Os mistérios da vida política

Os mistérios da vida política

O título mais adequado, coerente, mais verdadeiro, talvez, seria: “O Baixo Corporal e o Baixo Material dos Políticos”. Mais verdadeiro, mesmo, seria “As Trapaças dos Políticos”.
Sim, e só da vida política? Só dos políticos? E da vida jurídica, não? Dos juízes, ministros, procuradores do Supremo, não? Os gênios retardatários da ciência humana proclamam em alto e bom tom: “o Direito não é uma ciência exata”. Eis a descoberta genial! E em nome da lógica sagrada desta ciência, magnificam a dedução exata: “logo, o Direito tem múltiplas e controversas interpretações”. Assim, na vida real, o Direito, em nome e por força da ciência inexata, é constituído de múltiplos, distintos, diferentes e contraditórios sentidos. Estes múltiplos sentidos do Direito são usados e aplicados pelos profissionais da “inexatidão”, sempre de acordo e para garantir os interesses de quem está no poder – político, jurídico, econômico…
Por força da “inexatidão” da ciência do Direito, num processo de corrupção, 3 juízes votam pela condenação do político, mesmo sem provas materiais do crime e 2 juízes votam pela absolvição do acusado. Aí prevalece a lei da ciência exata: 3 é mais do que 2, logo, o acusado é condenado. Em outro processo, 3 juízes votam pela absolvição do político corrupto, mesmo com provas materiais do crime, e 2 juízes votam pela condenação. Assim, políticos corruptos são absolvidos, sempre por força da ciência inexata. E todos os juízes argumentam, usam e justificam o voto pelos dispositivos das mesmas leis. Assim, a justiça é justa? Ah!, tem caso em que mandam soltar político corrupto por unanimidade de votos.
Perante a lei, somos todos iguais. Está escrito e garantido na amada e temida Constituição de todos.
Assim, mesmo com direitos iguais, diante dos juízes, somos todos diferentes e desiguais. Quem decide pela condenação ou absolvição é o poder da desigualdade social. Em nome da inexatidão da ciência do Direito, tudo vale para as múltiplas e controversas interpretações dos fatos históricos reais materiais. A Constituição, as leis, os decretos, os estatutos, os regimentos, os regulamentos… estão sujeitos a diversos e divergentes usos/abusos ideológicos, reflexos dos horizontes (anti)éticos e (anti)morais de quem tem o poder de julgar e decidir.
Bem, aplicando o velho dístico popular “ele é dono do seu nariz e eu sou dono do meu” (do meu, o que mesmo?), logo…
Mas, o pior de tudo é o fato segundo o qual os gases exalados pelo baixo corporal e pelo baixo material dos políticos corruptos está infestando e envenenando, cada vez mais, o ar que respiramos diuturnamente.
– Condena e prende Temer! Temer preso.
– Solta Temer! Temer livre.
– Prende novamente o Temer! Ele é corrupto.
– Troca de prisão o Temer, pois ele tem direito à cela especial: banheiro e chuveiro privativos, TV, frigobar, videogame, brinquedoteca, sofá confortável…
– Solta Temer! Ele tem imunidade parlamentar!
– O que? Imundicidade? É?

