BOLSONARO NÃO QUER SER UMA RAINHA DA INGLATERRA NO BRASIL

BOLSONARO NÃO QUER SER UMA RAINHA DA INGLATERRA NO BRASIL

Por gentileza, não falem e não digam que estou inventando e contando histórias falsas, inverídicas, mentirosas e maldosas. Pasmem todos e todas. O presidente Bolsonaro acabou de falar e dizer que “não quer ser transformado em uma rainha da Inglaterra, que reina, mas não governa”.

Indignado e puto da cara com senadores e deputados, que não querem aprovar os seus descalabros – decretos e projetos –  ele falou no dia 22 de junho último: “Pô, querem me deixar como uma rainha da Inglaterra? Este é o caminho certo?”

O Bolsonaro está certíssimo. A rainha da Inglaterra Elizabeth II é elegante, educada, respeitosa, nobre, democrática, delega poderes para o primeiro ministro governar a Inglaterra. Aí, o  Bolsonaro teria que ser assim para ser transformado numa rainha da Inglaterra. Impossível. Com certeza científica absoluta, não consegue ser uma rainha. Nem no Brasil.

Por conta de suas más, pífias, conflituosas relações com deputados e senadores, o presidente se sente cada vez mais traído pelos seus amores matrimoniais com deputados e senadores – “o legislativo, cada vez mais, passa ter superpoderes”, lamenta. Aos infiéis no amor, lembra que a união do Executivo, Legislativo e Judiciário deve ser harmoniosa, amorosa, um verdadeiro pacto, vindo do coração. “Com todo respeito, nem precisava ter um pacto. Isso precisava ser do coração, do teu sentimento, da tua alma”. Este é o jeito amoroso estratégico para conquistar o voto dos deputados e senadores na votação dos decretos e projetos no Congresso. Quando precisa, ele se declara e finge de amoroso. Não é a qualidade, não são os valores sociais que precisam ser aprovados, simplesmente porque não existem nos projetos.

Na verdade, Bolsonaro reconheceu que seu governo tem problemas graves de articulação política na Câmara dos Deputados e no Senado. “Eu levo pancada o tempo todo”. Segundo a sua própria pedagogia, o adversário político é um inimigo, logo, bala nele! Quer dizer, prisão! Aí, precisa da fidelidade matrimonial dos três Poderes. Que na verdade, é o poder das elites do capital.

A falta de conversas dialógicas do Bolsonaro e de sua equipe – a arte e o poder dos argumentos – com os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado é notória. E mais, neste cenário está colocando em jogo perigoso os interesses das elites do poder econômico, as elites nacionais e as estrangeiras. O nervosismo raivoso, nos bastidores do palco nesta conjuntura, está acirrando as crises já em estado de insegurança e descontrole.  A troca frequente e permanente de ministros, diretores, secretários e assessores, durante os seis meses de governo, com frituras em público, está revelando a fraqueza e a incompetência de um governo autocrático.

Para aprovação das suas obras geniais, Bolsonaro conta com a força bruta dos deputados armamentistas – “bancada da bala” e “bancada do boi”. O direito da posse e o direito do porte – e do uso – de armas é a grande força de redenção do Brasil. É possível que Bolsonaro tenha aprendido a velha e trágica lei do poder e da necessidade das armas, durante as poucas lições de história que teve na vida. Aquela lei que os imperadores romanos inventaram e praticaram quando invadiam civilizações e povos, ou quando tiveram seus reinos invadidos pelos “bárbaros”, a exemplo dos seus antecessores gregos. “Si vis pacem, para bellum”– isto é, “se queres a paz, prepare-se para a guerra”, em tradução literal.

Estranho, muito estranho: para acabar e liquidar de vez os criminosos e os bandidos é preciso estar e andar armado. Seria a mesma coisa que dizer: se você quer o amor do outro/a, encha-se de ódio. Ou, se você quer carinho e diálogo, empodere-se de violência e impostura.

Bem, para aqueles e aquelas que ainda não entenderam o espírito, o sentido destas histórias, vejam que as exibições de virilidade física, de atitudes corporais de habilidades de ataques e de defesas, são estratégias para conquistar aplausos das multidões. Em síntese: é a popularização de um governo autocrático. Mostrar o peito vestindo uma camisa da seleção brasileira de futebol, vestir camisetas, bermudas, chinelos, bonés… de pobre, e, pasmem, vestir camisa da Marcha para Jesus com os dedos engatilhando um fuzil, e  falar uma linguagem grotesca, chula… é querer que as multidões pensem e falem: “ele é igual a nós, é da gente, tem o nosso apoio…” É a maneira pedagógica de inculcar a ideologia dominante. É o processo de alienação das massas populares pelas forças das elites do poder – uma garantia da renovação do ultraneoliberalismo, frente às crises sucessivas por força das contradições do capitalismo.

