por João Wanderley Geraldi | jun 6, 2019 | Blog
Para Olívio Dutra, Flávio e Maria Bettanin e Jane Batista
Às tertúlias da juventude
Queria a palavra sem alamares, sem
chatilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramentos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
(Manoel de Barros)
Haveria uma palavra assim despida, com que inaugurar uma mensagem sem com ela carregar o peso do vivido? Vivemos este paradoxo: ainda querer o inédito, inaugurar o novo, mas o desenho não pode ser traçado se não com as tristes palavras nossas que nos ocupam e com que nos ocupamos.
Retornando ao afazeres diários da vida que se leva, leio um título e um resumo escrito às pressas antes da viagem.
O título: Mensagem aos leitores que vão nascer
O resumo: Tomando Brecht por interlocutor privilegiado, tal como ele soou em português na tradução de Geir Campos, aproximo os poemas “Aos que vão nascer”, “Rosa de Hiroshima” e “Mensagem à poesia”, estes de Vinícius de Moraes, para refletir sobre algumas âncoras metafóricas ou alegóricas com as quais construímos sobrevivências nos entreatos de estados prosaicos e poéticos, sabendo que só nos resta tecer um “Teologia do traste” (Manoel de Barros) para reencontrar grandeza nos desperdícios dos pequenos nós cotidianos.
Interrogo-me: o que estava se passando quando escrevi este resumo, acossado pela pressa da organização do COLE e pela história de sempre nele estar, uma história a que não consigo dar um ponto final correto?
Reescrevo o título, e a tela permanece em branco por vários dias. As máquinas, ainda que sofisticadas, demandam mãos com dedos que dancem sobre um teclado: as letras se deixam enfileirar, mas não se enfileiram sozinhas, obrigam-nos a arranjá-las e rearranjá-las segundo uma lógica que as ultrapassa e que, liberando as letras de dizerem a si mesmas, aprisiona nossos dedos em frente do teclado.
Que mensagem escrever? Que leitores vão nascer? Com que palavras rasgar o que nos fez? Se não é possível esvaziar as palavras de seu presente, melhor mergulhar sob o peso de seus sentidos para que conosco permaneçam afogadas no fundo do leito do rio para abrir espaço a novos sentidos com que os que vão nascer as engravidarão por seu turno. História que se tece. Como história, só temos a deixar nossos fios do presente, úteis ou inúteis que sejam. Seria sobre estes fios que pensava quando encaminhei o resumo de uma fala possível?
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(Carlos Drummond de Andrade. Mãos Dadas)
E eis as primeiras ancoragens de uma geração que se fez sob os signos da REALIDADE, do PRESENTE, funestos e taciturnos; da ESPERANÇA e das MÃOS DADAS, sonhos e utopias. Empreendemos nossa viagem por entre as análises de conjuntura, mistura de sonho e realidade, afinal esta somente se desvenda com os instrumentos que aquele pode fornecer. E não se podia esmorecer: havia que crer e fazer. O porto distante era o encontro entre sonho e realidade; a possibilidade enfim de gozer no mundo real o encanto do mundo sonhado. Sonho antigo…
Seria sonho ou não? … Depois vós me direis…
Um homem… era um grego, era um persa, um chinês,
Ou judeu? … Eu não sei … tão somente me lembro
Que era um ente verídico e grave, que era membro
Do partido da ordem…
E ele diz então:
“Esta morte jurídica imposta a um charlatão,
Ferindo este anarquista é soberana e justa…
Faz-se mister que a ordem e a autoridade augusta
Defendam-se… Tais cousas hoje ninguém discute.
Depois, se a lei existe é para que se execute…
Verdades santas há de origem tão divina
Que devem sustentar-se até na guilhotina.
Este inovador pregava a filosofia
Do amor e do progressos… histórias… utopia!
Ria do nosso culto antigo e namorado.
Era um destes p’ra quem nada existe sagrado,
Nem respeitam jamais o que o mundo respeita…
P’ra lhes inocular doutrina assaz suspeita
Ele ia procurar nos bordeis crapulosos,
Boieiro e pescador, patifes biliosos,
Imundo povilhéu não tendo eira nem beira…
E entre canalha tal pregava de cadeira.
Jamais se dirigia aos homens de dinheiro,
Aos sábios, aos honrados, ao honesto banqueiro.
Anarquizava as massas… e com dedos p’ra o ar
Enfermos e feridos entendia curar
Contra a letra da lei.
Não para aí o horro…
Ressuscita os mortos… este vil impostor
Tomava nomes falsos e falsas qualidades
E errando ora nos campos, ora pelas cidades,
Ouviam-no dizer: “Podeis em acompanhara!”
Ora, falai, senhor! Não é mesmo excitar
Uma guerra civil entre os concidadãos?