EU, um outro de Imre Kertész

EU, um outro de Imre Kertész

É difícil registrar a leitura deste livro: composto por reflexões esparsas e só aparentemente instantâneas; por autênticas crônicas de um cotidiano vivido e observado; por remessas à história da Europa, particularmente à história do povo judeu; por referências à história da Hungria anterior ao regime soviético e posterior a libertação; pelas inúmeras remessas à literatura e à filosofia, e ainda pelas narrativas de suas próprias andanças pela Europa em sessões de leituras de suas obras e as impressões/sensações que estas andanças criam para o escritor.
No entanto, o livro merece uma atenção redobrada, sobretudo pelas perguntas fundamentais que se faz o autor e cujas respostas somente podem ser provisórias, às vezes tão provisórias que duram alguns minutos. São perguntas como “quem sou?”; “que significa ser judeu?”; “que significa ser húngaro?”; “quem enxerga através de nós?”; “O que temes se sabes que és mortal?”; “com quem estou solidário?”. Ou ainda retomando perguntas: de Valéry: “Devemos formular todas as perguntas?”; de Beckett: “Que droga é que Deus estava fazendo antes da Criação?”.
Só pelas perguntas e pelos entrecruzamentos das referências ao passado, ao presente e aos autores com I.K conviveu e convive, dá para aquilatar a qualidade das reflexões que realiza neste Eu, um outro e a que convida o leitor a realizar por sua conta.
Ao chegar ao final, também restringi o mundo deste livro a três conceitos-chave: o nada que cada um é cujas identidades mutantes recobrem de um todo querendo apagar a insignificância do eu (ele é um estrangeiro em seu país, é um judeu na Hungria, e fora dela um estrangeiro em outros países, o que lhe permitiria encontrar então uma pátria de referência, pois o estrangeiro em algum lugar vem de um outro lugar. “Ser estigmatizado é a minha desgraça e ao mesmo tempo o meu capital e agora já é preciso temer que se torne indispensável, embora suportá-lo também fique cada vez mais difícil.”).
O segundo conceito é Auschwitz que não pode significar apenas um lugar, um campo de concentração, mas um modo de ser do humano ‘empoderado’ que conheceu a barbárie que o habita e do humano ‘vitimado’ que conheceu a força do outro e a resistência da vida que olha para além dos portões de Auschwitz sonhando liberdade, um mundo para além, outro mundo imaginado mas sequer sonhado. Acontece que Auschwitz é sinônimo de morte.
Por fim e paradoxalmente a esperança, porque este livro magoado, triste, perquiridor, desconstrutor do estabelecido continua a apontar para o encontro do homem consigo mesmo, com sua humanidade e sua insignificância no concerto da história, no entanto vivente, no entanto agente. Vida e morte; a primeira presente; a segunda horizonte: “minha vida é uma luta árdua pela minha morte e nessa luta – obviamente – não poupo nem a mim, nem aos outros. O resto é detalhe sem importância e posso começar onde quiser; basta eu fazer anotações para as a notações de um futuro romance; lembrete para uma memória exclusiva – a minha -, a qual ainda não está pronta para se abrir para a memória petrificada, universal: a forma.”  E daí o princípio que orienta a vida? “Se sua existência não for inacreditável, então não é digna de ser notada”. Mas todos somos “notados”, ainda que sejamos ‘ninguéns’, há alguém que posso nem conhecer que tornará inacreditável o que vivi. Foi disso que tirei a categoria da esperança para, fechado o livro, relê-lo mentalmente.
Imre Kertész faz suas reflexões dialogarem com o que está vivendo, como se aquelas fossem anotações a que as descrições da visão imediata do espaço, os deslocamentos e os encontros com outros escritores dariam um contexto. Há, portanto, muito de biográfico neste livro. E um diálogo constante entre o eu-atual que escreve, e um eu-outro que o atual imagina e às vezes idealiza como aquele que foi “criador” já que no momento toda criação parece afastada por uma chegada ao nada que o eu-atual seria. Cansaço e certeza de que o futuro que a esperança aponta somente não será repetição do mesmo passado se a memória de Auschwitz permanecer como presente, quando se sabe que duas forças distintas se cotovelam, rivalizam neste final do século XX e nestes começos do século XXI:

Daqui a alguns anos tudo isso vai desaparecer, tudo, tudo vai mudar; as pessoas, as casas, as ruas; as memórias serão emparedadas, as feridas urbanizadas, o homem moderno, com sua característica flexibilidade, vai esquecer tudo, vai filtrar da sua vida o sedimento sombrio de seu passado, como faz com a borra do sue café. Sinto certa satisfação de ainda ver tudo isso (e não apenas vejo, mas também compreendo), talvez pela última vez, como um naturalista se sentiria se de repente avistasse um exemplar de uma espécie que acaba de ser extinta, vivendo tranquilamente sua vida anacrônica.
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Jovens embrulhados em bandeiras como em um lençol, com cocares gigantescos, com olhares que brilham cheios de ódio, como quem está à cata de suspeitos. Surge a pergunta de passagem, se vale a pena analisar o fenômeno; acredito que não. O que, porém, surpreende é a falta de mudança. Como se esses homens, frequentemente jovens, desconsiderando o que é possível desconsiderar, ou seja, a pessoa, fossem os mesmos que eu vi nos anos quarenta, os mesmos rostos, a mesma voz, o mesmo gesto etc., e isso, por sua vez, indica uma certa realidade constante. É conspícua a falta total de capacidade de se adaptar, de qualquer flexibilidade – sempre repetem a mesma coisa, da mesma maneira –, e isso mostra graves problemas que residem nas raízes vitais.

