Qual é a pergunta que já se tem a resposta?

Qual é a pergunta que já se tem a resposta?

Nos dias atuais, (parece modelão de redação de professor preguiçoso) é muito comum que para ganhar espaço e visualizações nas redes sociais e mídia as pessoas falem escrevam sobre assuntos polêmicos.  Se a opinião for polêmica melhor ainda, se for uma imbecilidade, e não vou aqui discutir os critérios para averiguação desta modalidade, muito melhor.

Bem, dito isso, o assunto polêmico tem uma condenação e 35% nas pesquisas de intenção de voto: Lula. Aviso para aqueles, os que não aguentam mais, para que possam parar a leitura por aqui. Sou como Lula, democrática. Juro, sem ressentimentos.

Antes de dormir na noite passada li parte da entrevista do presidente Lula concedida aos jornalistas Juca Kfouri e Maria Inês Nassif, para o professor de relações internacionais Gilberto Maringoni e para a editora Ivana Jinking.

( ver mais em : https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/estou-pronto-para-ser-preso-diz-lula-em-novo-livro-de-entrevistas-tudo-isso-faz-parte-da-historia/ )
Ao terminar de ler fico me perguntando porque será que existem pessoas assim:  Dedicadas, crédulas num futuro melhor em que as pessoas vão saber o que aconteceu nos dias atuais  e saberão que foi golpe, que foi mentira, que Lula fora preso sem provas, enquanto pulam provas de tantos outros e nada acontece. E daí?

Que tempo, que dia, que momento a democracia vai se restabelecer ? Nada disso será dado pelo futuro Lula. A pergunta é: que horas ela volta?

Queria estar enganada, mas penso que não. Não há volta. Não tiraram Dilma, aprovaram um lei trabalhista danosa, um entreguismo sem fim para aceitar Lula de novo, ou Boulos, ou Manoela, ou mesmo o bipolar Ciro Gomes.

E nessa mesma entrevista tenho o exemplo clássico, de fora da situação Lula fala sobre o governo Dilma e que este não fora defendido até as últimas consequências por quem mais precisava, ou mesmo por quem estava ali ao seu lado, no caso, seus ministros. Dois anos depois, somos o futuro daquele dia em Dilma foi retirada de um mandato legítimo, e as pessoas de hoje sabem que foi golpe, que contra Dilma não pesa nada, que foi deposta injustamente, mas vivem como se o amanhã não fosse tão distante.

Em um descuido rápido, permito-me acreditar que não prenderão Lula por que assim a vitória de seus oponentes terá um gosto amargo, um recibo rasurado, um olhar sempre cabisbaixo. Tolice.  Nada que uns óculos de sol, um depósito na Suíça prescrito no STF, um champanhe caro não ajudem a esconder. Integridade não faz rima com poder.

Passados dois anos que assisti o filme Que horas ela volta? de Anna Muylaert, ainda fico pensando em muitas cenas do filme.

Um nó na garganta em vários momentos.

Na faculdade aprendi sobre catarse, que é um momento de purificação por meio da experiência profunda que a narrativa provoca. É tipo assim: você lê algo, aquilo mexe profundamente com suas feridas e dores, porque você se reconhece/identifica com a dor do outro e então você consegue por meio do sofrimento do outro, se libertar do seu. (espero que minha professora Goiandira nunca leia esse post)

A cena mais forte é a dona da casa mandando tirar toda água da piscina porque deu rato, numa resposta a filha de sua empregada Val ter entrado lá. Outra construção belíssima do filme é a possibilidade de “ascensão” da jovem por meio da generosa proposta do dono da casa em transformá-la em uma moça bela, recatada e do lar.

Não consegui com certeza me purificar, ser uma pessoa melhor depois desse filme maravilhoso, que causou muito constrangimento (será?), e das relações sociais brasileiras expostas sem mostrar as vísceras.

A linguagem do filme é quase pedagógica. 

