de um candidato ter sido aprovado com as melhores notas nas provas mas ser reprovado na entrevista depois de dizer que seria meu orientando. Cicatrizes permanecem, sempre. Desde que fui considerado “incapaz” de avaliar meus alunos, deixei de ministrar cursos e de participar de bancas no programa. Sinto muito particularmente pelo fato de a perseguição ter atingido de forma um tanto canhestra e monstruosa meu ex-orientando Lucas Oda, pelo simples fato de ter me escolhido como orientador num tema clássico [o amor cortesão]. Especialistas imaginam os outros como imbecis. Este texto foi publicado em Gláucia Muniz Proença Lara (org). Lingua(gem), texto, discurso. Entre a reflexão e a prática. Rio de Janeiro:Lucerna;BeloHorizonte:FALE-UFMG,2006, p. 13-29.
  2. Marinalva Vieira Barbosa (2004), em pesquisa realizada em três universidades, constatou que a maioria absoluta dos alunos dos cursos de Letras cujos currículos beneficiam os estudos linguísticos, em prejuízo dos estudos gramaticais tradicionais, concluem o curso insatisfeitos pelo fato de não terem ‘aprendido’ português, isto é, não terem aprendido as descrições tradicionais e as regras que permitiriam o exercício da correção gramatical sem qualquer dúvida a propósito de como se deve dizer.
  3. A manutenção do silêncio – em nome da correção – e a manutenção da ordem – em nome da globalização e da hegemonia de um pensamento único – são dois lados de uma mesma moeda.
  4. Para evitar desnecessários esmiuçares, vou assumir que todo texto é a materialização linguística de um discurso, cuja materialidade ‘sustenta’ os sentidos possíveis e aparentemente impossíveis. Aparentemente impossíveis porque no mesmo texto se cruzam outros discursos com os quais o texto se relaciona, dos quais se afasta ou dos quais se aproxima. No texto, o interdiscurso também se materializa, e as marcas que aí deixa é que permitem imiscuírem-se as contrapalavras, produzindo as instabilidades que o discurso gostaria de evitar, mas que não consegue porque os sentidos afastados estão presentes, permitindo este movimento constante entre a estabilidade e a instabilidade dos sentidos. O interdiscurso é possível porque a intercompreensão se sobrepõe a interincompreensão entre discursos.
  5. A propósito, ver as teses recentes de Cavalcanti (2006) e Mendonça (2006). A primeira analisa as posições puristas de jornalistas da Folha de S. Paulo; a segunda estuda o movimento purista desta virado do século.
  6. Como se sabe, nenhuma teoria linguística conseguiu até agora dizer quais são todas estas regras e muito menos formular um conjunto minimante aceitável de passagem desta estrutura da oração a um enunciado efetivamente produzido. São os enunciados, no entanto, que estão presentes no texto, o que não quer dizer que este seja o somatório de enunciados, já que cada um dos enunciados é elaborado tendo em vista o texto em produção como um todo, e é este todo que define inclusive os limites de cada enunciado que o constitui. Estou usando aqui a expressão ‘enunciado’ num sentido mais restrito do que aquele abrangido por esta expressão em Bakhtin, já que para o autor a expressão ‘enunciado’ tanto pode remeter à parte como ao todo: toda uma obra pode ser chamada de ‘enunciado’ por Bakhtin; mas também uma parte componente de uma obra é chamada pelo autor de enunciado. Ao todo estou chamando de texto, enquanto materialização de um discurso (ver nota 4); às partes menores em que podemos dividir este todo, mantida uma unidade interna, estou chamando de enunciados.
  7. Incluo como ‘conhecimento gramatical’ o reconhecimento das características dos gêneros discursivos, trabalho que desliza com facilidade da relativa estabilidade dos gêneros à sua fixação por características de exemplares do gênero tal como foram produzidos no passado. Infelizmente, muitos dos trabalhos com base em gêneros discursivos, tomando Bakhtin como fonte de inspiração, seguiram a tradição dos estudos da linguagem: definir as estabilidades, esconder as instabilidades e fixar a questão do gênero em sua composição formal, esquecendo que esta, ao se deixar penetrar pela vida, desestabiliza-se. Trata-se aqui, sempre, de uma opção de ordem política: escolher entre o estável e o instável é projetar um futuro, sob pressão do passado, experiência que é preciso suplantar. 
  8. Os dois volumes, encontrados em sebo de Campinas, pertenceram a Juracy Ferraz Valente, pela assinatura constante nos dois exemplares. Pelas assinaturas, aparentemente as posses se deram numa mesma época. De qualquer forma, eles forma manuseados por um mesmo sujeito.

Referências

Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Barbosa, Marinalva Vieira. Entre o sim e o não, a permanência – o discurso do graduando em Letras sobre o ensino da língua materna. Dissertação de mestrado em Linguística, Unicmap, 2004.

Carvalho, J. Mesquita. Grammatica e anthologia nacional – 3ª e 4ª série. Porto Alegre : edição da Livraria do Globo, 1936.

Cavalcanti, Jauranice Rodrigues.No “mundo dos jornalistas”: discursividade, identidade, ethos e gêneros. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp, 2006.

Couto, Mia. Luso-Afonias – a lusofonia entre Viagens e Crimes. Questão, n. 1. Faro : Universidade do Algarve, 2004.

Franchi, Carlos. Criatividade e gramática. São Paulo: CENP/SEcr.de Educação do Estado de São Paulo, 1988.

Geraldi, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

Mendonça, Marina Célia. A luta pelo direito de dizer a língua: a linguística e o purismo linguístico na passagem do Século XX para o Século XXI. Tese de doutoramento em Linguística, Unicamp, 2006.

Pinto, Alfredo Clemente. Selecta em prosa e verso dos melhores autores brasileiros e portuguezes. 40ª.  Ed., Porto Alegre : Livraria Selbach de J. R. da Fonsenca & Cia, 1930.

Ler e escrever enfim

Ler e escrever enfim

O fazer literário é algo terrível. O não fazer é ainda mais terrível.
Escolho. Isso é tão novo para mim, é preciso sempre me esconder e revelar aos poucos. Tenho medo. Essa coisa toda de mulheres negras. Cenários e espaços de fala, e muitas vozes e vezes se somam. Interessa-me mais aquelas, as que não alcanço. Não há desprezo nenhum nisso.
Leio interessante artigo de uma jovem negra, na verdade são duas: Raquel(Santana) e Carolina(Moraes), escreveram sobre o relatório da organização Internacional do Trabalho sob a ótica do direito trabalhista e a interseccionalidade de gênero e raça. O artigo a que me refiro chama 8 de março e o centenário da Organização Internacional do Trabalho. Números sempre escandalizam, fosse eu pesquisadora estaria em frangalhos, querendo entender o que querem dizer, muito embora eu saiba que os números não traduzem as narrativas, que conheço em minhas e de outras experiências.

