A história deve ser dividida em pedaços? De Jacques Le Goff

A história deve ser dividida em pedaços? De Jacques Le Goff

Este é o último livro do grande medievalista Le Goff (ele faleceu em 2013 e este seu livro foi publicado em 2014 pelas Editions du Seuil). Ao mesmo tempo, há neste ensaio duas teses: uma sobre a periodização na história de que o autor acaba nos fornecendo uma história e sua tese de uma Longa Idade Média de que o Renascimento não seria senão um subperíodo.
Comecemos com algumas informações sobre a questão da periodização: a sua resposta a pergunta-título do livro é afirmativa. Para dominar o tempo, é preciso dividi-lo em períodos que valem para civilizações determinadas – de modo que aqui já vemos que ele considera que se uma mundialização vier a acontecer, ela ainda não se deu: das duas etapas necessárias somente a comunicação e a relação de regiões e culturas se iniciou, mas ainda não se cumpriu a segunda etapa, aquela da absorção, da fusão, para se considerar que temos já um novo período da história, aquele que seria da mundialização.
Segundo o autor, os calendários resolvem as questões do domínio de tempo no cotidiano, do tempo curto, do ciclo do ano. Mas compreender o tempo precisa-se de períodos mais longos. A primeira periodização vem de Daniel (Século VI a.C.) no Antigo Testamento: o tempo dos quatro “reinos sucessivos, cujo conjunto constituirá o tempo completo do mundo”, ao final dos quais virá com as nuvens do céu um Filho de homem  aquém o Ancião dará o Império, e seu império será eterno, não passará nem será destruído.
Santo Agostinho propôs também uma periodização em A cidade de Deus: a) de Adão a Noé; 2) de Noé a Abrãao; 3) de Abraão a Davi; 4) de Davi ao cativeiro da Babilônia; 5) do cativeiro da Babilônia ao nascimento de Jesus; 6) do nascimento de Jesus até o final dos tempos.
Há uma periodização de longo tempo, a que todos estamos habituados e que foi proposta por Denis, o Pequeno: um corte fundamental de antes e depois da Encarnação. As nossas siglas a.C. e d.C. representam estes dois grandes períodos.
O autor ainda se refere a periodizações feitas por Jacopo de Varazze (Legenda Áurea) que divide o tempo segundo dois princípios: o “sanctoral” e o “temporal”. A sanctoral se baseia na vida de 153 santos (supostamente o número igual ao dos peixes da pesca milagrosa do Novo Testamento) e o temporal é organizado pela liturgia e reflete as relações entre Deus e o Homem. A segunda periodização surpreendente é proposta por Voltaire com base no desenvolvimento das artes e a grandeza do espírito humano: 1) o da Grécia Antiga, de Filipe, Alexandre, Péricles, Demóstenes, Aristóteles, Platão, etc. 2) o de César e de Augusto; 3) o que se seguiu à tomada de Constantinopla e por 4) o século de Luís XIV que “talvez seja dos quatro aquele que mais se aproxima da perfeição”.
Depois desta retomada histórica, o autor passa a discutir “o nascimento da Renascimento” que como período histórico aparece tardiamente, na obra de Jules Michelet e seus cursos no Collège de France (iniciados em 1840), “definido como uma passagem ao mundo moderno”.  Petrarca já havia se referido, no século XIV, a um novo período, pois para ele ao glorioso tempo greco-romano, segue-se a partir do século IV um período de barbárie e trevas e que era preciso retornar aos antigos, daí renascimento. 
Inicia-se então o segundo tema e a segunda tese do livro. São retomados os fatos que dariam razão para pensar que em torno dos séculos XIV e XV teria havido uma mudança fundamental do mundo ocidental: o desenvolvimento da navegação que teria levado às descobertas das Américas; o desenvolvimento das artes, particularmente em Florença que se torna, neste sentido, a “capital do renascimento”; os humanistas e sua produção literária e científica; a vida social com festas: para além das festas religiosas com suas procissões, surgem as festas mundanas com as festas senhoriais no campo, com os saraus, com os círculos dos nobres etc. O autor mostra que todos os fatos apontados como a grande passagem para um novo período da história são na verdade continuidades da Idade Média. Por isso sua proposta de uma Longa Idade Média que conheceu inúmeros “renascimentos”, tomando cada um deles como um subperíodo, como o renascimento carolíngio e o Renascimento que considera como o último subperíodo da Idade Média.
Há um dado que Le Goff não considera, e que pode ser central na discussão: Ptolomeu e Copérnico. Esta mudança de compreensão da posição da Terra que deixa de ser o centro é fundamental porque toda a narrativa de um Deus que a criou passa a ser posta em questão: por que a colocou em posição periférica?
Le Goff situará o começo da modernidade no Século XVIII, toma como seu marco a Revolução Francesa no campo político e o surgimento do capitalismo que alterará efetivamente as relações entre os homens. Surgem então na política as Repúblicas e a cidadania: surge com o capitalismo nova relação de trabalho e a produção em série; no campo continuará a produção agrícola, que com maior atraso chegarão bem mais tarde à modernidade.
Para um leitor leigo, o livro é muito interessante. Mas a segunda tese, polêmica, acaba perdendo força quando o próprio autor tem que reconhecer o Renascimento como um subperíodo da sua longa Idade Média. Que diferença efetivamente pode ser apresentada para distinguir um “período” de um “subperíodo”? Se se trata de uma revolução, uma mudança nos costumes, nas relações de poder e nas relações econômicas, é inegável que isto ocorreu nos séculos XIV/XV… Ora, uma passagem de um período a outro na História não pode ser visto como se fosse cada um deles uma camada independente, diferente, como se estivéssemos fazendo uma arqueologia, mas sim pensada como genealogia, de modo que sempre haverá continuidades… como há continuidades da Idade Média nos porões das torturas das ditaduras modernas…
Talvez um pensamento franco-centrado leve a ver na Revolução Francesa como mais fundamental do que houve com a mudança de compreensão do sistema de mundo, as descobertas e as mudanças que as riquezas dos novos continentes carrearam para a Europa e particularmente para países nela periféricos: Espanha e Portugal.
Assim como se pode pensar o Renascimento como subperíodo da Idade Média, também se poderia propor uma periodização em que a partir do século XVIII se inicia um novo subperíodo da Idade Moderna. Por que não?
 