Está lá no filme: a mulher que abandona sua família, inclusive afetivamente, por razões econômicas e por isso mesmo pensa constituir com o núcleo dos seus patrões e filho uma nova família; O rapaz, filhote da elite, que fuma seu baseadinho que ele não compra na favela, (onde será que ele compra?) e esconde com a ajuda da mãe-postiça-empregada; A socialite que dá entrevistas inócuas para ninguém ler e ver, e festas para aparecer nas revistas de fotos; O velho rico que precisa uma jovem para transfundir vitalidade. O quartinho de empregada. O fulltime da funcionária. Até o discurso cínico: ela é quase da família.  Está tudo lá, e muito mais.

Uma parte do filme que está lá e que ninguém quer ver é que se as oportunidades chegassem muitos jovens sairiam da pobreza e da miséria, hereditárias, e teriam direito a sonhar.

Esse Lula é um vagabundo mesmo! (frase totalmente fora do contexto, ou não!)

O que muita gente não quer ver é que isso incomoda: ter que competir e perder para um nordestino, pobre, trabalhador é ruim; mexer nas velhas estruturas sociais, em uma sociedade que aprendeu a escravizar e neo-escravizar sem um pingo de pudor, causa muito mal estar e é imperdoável, embora nem sempre os que vivem à margem consigam enxergar que as violências que os cercam, produzem e produzirão em seus filhos cada vez mais frutos, e nunca se sabe quanto esses frutos poderão se tornar mortais.

intervenção já! mas não em mim que sou doce e mansa. Só se for no modelo de intervenção que os pais aplicam ao Fabinho. 

– Eu quero é viajar e esquecer que não passei no vestibular, ano que vem quando voltar essa bagunça já deve estar mais organizada, os pobres voltam a trabalhar três turnos nos empregos intermitentes e sem tempo para estudar, e aí sim vai sobrar vaga pra entrar!

Invenção já! 

*este texto foi publicado em 14/03/2018

Será que o anjo disse: “Vai-te, já não és mais preciso” ?

Será que o anjo disse: “Vai-te, já não és mais preciso” ?

Um querubim do Departamento assoprou-lhe ao ouvido, em voz adocicada e convincente:

– Tu serás nosso Enviado. Vê bem que associado a nós terás vantagens enormes. Nossas universidades te convidarão para conferências, para palestras, para salamaleques. Mas como Enviado, deverás cumprir o destino que a este Departamento aprouver.

– E estarei sozinho para realizar tal destino? Não me darão sequer um cozinheiro, um olheiro, enfim, um auxiliar? Nem sei qual o destino que ao Departamento aprouve, mas sou homem de poucos requebros, venho de lugar enfadonho e por isso esta oferta de fama nas universidades já me dá gosto na boca. Já me vejo falando na língua amada e conhecida, que a minha própria, dita materna, vive me embaralhando.

– Preocupação nenhuma. Bem sabes tu, não nos faltam dinheiros desse que fizemos render aqueles primeiros 30 dinheiros do passado. Tu terás o que for necessário.

– E como me apresentarei? Que república terei de fundar?

– Apresenta-te como Enviado do Senhor, que por lá não faltam pastores e bispos, templos e públicos para acreditarem que a missão é divina!

– Contarei então com forças para a tarefa! Estou disposto, oh querubim, a tudo fazer de acordo com as ordens emanadas do Departamento, de forma grada e grata, porque estou garantido que terei espaços cá e lá.

E assim retornou o abençoado Enviado. Montou numa cidade uma república, chamou a si tudo o que podia e o que não podia, em quebras de braços com outras hierarquias. E em segredos bem guardados pelo aplicativo seguro deu ordens, instruiu a equipe e realizou o serviço: tratava-se de trancafiar na cadeia um inconveniente cidadão que se atrevera a levantar a cabeça de sua terra, estabelecer laços inconvenientes com os concorrentes, e crescer a tal ponto que prejudicava já os negócios dos que financiavam o Departamento. E muito pior: depois de alguns anos afastado e golpeado, mas sempre amado pelos seus, queria voltar para continuar a destruir os homens de bem, aqueles que rezam pela cartilha que lhes forneceu o Departamento. Foi trancafiado. Em tempos outros, aqueles tempos áureos do grande império, com uma crucificação tudo estaria resolvido, além de fornecer o circo de horrores tão necessário à edificação do povo! Mas – que pena! – os tempos são outros e mesmo tudo podendo, isto não podemos…