Viver nos anos 1990 este paradoxo numa humanidade que está cindida entre aqueles que lutam e sonham com um mundo sem totalitarismos (de direita ou de esquerda) e aqueles que apostam no que no passado já falhou: a prática fascista de toda espécie de criadores de Auschwitz:
Os detentores do dinheiro e do poder concordarão novamente em fazer a sociedade decair completamente, só para salvar o que podem e, por fim, só poderão fugir à custa de um novo totalitarismo, de novas catástrofes sociais; mas que espécie de fuga, que espécie de totalitarismo serão esses? Quem poderá dizer se essas ideologias ameaçadoras dispõem de qualquer tipo de visão que não tenha sido experimentada e que não tenha falhado?
Eis algumas passagens que sublinhei:

“Uma coisa é semear ideias, outra, colhê-las. “ (Wittgenstein, Vermischte Bemerkunge)
“Toda “convicção” é a máscara de um tipo de pessoa e não importa com qual convicção ela se disfarce, acaba permanecendo sempre a mesma, sempre agindo da mesma forma.”
“Março luminoso. É de manhã. Cores duras, nítidas, o brilho ofuscante do céu.”
“O escritor deve evitar tornar-se espirituoso quando não achar mais o que dizer.”
“… Frankfurt. A feita de livros; fui devidamente carimbado como mercadoria à venda; leituras públicas de minhas obras, das quais eu mesmo não entendo palavra alguma, enquanto sempre espero o pano cair.”
“Todo consolo carrega consigo uma intensa sensação de mentira.”
“Com base no público que lê os meus livros, posso tirar conclusões sobre os próprios livros?”
“… é difícil permanecer sensato dentro do campo de gravitação da loucura.”
“… ele, o verdadeiro criador, está morto. Gostava e ainda gosto deste meu “eu” anterior, sofredor e estilizado em quem habitei por tanto tempo, este grande morto que agora vou enterrar na minha peça. Fico repetindo as palavras de Ibsen: escrever quer dizer fazer julgamentos sobre nós mesmos.”
“Hoje em dia não tenho mais os grandes sonhos que mostravam o caminho. Não adianta dormir, e acordar é inútil.”
“E sei que o suplício do meu saber nunca vai me abandonar.”

O último capítulo se inicia com um enunciado de Wittgenstein: “Um só dia é suficiente para conhecer os horrores do inferno; dá e sobre tempo para isso.” É quase uma epígrafe: neste capítulo virão as reflexões finais que se dão quando I. K. conhece “em meia hora” o inferno: a notícia da doença fatal de A., sua mulher. O que leva ao final  do livro:
Neste momento, porém, não sei de nada, não entendo nada, estou, por assim dizer, no limiar da vida e da morte, com o corpo inclinado para a frente, em direção à morte, com a cabeça ainda voltada para trás, em direção à vida, com o pé que se levanta, hesitante, para dar um passo. Em que direção irá? Não importa, porque aquele que dará o passo, não será mais eu, será um outro…
 
Referência. Imre Kertész. Eu, um outro. São Paulo : Ediotra Planeta do Brasil, 2007. (original de 1997)

Educar para violência

Educar para violência

Têm dias tristes, outros ainda mais.

Ver crianças sendo tratadas como coisas, descartáveis, na mira das balas certeiras que caem dos helicópteros surpreendendo-as nas saídas das escolas é algo muito duro.  É um recado dado e confirmado com os cortes na educação: Não frequentem as escolas.