Referência. Jacques Le Goff. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo : Editora da Unesp, 2014 (o original é de 2014).

É possível investir nas enunciações sem as garantias dos enunciados já firmados?

É possível investir nas enunciações sem as garantias dos enunciados já firmados?

Mas, o que há enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo? (Michel Foucault. A ordem do discurso)

Penso que poderia começar a conversa sobre tensões próprias da construção de caminhos (sociais, educacionais ou mesmo de pesquisa), tomando como exemplo um enunciado proferido em prefácio de livro recentemente lançado:

… diria que a importância deste livro tem a ver fundamentalmente com o resgate rigoroso das ideias “originais” daqueles pensadores. Não se imagine que eu acredite que =…] pode voltar no tempo e deslocar-se no espaço de forma a receber os textos como se estivesse lá quando de sua produção, podendo ser, assim, o hermeneuta perfeito. Acredito apenas que, com domínio severo de vasta bibliografia, autoriza-se (o livro que o leitor tem em mãos o autoriza) a pôr certas coisas no lugar e colaborar para coibir a dissolução de um pensamento instigante e rigoroso por leituras apressadas…

Talvez fosse instrutivo salientar, nesta pequena passagem de um texto que faz parte das perigrafias de um outro texto maior (o texto que constitui o cerne o livro apresentado), alguns elementos que poderão contribuir para a compreensão da pergunta-tema que me ocupa:

(a)    o resgate rigosoro das ideias “originais”;
(b)   quem está presente quando da produção de um texto pode ser seu hermeneuta perfeito (obviamente esta não é uma condição necessária e suficiente);
(c)    uma leitura (rigorosa?) pode pôr as coisas no lugar;
(d)   uma leitura (rigorosa?) colabora para coibir a dissolução de um pensamento ;
(e)   há leituras apressadas deste pensamento.

Como em passagem anterior do mesmo prefácio, o autor parece afastar-se de qualquer tese que defenda o sentido imanente de qualquer texto mas ao mesmo tempo corre o risco de ser considerado um imanentista, estamos diante de um jogo extremamente instigante.

1.     Os enunciados disponíveis em textos – no caso, escritos – são insuficientes para garantir um sentido único, porque as condições de produção são necessárias para a construção adequada da relação entre o dito/escrito e seus sentidos (note-se a exigência para um hermeneuta perfeito).

2.      Mas também é possível um resgate rigoroso das ideias “originais”, contidas nos textos lidos. O ‘aspeamento’ da expressão “original” pode estar reafirmando que, uma vez perdidas as condições de produção, os sentidos regatados serão sempre produtos de uma produção nas leituras, de modo que a qualificação de resgate rigoroso ficaria por conta não das características próprias dos enunciados lidos, mas da propriedade dos sentidos atribuídos numa compreensão específica segundo uma outra leitura dos mesmos textos, de modo que a garantia de rigor resulta do rigor de uma outra leitura e assim sucessivamente. Para dizê-lo numa clave foucaultiana, é preciso que os enunciados proferidos estejam dentro da disciplina.

3.      Se há necessidade de “pôr as coisas no lugar”, “coibir a dissolução de um pensamento”, é porque há leituras apressadas ou orientadas mais pelas contrapalavras do leitor do que pelas palavras do autor; as leituras rigorosas desqualificam tais outras leituras, na medida em que qualifica a si própria como rigorosa, e por isso inscrita numa certa disciplina. Todo o resto pertence, usando uma expressão de Foucault, a uma teratologia do saber, ou para usar a imagem kantiana, está no Reino das Ilusões.