Tudo fazendo, bajulado e incensado, o Enviado se sentiu com honras a direitos mais elevados do que simples palestras em universidades do interior do império. Primeiro, pensou que junto com sua equipe poderia ter uma fundação sua, com alguns bilhões extraídos da nação. Mas antes mesmo de se erguer, a fundação ruiu nos sonhos dourados do serviçal encarregado pelo Enviado, o chamado Neemias, o profeta, o infantil e imberbe, que tanto sonhou que teve ejaculação precoce e abriu o bico antes da hora! Segredo contado, deixa de ser segredo… e algumas hierarquias não convidadas para a divisão do bolo se sentiram escandalizadas, não pelo fato, mas por não terem seu quinhão. A fundação afundou. Indo para as profundas, a fundação infundada abriu as portas e os olhos de muitos… Ainda assim, o Enviado continuou a sonhar alto: quis ser ministro da Corte, quis a corte, cobrou o serviço do beneficiado pelo seu trabalho de algoz. O beneficiado disse:

– Sei que és o Enviado, talkei? Mas antes da corte, passarás por uma aprendizagem, talkei? Frequentarás meu palácio, talkei? Serás meu empregado, talkei? Que preciso amparo em sua boa fama, talkei? Depois, irás para a corte com garantias vitalícias, talkei?

Estava o Enviado, agora empregado do beneficiado a prestar seus serviços, isto é, fazendo ouvidos moucos e calando a boca.

E então aconteceu o inesperado, o desnecessário: alguém forneceu as mensagens e as instruções distribuídas pelo aplicativo seguro, as confabulações e armações, os arranjos e os desarranjos, diarreias e caganeiras vieram ao conhecimento de todos! Extrema infâmia! Coisas de comunistas, só pode! Foi o trancafiado Lula que fez isso, só pode! Ou a culpa é da Dilma?

Terá o querubim do Departamento se cansado do Enviado? Ainda saberemos. A velocidade da novas tecnologias tornaram rápida a  história.

AVE MERITÍSSIMOS E MERITÍSSIMAS! OS JUSTOS VOS CONDENAM

AVE MERITÍSSIMOS E MERITÍSSIMAS! OS JUSTOS VOS CONDENAM

A sinceridade e honestidade intelectuais me autorizam a pensar e sustentar com argumentos e sentimentos o que escrevo, aqui e agora, aos juízes, ministros e desembargadores do Supremo sobre as tragédias praticadas por forças das togas/capas e becas.

Antes de tudo, um pedido: meritíssimos juízes, meritíssimas juízas, ministros(as), desembargadores(as), por gentileza não se vistam mais e não se cubram com togas/capas e becas para trabalhar. Nem nas horas corriqueiras – do dia a dia – nas leituras e exames metódicos e formais dos processos sem fim, e muito menos nas sessões solenes e pomposas de julgamentos.

Penso e sinto que está na hora, e já passou do tempo da história, despir a toga – capa preta, longa ou curta – como garantia do ato imparcial de julgar os outros. O ato responsivo do eu não carece de toga para garantir a justiça do outro. O poder da toga sempre esteve, ao longo da história e continua mais do que nunca nos dias de hoje, a favor das elites do poder – elites do capital em harmonia matrimonial com as elites políticas.

Se os juízes, os ministros e os desembargadores do Supremo exercessem sempre e em todos os casos a justiça do direito justo, legal e verdadeiro, não haveria a necessidade de usar a toga/capa e a beca – toga magistral – vestuário tribunalístico formalístico, tradicionalístico, ridículo. A toga/beca é um símbolo da investidura de poder de julgar os outro. Nas circunstâncias da história de hoje, a toga/beca não preserva, não garante os valores da justiça – os princípios da ética, da verdade, do direito justo. Ao contrário, o magistrado vestido e coberto de toga/beca esconde os interesses do poder. Porque a magistratura escondida debaixo da toga/beca ninguém vê. Ninguém enxerga as provas. Ninguém fica conhecendo e sabendo quais as pressões, quais as ameaças, quais os valores, quais as forças de quais interesses interferem e decidem os votos – condenação ou absolvição.