“Se, por um lado, a conclusão do Relatório é no sentido de que a dedicação ao trabalho doméstico não remunerado influencia na qualidade dos postos de trabalho ocupados pelas mulheres, por outro, chama atenção que, no Brasil, segundo dados de 2011, enquanto mulheres brancas eram remuneradas com 70% dos valores médios da remuneração masculina, as mulheres negras auferiam o rendimento médio de 29,1% desses mesmos valores. E ainda, essas mulheres negras são as que mais ocupam profissões historicamente precarizadas, tais como o trabalho doméstico remunerado, no qual, conforme dados de 2015, a proporção de mulheres brancas que são empregadas domésticas é de 10,3 para 18 de mulheres negras.” (texto disponível na integra em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/8-de-marco-e-o-centenario-da-organizacao-internacional-do-trabalho-26032019)

Preciso alcançar aquela menina que fez um teste, prova para concorrer a uma vaga, mas fora barrada pelo cabelo armado (quem dera), pelo nariz largo, de pele retinta ou mesmo mestiça, aquela jovem exótica que não atende ao padrão do mercado. Das mulheres que cuidam das filhas e filhos de outros enquanto negligencia aos seus. Entregues a própria sorte de um estado cada vez mais omisso. Reescrevem a navalha que a carne mais barata do mercado é a negra, no mercado pós-escravagista.
São dados atuais… dados lançados numa mesa de jogatina. É sorte da conjuntura, e o azar que pode ser prorrogável por mais tempo do que aguentamos. Aguentar é uma palavra bastante forte, parece mesmo à imagem de um fio que se estica até que se arrebente fio a fio, e mais um, outro, e ainda outro e até que sobre apenas um, que de tão fino, quase invisível – tais quais nossas histórias.  
E me vejo relendo Carolina de Jesus.
Outrora posso construir uma narrativa em que alguém, mulher e negra, sem tantas oportunidades, precisa limpar a sujeira dos homens e mulheres brancas como Bettina – que acumulou um rico patrimônio investindo em ações, e recebendo pomposas doações de incentivo do pai.
Eu disse limpar? Queria dizer catar. Eu gosto da catadora. Papéis e leituras tão imbricados que parecem mesmo uma coisa só. Aquilo que botamos fora, um lixo. Descartável.
Carolina, escritora primorosa, negra e favelada, que o diga. Em seus relatos e compreensões da vida, surgem intercaladas mãe, fome, apreensões da vida, política, exclusão, crianças, fome, analfabetismo e a fome. Sim, citei fome duas vezes anteriormente, é o desejo de intensificar essa sombra que está em todo texto de Quarto de Despejo.
Revisito essa obra prima, e cada leitura é uma nova que se faz em outras possibilidades e olhares. Um trecho que antes não me marcava, mereceu destaque no meu caleidoscópio, trata de uma intimação para que ela comparecesse a delegacia, e uma vez lá, em diálogo com um policial/ delegado, ele fala da educação de seus filhos e conclui que educação pode transformar a vida das pessoas, ao que ela concorda, mas vai além e pensa que ele deveria dizer isso aos políticos e não a ela, e finaliza a sua reflexão relacionando-a fome.

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.”

É interessante que a autora tida como semi-analfabeta, escreve e lê como poucos. É por isso mesmo que é um tanto prazeroso fazer a leitura de seus diários, e ver a ótica de uma intelectual negra a respeito do seu fazer literário e de sua vida.
A autora entende as frustrações das mulheres, as opressões. Relata cotidianos de desventuras que arrastam para vícios, violências, marginalidades, e morte. Errado pensar que ela estabelece julgamentos sobre essas questões, seus relatos muito mais do que um pedido de socorro, minto, não são um pedido de nada, esmola era outra coisa, seus textos são tentativa de organizar seu pensamento, e fazem-se denúncias de várias situações de invisibilidade.
À medida que vamos lendo, somos transformados no quarto de despejo. Talvez só os negros, talvez só os pobres. Não sei ao certo o significado deste cômodo nas casas pelo Brasil, a mim parece-me um quarto escondido, onde depositamos nossas sobras, rejeitos, quinquilharias e aquilo que ainda não podemos/queremos jogar fora. Tem uma passagem da narrativa que somos submersos nessa realidade de desumanização das pessoas, vejamos:

Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava descontente que até cheguei a brigar com meu filho José Carlos sem motivo.
…Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganância de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados.
Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monótono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas:
– Hum! Tá gostosa!
A dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.
 
Ao revelar seu entendimento, que não é pouco, sobre a organização econômica e seu papel diante das misérias, torna impossível que quem lê não se sinta incomodado com a sociedade que permite tais condutas, e conclui ambiguamente que está podre.
Na trajetória de seus relatos vamos experimentado um pouco de tudo: a tentativa de calar a mulher negra – que não é pra casar –, a maternidade dos filhos bastardos, a estranheza da erudição, o assédio sexual, a objetificação do corpo negro e a recorrente amargura e desespero pela incerteza do futuro e sobrevivência, dia após dia.

“Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que Ele ficou de mal comigo?”
 
Não estamos de mal, outras vezes estamos mesmo. O bem e o mal de cada um, quando renunciamos aos nossos textos, nossas dores, nossos silêncios. É o mal que esvazia tudo, e eu consegue fazer compreensível que uns tenham fome, não me refiro àquela que alimenta a poesia, ou a escritura, mas a que nos torna insignificantes e devastados. O bem eu não sei mesmo. Talvez um desejo e um querer. E existe vida, e nossos filhos e dos outros, ah, as crianças! E assim, seguimos.
Eu sei que meu fazer não é grande literatura, já me disseram isso. Muitas vezes e vozes. E o meu mal é que não escuto sempre.

trechos extraídos de JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. 9ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2007, (Sinal Aberto).

Preparando Suzano

Preparando Suzano

O mar, em nossa pequena praia, murmureja. Como não sou parte do “povo das águas”, escuto mas não compreendo o que o mar tem a me dizer. Somente percebo o marulhar calmo: Barequeçaba é uma praia de raras ondas, quase uma piscina com águas que morrem na areia. E uma areia dura, boa para caminhar, plana: as caminhadas podem ser de tênis. Eu ponho o pé n’água: preciso que ao menos um pouco de litium me entre pelos poros, já que o mar é uma bacia de litium, mas mesmo morando cá, continuo eu às voltas com minhas receitas dos controlados.