As escolas não são espaços mágicos, não poderiam ser. E são. Ainda que existam instituições muito mais poderosas dizendo e vendendo o contrário disso.  As escolas enfrentam uma luta diária, professores são convencidos e vencidos pela desvalorização social, e financeira de que não podem e não devem se envolver com alunos – casos perdidos, ou de saúde ou de segurança.  A mídia, a polícia, a sociedade diz isso, a justiça, o governo, as universidades, as famílias, as igrejas e religiões produzem números, cenas, estatísticas, fracassos, narrativas, teorias.

E as crianças, jovens e adolescentes vão perdendo as feições de gente.  Tornam-se números, coisas sem importância, objetos que podem ser substituídos, e a intenção é a pior de todas. Apagar a possibilidade de transformação. De repente os colegas professores vão se perdendo nos detalhes, e deixando alunos e alunas não apenas para trás, mas de importar, de existir. Educação meritocrática e falaciosa.

Acostumamo-nos a violência como algo natural, como próprio de um tempo, e esquecemo-nos de oferecer outras possibilidades: literatura, arte, música, dança, felicidade, cultura e história, censuradas, no lugar delas a oferta de um atalho para a mediocridade. Títulos e bens valem mais do que o humano, é a síntese.

Deixamos de nos esforçar com aquele menino que não sabe ler, tentar outra possibilidade, ainda uma vez. De repente, a gente finge que não vê o menino que vítima de racismo deixa de ir para a escola, aquela menina insegura e tímida que sofre abusos, aquele outro que não leva sequer o que comer, o que os pais nunca vão à reunião porque trabalham mais do que deveriam, aquele outro que aos 10 anos já tem histórico de depressão, os que apresentam ansiedade com distúrbio alimentar e crises de choro, ou o outro que é negligenciado em casa mesmo tendo tudo, os projetos de ditadorezinhos, a criança agressiva com seus colegas. Tem para todo gosto e freguesia, redes públicas e privadas. Um universo brasileiro todo ali, já apontava Raul Pompeia, em seu Ateneu.

Não é sua culpa, professor. Nisto temos acordo, mas daí vem o Paulo Freire com a coisa da transformação do sujeito, a pedagogia da esperança: – É humanização demais, assim os professores vão enlouquecer!

É preciso dizer o contrário sem dizer, realçar o fracasso da escola, os casos de violência, o adoecimento dos professores. Ainda assim, é insuficiente. Então que se calem os professores, que os seus discursos sejam invalidados, contestados, desvalorizados. Tirem sua capacidade de reflexão, de acreditar na transformação que experimentam cotidianamente. É preciso que não se acredite na humanização das pessoas. Então, aqueles que estão nas salas de aula não teriam um futuro pela frente, não são pessoas, não são gente?

Usamos humanização para dizer o que ?

Todas as vezes que me proponho escrever sobre educação visito meus fantasmas. Muito embora nesse texto específico, a ordem dos fatores não seja a usual, pois são os fantasmas que têm me visitado com frequência.

No texto da semana passada, já esboçava um pouco do que queria dizer e direi no de hoje. Brinquei com coisa séria, e a conjuntura não está para brincadeiras. Então não venham procurar Cury quando sobra Paulo Freire. É como propor humanizar as escolas. Entende?

Há algum tempo as escolas, todas elas: confessionais, laicas, públicas, privadas, militares e técnicas, promovem uma educação em que esses sujeitos educandos, sejam cada vez menos sujeitos. Ainda pior se pobres e negros, mas dado a crescente do processo, ele já atinge outros grupos.  Desumanizam as escolas e seus profissionais e demonizam as crianças e jovens que se tornam assim aptas a morrer, sem manifestação ou contestação as práticas genocidas, no bom e popular português: defuntos sem choro.

Não têm pais? Não têm famílias?

É uma política, dada em pequenas doses, continuamente, de forma que as pessoas não percebam. Um exemplo bem atual é a negativa de festas de datas como dia das mães, dia dos pais, enfim, em datas em que se poderia ter acesso as famílias em suas mais diversas configurações, a negação dessas datas, assim como o dia da consciência negra, ou dia da mulher. Surge o não diálogo, o não dia disfarçado de inclusão ou respeito aos que não têm um ou outro membro da família. Parece bom, parece legal. Exatamente assim.