As conversas sigilosas, pessoais, íntimas entre juízes, ministros e desembargadores para combinar o julgamento e a condenação do Lula em todas as instâncias, o mais depressa possível, reveladas ao público nos últimos dias nas redes sociais e na mídia, é a prova mais real, verdadeira e contundente da justiça ideológica e que decide por interesses próprios ou de terceiros, ou na unicidade dos dois.

Agora, é crime dizer e escrever a verdade? É crime divulgar a conversa combinatória real, audível, de juízes que armaram a condenação às pressas de um político adversário do bloco no poder, pelo fato de que ele iria ganhar nas eleições para presidente do Brasil? Dizer a verdade sobre os togados ao público é crime? As conversas secretas e sigilosas do Moro e Dalagnoll foram articuladas para combinar e garantir argumentos únicos, aparentemente lógicos e imparciais. Que se revelaram, agora, anti éticos e trapaceiros. Divulgar isso ao púplico, é crime?

Estes acontecimentos fazem lembrar do que um pensador e cientista político falava e escreveu nos tempos do fascismo na Itália, Antônio Gramsci: “toda verdade é revolucionária”. E Gramsci pagou muito caro por escrever esta verdade sobre o poder da verdade. Foi condenado por 26 anos de prisão. Sobreviveu por 9 anos no cárcere.

Mas a verdade não está somente na ciência. Fico encantado quando escuto a música caipira e ouço o verso:

…Grande pisa nos pequenos/ coitadinhos desnorteia.

Quem trabalha não tem nada/enriquece quem tapeia

Pobre não ganha demanda/ rico não vai pra cadeia

E os poucos ricos que foram para a cadeia, mérito da Lava Jato.  Mérito dos juízes, só que eles precisam e devem continuar na cadeia. Soltar por que? E os processos de outros políticos ricos, de outros partidos, porque continuam engavetados nos tribunais?

E a sabedoria também está no dístico popular, muito antigo e verdadeiro: “rico de gravata e colarinho branco não vai pra cadeia. Vai pra cadeia só ladrão de galinha”!

A respeitabilidade e a austeridade judiciais, que a toga/beca impõem aparentemente – o mito do juiz justo e imparcial – devem ser substituídas pelos atos responsivos dos juízes – decisões justas, legais, verdadeiras, imparciais.  Para todos.

Menino de rua, de Patativa do Assaré

Menino de rua, de Patativa do Assaré

Menino de rua, garoto indigente,

Infanto carente,

Não sabe onde vai

Menino de rua, assim maltrapilho

De quem tu és filho

Onde anda o teu pai?

 

Tu vagas incerto não achas abrigo

Exposto ao perigo

De uma drama de horror

É sobre a sarjeta que dormes teu sono

No grande abandono

Não tens protetor

 

Meu deus! que tristeza! que vida esta tua

Menino de rua,

Tu andas em vão

Ninguém te conhece, nem sabe o teu nome

Com frio e com fome

Sem roupa e sem pão

Ao léu do desprezo dormes ao relento

O teu sofrimento

Não posso julgar,

Ninguém te auxilia, ninguém te consola,

Cadê tua escola,

Teus pais e teu lar

Seguindo constante teu duro caminho

Tu vives sozinho

Não és de ninguém

Às vezes pensando na vida que levas

Te ocultas nas trevas

Com medo de alguém

Assim continuas de noite e de dia

Não tens alegria

Não cantas nem ri

No caos da incerteza que o seu mundo encerra

Os grandes da terra

Não zelam por ti

Teus olhos demonstram a dor, a tristeza,

Miséria, pobreza

E cruéis privações

E enquanto estas dores tu vives pensando,

Vão ricos roubando

Milhões e milhões

Garoto eu desejo que em vez deste inferno

Tu tenhas caderno

Também professor

Menino de Rua de ti não me esqueço

E aqui te ofereço

Meu cantar de dor

(Patativa do Assaré. Aqui tem coisa. S. Paulo : Hedra, 2004)

 

Ronda Noturna, de Cadão  Volpato

Ronda Noturna, de Cadão Volpato

Os cinco instigantes contos que compõem esta coletânea exigem que, ao final de cada um deles, o leitor dê uma parada para recuperar o fôlego, encontrar no enredo o que lhe ultrapassa para chegar ao tema que cada história contém. O imponderável do cotidiano, a alma humana que se desvenda nos detalhes, sem que o autor caia em qualquer julgamento moral, deixando ao leitor que suas próprias entonações valorativas emerjam.