Caminhar pela praia permite captar cenas. Particularmente porque esta é chamada uma praia de velhos e crianças. Muitos avós com netos; mas também muitos casais novos com seus filhos mais novos, novíssimos. Alguns nem andam, outros recém ensaiam os primeiros passos – todos vão para a água.

Noutro dia encontro pai e mãe encorajando uma menina de seus 2,5 anos a enfrentar a areia molhada, pisar com todo o pé: ela caminhava na ponta dos pés e os pais incentivavam para que pusesse todo o pé “no chão de areia molhada”. Como pais, ensinando a voar com os pés no chão, firmes, inteiros.

Mas há cenas que acabrunham. Verdadeiros abracadabras. Cenas de terror.

Falo de uma do último domingo, quando a praia recebe o que aqui chamam de “turista”: os donos de casas de veraneio e seus convidados ou seus inquilinos – afinal, o mar não está para peixes nestes tempos bicudos e a classe média que votou para que tudo isso fosse o que é, agora põe placas de “aluga-se para fins de semana e para temporada” em frente às casas, algumas delas com placas no alto dizendo “Presente de Deus”. Tudo indica que os votos não levaram deuses ao olimpo do Planalto, somente pó de traque dos gritos insistentes de MITO, MITO, MITO. Escafedeu-se. Agora alugam as casas.

Pois neste domingo a praia tinha movimento – aqui, nem na alta temporada a praia fica cheia. Faço minha caminhada. Me chama atenção um menino feliz pulando supostas ondas, atirando-se na água, voltando para areia. Brincava sozinho e em rebuliço. Ria.

E riso traz outros risos. Na volta já encontro no mesmo espaço, não um menino feliz, mas vários mais ou menos da mesma idade, entre 3 e 4 anos, brincando juntos, correndo um atrás do outro, jogando-se na água, rindo, felizes.

De repente vejo uma mulher vindo em passos apressados para perto dos meninos. Enxergo ainda de longe. Ela trazia algo nas mãos. Imaginei: vai estragar a brincadeira, vai levar o filho para um suco qualquer. Mãe estraga-prazeres.

Chegamos mais ou menos juntos, ela vindo na vertical, eu caminhando na horizontal. Então assisto o horror: ela trazia uma metralhadora cuja bala é água. Entregou ao filho para que brincassem com os amigos. Já trazia a metralhadora carregada. O menino pegou o brinquedo, arremedo do símbolo do mal, e começou a “atirar” nos amigos. Desapareceu o sorriso: ele sério, estava brincando de matar. E matar é coisa séria. Os amiguinhos corriam, caiam n’água e ele gritava: matei, matei! A mãe aplaudia a seriedade da morte que seu rebento agora causava em amiguinhos assustados. Quem sorria não eram mais as crianças, era a mãe. Os meninos desarmados fugiam, o matador, sério, matava!

Interrompi a parada… não queria mais ver o que antes alegrava minha passagem. Continuei rumo ao fim da praia, junto ao morro que a cerca pela esquerda – há outro à direita, não se preocupem. O da esquerda, habitado e habitável; o da direita inabitado e inabitável.

Mas não pude deixar de pensar: A MÃE PREPARA SUZANO. A mãe, por acaso. Poderia ter sido o pai, que provavelmente comprou o brinquedo para a praia.

Tragédias são sempre construídas pela vontade dos homens e das mulheres. 

D. Gaifeiros

D. Gaifeiros






– Minha mãe, faça-me a ceia, depressa, não devagar,

qu’ eu tenho uma aposta feita ou de perder ou de ganhar.

– Não apostes, ó meu filho, deixa-te de apostar,

Mariana é muito fina, não se deixa enganar.

– Pelo modo que há-de ser, ninguém no há-de pensar:

hei-de me vestir de madama, ao jardim vou passear.

– Oh, que dama é aquela no jardim a passear?

– Sou filha de tecedeira, fiado venho buscar.

– Esse fiado, menina, ‘inda ‘stá por dobar.

– Doba, doba, Mariana, depressa, não devagar,

é noite, faz escuro, tenho muito para nadar.

– Também tenho bons cirados para a ir acompanhar.

– Nos criados da menina há bem pouco que fiar.

Doba, doba, Mariana, depressa, não devagar.

– Também tenho boas salas para a menina ficar.

Também tenho bons colchões para a comigo deitar.

A dama, de contente, à noite não quis cear.

Por essa noite fora, Mariana começou a gritar.

– Não grites, ó Mariana, não te queiras defamar,

que eu sou um rapaz solteiro para contigo casar.

‘Inda para mais certeza sou conde de Montalvar.

Logo nessa mesma noite à venda se foi gaber.

– Enganei a melhor donzela que havia em Portugal,

Onde estavam três irmãos, ficaram logo a pensar.

– Seria nossa Mariana? Não havia outra igual…

Onde ‘stava o irmão mais velho: – Vamo’ nós a queimá-la?

Onde ‘stava o irmão chigante: – Vamo’ nós a degolá-la?

Onde ‘stava o irmão mais novo: – Vamo’ nós a dotá-la?

Um bom dote suprimidinho… não faltará com quem casá-ça.

Mariana que isto ouvia, logo se pôs a chorar.

– Quem me dera um irmão que me ele fosse leal!

Que me fosse levar esta carta ao conte de Montalvar!

– Avia-te, ó Marian, depressa, não devagar.

Jornadinha de três dias eu n~u1 hora a hei-de andar.

– Se ele estiver a jantar, deixará-lo acabar;

se ele estiver a dormir, deixará-lo acordar;

se ele andar a passear, a carta le irás entregar.

– Oh, que menino aquele, que tão bem sabe falar!

– Sou irmão de Mariana, que ela lá vai a queimar.

– Tanto se me dá que a queimem, como deixem de queimar,

Tenho pena do ventre dela, que leva sangue real.

Venha daí, minha mãe, conselhos me venha dar,

para acudir à Mariana, qu’ ela lá vai a queimar.

– Meu filho, veste-te de padre, ao caminho a vai esperar;

p’lo motivo que ela der, já a podes experimentar.

– Ó justiça, ó justiça, ó justiça general,

onde levam na menina tão nova por confessar?

Confesse-se, ó menina, faça confissão geral,

no meio da confissão um abraço me há-de dar.

[….] Que eu da morte a hei-de livrar.

Confesse-se, ó menina, faça confissão geral,

No meio da confissão um beijo me há-de dar.

[….] Que eu da morte a hei-de livrar.

– Não permita Deus do céu, nem nos santos do altar,

abraços  que conde abraçou não é para frades abraçarem.

Não permita Deus do céu, nem nos santos do altar,

boca que conde beijou não pe para frades beijarem.