Até que se saia do conforto habitual, e se perceba que tem muito mais de onde sai essas coisas, não há espaço na escola para contemplar a diferença, mas para escondê-la dos olhos intolerantes, ao tempo em que apaga a fraternidade e o sentimento de pertencimento aquele grupo. Afinal, diante da sociedade de consumo como não sentir a ausência ou mesmo o luto nas propagandas, no comércio, e em todos os dias? Como não dizer da falta que o afeto faz?

Afastam-se as comemorações da escola porque é preciso dizer da escola sem frequentá-la, sem ver que as diferenças podem conviver harmoniosamente, sem ver nos demais integrantes da comunidade escolar um rosto amigo, parceiro. Humano.

Ir nas festinhas da escola, comemorar e aprender é ver que diferentes famílias se abraçam, amam, exatamente como as nossas. Ver que quando um professor é agredido ou mesmo ofendido toda uma sociedade é.   É imaginar  em cada criança morta um pouco dos nossos filhos. Como e quando deixamos de ver que a humanidade morre em cada negação de afeto, sonho e futuro.

 – Nossos filhos não são aqueles. Os que morrem não teriam chance mesmo.

Sem perceber nos tornamos cúmplices das mãos que atiram em crianças e jovens, e do silêncio que deixamos na sociedade quando cada um morre. É perceber que quando não se investe em educação, ou quando se cortam “gastos” na educação básica ou superior, deixa-se de investir na inteligência, na humanidade. Deixa-se de acreditar no futuro, na paz, na vida.

Não há atalhos, não há culpa, isso seria simples demais. A verdade é que tal qual o dilema no surgimento do ovo e da galinha, a desumanização da educação está colocada, se seria causa ou efeito, pouco ou nada importa, o que vivemos hoje é um processo que não se sabe o começo, mas a violência parece ser o fim.

Quem paga a conta

Quem paga a conta

A imposição das políticas estatais do atual governo ao povo é o suporte para garantir o governo autocrático populista. Uma ótima estratégia para manter a hegemonia consentida com mentiras populistas, anunciadas na linguagem grotesca, prova material e intelectual de ignorância escrachante. Assim, o capital é protegido contra todas as formas de oposição social – partidos políticos de esquerda, trabalhadores, servidores públicos, professores, estudantes, sindicatos, associações, MST, ONGs, etc. São estratégias adotadas de roupagem democrática para neutralizar as formas de estratégias de escrachar a oposição chamando de “nazista – fascista” é garantir o apoio popular temporâneo. Até quando? Não se sabe.
A sucessão de medidas governamentais – senão diárias, pelo menos semanais e mensais – é a prova material real do leilão dos “bens comuns” do Brasil, com o rigor da lei “quem dá menos, desde que..”? E não “quem dá mais”.
 
1. Fim das multas ambientais – é a grande festa do agronegócio. Está liberado o uso dos venenos e agrotóxicos agrícolas sem restrições e sem limites, com o uso da tecnologia mais moderna – tratores, pulverizadores, aviões, droners; e os venenos são “agrodefensivos”; está liberada aos latifundiários a invasão e posse de áreas de reservas indígenas, parques de reservas florestais públicas, privatização de parques e florestas urbanas…, privatização, em ritmo acelerado, da exploração do petróleo, das reservas minerais, da água, das madeiras… e a grande devastação e a total destruição ambiental –  do Brasil e do Planeta Terra.
 
2. Pode matar  “invasor” de latifúndio – um desdobramento da primeira medida – pode matar todos os ocupantes dos movimentos sem-terra que invadirem propriedades improdutivas, mesmo que estas propriedades na origem não tenham sido legais e não estejam em dia com as tarifas tributárias legais; se o dono da propriedade matar um ocupante “invasor” não vai preso e nem vai responder por crime de assassinato na justiça.
 
3. Retirada dos radares nas rodovias – a família Bolsonaro tem 44 multas de trânsito nos últimos tempos. Via de regra, quem abusa da velocidade são os donos de carros importados, caminhonetões, carrões de executivos, latifundiários, políticos, juízes, desembargadores, empresários e a numerosa classe média motorizada, enfim, os poderosos. É claro, estão incluídos no excesso de velocidade os traficantes, os beberrões, os ladrões, e todos pobres que têm carros velhos e enferrujados.
 