Obviamente o não julgamento do autor não quer dizer que ele simplesmente não entoe suas histórias: criá-las, inventá-las e expô-las à leitura é já uma entonação avaliativa. Há uma diferença entre a valoração e o julgamento moral das “personas” que circulam nos textos. Esta virtude de oferecer algo ao leitor para que ele saia da leitura enriquecido pela experiência estética e pela reflexão que ela provocou é próprio de grandes autores ou de autores que “trabalham” seus textos antes de lhes dar à luz, de modo a desdobrar a linguagem e a história em suas múltiplas: da superficialidade do enredo à profundidade dos sujeitos que se locomovem na vida criada pela ficção.

O primeiro conto, Lotte, acompanha um cotidiano de uma jovem estudante de curso noturno, que durante o dia faz curso de datilografia. Filha de mecânico (Hans), moradora de arrabalde, sonha para além do que seu contexto lhe oferece. Leitura de revista intelectualizada (Senhor), carregando consigo uma edição alemã de Os sofrimento do jovem Werther, ela vive também às voltas com desejos e anseios. Sua madrasta praticamente a detesta, mas ela descobre seu segredo: um amante que é empregado do próprio marido. Seguindo-o, descobre um carro [roubado] de que ele retirava peças e entregava ao patrão sempre que este precisasse de algo, dizendo que achara na rua…

Este carro será o refúgio da jovem, para onde transfere suas revistas e revistas pornográficas que furtou do pai! O trágico da história será a morte do pai por enfarto. Desesperada, foge para seu refúgio. Sabe que sempre foi observada por seu “Werther”. Queima as revistas e o livro. E chama seu colega de datilografia, baixa as calcinhas e abre lentamente as pernas… Deste conto, seleciono: Costumava trancar-se no banheiro com as revistas abertas sobre os joelhos, a calcinha arriada, e lá passava horas pensando. Horas, não. Porque a madrasta logo vinha bater na porta para que ela desocupasse. Só o pai compreendia sua prisão de ventre, mas ele nunca estava. Lotte desde cedo entendeu que liberdade tinha a ver com você ser dono do próprio banheiro.(grifo meu)

No segundo conto, A sagrada família é um imenso dente podre, o narrador é o filho de um casal recém-separado. O pai, um jornalista comunista, separa-se da mulher, uma católica praticante. Haviam marcado viagem de núpcias com atraso, e com a separação, o filho substitui a mãe. Obviamente, o pai ainda está apaixonado pela mulher e seguidamente diz que “o amor é mesmo uma merda”. O ambiente do conto é Barcelona [O novo mundo para mim era Barcelona e não aquele que o dedo de pedra de Colombo apontava no mar, ao final das Ramblas].

No conto, o filho recorda que o pai continuava panfleteando mesmo durante a ditadura o que incomodava a mãe; recorda também sua primeira comunhão a que o pai não comparece, mas leva mãe e filho para a igreja e os busca no final da cerimônia. Nos passeios pelo Bairro Gótico de Barcelona, chegam à Igreja de Nossa Senhora del Pi, e o pai devotamente ora diante da imagem da Virgem, o menino percebe que ele lhe dá uma piscada e compreende o recado: era preciso dizer à mãe que o pai se convertera [ainda que isso não fosse verdade].  O título vem de uma frase atribuída a Dalì, crítica feroz ao modernista Gaudì que teria enchido a cidade vários dentes podres…

Constelação é um conto cinematográfico! Um roteiro de filme poderia sair dele. Trata-se de um grupo de pobres coitados que resolvem, sob a liderança do “velho” que constitui o grupo. Graças a sua semelhança física com Marighella, o projeto executado era fazer um assalto ao um banco atribuindo-o ao grupo comandado por Marighella. Assim, começa o estudo de como eles faziam um assalto; as companhias imprescindíveis de uma mulher (loura) e de um jovem intelectual (estudante). O grupo é constituído, mas o jovem fica doente, com febre alta e não consegue participar do assalto. Fica na casa, enquanto os companheiros realizam a ação bem sucedida. Depois fogem para Santos. O “velho” já planejara: seus cúmplices ficariam com seus familiares por um tempo, depois cada um iria para seu lado. O que caracteriza este conto é a agilidade da ação, mas o leitor não a acompanha em seu desenrolar, mas fica preso ao quarto com o jovem doente: este jogo paradoxal é que dá ao conto sua ligeireza e originalidade: a ação pressentida pelo ausente parado.