Via-se ir ter com ele horrorosos pagãos,
Que dormiam nos fossos a acompanhar-lhe o rastro:
Um coxo, outro com o olho escondido no emplastro
Outro surdo, outro envolto em pústulas tenazes.
Vendo este feiticeiro andar com tais sequazes
O homem de bem entrava em casa envergonhado…
Um dia… eu já nem sei quando isto foi passado,
Numa festa… pegou de um chicote, imprudente!
E se pôs a expelir, mas muito brutalmente,
Gritando e declamando, honestos mercadores,
Que vendiam ali pássaros, aves, flores,
E outras coisas, que mesmo o clero permitia
E de cujo produto uma parte auferia.
Uma mulher sem brio seguia-lhe na trilha.
Ele ia perorando, abalando a família,
A santa religião e a sociedade,
Decepando a moral e a propriedade.
O povo o acompanhava, e o campo estava inculto.
Era ousado demais… Chegava seu insulto
Até ferir o rico!…
E revoltava o pobre
Sempre, sempre a dizer que todos que o céu cobre,
São irmãos, são iguais… que não há superiores,
Nem grandes, nem pequenos, ou servos, ou senhores,
E que o fruto é comum…
Té ao clero insultava!…
Bem vê, bem vê, senhor, que este homem blasfemava.
E tudo isto era dito assim em meio à rua,
A uma canalha vil, grosseira, imunda e nua.
Preciso era acabar, as leis eram formais…
Foi, pois, crucificado…”
Ouvindo frases tais
Ditas com são singela e adocicada voz…
Eu surpreso exclamei: Senhor, mas quem sois vós?”
Ele me respondeu: “Preciso era um exemplo;
Eu me chamo Elisab, sou escriba do templo…”
“Porém de quem falais… Dizei-me… de quem é?”
“Meu Deus! Deste vadio… Jesus de Nazaré”.
(Palavras de um conservador a propósito de um revolucionário. Victor Hugo. Tradução de Castro Alves, 01.08.1868)
Mais ancoragens: uma leitura outra do evangelho, outra tão antiga e tão desconhecida. Parecia que até a vetusta Igreja se inclinava: e o fruto é comum. Um século antes de maio de 1968, Castro Alves traduziu Victor Hugo. Quem retomará o canto que se costurará a outros tantos cantos para fabricar um amanhã?
Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não
Posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares
E é preciso reconquistar a vida.
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado – não a magoem – que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há uma poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh, procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira, e um pranto de criança sozinha, numa estrada
Junto a um cadáver de mãe; digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber; contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável
Solidão; peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.
Mas não a traí. Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo de paz. Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-la mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abatem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso…
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha vestida de vermelh
A quem foi dado se perder de amor pelo direto
De todos terem uma pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha vestida de vermelho, e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se…
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.
(Mensagem à poesia. Vinícius de Moraes)
Renúncias, adiamentos, amores sublimados. Outras ancoragens. Quiséramos ser heróis das vidas dos outros, e esquecemos que o herói se serve morto, a vida já passada, acabada. E sequer heróis de nossas próprias vidas nós conseguimos ser. Mas escrevemos a vida a traços de lápis vermelho. Taciturnos, abandonamos o miúdo viver pela grandeza da tarefa, pela urgência da mudança. Seria mesmo possível construir a alegria com base nos sentimentos tristes?
1.
De que serve a bondade
se num instante os bondosos são mortos ou são mortos aqueles
a quem tratavam bondosamente?
De que ser a liberdade,
se os livres há de viver entre os que livres não são?
De que serve o bom senso
se só a insensatez proporciona
o alimento de que todos carecem?
2.
Em vez ser bondoso, só, fazei por onde
instituir-se uma situação que propicie a bondade
e, mais, que a torne supérflua.
Em vez de ser livres, só, fazei por onde
instituir-se uma situação que a todos dê liberdade
e que, também, o amor à liberdade
se torne supérfluo.
Em vez de ser sensatos, só, fazei por onde
instituir-se uma situação em que seja mau negócio
a insensatez de um só.
(De que serve a bondade? Bertold Brecht. Tradução de Geir Campos)
E, no entanto, ainda é preciso ser bondoso. O amor à liberdade ainda nos leva à rua. A insensatez nunca foi de um só. Acordamos nas manchetes de jornais abismados e enxovalhados: tanto queríamos outra coisa. Foram inadequados os fios que usamos ao tecer esta história? Forma adequadas as cores dos dizeres que dirigiram nosso bordar?
1.
Realmente, eu vivo num tempo sombrio.
A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem ruga
denota insensibilidade. Quem está rindo
é só porque não recebeu ainda
a notícia terrível.
Que tempo é esse em que
uma conversa sobre árvores chega a ser uma falta,
pois implica em silenciar sobre tantos crimes?
Esse que vai cruzando a rua, calmamente,
então já não está ao alcance dos amigos
necessitados?