4. Reforma da Previdência – a nossa Previdência em si e por si não é deficitária, dizem os especialistas, os que tem acesso a todo o sistema de arrecadação e de gastos, que a Previdência é lucrativa. E os desvios e os privilégios de altas aposentadorias, de políticos, juízes, desembargadores e o uso do dinheiro da Previdência para outros fins é que tornam a nossa Previdência deficitária.  Se os grandes devedores, ou seja, o capital, recolhessem a previdência e os grandes valores que devem, ela seria superavitária. A Previdência não é imposto. É contribuição para benefício futuro. Portanto, não pode ser usada para pagar dívidas inexistentes aos bancos com juros sem limites e sem fim.
 
5. Armamento liberado – todos podem andar armados, já que os criminosos, assaltantes, ladrões, traficantes… andam armados.
 
6. Fim do “Mais Médicos” – supressão dos contratos e a expulsão do Brasil dos médicos cubanos. É claro, os médicos cubanos ensinavam como não ficar doente e cuidavam a saúde dos pobres, enquanto os nossos médicos cuidam dos doentes, de preferência dos mais ricos e dos que tem planos de saúde. Os pobres, por que tratar as doenças dos pobres?
 
6. Fim da Lei Rouanet – gastar dinheiro com cultura popular, com arte, com música, com museus, etc. é desperdício de dinheiro, que pode fazer falta para o desenvolvimento de empresas… A lei do capitalismo continua a mesma, só que agora cada vez mais poderosa: garantir que poucos explorem muitos, muito.
 
7. Morte à educação e às universidades públicas – por conta da crise financeira – baixa arrecadação e juros astronômicos aos poderosos bancos – a educação paga a conta. É claro (e tá certo!) a educação pública das camadas sociais mais pobres – as escolas das periferias, favelas, zonas rurais, povos indígenas, quilombolas – não merece qualidade. É conveniente e prudente manter as massas populares pouco escolarizadas. Só alfabetizadas. Agora, foram incluídas, nesta medida sanitária- profilática-monetária, as universidades públicas. Razão: as universidades públicas são inventoras dos conhecimentos científicos da história, da formação da consciência crítica, portanto inimigas perigosas da ignorância reinante e poderosa que tomou conta do Planalto brasileiro. Por força e em nome desta ignorância foi feita a nova proclamação do Planalto: todo mal da educação brasileira se deve ao Paulo Freire.
 
Dezenas de nações do mundo inteiro estão usando as lições e os métodos pedagógicos de Paulo Freire, aplicados na educação geral nos seus países, com excelentes resultados e aqui, no Brasil, onde Paulo Freire nasceu, cresceu e ensinou as belas lições universais, ele é culpado pelas desgraças da nossa educação desqualificada.
Bem que podiam nos poupar desta!

Não obedeça, não leia!

Não obedeça, não leia!

É o caos a ignorância.
Uma pessoa morre em meio a um desfile. Um corpo na passarela atrapalhando o tráfego do bem viver. Os expectadores recebem muito mais do que foram ver, a morte ao vivo e a cores. Em preto e branco já estamos acostumados: são oitenta tiros ou fogos de artifício de uma festa particular. Espetáculo da naturalização da falta de humanidade. Intervenção negra de alguém que grita que ninguém devia estar ali, que o garoto tinha acabado de morrer. Ouvem-se então eufóricas palmas anestesiadas. Ignoram duplamente.
Clap, clap, clap. Reproduz o som das palmas. Não é verdade, é falso. As minhas não soam assim. Já o silêncio não tem reprodução. Não ouvimos os tiros que matam as vidas nas favelas, não ouvimos os gritos de Martin, Malcom ou Mandela. Insistimos em novas artimanhas que nos mantenham sentados como a platéia Fashion Week: curtir, compartilhar, fotografar, tuitar, trending topics, lacrar, viralizar.
Em meio aos convites, fotos e receitas, as pessoas convidam a lutar sem dizer quais estratégias devem ser usadas para barrar o avanço sobre os corpos de mulheres à disposição do turismo sexual, aos casos repetidos de feminicídio, aos assassinatos e violências contra pessoas trans, homo e ltgbt, racismo, intolerância religiosa. E negros sendo alvejados de balas. São alvos fáceis, construídos pela força de uma mídia que repete a exaustão que aqueles locais são violentos, que as pessoas moradoras daquela região sempre têm culpa do mal que recebem. São alvejados cotidianamente pelos programas que fazem um balanço geral de suas mazelas, e o resultado apresentado aos berros: é que precisam ser extirpados da sociedade.
– Tem que resolver isso, taokey!
Alvejados, cada vez mais claro. Corpos negros descoloridos e pintados de bandidos. Ignoram seus destinos já desenhados pela mão do grande irmão. Um povo em decomposição, lavados em água sanitária e sabão. Sem contaminação. É quase um rap, é nóis! Nossas consciências seguem ainda mais limpas.
É dia do trabalho, feriado. Ignoramos que a força que movimenta e produz sai de nossas mãos. Os corpos seguem exaustos, e ainda nos alegramos. Tem show. Repito a poesia de Pessoa que sempre me incomoda:

Ela canta, pobre ceifeira, 
Julgando-se feliz talvez; 
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia 
De alegre e anônima viuvez, 

Ondula como um canto de ave 
No ar limpo como um limiar, 
E há curvas no enredo suave 
Do som que ela tem a cantar. 

Ouvi-la alegra e entristece, 
Na sua voz há o campo e a lida, 
E canta como se tivesse 
Mais razões pra cantar que a vida. 

Ah, canta, canta sem razão! 
O que em mim sente ‘stá pensando. 
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando! 

Ah, poder ser tu, sendo eu! 
Ter a tua alegre inconsciência, 
E a consciência disso! Ó céu! 
Ó campo! Ó canção! A ciência 

Pesa tanto e a vida é tão breve! 
Entrai por mim dentro! 
Tornai Minha alma a vossa sombra leve! 
Depois, levando-me, passai! 

(Fernando Pessoa. Ela Canta, Pobre Ceifeira – in “Cancioneiro” )
 
Descobrimos que a leitura, e o prazer que adviria tornou-se mera bisbilhotice pelo cotidiano, ou ainda pelo que vem pronto e embalado pelo circuito midiático convencional. As mentes processam sem eficiência a quantidade de notícias que se sobrepõem velozmente. Ignoram tudo para a make perfeita e a selfie que brilha.

Leitores medíocres. De manchetes e poucos caracteres. Muitas vezes escondem-se em círculos acadêmicos ou intelectuais deixando passar ao largo e longe a importância de aprender e ensinar, do conhecimento que instrumentalize a transformação. Ignorância vaidosa que não explica que todos os pobres e velhos cairão mortos nas passarelas sem aposentar-se.
Não tem eficiência textual que dê conta do recado necessário, nem mesmo volume de compartilhamentos que aplaque a sanha do mercado em impor sua narrativa multifacetada, para isto entregam textos cada vez mais patrocinados, capazes de cansar cada vez mais o poder de reflexão, e tornar as pessoas cada vez mais manipuláveis, sem sequer precisar do discurso. Sem foco, sem direção ou projeto de texto. A leitura é pesada para os dias amenos de feriado e fins de semana.
Não há estranhamento.
Elegeu-se não contraditoriamente um sem discurso, sem leitura, sem compreensão dos problemas vários e profundos que permeiam o país.  O avesso a filosofia chega com a mesma propriedade que o molho Cury alimenta, emocionalmente, os profissionais da educação.  Em banquete que cabe pílulas mágicas de autoajuda e os coach. Também ali jaz Paulo Freire, cada um recolha seu próprio lixo já dizia Malcom X.
E a poesia se afasta e ri de nós. Permita-me ignorar e continuar sentada sem de nada discordar, rir e cantar. Ceifando o conhecimento, a reflexão, a insurgência. Matando as vidas que pulsam e insistem em seguir. Ainda assim escolheria não ignorar sem assumir os riscos.
Ah, poder ser tu, sendo eu! 
Ter a tua alegre inconsciência, 
E a consciência disso! Ó céu! 
Ó campo! Ó canção! A ciência 