O Professor da noite.

Dividindo a casa com um amigo (Athos), vive o professor em seu quarto. O conto se inicia com o personagem tendo um pesadelo: estava sendo entrevistado na TV, justo ele que não assistia programas de televisão há muito tempo. Durante a entrevista, o apresentador chama uma convidada inesperada: a Vênus Anadiômene (adiante se saberá porque ela aparece no sonho: ele lera no livro de Rimbaud o poema da Vênus Anadiômene, que aparece nua, de costas, indo para o banheiro). Acorda. [Foi com a mão na boca e erguendo um fio de baba do travesseiro que ele despertou, enfim, da sesta incomum que acabou só no final da tarde]. Na sala em que encontra Athos, na janela, está uma gata com um rato na boca…uma oferenda para o Professor, segundo Athos. Este tem uma namorada: Nice. Certa noite em que ela e o professor bebiam no Bar do Chileno, ele não lembra se antes ou depois de falarem em dormir juntos, ela o roçava com pé por baixo da mesa do bar. Enfim, nesta noite em que Athos vigiava o local do jornal trotskista, eles foram para a cama. Mas ficou nisso: na verdade, o tema deste conto é a paixão platônica do Professor por Paula, que lhe apareceu a primeira vez num show do Cartola no Morumbi; voltou a ver em outro show ainda de Cartola no Colégio Equipe; depois ela aparece no seu bar, o Bar do Chileno, com uma turma de atores que ensaiavam a peça Marat-Sade. Ela vinha com o namorado, e graças a ele , o Professor aprende o nome de sua amada: Paula. Muda seu comportamento, passa a usar cachimbo com baforadas à Sartre. Quer chamar atenção, mas não consegue. O conto se encerra com ele voltando para casa, numa das muitas noites de bar, em que deixou o cachimbo em cima da mesa. Na rua se contra com a gata que caça um rato. Acompanha a caça bem sucedida da gata… Como se pode notar, há um jogo simbólico constante: a gata e sua caça [o Professor e Paula]; a oferenda da gata [Nice]; o sucesso da gata/o insucesso do Professor na caça. E o desdobramento em dois ambientes de circulação efetiva – a casa e o bar – e dois outros apenas referidos – a escola e o lugar dos shows. Também aqui as dicotomias se reproduzem no mesmo par dicotômico entre o ofertado e o pretendido.

Ronda Noturna, que dá título à coletânea, é o conto estruturalmente mais trabalhado. Em formato de “moisaco”, vai apresentando cenas insólitas vividas pelo mesmo personagem, um senhor já maduro, cujo nome – Castilho – somente vai aparecer no final do conto, no quarto episódio deste mosaico.

1. No bar em que toma seu drinque despenca o ventilador sobre a máquina de café – o susto, o inusitado da cena, a bebida perdida e a bebedeira curada pelo susto, como se verá depois, ventiladores de teto terão presença em outras cenas.

2. A vida de casado que passa a ter depois de dormir algumas noites com uma garota muito nova, de dezessete anos que engravidou e o torna pai. A cena trágica aqui será novamente num bar, em que o pai brinca com a criança jogando-a cada vez mais alto até que ele bate a cabeça na pá do ventilador, machuca-se e é levado para o hospital. O fato separará o casal, a mulher envelhece e passa a ter vida somente como mãe cuidadosa.