Este exemplo, cuja análise poderia se estender, parece tocar diretamente nas questões envolvidas nos processos de construção de significados. Humanos, estamos condenados a significar, incluindo neste significar também nossas entonações pelas quais revelamos avaliações e juízos de valor expressos a cada momento irrepetível e único da vida.

Talvez, para esta conversa, pudéssemos dizer eu fazer ciência é essencialmente construir significados, cuja validade ou rigor – ao contrário do que imaginávamos até meados do século XX – somente se calcula no horizonte própria da teoria em que os significados foram construídos. Não há no exterior da teoria qualquer outra garantia de validade. O que contém a “terra da verdade”, tantas vezes comparada a uma ilha cercada por turbilhões de ilusões, não é a verdade que supúnhamos exterior, mas ela própria é uma construção. Como então controlar estas construções, de modo a coibir dissoluções? Essencialmente não permitindo qualquer voo que se lance para além, para os mares bravios de outros reinos que não o da verdade. Nenhum voo é permitido, exceto aquele que obedece às regras do “que é requerido para a construção de novos enunciados”. Uma polícia discursiva está pronta para fazer voltar ao já afirmado, ao já previsto, ao já estatuído, ainda que estivesse lá por ser dito. E há que fazer isso com rigor.

Mas como manter este rigor, se dispomos apenas de palavras com que construir significados? Renunciando às enunciações para deter os sentidos dos enunciados, para fixar-lhes sentidos sempre recuperáveis rigorosamente segundo um horizonte teórico específico? Aceitar uma tal renúncia é também aceitar mutilar as já pobres palavras de que dispomos, tornando-as elementos de um código biunívoco. Parece que não é assim que a linguagem funciona: se seus elementos estruturais têm vocação para reaparecerem, o acontecimento ou acaso de seu reaparecimento demanda sempre a correlação entre o que se repete com as condições de sua emergência. Os sentidos são sempre produtos de cálculos, e ao jogo das compreensões, os sujeitos comparecem carregados e interpretantes, carregados de palavras, carregados de contrapalavras, enfim, carregados de história. 

Tendo como pressuposto este funcionamento da linguagem, trago para esta conversa o desafio proposto por Zaccur (2003), o da construção de uma epistemologia da linguagem. Mas coerente com os passos anteriores, na análise de meu exemplo, confessada a inspiração, pretendo pensar este funcionamento da linguagem como um ‘modelo’ para revisitar três questões que estão no centro das nossas preocupações de pesquisa:

a)      A questão do sujeito, pois temos uma insatisfação constante com as teorias do sujeito nestes tempos de fins das certezas;

b)      A questão dos critérios de validação de enunciados, pois estamos sempre às voltas com nossas comunidades de interpretação;

c)      A questão das formas de aproximação das singularidades, já que a visibilidade dos excedentes, dos singulares, dos insignificantes para os paradigmas científicos anteriores não se constrói com as formas disciplinares disponíveis.
 
A questão do sujeito   
 
Libertados do jugo do Senhor, apostamos nossas potencialidades – esquecendo algumas, obviamente – nas possibilidades de uma compreensão objetiva das realidades. Libertados agora também dos destinos, supostos inexoráveis, dos modos de funcionamento da natureza, resta-nos uma paradoxal liberdade:

A liberdade é o outro lado do limite, da linha, supera todas as condições de determinação impostas pela episteme, escapa a todos os determinismos, e por isso deve permanecer como algo radical e absolutamente incognoscível e por isso devemos respeitar sua irredutibilidade à compreensão. […] no sentido em que sujeito significa “sujeição”, no sentido em que ser  um sujeito implica estar submetido a determinismos, a liberdade elimina a sujeição.
Mas este “jogo de palavras” não pode apagar a pergunta fundamental neste terreno: esta concepção de liberdade determina ou pressupõe a existência de um sujeito livre? Não é suficiente dizer de que a liberdade nos liberta, é necessário dizer para que nos faz livres. Faz-nos livres para nos darmos uma lei. Para inventá-la de forma totalmente não condicionada: é precisamente isso o que significa que tudo é permitido – muito mais um convite à moderação ou à modulação, e não à libertinagem ou à barbárie. A liberdade, para dizê-lo numa clave sartreana, nos condena a darmo-nos uma lei (mas não diz que lei temos que nos darmos). As leis que nos damos, pressupõe a liberdade, mas uma liberdade que não é nossa, da que não somos donos, uma liberdade que somente se converte em nossa liberdade quando efetivamente nos damos uma lei, uma liberdade de que nos apropriamos inventando uma lei. (Pardo, 1996a: 152-153)

A lei que temos a liberdade de nos darmos, no entanto, ao longo da modernidade, tornou-se um conjunto emaranhado de normas de tal modo que a cada momento devemos estar em conformidade com algumas destas normas. Como mostrou Foucault, as teias com que se tecem as relações sociais estão marcadas não pela decisão de regulamentações que nos tornem livres, mas pelo exercício do poder de modo a sujeitar para manter desigualdades como se estas fossem da natureza da coabitação do planeta.