– Tire o anel desse seu dedo que a vai a condenar.

– Tanto se me dá que condene, como deixei de condenar,

onde quer que eu for morrer o anel há-de acabar.

Por esse bulir de beiços, por esse meu lindo falar,

assim me está parecendo sê’ lo conde de Montalvar.

– Venha daí, ó menina, o cmainho hemos de andar,

que venham agora seus manos, se a quiserem matar!

(versão de Medrões (concelho de Santa Maria de Panaguião), distrito de Vila Real)

(Referência: Pere Ferré. Romanceiro português da tradição oral moderna. Versões publicadas entre 1828 e 1960. Vol. I  Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2000)

Ao revés do avesso. Leitura e formação, de Luiz Percival Leme Britto

Ao revés do avesso. Leitura e formação, de Luiz Percival Leme Britto

Neste livro o autor reúne textos de um longo período de reflexão sobre a leitura: o mais antigo deles datado de 1988, e o mais recente de 2015 (ano da publicação deste livro). São quase trinta anos de dedicação ao tema da leitura e da formação de leitores. Para compor o livro, o autor revisa, reescreve e amplia os textos, dando-nos notícia de suas publicações e também de sua militância, já que muitos destes textos forma escritos para participação em eventos no Brasil e no exterior.

Não cabe aqui tentar um resumo de cada texto, o que seria inócuo. Na verdade, somente lendo cada um deles, no seu conjunto ou separadamente, debruçando-se na atitude de escuta responsiva, atenta, estudiosa e curiosa o leitor terá, efetivamente, as vantagens de compreender toda uma teoria da leitura e de uma posição pedagógica.

Prefiro aqui salientar algumas permanências em todos estes estudos:

  1. A defesa da leitura como um processo de produção de sentidos na relação entre texto/leitor, condicionado o processo às condições que fornece o próprio texto (“… o texto guarda o leque de significações possíveis – ilimitadas e definidas. Em qualquer época ou lugar, dentro das relações discursivas específicas, ninguém poderá ver elefantes invadindo uma aldeia quando de fala de baratas ocupando um apartamento.”).
  2. A defesa de que todo processo de formação não só demanda um formador, mas também uma atividade interferente deste, através do ensino, para que a formação se dê (“…Essa educação tem de ter atitude, fazendo-se propositiva sem ser autoritária, reconhecendo em cada participante suas potencialidades e limitações, fugindo dos discursos fáceis e cativantes do relativismo cultural e da adesão tranquilizante ao já conhecido”).
  3. A defesa de que é função precípua da escola o trabalho com conteúdos – o conhecimento acumulado, nossa herança cultural (“… a escola tem de ser percebida e realizada como um espaço privilegiado de reflexão e organização de conhecimentos e aprendizagens, de aprofundamento e sistematizações do conhecimento e tem de ser o lugar do pensamento desimpedido, descontextualizado, livre das determinações e demandas imediatas da vida comezinha; o lugar, enfim, em que a pessoa, reconhecendo-se no mundo e olhando para o que a cerca, imagine o que está para além do aqui e agora.”).
  4. A recusa constante da submissão ao pragmatismo, à adequação ao existente, ao imediatismo tanto da educação como um todo quanto da leitura especificamente (“E se te interpelarem, quando te virem com um livro na mão, que isso não serve para nada, responde: É, eu leio por isso mesmo… e seria bom que todo mundo também pudesse fazer assim.”).

Estas teses, entre outras, e suas implicações, constituindo um conjunto aberto de “princípios” e ao mesmo tempo de indicações de interferência formativa, são apresentadas e sustentadas em argumentos extraídos tanto dos estudos linguísticos e literários quanto dos estudos sobre a educação. Frequentemente aparece um locutor outro, a que se atribui a defesa de pontos de vista contrários, e a que toda a argumentação responde, reduzindo a fala atribuída a este locutor ora a um pragmatismo de adequação dos sujeitos ao regime, tornando-os consumidores entretidos com livros nas mãos sem qualquer vislumbre de superação do vivido [e aqui ganham relevância os programas de promoção da leitura, ainda que bem intencionados]; ora a um desleixo pedagógico com os conhecimentos científicos em benefício do sabido na vida, os saberes não sistematizados; ora a um fazer pedagógico sem ensino, lastreado apenas na ‘aprendizagem’ livre e espontânea. Teses atribuídas nem sempre correspondem às pedagogias implicitamente referidas pelo emprego de certas expressões-chaves presentes nestas posições pedagógicas. Tomemos disso um exemplo: diz o autor, refenciado em Saviani, “…a educação escolar verdadeiramente popular, emancipadora, formativa, terá como eixo conteúdos e métodos”. Aqui o modificador adverbial “verdadeiramente” [a outra voz não é voz da “verdade”] seguido de duas expressões típicas da pedagogia paulofreirena dá a entender que esta, porque leva em conta os “saberes”, deixa de lado os conhecimentos sistematizados pela ciência. Nada mais falso. Aliás, se assim fora, para que alfabetizar quem já porta saberes, se é para ficar neles? Para abrir que portas vem a alfabetização? A escolaridade?

A propósito vale retomar parte de uma epígrafe de Ítalo Calvino em Sob o sol-jaguar, em que o autor cita o Dizionario dei sinonimi, de Niccolò Tommaseo: “… sapio, para os latinos tinha o valor de sentir retamente, e portanto o sentido do italiano sapere (saber), que equivale a doutrina reta, e a predominância da sapiência sobre a ciência”.

Walter Benjamin disse que a sabedoria [sapiência] é o lado épico da verdade. E ela vem, ela advém somente quando os conhecimentos sistematizados são articulados com a percepção do contexto e com a imaginação de outros contextos sociais possíveis, entre os quais se inclui o respeito à natureza, por exemplo.

A correta crítica ao não diretivismo em educação, que no campo da leitura implicaria a escolha ‘livre’ do que ler – escolha que qualquer um sabe limitada e condicionada inclusive pelo que é acessível a grande parte dos leitores – faz imaginar que o professor, neste processo, é mera testemunha muda, surda e cega. Não conheço proposta pedagógica assim tão desleixada, para dizer o mínimo.  Até a escola de Summerhill continha delimitações de acessos que produzem uma diretividade imposta aos seus alunos. A pedagogia Freinet, também acusada de não-diretiva, em função de sua organização por ambientes de aprendizagem e suas oficinas, é tão diretiva que em cada espaço os alunos devem elaborar um projeto e cumpri-lo, sob o olhar atento e perquiridos do professor freinetiano.