3. Em dia de sol forte, vê na rua um mendigo ferido e fica olhando e ao perceber o incômodo que causava ao outro, resolve entrar no prédio. Havia consultórios. Ao porteiro citou o primeiro nome que viu na placa: Dr. Lutz. Um oftalmologista. Faz a consulta, o médico nada encontra em seus olhos, mas lhe diz que o problema estava na cabeça. Num teste, manda-o colocar os óculos que estava sobre a mesa e que fechasse os olhos. O que via? Vejo uma porção de pás girando no vazio, no sentido horário, mas também no anti-horário, em movimento simultâneo. Brancas em fundo negro. Brancas em fundo azulado. E nas cores múltiplas de uma aurora. Marrom, azul, cinza, violeta, rosa, laranja, vermelho. Cruzou os dedos sob o queixo e pergunto, intrigado. O que será que quer dizer isso? Hein? O médico lhe sugere uma viagem…

4. Antes de se iniciar a segunda parte do conto, há uma passagem em que se recupera outra viagem em que o personagem havia conhecido um suíço em Machu Picchu. Tornaram-se amigos e mantinham correspondência. O suíço casara com uma holandesa e vivia em Amsterdan. É para lá que ele segue em viagem, hospedado pelo amigo e sua mulher Lili. Em Amsterdan convive com o casal, vai a uma festa em que de tudo acontece – celebrando o lugar comum de Amsterdan como o lugar da liberdade e da libertinagem livre. Aprende já velho a andar de bicicleta. Começa sua ‘ronda noturna’ andando de bicicleta pelas ruas de Amsterdan.

Este conjunto de contos instigantes de Cadão(Carlos Adão) Volpato, paulista, professor de língua portuguesa, apresentador do programa televisivo Metrópolis (TV Cultura), músico com alguns álbuns disponíveis, não é filho único do autor. Escreveu e continua a escrever. Assim, ficam na mira do leitor outras obras, como A Sombra dos Viadutos em Flor; Os Discos do Crepúsculo; Pessoas Passam pelos Sonhos. Lendo Ronda Noturna, aguça-se a curiosidade pelos outros livros…

Referência. Cadão Volpato. Ronda Noturna. São Paulo : Iluminuras, 1995.

Vinde a mim os que têm fome e sede de justiça

Vinde a mim os que têm fome e sede de justiça

Cuidado com o que pedes, eu diria. Um texto curto, para leitores apressados por novas informações, para momentos que exigem urgência de atos. Um tuíte que dê conta de carregar nossa insatisfação com os acontecimentos e ser um ato de organização de gritos represados. Atentem-se para como funciona o twitter: pessoas com nomes e imagens fictícios ou não, se expressam livremente sob a regulação de 280 caracteres.

E parece que os pequenos textos, assim como as manchetes das matérias funcionam muito bem. Tenho dificuldades em exercer meu poder de síntese, aliás, penso que meus textos são muito repetitivos, e chatos, e monótonos. Uma amiga costumava dizer que eu só conhecia a vírgula, nunca o ponto final. Preciso de textos maiores. Minhas pedrinhas preciosas.

Insisto em esperança, e agora de novo acredito que ela poderá vencer o medo. É como se pudéssemos enfim acreditar diante das últimas revelações da política do nosso país que a justiça enfim assumirá sua responsabilidade, e a igualdade essa palavra tão maculada será enfim colocada na vitrine.

A quem a gente quer enganar? Uma classe social sempre conheceu as mazelas da justiça, seus diferentes olhares e várias ponderações de acordo com a classe social, a boca quase miúda as pessoas, as mais simples e populares, sabem bem que justiça é para poucos e que se mostra racista e machista, mas, sobretudo, elitista.

Muitos casos ocupam os noticiários dando conta de crimes cometidos por pessoas bem-nascidas, e sobre com as penas podem ser abrandadas, postergadas, não cumpridas nesses casos, em contraponto os mesmos crimes cometidos por pessoas negras de origem popular parecem piores do que os mesmos crimes das pessoas brancas.

Acostumamo-nos com a coisa das provas plantadas, das trocas de tiros, dos justiçamentos, desde que sejam aplicados a pretos e pobres.  Então não era de se espantar que a justiça agisse produzindo provas contra o presidente Lula, e o pior uma vez que não conseguirão produzir provas, e eu já espero as notas da reforma do Triplex, aquelas que são de uma empresa de Curitiba e que nunca foram feitas, aparecendo nas conversas.