Numa primeira leitura destas sobrecargas com que os sujeitos operam para construir suas vidas e suas compreensões da vida, facilmente se poderia concluir que os mecanismos sócio-históricos que nos constituem tornam-nos apenas um lugar de sua própria concretização. Somos um feixe articulado, ou desarticulado, de uma fabricação sempre igual. Aparentemente, nenhuma liberdade, nenhuma diferença essencial. Somos os sujeitos que somos, chegamos a ser o que somos, por uma fabricação laboriosa, industriosa e também insidiosa.

No entanto, eis que em seu funcionamento, a linguagem se abre a significados e os sujeitos constroem sentidos distintos porque trazem para este processo um conjunto de contrapalavras que não se definem de forma unívoca. As múltiplas vozes presentes em nossas palavras, cada um as articula de modo distinto, singular e único e irrepetível. Destas fabricações não resultam uniformidades, ao menos entre sujeitos discursivos. Somos aí, na repetição, singulares e diferentes.

Também em outros espaços simbólicos estas diferenças são construídas. Aqueles que nos são próximos, iguais a nós em direitos, constituem um círculo que se fecha em torno de nossa liberdade: porque sou igual, será necessário que de alguma forma me singularize, afastando-me do que me é próximo, sem contudo tomar demasiada distância para não parecer que estou “fora do jogo”. Por uma lógica horizontal, é preciso que tome o outro por referência para dele me diferenciar: uns e outros estatuímos modos de regulamentar o cotidiano, onde a diferença singulariza sem distanciar.

Esquecemos que as temporalidades constroem diferentes identidade, que a alteridade implica co-cidadania e que nada há de fundante, internamente ou externamente, uma autonomia absoluta que exija autenticidade e conformidade consigo próprio. Somos mutáveis e mutantes. Construímos diferentes formas de integração social, espaço da regulamentação; podemos manter relações com os outros não ditadas pela lógica horizontal que nos obriga a seguirmos uma moda ou pela lógica vertical que nos obriga a competir para estarmos acima e além da linha da igualdade, que nos parece intolerável; por fim, não somos transparentes, não somos límpidos, não somos e não estamos sempre iguais, ao contrário somos e não somos o que gostaríamos de ser, temos nossas dependências do que é nossa história, do que nos cerca, do que nos faz capazes de responder e assumir um lugar.

Por fim, mas não com menor força, estamos condenados a sermos cada um o herói de sua própria vida: valores morais como a autenticidade, a sinceridade e a adequação consigo próprio exigem comportamentos, ditam modos de ser e exigem que respondamos pelo lugar que ocupamos. Glorificar a própria existência pede coerência consigo próprio, mesmo diante de tarefas impossíveis com que nos confrontamos permanentemente.

É necessário apontar para os não-equilíbrios sociais para explorar as novas possibilidades de nos darmos regulamentações outras, em que o paradoxo da liberdade individual se complemente pela responsabilidade da coexistência. Experimentar novos caminhos, sem exigir que já estejam prontos antes de serem percorridos é aceitar toda ação como uma aposta ética.

Aceitando esta perspectiva, dado que não há nada no exterior que garanta a verdade de nossos enunciados, talvez tenhamos que investir muito mais em nossas enunciações e na ática que as fazem existir, do que nas garantias dos enunciados já dito, já firmados, ou em processo de construção.

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
(Cântico Negro, José Régio)

“Por ali” talvez esteja o rigor; mas “por ali” seguramente não está a invenção, a possibilidade, a aventura.

Assumindo que a relação com a singularidade é da natureza do processo constitutivo dos sujeitos, com a precariedade própria da temporalidade que o específico do momento implica, a instabilidade dos sujeitos – e da história – não é um problema a ser afastado, mas ao contrário é inspiração para compreender a vida, assumindo a irreversibilidade de seus processos. Como temos distintas histórias de relações com os outros – cujos “excedentes de visão” (Bakhtin)  buscamos em nossos processos de constituição – vamos construindo nossas consciências com diferentes palavras que internalizamos e que funcionam como contrapalavras na construção dos sentidos do que vivemos, vimos, ouvimos, lemos, sentimos. São estas histórias que nos fazem únicos e irrepetíveis. Unicidade incerta, pois se compreendemos com palavras que antes de serem nossas, foram e são também dos outros, nunca teremos certeza se estamos falando ou se algo fala por nós.
 