Bem-aventuradas as contradições do capitalismo

Bem-aventuradas as contradições do capitalismo

Foi escrito por David Harvey e editado pela Boitempo um livro recente de profundos e supremos sentidos científicos da história atual dos homens. O livro é um mundo – presente compartido – recheado de verdades latentes que podem ser desvendadas e degustadas somente pela leitura lenta e vagarosa, em profundidade na penetração, por todos interessados em desmascarar os embustes impostos pelo ultra neoliberalismo impiedoso de hoje, pelos governos autocráticos. A leitura exige, requer, ousadia e audácia. Sinceridade. Leitura de um curioso. De um rebelde. Para aqueles e aquelas que já leram ou estão o livro, parabéns.
Antes de revelar o título, faço um pedido respeitoso e sincero aos afinados em plena e suprema harmonia com a ideologia “trumpkiana” e “bolsonarista”: por gentileza, e para o bem da humanidade, libertem-se dos preconceitos e das ignorâncias e leiam imbuídos e embevecidos da tolerância mútua.E acima de tudo, por força da consciência crítica.
Agora, sim, vou revelar o título do livro: “17 Contradições e o fim do capitalismo”. Mais um pedido: por gentileza, não me perguntem por que apenas 17 (ou tantas) contradições neste mundo de tragédias. E também, não me perguntem se realmente é o fim do capitalismo, e se for o fim, o que virá e como chegará o mundo após o capitalismo. Ainda por gentileza, libertários, leiam e reeeleiam o livro antes de anatematizá-lo, particularmente, os mais fiéis aos princípios de privatização e neoliberalização para maximização dos lucros por conta do estado capitalista autocrático.
Para aperitivo e degustação, vejam alguns enunciados, muito breves e sem interpretações e sem comentários.

“Crises são essenciais para a reprodução do capitalismo” Esta é a abertura do livro. “…Um livro potencialmente perigoso, mas fertilmente provocativo”. Assim termina o livro. E no meio está a riqueza.

Crises são momentos de transformação em que o capital tipicamente se reinventa e se transforma em outra coisa. E essa outra coisa pode ser melhor ou pior para as pessoas, mesmo que estabilize a reprodução do capital. Mas crises também são momentos de perigo quando a reprodução do capital é ameaçada por contradições subjacentes.[…]
 
É no desenrolar das crises que as instabilidades capitalistas são confrontadas, remodeladas e reformuladas para criar uma nova versão daquilo em que consiste o capitalismo. Muita coisa é derrubada e destruída para dar lugar ao novo. […]
 
As crises abalam profundamente nossas concepções de mundo e do lugar que ocupamos nele. E nós, como participantes e habitantes inquietos desse mundo que vem surgindo, temos de nos adaptar por coerção ou consentimento a um novo estado de coisas, ao mesmo tempo que, por meio de nossas ações e do modo como pensamos e nos comportamos, damos nossa pequena contribuição às complicações desse mundo. […]
 
Atualmente, as esperanças estão concentradas no capitalismo “baseado no conhecimento” (em primeiro plano, a engenharia biomédica, a engenharia genética e a inteligência artificial). […]
 
… Uma classe capitalista plutocrática cada vez mais consolidada permanece inconteste em sua capacidade de dominar o mundo sem restrições. Essa nova classe dominante é apoiada por um Estado de segurança e vigilância que não é em absoluto contrário ao uso do poder de polícia para dominar qualquer forma de dissidência em nome do antiterrorismo. […]
 
Mas é fundamental apontar alternativas por mais estranhas que pareçam, e, se necessário, apoderar-se delas, se as condições assim determinarem. Desse modo, podemos abrir uma janela para todo um campo de possibilidades inexploradas e não consideradas. Precisamos de um fórum aberto, uma assembleia global, por assim dizer – para refletir em que ponto se encontra o capitalismo, para onde se encaminha e o que deveria fazer a esse respeito. Espero que este livro sucinto possa contribuir para o debate.
 

“É o livro mais perigoso que já escrevi”, confessa levemente apreensivo David Harvey.
 
E é. Porém, precisa ser lido sem medo. Uma leitura saudável na busca contínua e perpétua pela novidade da subornação da economia à dignidade humana de todos e não ao lucro incontido de alguns poucos sem dignidade humana.
Então, vamos ler o livro, quem já leu, vamos reler?