[…]
Eu gostaria de ser um sábio.
Nos velhos livros consta o que é sabedoria:
Manter-se longe das lidas do mundo e o tempo breve
deixar correr sem medo.
Também saber passar sem violência,
pagar o mal com o bem,
os próprios desejos não realizar e sim esquecer,
conta-se como sabedoria.
Não posso nada disso:
Realmente, eu vivo num tempo sombrio!
2.
Às cidades cheguei em tempo de desordem,
com a fome imperando.
Junto aos homens cheguei em tempo de tumulto
e me rebelei com eles.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
Minha comida mastiguei entre refregas.
Para dormir deitei-me entre assassinos.
O amor eu exercia sem cuidado
e olhava sem paciência a natureza.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
As ruas do meu tempo iam dar no atoleiro.
A fala denunciava-me ao carrasco.
Bem pouco podia eu, mas os mandões
sem mim sentiam-se mais garantidos, eu esperava.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
Minguadas eram as forças. E a meta
ficava à grande distância;
claramente visível, conquanto para mim
difícil de alcançar.
Assim passou-se o tempo
que sobre a terra me foi concedido.
3.
Vós, que vireis na crista da maré
em que nos afogamos,
pensai,
quando falardes em nossas fraquezas,
também no tempo sombrio
a que escapastes.
[…]
E entretanto sabíamos:
também o ódio à baixeza
endurece as feições,
também a raiva contra a injustiça
torna mais rouca a voz. Ah, e nós
que pretendíamos preparar o terreno para a amizade,
nem bons amigos nós mesmos pudemos ser.
Mas vós, quando chegar a ocasião
de ser o homem um parceiro para o homem,
pensai em nós
com simpatia.
(Aos que vão nascer. Bertold Brecht. Tradução de Geis Campos)
Esta geração que se despede muito aprendeu. E, sobretudo, se deixou iluminar por grandes metanarrativas. Sonhou e trabalhou. Muitos de nós esqueceram-se de ser felizes. Muitos outros de nós construímos nossa felicidade na luta e, mesmo sem paciência para olhar a natureza, denunciamos a insensatez de sua destruição. Podemo deixar mensagens aos que vão nascer, além do pedido de simpatia? Talvez tenhamos que reconhecer que nossos tratados foram sempre sobre a grandeza, e esquecemos ‘as grandezas do ínfimo’. Se uma mensagem há, ela poderia ser composta pela costura de duas vozes:
As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo de minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as ideias.
Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as ideias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Ideias são a luz do espírito – a gente sabe.
Há ideias luminosas – a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
Atômica, a bomba atôm……..
………………………………………………….Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.
(Teologia do Traste. Manoel de Barros)
…
É inútil querer parar o Homem:
em tudo que de amor cantar
o seu sonho caminhará.
É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas da carne:
a andar em forma de palavras
sob os arvoredos da vida
o seu sonho caminhará
do pensamento para as mãos
e das mãos para o pensamento,
noite e dia caminhará.
Até tornar as mãos em pássaros
libertos
para amar o azul.
(Canto para as transformações do homem. Moacyr Félix).
______
1. Este texto foi escrito para minha participação no Congresso de Leitura do Brasil – COLE – de 2005. Posteriormente ele foi publicado na Revista Freinet (Publicação da ABDEPP), vol. 2, 2007, p. 52-56. Eu o inclui em meu livro Ancoragens – Estudos bakhtinianos, publicado em 2010 pela Pedro & João Editores. Lembro de algo que me espantou no comentário da apresentação do texto no COLE: a professora que coordenava a mesa disse que quando já não há o que dizer [ou não se tem o que dizer], dá-se à palavra aos poetas… Eu sempre pensei o contrário, os poetas nos falam para que tenhamos o que dizer. Um mundo em que somente o ”homo sapiens”, em que somente a razão fala, é um mundo insonso, de esqueletos sem carnes, sem vida, sem emoção. Este é um de meus textos em que recupero leituras antigas, associo-as a novas leituras e faço dialogar diferentes vozes, aquelas que me calaram fundo no coração. O título é junção de títulos de dois poemas, um de Brecht (Aos que vão nascer), outro de Vinícius de Moraes (Mensagem à poesia). As pessoas a quem o texto foi dedicado – Olívio Dutra, Flávio e Maria Bettanin e Jane Batista são aquelas que me fizeram ver, que me fizeram ler, que me fizeram ouvir alguns dos poemas que estão aqui. Uma amizade dos anos 1960 que perdera e perdurará sempre.
Referências
Andrade, Caros Drummond de. “Mãos dadas” in. Manoel Sarmento Barata. Canto Melhor. Uma perspectiva da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
Barros, Manuel. Poemas ruprestes. Rio de Janeiro/S. Paulo: Record, 2004.