Uma direção na formação do leitor como aquela defendida aqui por Luiz Percival Leme Britto aponta precisamente para a formação do “sábio”, não do repetidor da herança cultural. Esta somente faz sentido, no conjunto dos textos que formam esta coletânea, como alavanca para ir além, para o ainda não posto, para o ainda não existente. E isto somente se conquista no tempo, na necessária descontextualização do vivido prático e pragmático. Pensar a escola como este espaço é recuperar um sentido de “pedagogo” a que temos dado pouca atenção: o “pedagogo” grego conduzia a criança ao ginásio, à ágora, aos espaços onde se aprende porque nele estão formadores que sabem e ensinam. Em geral demos atenção ao “conduzir”, esquecendo que o pedagogo sai para fora do ambiente familiar, para fora da casa, que leva para além do vivido cotidiano, do comezinho da vida familiar. Na palavra “pedagogo” estão condução + ‘libertação’ do já dado, da casa, do conforto doméstico. O pedagogo leva para fora.

Ainda uma palavra sobre a radicalidade assumida particularmente no texto Máximas Impertinentes. Na luta contra uma pedagogia da facilitação, de uma pedagogia da adequação ao estabelecido, de uma pedagogia pragmática que repete o já dado, de uma pedagogia da leitura como entretenimento, o autor acaba por produzir um conjunto de máximas “impertinentes” porque mexem com o que se costuma fazer, com o que se faz. No entanto, duas destas máximas merecem reparo, porque estão em terreno contrário ao que se defende ao longo dos demais textos.

Refiro-me a máxima: A leitura não é boa nem má – leitura é leitura. E a uma segunda máxima que lhe é decorrente: A leitura não salva nem condena – A leitura é. Embora estas máximas sejam seguidas de explicitação em que o autor tenta dar os sentidos ao que a máxima condensa, não consegue escapar da metafísica própria à condensação que elabora. A tautologia “leitura é leitura”, que esquece a tese de que “ler é verbo transitivo”, segue a fórmula do catecismo, da crença, da impossibilidade da explicação, restando apenas a aceitação. A fórmula vem de “Eu sou aquele que é”… O mesmo se dá em “a leitura é” que pretende se contrapor ao “salvacionismo” pela leitura. A fórmula no catecismo aparece como “Deus é”. O inefável, o inexplicável. A leitura, como mostram todos os demais textos, não é inefável, não é inexplicável, não é auto-definida: ela sempre está no meio de um contexto de que poderá – o que não quer dizer que fará – libertar o leitor.

Por fim, uma palavra sobre o estilo destes textos. É impressionante como desde o mais antigo texto aqui presente – de 1988 – até o mais recente – de 2015 – a clareza, a pertinência do vocábulo, a construção sintática elaborada mas compreensível: um estilo assim libertado do academicismo que esconde insegurança e falta de radicalidade toma o leitor, prende e faz com que ao final de cada texto ele fique querendo mais sabendo que o autor, como disse Proust (Sobre a leitura) sempre nos dá o que tem para dar, cabendo ao leitor ir além para reconstruir com o que lhe deu o autor suas compreensões. Outro aspecto que merece destaque: o autor é um leitor que nos faz circular pela literatura que sempre vem à tona. Neste sentido, minha anotação ao final do texto que abre a coletânea (A arte de ler, a arte de viver), anotação consequência do impacto do texto foi: “Poesia! Em “estado poético”. Lembrava aqui, com “estado poético”, o que ensina Edgar Morin em Amor Poesia Sabedoria: trata-se de êxtase”, do estar muito além da prosa da vida cotidiana.

Ler este livro de Luiz Percival Leme Britto é ler sobre a leitura em estado de êxtase, levado pela mão do autor a reflexões inusitadas, a percepções outras do que se vive, à elaboração de outros projetos de atuação como professor.

Referência: Luiz Percival Leme Britto. Ao revés do avesso – Leitura e formação. São Paulo : Pulo do Gato, 2015.

Avaliação: gestos necessários, por Corinta Maria Grisolia Geraldi & João Wanderley Geraldi

Avaliação: gestos necessários, por Corinta Maria Grisolia Geraldi & João Wanderley Geraldi


…tudo o que há de considerável foi criado não por aqueles que tomavam consciência de si como continuadores da tradição existente ou como iniciadores de nova tradição, mas, sim, por aqueles que sabiam se ligar com a tradição do passado esquecida e perdida, desviando-se do presente próximo e renunciando a ele (e este ‘próximo’ pode contar milênios). (Mikhail Bakhtin (2))

A avaliação tornou-se assunto da moda, do presente próximo. De toda a política educacional neoliberal, esta é a mais visível: torna-se notícia das páginas dos jornais e revistas, repercute nas entrevistas com autoridades e especialistas os mais diversos. Entre nós brasileiros, ganha manchetes logo após computados os escores de qualquer das diferentes provas, provões, ENEMs, SAEBs, PISAs e o que mais for. A elite mostra-se nervosa, mas os resultados, como notícia, mantêm-se no ar (ou nas superfícies do papel ou dos nossos monitores) por poucos dias. Nada há de mais antigo, para a ânsia de novidades, do que a notícia do dia anterior. Os resultados, espetacularizados, desaparecem como fumaça, mas retornarão, ciclicamente, chegados os momentos oportunos das novas avaliações. E aos ciclos, avanços e recuos, vamos todos nos acostumando às notícias e aos baixos escores atingidos pela educação brasileira.

No triângulo de ações sobre o qual se alicerçou o projeto e a ação educacional do governo neoliberal (3), a política de  avaliação é a pedra de toque, o ângulo do alto, o ponto de sustentação para construir uma certa qualidade para a educação brasileira. Como mostraram os programas desenvolvidos nos últimos anos, a formação de professores e a distribuição de livros didáticos, implantada na forma de produção privada, e avaliação, adoção e compras públicas, constituem-se nos outros dois ângulos deste triângulo.

Na formação do professor, esta década viu emergir a exigência do nível superior para todos os profissionais da área, mas ao mesmo tempo assistiu, espantada mas não inerte, a tentativa de excluir a Universidade do processo de formação do magistério, em benefício dos Cursos Normais Superiores, em centros e faculdades que se multiplicaram por todo o território nacional, numa expansão nunca vista de oferta privada de ensino superior. Ao mesmo tempo, a rede pública de ensino superior se viu desbaratada, sucateada e, sobretudo, internamente privatizada: a sobrevivência de institutos, núcleos ou grupos de pesquisa cada vez mais depende da obtenção de recursos extraordinários, na forma de ‘fomento’ a pesquisas de excelência ou de bolsas de produtividade para realizar aquilo que se deve realizar (numa mal disfarçada meritocracia que afaga ‘o ego acadêmico’ de avisados ou desavisados pesquisadores) ou de convênios que transferem para a academia  ‘pesquisas’ sob encomenda, dispensando as empresas de terem seus próprios laboratórios, infraestrutura e pesquisadores de modo que a Universidade se torna uma prestadora ideal de serviços terceirizados.