A questão dos critérios de validação dos enunciados

Ano de 1971, eu aluna do quarto ano de medicina. Primeira aula de ortopedia. Dez colegas adentramos numa sala de consultas, seguindo o professor. Lá dentro, uma mulher com uma criança de uns nove meses no colo, mãe e filha. Sob a manta, escondem-se os pés tortos da criança. O professor começa a aula, manipulando os pés defeituosos, para nos mostrar a doença. A criança chora todo o tempo, porém naquele espaço-tempo, só existem seus pés, o problema, o plano terapêutico. Não aguento e saio da sala, sem querer ver/ouvir mais nada – verdade seja dita, independente de meus sentimentos, o que cada um dos dez poderia ver/aprender, naquelas condições? Enfim, saio indignada, revoltada, porque sabia que poderia ser diferente.

Primeiros anos de minha vida… Várias imagens se confundem, se fundem, como se todas tivessem acontecido na mesma data. Eu, no colo de minha mãe, me jogando para os braços de um homem de branco. Eu, no colo da tia Rosa, pernas engessadas, choramingando e pedindo para o mesmo homem não usar a máquina, eu tinha medo que ela cortasse minhas pernas e ele, sorrindo, tirando o gesso com uma faquinha… Ele me consolando, me compreendendo, dizendo que o gesso era mesmo muito chato, pesado, mas eu tinha que aguentar mais um pouco para ficar boa… Dezembro de 1967, eu emocionada indo contar a ele que havia entrado na faculdade de medicina. Ele, o Dr. Assis (Luís Tarquínio de Assis Lopes), o meu ortopedista, de quem eu gostava muito, que me viu pela primeira vez com três dias de vida – eu tinha pés tortos congênitos – e em quem eu confiava plenamente.

Eu havia vivenciado uma relação diferente entre um médico e uma criança, em que a criança não era abstraída, o pé torto era apenas uma parte de mim, por isto eu sabia que podia ser diferente. E venho trabalhando na tessitura desta outra possibilidade desde muito tempo, nem eu mesma sei desde quando. (Moysés, 2002:24-25)

A narrativa, talvez uma das remanescentes formas de compartilhar saberes de experiências vividas, já que sua escuta é uma experiência, mostra-nos com riqueza exemplar a distinção entre desigualdade e diferença:

a)      são crianças socialmente desiguais: aquela que já com três dias de vida é atendida pelo seu ortopedista, e esta outra, “um pé torto” exposto a um ortopedista e dez alunos num consultório;

b)      na história vivida, uma criança com quem uma aluna se identifica, semelhantes em seus medos, seus choros e seus pés; na aluna a memória inalienável de um passado que é um pré-dado de construção de um futuro possível. Tudo podia ser diferente;

c)      identidades compartilhadas, somos diferentes mas não somos desiguais, levam a compreensões diferentes da prática médica e acabam iluminando as ações do presente na construção de um futuro.

Se num passado recente acreditamos que a validade de nossos enunciados nos era da pelo fato de que eles descrevem o real, hoje perdemos a inocência e ficamos ao léu: donde extrair alguma validação de nossas compreensões? Obviamente esta pergunta somente faz sentido para aqueles que pretendem viajar para terras do além das certezas patrocinadas pelas teorias.

Para Bakhtin, no mundo da vida “calculamos” a todo instante, com base na memória do futuro, possibilidades de ação no presente. Não se trata de reintroduzir, a partir da ideia de memória do futuro, a ideia de salvação terrestre. O “devir está problematizado e assim ficará para sempre”, pois vivemos um “contexto no qual as metanarrativas de qualquer gênero são olhadas com profunda desconfiança” (Silva, 2000:14). Trata-se de pensar que a todo momento, a todo acontecimento, o futuro é repensado, refeito e desse lugar desterritorializado, sempre mutável, o sujeito se situa para analisar o presente vivido e, nos limites de suas condições e dos instrumentos disponíveis, construídos pela herança cultural e reconstruídos, modificados, abandonados, ou recriados pelo presente, uma das possibilidade de ação é selecionada. Somos movidos pelas utopias, pelos sonhos, pois “nada é mais pobre que uma verdade sem o sentimento de verdade” (Morin, 1997:33).

Então a validação de nossos enunciados nãos e fará por algo que seja exterior a seu próprio acontecimento: o critério que nos sobra é aquele apontado por Boaventura de Sousa Santos: a construção de uma vida decente. Como a definição dos processos e dos resultados se dá no campo da política, é preciso revitalizá-la para além de seus próprios aparelhos, politizando a vida para encontrar a pluralidade de caminhos para conviver.
 