Brecht, Bertold. Poemas e canções. Tradução e seleção de Geir Campos. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1966.
Felix, Moacyr. “Canto para as transformações do homem” in. Manoel Sarmento, op. cit. (o poema está datado: maio de 1964).
Hugo, Victor. “Palavras de um conservador a propósito de um revolucionário”. Tradução/paráfrase de Castro Alves. In. Castro Alves. Poemas revolucionários. Prefácio e seleção de Fernando Góes. São Paulo : Editora Universitária, s/data (o prefácio é de março de 1945).
Moraes, Vinícius de. “Mensagem à poesia” in. Vinícius de Moraes. Antologia poética. Rio de Janeiro : Editora Sabiá, 8ª. ed., s/data (a Advertência que abre esta edição, assinada por V. M., é de agosto de 1967).
por Mara Emília Gomes Gonçalves | jun 6, 2019 | Blog
Escolha é sempre algo que nos leva por um caminho, não necessariamente o que podemos supor, mas nos leva a algo que é o resultado e suas implicações na realidade. É assim que muitas vezes chegamos a lugares, ambientes e por que não dizer a pessoas horríveis. É resultado de escolhas. Até aqui falei do óbvio da vida e da condição humana: da nossa fala ao silêncio, das ações aos momentos de total apatia e omissões, o pensamento precede a língua e tudo mais, é preciso pensar, e então estamos escolhendo.
Dados os últimos acontecimentos do nosso país, sempre me inquietou o porquê da maioria de nós ter escolhido cultivar o ódio? Isso parece à coisa mais difícil de pensar. Porque não me refiro ou imagino pessoas raivosas e distantes de mim, penso mais cotidianamente nos mais pobres e que me ladeiam pela vida. Porque essas pessoas escolheram o ódio? Não farei lista de suposições. Talvez devesse.
Volto ao que me motivou escrever tais linhas, leio uma mensagem que diz que o Papa observa que um político nunca deve semear o medo e o ódio, mas esperança. Poderíamos pensar que é uma obviedade sua constatação, pois nada mais necessário ao mundo do que esperança. Então porque elegemos o contrário disso? Porque pessoas como a dona do armazém da esquina, o moço que dirige o carro do aplicativo, a moça que é silenciada pelo marido conservador, vários outros e outras. E ainda pior, porque muitas pessoas que seguem uma doutrina religiosa se afastam da esperança, e elegem para suas vidas e a do outro, situações de medo, fome, miséria, injustiça e fundamentalmente a desesperança.
Dentro de algumas tentativas de diálogo com essas pessoas destaco a luta contra o socialismo/comunismo com maior preocupação. O fato de que uma parte das pessoas não querem o socialismo/comunismo, ou ainda a ideia do que seria isso, é bem interessante.
Na verdade, em geral elas não sabem muito bem o que é, foi ou mesmo o que preconiza tais modelos econômicos. Parece até piada que ainda existam grupos que acreditam que os comunistas vão tomar suas casas (em geral onde moram) ou sítios para fazer a reforma agrária, parece ainda pior que uns pensem que o comunismo impediria as pessoas de terem religião. Ou ainda que usem os exemplos de países como Venezuela e Cuba para rechaçar o comunismo, sem sequer abordar os embargos econômicos impostos pelo imperialismo norte americano, além do interesse petrolífero no caso da Venezuela.
Ainda assim, as pessoas tiveram que abrir mão de suas experiências concretas, do que vivem e do que conheciam, para acreditar no caos dos países que elas pouco ou nada conhecem, e sendo sincera, não acredito que pudesse lhes causar desconforto. Não temos essa massa de pessoas sensíveis a dor dos outros, quanto menos de outros países. Já tentaram entender isso? Ainda mais, o que e porque as pessoas não dedicam tal atenção e medo à situação atual em que crianças, mulheres, jovens negros, e gays estão sendo exterminados em nosso próprio país.
Creio não ser muito honesto dizer que a preocupação é com a vida do outro. Mesmo que algumas pessoas se neguem a enxergar as mazelas do regime capitalista que dizima populações inteiras na guerra petrolífera, abandona países africanos (subarianos) a própria sorte de exploração e epidemias, extermina tribos de povos nativos, é conivente com a quebra de barragens de empresas de mineração, imposição de bloqueios econômicos, barram a entrada de barcos de refugiados, para não dizer das guerras armamentistas entre outros resultados do capitalismo. Imagine dizer: para evitar que pessoas morram sem liberdade de expressão, ou sem acreditar em Deus,…
Entre outras crenças do que estaria no cerne do comunismo em suas cabeças, deve-se exterminar quem pensa diferente. Entendem? Não é verdade que a preocupação das pessoas está no que o país poderia virar com o comunismo, ou tampouco com a corrupção, a verdade é que um pequeno grupo que controla as informações conduz as pessoas mais simples ao engano: seja pela falta de conhecimento de questões globais e alienação, ou por aplicar perspectivas de tragédias as suas vidas futuras.