Prenderam Lula, e por quê?  Não é uma resposta simples de tal sorte que tenho pistas. Não certezas e tampouco convicções. Lula tornou-se um símbolo, muito pior do que o socialismo ou o comunismo. A ascensão de Lula é dar voz e vez para um filho de pobres, nordestinos, encardidos e negros, analfabetos, ou mal letrados e periféricos, eu disse pobre?  Daqueles que conhecem a fome.

Uma pessoa capaz de destruir a barreira invisível sob nossas cabeças, e sendo assim dizer para seus iguais: esse texto pode ser destruído, organizem-se, lutem, acreditem. É uma mensagem muito forte. Iludi-se quem pensa que apenas a direita sente desconforto com essa representação.  Lembro-me quando a escolha do nome de Haddad para substituir o de Lula – uma vez que como hoje já se sabe a operação deflagrada com esta finalidade o proibirá de disputar e vencer as eleições.  

A escolha que seria normal, um proforma, passou a ter um viés estranho, começou-se a campanha trazendo as qualidades do candidato que sendo bem nascido, estudado, intelectual, pertencente aos redutos acadêmicos, além de paulistano seria não só um substituto, mas um candidato até melhor do que Lula. E diante disso, numa pegadinha a direita jogou a isca e fisgou. Não servia ser o poste de Lula. Muitos veem nisso que digo exagero da minha parte.  E talvez tenha mesmo exagero, como sempre são exagerados e dramáticos, mimizentos os pobres.

Sequer sei se as definições dessa linha da campanha foram dadas por ele, geralmente os candidatos majoritários não coordenam essas áreas. E, é certo que Haddad fora escolhido por  Lula, não para ser ele, mas para ser candidato a presidente. A denúncia aqui é da apropriação que pessoas de esquerda fizeram do Lattes, uma corrida quase que desesperada para ter um candidato enfim “limpinho e cheiroso”.

Enquanto eu, que tenho tantas fomes, me apegava a definição de Carolina de Jesus sobre as virtudes de um político que seria colocar a fome no centro da discussão política, sendo necessário para tal te-la conhecido de perto, tendo passado por ela e sendo fruto de todas as misérias humanas, um discurso e uma prática que só tem quem já passou fome.

Vejam, Carolina de Jesus sabia bem do que falava, um exemplo é que ao tomar posse Lula falou sobre garantir comida aos que tinham fome, garantir três refeições. Muitos torceram seus narizinhos,  para muitos isso era muito pouco, mas a verdade é que desses muitos, poucos já sentiram fome.

Então, sei que não posso/devo esperar muita gente amanhã nas marchas, por que muitas delas ainda não podem entender o amanhã sem luta, porque é preciso garantir o hoje, tenho que saber, entender e lutar por pessoas que estão diante da situação concreta em que não ir trabalhar pode significar a perda de seus empregos e a falta de alimento na mesa dos seus filhos.   Os que têm medo não do futuro mais do presente, e da urgência tem meu mais profundo respeito.

O texto de hoje é sobre o amanhã. De novo convido, sempre insistindo em meus tempos e crenças, em minhas mediocridades e poucas compreensões, mas antes tomo emprestado as palavras de Nacide Hanin ( que é muito mais convite do que meu texto afinal e talvez até coubesse nos 280 caracteres do twitter):

“Não estamos com medo, porque sabemos que para ver o alvorecer é preciso passar pela noite escura”

E é disso que se trata afinal: não querer que as pessoas vivam sem o mínimo, sem liberdade, sem acreditar que pode ser diferente, que todas as pessoas tenham segurança de que não passarão fome, não querer que as pessoas se sujeitem ao pior sob o risco de não se ter o que comer amanhã. Que os desempregados, os estudantes, as juventudes, os professores, as mulheres, as negras e os negros, os pobres, marchem! Sabendo que muitos que não estarão ali não estão porque não sabem o que lhes reservam as elites: banqueiros, ricos empresários, e outros privilegiados. Não sabem, e sem saber, e sem confiar na certeza do novo alvorecer continuarão suas marchas como bois para o matadouro.