A questão das formas de aproximação das singularidades
 
Reconhecer a unicidade de cada sujeito, a singularidade de cada momento, o desprezado cotidiano em que os enunciados circulam nas enunciações cada vez únicas, e onde se praticam ações ora conducentes, ora não, à memória de futuro imaginada, até porque a própria memória de futuro não é perene e imutável, implica construir novos caminhos do olhar perscrutador que deseja captar nas “grandezas do ínfimo” os movimentos diminutos em direções cada vez múltiplas e desiguais.

Sem esquecer que o singular não sobrevive sem compartilhas, sem as estruturas que nele estão e que por ele são vagarosamente corroídas, temos ultimamente tratar de casos, de acasos, histórias curtas. Ainda não sabemos costurar uns casos aos outros, uns acasos aos outros, umas histórias a outras histórias sem perder o vigor de sua singeleza, sem perder suas cores próprias para compor uma cor outra, produto da abstração. Talvez este seja um momento necessário para nos sentirmos dentro da floresta, examinando minúcias, para depois retornamos ao promontório de que saímos e de cuja existência não esquecemos. E a viagem de retorno nunca mais será uma volta, será sempre outra viagem.

Dispúnhamos e dispomos de certas técnicas de escuta, mas não sabemos com precisão que toque, que palavra, que gesto produziu o encontro com outro toque, outra palavra, outro gesto, e na faísca deste encontro escreveu em sulcos no ar uma outra imagem, uma terceira palavra capaz de criar um compreensão, exigir um investimento intelectual e desencadear este encanto que é o pensamento. Pensar exige liberdade. Pensar exige silêncios e vazios. E terá valido a pena pensar, mesmo que o pensado se esvaia momento mesmo de sua emergência.

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito ás coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso denascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formado de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
(Manuel de Barros. O apanhador de desperdícios)
 
 
 
 
Nota
Este texto foi escrito para minha participação num evento em Vitória, na Universidade Federal do Espírito Santo, sobre pesquisa em ciências humanas. Não tenho nenhum registro do evento – apenas registrava atividades deste tipo quando recebia algum ‘atestado’. No entanto ele deve ter ocorrido em fins de 2004 , porque lembro até hoje uma intervenção de uma professora criticando minha fala num momento em que, segundo ela, tudo indicava que alguns membros do governo federal haviam decidido enriquecer. Que o momento era de denúncia, de política e não de reflexão metafísica! Fiquei em ‘saia justa’ como se diz: que falar depois de uma intervenção destas a não dizer que não dispunha de qualquer prova que confirmasse suas afirmações, de modo que não me cabia, num evento de discussão de pesquisa, tratar de tal assunto. Não lembro de outras intervenções…  Dois anos depois, entreguei o texto para publicação, que se deu em  Aline, André et alii. Veredas Bakhtinianas. De objetos a sujeitos. São Carlos : Pedro & João Editores, 2006, p. 129-139. Em 2018 inclui o texto na minha coletânea Tranças e danças. Linguagem, ciência, poder e ensino. São Carlos : Pedro & João Editores, 2018. O leitor notará que nele se repetem alguns dos meus temas mais frequentes, como a subjetividade, singularidade, irrepetibilidade e constitutividade.
 
Referências bibliográficas
 
Barros, Manuel. Poesias completas. São Paulo : Leya, 2010.
Bakhtin, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos : Pedro & João Ediotres, 2010.
_________  Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 2ª. ed. 2003.
Foucault, M. A ordem do discurso. São Paulo : Edições Loyola, 1996.
Morin, Edgar. Amor Poesia Sabedoria. Lisboa : Instituto Piaget, s/data (original de 1997)
Moysés, Maria Aparecida Affonso. Memorial. Campinas, Faculdade de Ciências Médicas. Concurso de Professora Titular de Pediatria.
Pardo, José Luis. La intimidad. València : Pré-textos, 1996.
Pardo, José Luis. “El sujeto inevitable”. In. Manuel Cruz (org). Tiempo de subjetividad. Barcelona : Paidós, 1996ª
Régio, José. Não vou por aí! Antologia poética. Porto : Edições Quase. Seleção e organização de Isabel Cadete Novais, 2000.

A sorte entre migalhas

A sorte entre migalhas

Todos os dias ela acordava cedo, e como se pudesse, permitia-se tomar um café demoradamente, esvaziava-se de seus desejos ali mesmo, gole após gole. Ao fim, estava vestida de toda sociedade: Cada sorriso, cada olhar, cada gesto, cada cor e desbotar, os cabelos bem presos, sem nenhum alvoroço possível, um par de brincos que alguém havia lhe dado, uma sandália de fivelas douradas, a mesma saia jeans escuro em tamanho clássico, uma camisa de tecido floral miudinho, as peças limpinhas e cheirando a sabão se misturando ao perfume de uma água de colônia que durava o dia trabalhado. Doze horas, entre o sair de casa, o trabalho e voltar no fim do dia. Doze horas.

Gostava de pensar que sobravam doze horas por dia para fazer suas coisinhas. Dormia pouco porque gostava de deixar tudo no lugar, e quando todos dormiam era livre que só, murmurou baixinho para si mesma:

– Livre que só.