Para ter paz ou vida no futuro estão matando crianças, famílias, inocentes nas favelas todos os dias. Chamam de efeito colateral. É assassinato. Para pagar a aposentadoria limita-se o pagamento a uma faixa etária em que a maioria da população trabalhadora e pobre já terá morrido. Para o crescimento e desenvolvimento de um país destrói a educação, os professores, a universidade, a ciência, a pesquisa.
Muita gente não sabia. Queria mudar. Tentar de outro jeito. A televisão falava o tempo todo em corrupção. Parecia o certo. Esse grupo de pessoas escolheu com outros critérios, o da apatia de pensamento. Ainda assim, parece falso o argumento de mudança, uma vez que se votou em alguém que estava no sistema há 30 anos sem ter feito absolutamente nada, que não fosse colocar os filhos na mesma “profissão”.
Penso sobre isso e acabo concluindo que o ódio só pode ser semeado se ele encontra terreno fértil, e o medo é o maior fertilizante sempre, embora sempre exista o risco do medo, espalhado sem cautela e com exagerada violência encontrar terreno estéril, e potencializar o que existe de pior em não se ter futuro.
por José Kuiava | jun 5, 2019 | Blog
A mal pretensa popularidade do atual governo conservadorista pretende se manter viva e cada vez mais forte pela encenação de espetáculos grotescos nos palcos do planalto. Os protagonistas e atores – ministros, assessores, políticos… – do conservadorismo autoritário autocrático falam descaradamente uma linguagem cada vez mais grotesca, estapafúrdia e chula.
Ao contrário do que pensam e pretendem, estas falas grotescas vem gerando e projetando uma imagem horrorosa aqui dentro e lá fora. Há cada vez mais intensas críticas na imprensa estrangeira. As manifestações de desprezo e de protestos acontecem em todos os lugares e países onde chegam o presidente, seus ministros e representantes – Estados Unidos, Inglaterra, Europa, até na China. Os nossos protagonistas e atores desconhecem o princípio básico do conservadorismo político: para ser populista precisa ser inteligente. Não basta ser espertalhão grotesco.
No mundo ultraneoliberal conservador de hoje, quem não é populista inteligente – não falso e de mentirinha – não tem vez na política por muito tempo. Aqui no Brasil, nos dias de hoje, vêm acontecendo coisas de endoidecer. O surto de asneiras ditas diariamente e que vem tomando conta do Brasil não infectou somente os ocupantes do palácio – poder executivo. O mosquito do vírus da ignorância e da estupidez hemorrágicas picou e infectou também muitos deputados e senadores.
Nos últimos dias, em sessão polêmica, deputados, sem ter o que fazer na vida, queriam trocar o “gênero” por “sexo”. É isso aí!
– “Tem gente que quer voltar para a Idade Média, talvez das trevas” – assim falou a deputada da esquerda, em protesto.
– “Nós estamos discutindo o sexo dos anjos aqui”, respondeu um deputado da direita.
– “Deus criou macho e fêmea, homem e mulher. Gênero é cadeira, é mesa, é sapato…” – profetizou o deputado bíblico.
– “Cadeira é do gênero feminino, e não é sexo. Nunca vi cadeira trepando! Isso aqui é uma casa de loucos”, contestou um deputado de esquerda. E acertou: é uma casa de loucos. Falas extraídas da crônica de Bruno Boghossian, Fl. de S. Paulo, 02/06/2019.
Pior, de loucos espertos, eleitos por todos nós. Enquanto na Câmara queriam trocar o gênero por sexo, o presidente fez uma pergunta evangélica ideológica a dezenas de pastores de igrejas sem partido.
– “Não está na hora de termos um ministro do STF evangélico?” A resposta por unanimidade dos pastores foi “sim”. Aplausos. Ele estava sentado ao lado do Caiado – por fora branco e por dentro como defunto podre. E tem mais dele.
– “Quem tem armas tem que usar” – falou aos caminhoneiros. E ainda: “Se não aprovar a Reforma da Previdência, o Brasil quebra”.
Não quebra, é só as elites do capital pagarem as dívidas bilionárias à Previdência que devem. O Brasil assim não quebra e não precisa aprovar a Reforma da Previdência. Enquanto tudo isso é falado, em alto e bom som, aqui no nosso – de todos e de todas – Brasil, lá fora na velha Europa, Merkel falou curto e grosso para o Trump: “Derrubemos os murros da ignorância”. Perfeito, madame Merkel.