O fecho do cerco, na formação de professores, ainda não foi totalmente afastado: abertas às comportas da formação superior, caça-níqueis distribuídos pelo território nacional, reaparece a avaliação, através de um programa de Certificação por enquanto afastado pela grande oposição de entidades do magistério e  institutos de pesquisa educacional. Mais uma vez teríamos [teremos?] a avaliação de resultados: os professores-produtos submetidos a exame e certificação. Rediplomados, fariam [farão?] jus a gratificações ou melhorias salariais. Funda-se uma hierarquia sob um suposto mérito – sem considerar as condições de formação de partida e as condições de trabalho, que incluem o acesso a bens culturais.

Avaliação de alunos, avaliação de livros didáticos, avaliação de professores. Um estado avaliador, descompromissado com a produção. Sua função, mínima, é regulamentar a vida. Para fazê-la fluir segundo os desígnios do mercado, há que lhe oferecer parâmetros (os PCNs, no nosso caso) e constantes verificações para que cada um em particular e todos em geral constatem seu grau de aderência (eficiência? qualidade? capacidade? ou outro qualquer conceito difuso, especialmente definido sem complementos ou sem tornar conhecidos de todos os complementos desejados(4)).

Estas poucas considerações são suficientes para mostrar que a avaliação é mais do que mera ‘moda’, sempre passageira nesta ânsia de novidades do mundo moderno. A avaliação, de gesto necessário no processo de ensino e aprendizagem, tornou-se, em passado menos recente, num lugar do exercício de um poder frequentemente denunciado como discricionário, exercido pela autoridade pedagógica, circunscrito ao ambiente escolar, mas nem por isso menos pernicioso. Agora este exercício do poder aveludou-se, encarnou-se de grande política, é exercido publicamente e supostamente genérico: sua pretensão é apresentar-se como um deslocamento de avaliação de indivíduos para avaliação de sistemas.

Os gestos desnecessários

Ao retornarmos ao tema não pretendemos mais uma vez situá-lo no contexto das políticas educacionais neoliberais (Geraldi, C. 1999). Também não pretendemos retomar a bibliografia pertinente para discutir diferentes paradigmas de avaliação e as diferentes teorias que os sustentam. Em Machado (2003) e Suassuna (2004) pode-se encontrar esta resenha crítica e indicações bibliográficas pertinentes. Sem esquecer o contexto em que se inserem as avaliações e sem esquecer sua pretensão positivista, pretendemos tomar alguns exemplos não inéditos, extraídos de instrumentos utilizados em avaliações de sistemas de ensino (5) para discutirmos algumas questões que as perguntas formuladas e as respostas dadas pelos estudantes trazem à tona quando são os resultados da aprendizagem, em termos do conhecimento que foi transmitido e retido pelo aluno, que fundamentam a avaliação de sistemas de ensino.

Para os efeitos que nos interessam aqui, retenhamos a distinção efetuada por Magda Soares entre os diferentes objetivos da avaliação de aprendizagem e da avaliação de sistema de ensino. Nesta, pretende-se saber o que foi ensinado pelo sistema; naquelas pretende-se saber o que foi aprendido pelo aluno (6). Uma fundamenta políticas amplas, não só curriculares, sobre a oferta de ensino e de suas condições; outra diagnostica processos e permite revisá-los; para uma o aluno é um produto dado como ‘acabado’ pelo sistema; para a outra o aluno é um aprendiz em formação continuada. Uma opera supostamente com desenvolvimentos terminais; a outra opera sobre processos de desenvolvimentos proximais.

Se os objetivos das avaliações são distintos; se os sujeitos são tratados de forma distinta entre um e outro tipo de avaliação, por que as avaliações hoje em execução produzem o cruzamento, levando alunos a responderem a instrumentos que medem a retenção do ensinado – e por isso aplicando um instrumento de avaliação de aprendizagem – para com isso ter um diagnóstico ‘positivo e neutro’ que permitiria mensurar a qualidade do ensino oferecido e hierarquizar redes e escolas? Um acerto na resposta não significa que o conteúdo testado tenha sido objeto de ensino – não se aprende somente na escola. Um erro na resposta não significa que o conteúdo testado não tenha sido objeto de ensino – nas situações de teste/prova às condições de produção podem fazer esquecer o aprendido, ou mesmo fazer deslizar para aprendizados não escolares, mais eficazes e mais disponíveis quando o sujeito se encontra frente a tensões de avaliações formais.

Não se pode crer que este movimento da avaliação de sistemas se produzir na forma de avaliação de aprendizagem seja inocente. Como se dá aqui à passagem do individual para o sistema, e do sistema para o individual? Obviamente o efeito de sentido produzido é que o sistema não ensina, já que o aluno não sabe. Mas há outro efeito sub-reptício: aquele que responde internaliza seu fracasso, torna-se o culpado individual não só por si, mas também por sua escola, por sua região. E por esta via, naturalizam-se as desiguais distribuições das competências cognitivas almejadas.

Consideremos um primeiro exemplo, uma questão da prova do SAEB-1993, aplicada a alunos da 3a. série do ensino fundamental. Após a leitura de uma historia em quadrinhos, pede-se que o aluno preencha um balão, com os pensamentos de Mônica, que observa Magali gulosamente fazendo um lanche:

As respostas desviantes, como apontou Suassuna (2004), indiciam inúmeras outras questões que vão desde as agruras das questões sociais [Queria Eu come o que a Madali esta comendo – Eu queria estar no lugar da Magali – Ela estava confome – Coitada mei deus pode come Magali coma tudo] até ao problema mais sofisticado de domínio da linguagem das histórias em quadrinhos que demandariam a escrita de um texto no ‘balão de pensamentos’ de Mônica em primeira pessoa e jamais em terceira pessoa [Mônica está pensando que Magali é comilona].c

Mais do que contrapor as respostas àquelas esperadas pelo gabarito de correção, que exigiam que as crianças conhecessem as personagens de Maurício de Sousa e estivessem acostumadas aos padrões de discurso direto dentro dos balões, interessa perguntar-se pelo sentido da formulação da própria questão. Ela implica que cabe à escola o ensino de tudo e ainda mais: a suplência do acesso aos bens culturais. Aprender a ler, a manusear, a construir compreensões de revistas infantis, de HQs, é parte do mundo cultural contemporâneo e todas as crianças deveriam, em princípio, ter acesso a estes bens independentemente de sua inclusão nos conteúdos curriculares! Transformar em conteúdo curricular aquilo que na estrutura social e no mundo da vida se nega a estes sujeitos pelos processos sociais de exclusão é uma tentativa de apaziguar consciências pela oferta desigual de acesso ao mundo contemporâneo da escrita. Incluir uma pergunta como esta num instrumento de avaliação pressupõe igualdade onde há desigualdades, e os baixos escores atingidos pelos alunos naturalizam estas mesmas desigualdades.