Não foi durante esse lapso de liberdade que teve uma ideia, ao contrário, na semana anterior tantas notícias ruins a deixaram muito quieta, a palavra certa era depressiva, sem esperanças. Pensou até no mais trágico, não tinha coragem. Tanta gente assim: – cruz credo! Foi no dia que a moça do trabalho tinha feito aniversário e pediu uma caixinha de comida chinesa – só para ela mesma, porque todos ali eram pobres.  mas um luxo de vez em quando não seria assim tão impossível, viu quando ela deu o biscoito da sorte para a amiga da mesa do lado. Também queria um pouquinho, mas era só um e tudo bem. Elas não eram amigas.

Achou engraçado essa coisa de sorte vendida dentro dos biscoitos. Então viu quando a outra comeu o biscoito, colocando-o para dentro da boca com fome quase violenta, sem sequer deliciar esses pequenos prazeres, e jogou fora entre migalhas e farelos que caíram de sua boca o papelzinho. Esperou que todos saíssem e pegou-o no lixo escondidamente. Quase um crime.

Naquele dia, errou o caminho de sempre e passou pela porta da loteria, desdobrou o papel com vergonha que alguém espiasse e lá estava ele. Quis jogar os números, tentar a tal da sorte, mas não teria o dinheiro para pagar a condução.

Dobrou o papel novamente e guardou-o.

Dali para frente, todos os dias o abriria, transformou o papel em um diploma. Sonhava sonhos possíveis já com o prêmio: não trabalharia tanto, compraria, viajaria, quem sabe plástica? Com certeza teria um namorado, ou até casaria outra vez. Outro dia pensava em piscina, em outro conhecer o mar. Intercalava isso com coisas ainda mais simples: experimentar camarão, mas e se tivesse alergia, sua colega de trabalho tinha e disse que era comum… Sentiu enrubescer a face, envergonhada, abriu um botão a mais na camisa. Parece que já não cabia mais tanto desejo.

Então, enquanto tomava o café demoradamente, ria sozinha pensando que era muita sorte ter aquele papelzinho. Guardava-o como uma preciosidade. Tão simples e pequeno, e ali preso, como se fosse um crime o que tivesse feito. Deixava-o ali, entre seus documentos e guardados, acompanhando-a por onde quer que fosse. De um lado números preciosos, do outro escrito forte: Lula livre!

Bolsonaro no muro das lamentações

Bolsonaro no muro das lamentações

Sim. O Bolsonaro, em mais uma viagem presidencial, foi para o Muro das Lamentações de Jerusalém – ruína  sagrada do Templo de Salomão, que o  general Tito deixou de lembrança amarga para toda vida dos judeus de todo mundo. Os judeus transformaram em relíquia sagrada do templo – símbolo da aliança perpétua de Deus com o povo judeu. Bolsonaro, lá sorridente, deixou todos nós aqui no mundo das lamentações – terra maltratada e mal respeitada por ele. Um lamentável desalento. Sem muro de lamentações.

Fato simples e inédito. Em vez de comemorar  e festejar os 55 anos do lamentável golpe civil-militar de 1964 e os 20 anos de perseguições e torturas da ditadura, Bolsonaro determinou a celebração do dia 31 de março na Ordem do Dia, a ser lida em todos os quartéis e viajou para Israel para se alentar no Muro das Lamentações. Atitude egoísta lamentável.

Em Israel, foi recepcionado em pompas e circunstâncias por Benjamin Netanyahu. Um espetáculo real ao vivo, com cenas de apertos de mãos, abraços apertados e beijos (laterais). Muito ridentes – riso falso – os dois se exibiram ao mundo inteiro diante de câmeras de todos as partes do planeta. Netanyahu, para os eleitores de Israel e Bolsonaro, para…para, quem mesmo? Um abraço vazio de espiritualidade e fé.

Muro das Lamentações, o lugar mais sagrado para o judaísmo e um dos lugares mais sagrados para os cristãos, foi profanado. Bolsonaro postou as duas mãos abertas – pelas palmas – no muro. Botou um papel com pedidos nas fendas do muro: Deus olhe pelo Brasil! Penso, com sinceridade e humildade, que Bolsonaro deveria aproveitar a oportunidade para compensar os gastos do dinheiro público de todos nós com a viagem e pedir desculpas e perdão pelos males que cometeu e que vem cometendo ao povo brasileiro. Deveria ter deixado o papel nas frestas do Muro das Lamentações e escrito as lamentações pelas mentiras e os golpes que aplicou na campanha eleitoral e que vem aplicando nos cem dias de seu governo. Seria a expiação mais pura e perfeita dos seus males. Seus e dos seus escolhidos, fiéis mais próximos.