Agora só para rir: “O ministro cortou verbas da Educação pro país ficar tão ignorante quanto ele!”. Assim escreveu José Simão na Fl. de S. Paulo, 1/6/2019. Para finalizar, uma dica cabal de David Harvey, escrevendo sobre a educação dos trabalhadores. Para ele, a educação de boa qualidade, a educação crítica e a educação de formação da consciência dos estudantes e dos trabalhadores é “uma espinha atravessada na garganta do capital”.
por João Wanderley Geraldi | jun 4, 2019 | Blog
Andei preguiçosamente visitando a família: não tenho escrito para este blog… e também não tenho trabalhado digitando os textos que constituem esta série de “textos de arquivo”, tarefa chata mas que tem de ser antecedida de outra mais difícil: achar os textos – nem imaginem que seja em arquivos do computador, porque sempre os perco assim que produzidos: nunca sei onde o salvei, nunca lembro o título, desisto de achar.
Por exemplo, escrevi um texto para atender ao motivo desta crônica: não o salvei por inteiro e fiquei surpreso ao manusear as páginas impressas pois mais de cinco páginas escritas “não existiam”! Foi assim que tive que improvisar ao contar um pouco da história – tal como a percebo – do ensino de língua portuguesa neste tempo tão longo da minha escolaridade (penso que o professor no exercício da profissão continua sua escolaridade, que não tem fim a não ser quando decididamente se aposenta e vira as costas à escola, coisa difícil de fazer).
Com convite do meu coordenador, Prof. Alexandre Costa, voltei aos tempos de “caixeiro viajante da cultura”, e lá me fui para Goiânia. Tinha que participar de uma banca de qualificação de doutoramento (apesar de estar desatualizado). Tinha que coordenar uma roda de conversas com mestrandos e doutorandos do programa de pós-graduação em Letras da UFG (uma óbvia temeridade). Tinha que fazer uma palestra para alunos da graduação e professores do ensino básico (e não tinha mais o que dizer além de contar minha história). E ainda tinha que participar da reunião do grupo de pesquisas do CNPq liderado pelo Alexandre que me colocou no honroso lugar de vice-líder (o que me obriga a “atualizar” o Lattes, o que faço mudando de lugar uma vírgula da apresentação porque nada incluo por lá há muito tempo, e se algo novo há depois de 2003, quando me aposentei, foram outras pessoas que o fizeram para mim!).
E então fui contar minha história de participação como estudante e como professor da “educação linguística” no Brasil. E o tempo a ser narrado era longo: dos anos 1950, quando do “decreto” da Nomenclatura Gramatical Brasileira” até a elaboração desta coisa esdrúxula que é a BNCC.
E acrescentei um parágrafo sobre a destruição da educação nos últimos cinco meses, embora tenha prometido que não falaria de política desde que o fascismo foi para o Executivo pelo voto direto dos eleitores brasileiros (não adianta dizerem que os que votaram neste despudorado presidente, obcecado em pênis, foram poucos mais de 33% do eleitorado – aqueles que não votaram ou votaram em branco ou anularam também, por sua omissão, elegeram o inominável).
Feito o trabalho, retornado, pus-me a pensar: tive a sorte de não ouvir por lá o que ouvi numa reunião de professores da primeira faculdade em que lecionei. Discutiam-se os rumos da instituição (nascida do movimento comunitário e cooperativista, formação local das “comunidades eclesiais de base”), quando um de seus fundadores e liderança incontestável, intelectual renomado já então, é interrompido por um jovem professor que se lhe opõe de forma um tanto grosseira. E então disse o velho mestre: “Você me respeite, que tenho história”. E ouviu a resposta mais grosseira ainda: “Tem muita história, em compensação tem pouco futuro”.
E fui a Goiânia com medo de ouvir do público algo semelhante, porque contei muita história, mas sei que tenho pouco futuro. Mas estudantes guerreiros que montaram a mais bela comissão de frente para a manifestação do dia 30 de maio não são grosseiros, são educados: não me disseram o que não precisa ser dito.
por João Wanderley Geraldi | jun 3, 2019 | Blog
A mim me foi dado inventar.
Meu ofício é recolher o óbvio,
dar-he casa e comida
e com ele me deitar.
Não sei se é poesia ou víscera
isso que mostro.
Sei apenas que, do lado de dentro,
alguma coisa cresce e remexe
como lava no vulcão.
Eu simplesmente cedo
ao impulso de parir palavras,
apará-las em trapo de papel
e soltá-las na vida
com um sopro de alívio.
Não sei se fecundarão outros sentidos
em quem acolher sua bastardia.
Basta saber-me livre
do peso da vida,
para oferecer, em cada esquina,
um corpo suscetível
às aventuras de um novo cio.