Consideremos agora dois exemplos, extraídos de instrumentos de avaliação de alunos de 5a. série do ensino fundamental da rede de ensino de Recife (7), que compartilham um mesmo processo de produção da pergunta: a elaboração propositada de ‘pegadinha’ – como se fora um teste de compreensão de texto ou de palavra.

A prova continha à crônica O cajueiro (Rubem Braga, Coisas simples do cotidiano. São Paulo: Cia. Nacional, 1985) em que o autor, a partir de um carta recebida que lhe dá a notícia da queda do cajueiro existente no alto do morro, atrás da sua casa, faz rememorações da infância e de sua relação com o cajueiro e outras árvores e plantas. O tom da crônica é de lamento pela morte do cajueiro e de recordações de outras árvores, entre elas um outro cajueiro menor, que morrera quando o autor ainda era criança. Eis duas perguntas formuladas sobre o texto:

Qual das alternativas abaixo melhor exprime o sentimento do autor?

a.  (   ) o autor estava triste porque seu cajueiro menor havia morrido há muito tempo;

b.  (    )  o autor preferia, dentre as árvores citadas, o cajueiro maior; 

c.  (   )  o autor não estava triste com a queda do cajueiro, apenas relatou o fato;

d.  ( )  o autor ficou indiferente diante da morte do cajueiro maior.

Como se pode verificar, há três possibilidades de sentimentos apresentadas nas alternativas: tristeza, preferência e indiferença. Na entonação avaliativa (Bakhtin, 1982) da crônica sobressai-se o sentimento de tristeza, aliás é este sentimento uma das condições essenciais da produção do texto: a tristeza pela notícia da morte de seu cajueiro (o maior) é que leva o autor a outras recordações. No entanto, a resposta esperada era a opção (b), já que a tristeza não era pela morte do cajueiro menor, e sim pela morte do cajueiro maior! Trata-se, portanto, de uma questão que jogou com uma informação não relevante do texto – a informação da existência de um outro cajueiro menor, já morto há bastante tempo – para produzir uma espécie de ‘pegadinha’ na questão! Ora, uma avaliação de compreensão de leitura, e aqui de uma compreensão simples que implicava extrair uma informação do texto, tornou-se uma questão tipicamente escolar – no mau sentido desta expressão.

Consideremos um segundo exemplo com este mesmo jogo, operando com caso de hiponímia:

Das palavras abaixo qual a única que, no texto, é diferente de vegetal?

a. (    ) espadas-de-são-jorge;

b. (    ) beijos;

c. (    ) tala;

d. (    ) saboneteira;

e. (    )  caramanchão.

Neste caso, para além das dificuldades típicas de conhecimento de nome de populares de plantas, extremamente variadas, a opção esperada remete a uma construção que sempre é coberta por vegetal. Supomos que ninguém descansa sob um caramanchão ao relento do sol! Aliás, um caramanchão é construído para suportar uma planta.

O interessante nestes dois exemplos é o que pressupõem como ‘sujeito escolarizado e leitor fluente’: aquele capaz de não se deixar pegar, com vivacidade para detectar pequenos deslizamentos. As leituras e conhecimentos exigidos por estas duas perguntas são sobretudo escolares e se na escola estas questões estão presentes, alguma coisa elas significam do ponto de vista das competências cognitivas exigidas. Sem qualquer maquiavelismo estreito, é forçoso reconhecermos que na sociedade atual somente são ‘vencedores’, têm sucesso, aqueles capazes de sobreviver a toda e qualquer espécie de obstáculo. No mundo da competição, há que ser detalhadamente competente. Não há lugar para inocência, para ingenuidades.

Os gestos necessários

Estes poucos exemplos já nos mostram que a ‘questão de elaborar questões’ (Nery, 2003) tem conexões extra-escolares. Em outros termos, que as relações entre escola e sociedade são tão intrincadas que elas se revelam nos mínimos detalhes da ação escolar. Fixemos os dois pontos de vista que as observações feitas até aqui parecem sustentar:

(1) a avaliação de sistemas de ensino tem sido conduzida a partir da avaliação de resultados de retenção do aprendido pelos estudantes, ou seja, usam-se instrumentos de avaliação de aprendizagem para diagnosticar problemas sistêmicos;

(2) os instrumentos de mensuração da avaliação de aprendizagem, para além de ignorar os processos de ensino e de aprendizagem pois ignoram os diferentes pontos de saída de cada estudante em particular, medem competências que se adquirem externamente à escola ou competências/vivacidades para não se deixar ‘pegar’, o que exige atenção a detalhes na própria formulação da pergunta, muito mais do que de compreensão de um texto lido.

Se estes seriam os gestos desnecessários, quais seriam os necessários? Afinal, os escores obtidos por nossos estudantes, descontados todos os problemas apontados, parecem estar mostrando que a escola não estaria prestando um bom serviço nem mesmo ao sistema que, numa economia globalizada, está fazendo exigências distintas daquela da mera reprodução da mão de obra e de produção de um exército de reserva. Seria isso mesmo?

Sem retomar aqui as novas exigências das atuais relações de trabalho (Geraldi, C. 1999), em que é cada vez maior a exploração do trabalhador – não há mais um tempo fixo de expediente, de trabalho; em setores terciários não há mais sequer o local de trabalho, ele se tornou à casa do próprio trabalhador, etc. – é forçoso reconhecer que a nova separação entre incluídos e excluídos do sistema de produção, não toma estes como uma força de trabalho necessária para melhor explorar aquela dos ‘incluídos’: os excluídos já não têm sequer esta função de exército de reserva, digamos estrutural (Miotello, 2001). É a exclusão para a informalidade e para a sobrevivência nas brechas, nas frestas. E entre os ‘incluídos’, constrói-se o receio constante de perder seu posto de trabalho, talvez o sofrimento maior do trabalhador atual: a incerteza no amanhã, entre a exploração suportável do hoje e agora, a que se submete, e a miséria mais completa da vida na informalidade, uma sobrevivência por teimosia.