Sim, Bolsonaro deveria conceder exílio a si mesmo e pedir asilo ao Netanyahu e ficar na terra sagrada para sempre. Se Jair Messias Bolsonaro fizesse este ato sagrado, todos os brasileiros estaríamos protegidos pela era messiânica contemporânea nas terras sagradas do Brasil – longe do Messias Bolsonaro.

O fato mais lamentável é a cena quando Bolsonaro faz mira com uma metralhadora super moderna lá, em Jerusalém, terra sagrada de espiritualidade, pregação e paz.

Por fim, Bolsonaro confirma e reafirma que o nazismo e o fascismo foram de esquerda. Pessoalmente, nunca imaginei que teríamos no Brasil governantes tão desconhecedores da história. A sensação é que temos um caso real quando junta ignorância com maldade. A ignorância recheada com más intenções sempre gera tragédias.

Minha rua tem um pé de goiabeira

Minha rua tem um pé de goiabeira

Há pouco tempo, quando frutificou, aprendi que temos uma milagrosa goiabeira bem próxima de casa. Seu milagre é simples, como o milagre de todas as goiabeiras não abençoadas pela pastora que está de ministra, mesmo sem ter qualquer importância como disse publicamente seu chefe maior: consultou-a mesmo ela não sendo importante.

Jesus não subiu nesta goiabeira. Certamente a admira de longe como mais uma obra da criação de sua natureza. Mas ela traz alegrias, não choros. Os meninos passando para a escola, as meninas voltando da escola: chacoalham-na para colher seus frutos. Na maioria das vezes chegam atrasados. Os passarinhos chegaram primeiro, bicaram-nas e alimentaram-se: canários da terra, rolinhas. Pardais, será?

Indefesa, à noite alimenta morcegos. Morcegos negros. Os meninos e as meninas, atrasados, reconhecem as mordidas, abandonam a fruta ao pé da goiabeira. Elas apodrecem e se tornam seu adubo. Ela mesma reproduz a vida: alimenta vermes e se alimenta das sobras.

Se ninguém cortá-la, se ninguém a destruir, a goiabeira continuará ali, viva. Alimentando e se alimentando. Durante seu ciclo histórico.

Assim também, alimentando-se do que se acumulou no ventre da Terra ao longo de muitos séculos, outra ‘goiabeira’ cresceu e se tornou energia graças ao engenho humano, ao trabalho forçado e inteligente de muitos homens e mulheres. E pôs galhos, enormes galhos com frutos diversos. Em parte, energia que move motores; em parte, utensílios em plástico; em parte, move engenhos voadores… seu produto tem mil e uma utilidades.

Pois esta goiabeira assim imensa fez e faz a alegria de muita gente, porque move uma corrente de produção do que precisa para frutificar. Gerou alimentos indiretos para muita gente, mas definha.

Quando os corvos começaram a voar em seu torno, comprometidos em destruí-la transferindo seu ventre negro para outras paragens com as quais estão os corvos comprometidos, nossa grande goiabeira começou a definhar. A cadeia que movia começou a parar. Portas fechadas, lacradas para o bem dos corvos.

E eis que nos escondidos recintos, à socapa, à noite, um corvo de primeira estância secundado por um traidor comprometido apenas com a minoria dos sócios de nossa goiabeira, assinam um acordo não acordado com os donos da goiabeira. Pelo acordo, os corvos de primeira estância ganhariam uma baleia de 2.500 toneladas; e o traidor comprometia a goiabeira que, a partir de então, tinha por obrigação informar todos os caminhos pelos quais suas raízes passariam, todas as descobertas destes caminhos, todas as inovações conseguidas pelo esforço e inteligência – que o outro lado do acordo não tem – daqueles que se carpem, adubam, alimentam e fazem a goiabeira ser o que é!

Esta sim é a goiabeira milagrosa: desfolhada quando em plena atividade produtora, continuou dando resultados, dando seus frutos e empurrando a corrente que movimentava. Por causa destas folhas, arrancadas às escondidas, vieram os corvos salvadores arrancar-lhe os galhos, com esforço e mentiras, cortaram-lhe muitas das raízes. Auxiliados por um traidor de lesa-goiabeira, exigiram seu quinhão. Veio em forma de baleia tão pesada que espantou: uma baleia deste tamanho não ficaria invisível, mesmo com gabrielas e cabriolas tentando escondê-la. E depois os espantados pássaros que povoam as goiabeiras ficaram sabendo: não haverá mais goiabeira por causa do acordo assinado à surdina.

Nossa rua tem uma goiabeira: não há de escapar aos corvos, porque como disse numa canção o poeta português Zeca Afonso: “eles comem tudo… eles comem tudo… não deixam nada”.

RECADO, de Ferreira Gullar

RECADO, de Ferreira Gullar

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
e ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.
Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo;
meu corpo multiplicado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
– e obrigo o tempo a ser verdade.