(Maria Mortatti. Breviário amoroso de Sóror Beatriz. S. Paulo : Ed. Patuá, 2019)
por João Wanderley Geraldi | jun 3, 2019 | Blog
Resultado de uma pesquisa de fôlego, esta obra em quatro volumes, reúne romances cujos textos foram transcrições feitas, ao longo de vários anos, por diferentes pesquisadores e poetas – particularmente da escola romântica de Almeida Garret. O limite que se impôs a pesquisa de recolha foi considerar o período de 1828 a 1960 incluindo apenas aqueles publicados nestes 130 anos. Assim, não se trata de uma recolha direta da oralidade – ainda que haja alguns romances colhidos pelo autor e colaboradores cujas transcrições foram publicadas no período considerado, mas de versões fixadas em inúmeras publicações incluindo folhetos.
A data inicial definida remete ao trabalho de Almeida Garret, que publicou em Adozinda os primeiros romances tradicionais portugueses. No primeiro volume há um estudo sobre os romanceiros hispânicos e sobre as questões levantadas na investigação deste gênero, desde suas origens até sua estrutura métrica. Pere Ferré retoma de modo particular o arquivo de romances de Ramón Menédez Pidal, a contribuição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos e a classificação do gênero feita por Samuel Arminstead. A bibliografia manuseada para elaborar estes estudos introdutórios é extensa já que passa pelos vários temas de pesquisa de que os romances foram objeto.
A primeira questão levantada é a da classificação dos romances. O autor acaba por usar a seguinte divisão: Romanceiro tradicional profano; Romanceiro vulgar profano; Romanceiro tradicional devoto; Romanceiro vulgar devoto e Romanceiro tradicional religioso. Nesta divisão, estabelece-se uma dicotomia entre tradicional/vulgar justificada nos temas e no seu tratamento. O conceito de “tradicionalidade” remete a afirmações de Menéndez Pidal: Os gêneros de que se ocupará a Literatura Tradicional – da qual o romanceiro é parte – deverão, em primeiro lugar, ter sido aceites pela comunidade, independentemente de classe ou estados sociais (‘público’ chama-lhe Menéndez Pidal) para, depois de caírem no anonimato, serem transmitidos de geração em geração, sempre com variantes. A variação será, pois, um dos elementos constitutivos dos gêneros tradicionais.
O que se poderia chamar de “vulgar” tanto poderia ser pela variação formal feita na transmissão ao longo do tempo quanto à sua origem inicial, por ser de elaboração do popular; outra razão para a dicotomia poderia ter a ver com uma percepção moralista de “vulgar”, o que soa bastante estranho. Mas esta não é uma compreensão que possa ser afastada, como se revela na passagem abaixo eivada, ao menos para este leitor, de resquícios de preconceitos: Capítulo aparte, pela substancial diferença destes textos, merece o Romanceiro vulgar. De origem também tardia, envereda, geralmente, por uma temática mais plebeia. Os dramas vividos, no Romanceiro velho, pela aristocracia passam a ser transpostos para as camadas populares.
Amplificam-se, por seu turno, o trágico, marcado pela mais viva truculência. Grandes crimes, traições amorosas, cativeiros sem esperança, parricídios são assuntos privilegiados para os poetastros que os criara. Nesta mesma linha, o Romanceiro vulgar devoto fixa os seus temas, mais marcados pelo carácter milagreiro do que por uma religiosidade temperada. (grifos meus)
De qualquer forma, como romances tradicionais, foi a voz do povo que os manteve e será a voz do povo que os manterá vivos: “seja qual for a sua origem, o romance pertence às comunidades que o assimilara”. Questão controversa é o do surgimento do gênero, e sua datação variará segundo os critérios levados em conta pelas pesquisas. Por exemplo, aqueles que consideram a temática do romance como critério, defendem que a criação dos romances tem como datas aproximada àquela dos acontecimentos neles narrados: nesta perspectiva, o romance dedicado à morte do príncipe D. Afonso, filho de D. João II, marcaria os começos dos romances portugueses; a corrente positivista considera como data de nascimento do romance sua primeira aparição escrita, corrente que acaba desconsiderando na verdade a tradição oral de sua transmissão. O autor defende o ponto de vista de que os romances tiveram seu nascimento nos séculos XIV e XV e suas origens são as gestas tradicionais e anteriores.
Outra polêmica tem a ver com a “versão original”, quase “o verdadeiro poema”: o autor critica posições assumidas por Carolina Michaëlis de Vasconcelos que acaba por afirmar a existência de “degeneração lastimosa” em algumas versões, ou “estropiadas”, quando hoje vemos como versões muitas vezes de uma criatividade exuberante. Citando Bénichou, assume que:
Le texte authentique n’est pas en poésie traditionelle une réalité aussi solide qu’em poésie lettrée, moderne ou médiévale; le mélange des textes, dans la tradition orale, n’est pas une contamination, avec ce que ce mot suggère d’irrégulier ou de choquant: c’est un mode d’invention et de recréation normale.
Segundo o autor, o romance sobreviveu porque tinha sua funcionalidade: eles eram usados como canções no trabalho. Com a mudança nestas relações, desde o Século XIX eles começam a desaparecer: “a realidade é bem cruel, direi mesmo que em muitas das minhas incursões por certas áreas geográficas a nossa função é constatar o seu desaparecimento”.