Nada melhor, então, que entre estes e para estes incluídos, construam-se sistemas de culpabilização: mostrara eles e a seus filhos o quanto não aprendem apesar das oportunidades que lhes fornecem a escola; mostrar que a escolaridade a que têm acesso é absolutamente pobre, insuficiente. Nada melhor do que distribuir as responsabilidades, mantendo os modos de produzir e os modos de se relacionar incompatíveis com o desenvolvimento da própria tecnologia a que chegou a humanidade.

Quais então os gestos necessários? Para retomarmos a passagem de Bakhtin, epígrafe deste trabalho, como encontrar “a tradição do passado esquecida e perdida”? Em avaliação, certamente não podemos buscar o renascimento dos sentidos esquecidos e perdidos num passado recente da história da educação: são muitos os trabalhos que já demonstraram que a avaliação, mais do que servir ao ensino e à aprendizagem, foi sempre o lugar do exercício de um poder excludente. Autoritária e discricionária desde que conhecemos a escola como a conhecemos! E, no entanto, é necessário que avaliemos: este é um gesto constante de um educador que esteja atento a seus alunos, que se preocupa com sua aprendizagem e que luta pela preservação das conquistas da humanidade para com elas alavancar novas e distintas conquistas na humanização de nossas relações com as coisas e com as gentes.

Se não conseguimos encontrar no passado escolar a tradição esquecida, talvez possamos buscá-la na história externa à escola: nas relações que fazem com que sejamos o que somos. Mas isto implica necessariamente retornar às questões fundamentais, que abandonamos em nome da sobrevivência num tempo que não tem tempo para pensar. Num tempo em que as perguntas fundamentais, precisamente porque não tem respostas, e muito menos respostas únicas, deixaram de frequentar nosso pensamento. Quem somos? O que queremos?

Se as respostas que damos a estas questões não ultrapassam o nível da inserção no mundo que aí está, o melhor que podemos fazer é voltarmos ao treinamento e à exigência de que os nossos alunos aprendam o que lhes é ensinado e tenham estes aprendizados retidos e disponíveis para responder ao que lhes for pedido: há inúmeras técnicas para isso desenvolvida especialmente nos cursinhos de pré-vestibular, hoje disponibilizados para as escolas na forma de ‘franquias’.

Se nossas respostas às questões fundamentais são outras e imaginamos que ainda há um futuro a ser escrito, utilizando instrumentos do passado para escrever sobre as linhas de uma memória de futuro diferente daquela da reprodução do que aí está, é preciso que nos responsabilizemos, num sentido totalmente distinto daquele da culpabilização que nos é atribuída porque professores da escola que aí está, pela construção coletiva de uma outra forma de convívio social, num mundo em que a multiplicidade cultural seja efetivamente uma diferença e não o lugar para construir a desigualdade.

Na existência não há álibi, como defende Bakhtin (1993), e qualquer que seja nossa opção, ela implica ações que nem sempre se restringem as quatro paredes da sala de aula. Uma delas, no entanto, é preciso que se construa no chão da escola: reencontrarmos no jovem que aprende conosco um parceiro fecundo da construção de um futuro que é mais deles do que nosso.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. (Volochínov, V. N.) Marxismo e filosofia da linguagem. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1986.

MACHADO, Cristiane. Avaliar as escolas estaduais para quê? Uma análise do uso dos resultados do SARESP 2000. São Paulo: Tese de doutorado em Educação, USP, 2003.

MIOTELLO, Valdemir. A construção turbulenta das hegemonias discursivas – O discurso neoliberal e seus confrontos. Campinas: Tese de doutorado em Linguística, Unicamp, 2001.

NERY, Rosa Maria. Questões sobre questões de leitura. Campinas: ALB/Editora Alínea, 2003.

SUASSUNA, Lívia. Linguagem como discurso: implicações para as práticas de avaliação. Campinas: Tese de doutorado em Linguística, Unicamp, 2004.

Notas

  1. Este texto foi escrito para atender a pedido do editor da revista Práxis, onde foi publicado:  Práxis – Linguagem & Educação, Ano II, número 5, Cacoal, Rondônia, 2004: 27-37. Tratava-se de colaborar com uma revista do interior de um estado periférico. Embora já naqueles tempos havia exigências de “produção científica” nas avaliações dos cursos de pós-graduação (penso que o sistema de recolha de dados se chamava “DataCapes”). Já tínhamos chegado ao requinte das qualificações das revistas… A propósito, em meu último relatório de atividades na universidade, antes de me aposentar em 2003, recebi um parecer em que me alertavam para a necessidade de publicar em revistas melhor referenciadas no tal Qualis. Respondi ao parecerista que meu nome qualificava as revistas em que escrevia, não precisava que as revistas me qualificassem. Creio que a publicação deste texto numa revista do interior da Amazônia tenha este sentido: aquele de que é preciso incentivar que a vida acadêmica não se restrinja ao eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte. A publicação no blog é uma gentileza da co-autora que a autorizou.
  2. “Fé e Conhecimento” – Fragmentos. Tradução de L. M. Boukharaeva (1977).
  3. Obviamente, a mudança de rotas nos projetos e ações, nos anos em que vivemos, não é fácil e seguramente depende muito mais, hoje do que ontem, de uma mudança na esfera mudializada da vida social e econômica.
  4. É sempre instrutivo reler a classificação estabelecida num documento, pouco divulgado, produzido para a SEPLAN em finais de 1994: “Para simplificar a questão, foram estabelecidos dois tipos ou níveis de competências cognitivas: a primeira, denominada tipo 1, para as tarefas ou ocupações mais simples e difundidas; a segunda, para as atividades ou funções mais complexas (tipo 2). Em segundo lugar, deveríamos diferenciar as competências necessárias na cidade e no campo. Para as funções produtivas mais difundidas num processo global de modernização agrícola, deveríamos considerar um patamar mínimo de competências cognitivas equivalentes às quatro primeiras séries do 1º Grau. Já nas cidades, as funções no setor secundário e, fundamentalmente, no terciário, demandam competências equiparáveis ao Primeiro Grau completo. Para o tipo 2, deveríamos considerar o primeiro grau completo no meio rural e o segundo grau completo no meio urbano.” (Geraldi, C. 1999) 
  5. Todos os exemplos que usaremos aqui são extraídos da tese de doutoramento de Lívia Suassuna (2004). Nem sempre nossas análises serão coincidentes: entremearemos nossas próprias considerações àquelas apresentadas por Suassuna (2004), que estarão sempre referidas.   
  6. Esta distinção foi enunciada em arguição pública de tese de doutoramento de Lívia Suassuna, no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, em 12.02.04. A formulação, as especificações e as decorrências desta distinção são de nossa responsabilidade, e podem não corresponder ao que visava a professora Magda Soares.     
  7. Para detalhes, ver Suassuna (2004).