Sem deixar de fazer uma referência às teses que defendem que a criatividade dos co(a)ntadores de romances somente se dá na sua invenção e jamais na aquisição do texto e na sua repetição – Ana Valenciano defende que a comunidade de ouvintes exige que o co(a)ntador se mostre fiel depositário do texto, obrigando-o a recordar bem o texto herdado – o autor se filia à escola de Lord, da tradição oralista dos romanceiros, em que a performance também é espaço de criação.
Teixeira Soares afirmou que “a riqueza de um Romanceiro consiste não só na variedade dos romances mas na abundância de versões de cada um”. Neste sentido,este romanceiro de Pere Ferré é exemplar. Apresenta todas as versões que conseguiu recolher na extensa pesquisa. Por exemplo, só do Bela Infanta apresenta 121 versões no segundo volume da obra.
A transmissão oral dos romances faz recortes. Muitas vezes as versões recolhidas são de uma parte do “enredo”, de uma cena, de um motivo. Certamente as versões mais alargadas são as mais frequentes. Apresento aqui duas versões de Bela Infanta, para mostrar esta particularidade do recorte feita nas recitações do mesmo romance.
1. Versão de Rio de Onor (concelho de Bragança), distrito de Bragança. Editada
por Alves em 1938:
‘Stando a bela em armada no seu jardim assentada,
com pentes de outro na mão seu cabelo penteava.
Deitou os olhos ‘ò mar, viu vir a grande armada.
– Diz-me tu, ó capitão, dize-me pela tua alma,
o marido que Deus me deu se vem na tua armada.
– Nem no vi, nem no conheço, nem sei que sinais levava.
– Levava cavalo branco, sela de prata dourada,
na ponta da sua lança, um Santo Cristo levava.
– Esse home’, ó mulher, morto ficou na batalha,
com vinte e cinco feridas e outras tantas estocadas.
– Ai de mim, triste viúva! Ai de mim, triste coitada!
Algum dia era infanta, agora sou desgraçada!
– Quanto dais, ó bel infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– Darei-vos tanto dinheiro quanto podereis contar.
– Não quero o vosso dinheiro, que vos custou a ganhar,
quanto dais mais, bela infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– As telhas do meu telhado que são d’ouro e marfim.
– Não quero as vossas telhas que não me pertencem a mim,
sou soldado vou p’r’à guerra, não persisto por aqui.
Quanto dais mais, bela infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– De três filhas qu’eu tenho todas três vo-las dava.
-Não quero as vossas filhas que vos custaram a criar.
– Uma é para vos calçar, outra p’ra vos vestir,
a mais pequena delas p’ra convosco dormir.
– Quanto dais mais, bela infanta, a quem vo-lo traz aqui?
– Não tenho mais que vos dar, nem vós mais que me pedir.
– Ainda tendes mais que dar e eu mais que pedir:
esse corpinho bem feito, p’ra convosco dormir.
– Acudi, moços e moças, acudi todos aqui,
a fazer jaquetada, ‘ò redor do meu jardim.
– Não chames pelos teus moços que criados são de mim.
– Pois, s’eles são teus criados, porque me tratas assim?
– Onde ‘stá o anel de ouro que contigo reparti?
Onde ‘stá a tua metade, pois a minha vê-la aqui.
2. Versão de Matela (concelho de Vimioso), distrito de Bragança. Editada por Leite
em 1958.
– Porque não cantas, Helena, à sombra dessa nogueira?
– Meu pai já é morto, meu marido está na guerra.
– Quanto deras, ó Helena, a quem o aqui trouxera?
– Dava a maior vacada que tenho na Serra da Estrela.
– Quanto deras mais, Helena, a quem to aqui trouxera?
– Dava a maior carneirada que tenho na Serra da Estrela.
– Não dês nada, ó Helena, não dês nada, Primavera,
Teu pai já é morto, teu marido está na guerra.
Não te lembras de marido, pois estou eu nesta terra?
– Cala-te aí, atrevido, que eu para isso não falei!
O dia do meu casamento, honrada eu fiquei!
Por fim, é preciso acrescentar que Pere Ferré teve inúmeros colaboradores, cujos nomes aparecem na página de rosto de cada um dos volumes. Também acabou publicando, com Cristina Carinhas, um quinto volume, este somente da bibliografia que resultou do projeto do pesquisa, agora indo quarenta anos além: Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2000), editado em Madri pelo Instituto Universitário Seminário Menéndez Pidal, Universidad Complutense de Madrid, em 2000.
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Referência. Pere Ferré. Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna.Versões publicadas entre 1828 e 1960. 4 volumes. Lisboa : Fundação Calouste. Gulbenkian, 2000.
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