Restam, então, a dúvida e a pergunta: para governar o Brasil com inteligência e competência, com democracia, prosperidade e benefícios sociais públicos para todos, o presidente precisa fazer flexões de pescoço e flexões de braço? Ou, será que ele faz flexões de pescoço porque já não consegue fazer flexões de braço, exatamente porque não sabe e não consegue governar o Brasil?

Respondamos!

Terra arrasada; terreno preparado

Terra arrasada; terreno preparado

A coroa do Marreco cai, quac quac quac! A capa de super-herói desmorona e o corpo fica nu:  a Lava Jato, que virou Vaza Jato – ainda que o jato aqui seja em conta-gotas – é o que todos sabíamos e quase a maioria da imprensa alternativa vem dizendo desde 2015: uma armação política e econômica.

O “combate à corrupção” sempre foi o lema presente nos golpes de estado que sofremos a cada vez que algum governo se volte para os mais pobres. Quando os governos da elite e somente para a elite roubam, ganham comissões – a minha geração conviveu com o “ministro 10%” como era conhecido Delfim Neto na Europa – tudo é normal. Faz parte do jogo. Jogar assim faz parte de nossa oligarquia. O empresário Ricardo Semler, em artigo memorável, mostrou a hipocrisia da elite brasileira supostamente escandalizada com o que sempre fez. É que a elite tem o Estado para si, e quando alguma migalha cai fora de seus bolsos, fica furiosa e brande a bandeira do “combate à corrupção”.

Não se trata de não combater a corrupção: o poder corrompe e a atenção da sociedade é necessária. Mas o que nos aconteceu a partir de 2015, quando o “paladino da honestidade” Aécio Neves começou a chocar o ovo cuja serpente hoje o silencia, foi muito além. A operação chefiada por um juiz encantado com as luzes de Nova York e com os grandes corredores dos palácios e gabinetes dos EEUU tinha dois objetivos bem claros, e conseguiu realizá-los: 1. Destruir qualquer veleidade nacional de independência econômica construída pelo trabalho e pelos recursos naturais disponíveis; 2. Afastar a possibilidade de um retorno a um governo atento ao povo brasileiro, com olhos voltados para o mundo e não somente para os EEUU.

O suposto juiz, que como juiz nunca atuou, aceitou a missão, foi teleguiado pelos acordos, consultou o Departamento sempre que necessário, mas atingiu os objetivos: Lula continua preso e continuará preso enquanto a tia Carmem Lúcia presidir qualquer coisa no STF, ainda que seja a presidência do sistema de controle do acesso a sanitários; e a engenharia nacional foi destruída – as grandes empreiteiras estavam fazendo concorrência àquelas da matriz do império – e a Petrobrás tomada de assalto, com o auxílio exuberante, alegre e feliz de Pedro Parente, de que não se ouve mais falar…    

Moro foi bem sucedido. Foi incensado. Foi coroado. Marrecou a torto e a direito. Tinha tanta certeza de que era “dono do pedaço” que lhe coube por ordem do Departamento, que não teve o menor cuidado no comando da operação. E agora o comando veio a público, com provas do que sabíamos desde sempre. A novidade é a prova, não o que prova.

Sem capa de super-herói e sem coroa, correu ao seu amado país para pedir instruções para os próximos passos. Quais serão as ordens? Saberemos logo, porque o Departamento não abandona seus quadros ao léu quando as nuvens ficam carregadas. Simplesmente faz sumir o agente por um tempo, mas este agente sendo público, esconder à Queiróz é impossível. Então, o que virá será muito pior do que o que era até hoje. Quem viver, verá. O Marreco não perderá sequer uma pena!

Diz o Livro das Revelações nos versos de Bolsonauro

Diz o Livro das Revelações nos versos de Bolsonauro

… que os querubins têm espadas flamejantes, porque então não havia ainda a pólvora, mas no futuro, cada seguidor de Satã teria direito a quatro armas de fogo. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que no mundo futuro, mais uma vez se associariam como irmãos siameses o culto religioso e o poder de estado, de modo que lhes foi prometido um ministro evangélico na apequenada Corte Suprema, pois um pastor de almas lhe devolveria a grandeza que lhes tiraram uma tia envelhecida e um maduro homem submisso a tudo que lhe vier do assessor. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que seriam dizimados os inimigos, porque não há nas Revelações adversários, mas inimigos a serem mortos com o auxílio do Senhor. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que nas marchas para o Filho do Homem, a ralé usaria camisetas comuns, enquanto pastores ao lado de Satã estariam com camisas “lacoste”, mas todas com o mesmo símbolo de um pênis sendo masturbado. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que no futuro não haveria mais aposentados, estes sanguessugas da nação, e cada um cuidaria de sua futura velhice com um capital acumulado mesmo por aqueles que passam fome. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que os agiotas banqueiros seriam para sempre beneficiados, não seriam incomodados em suas sonegações, poderiam fazer o que bem entendessem, incluindo cobrar o ar que se respira em seus domínios arquiteturais, enquanto também o vento não fosse privatizado. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que qualquer prova contra inimigos seriam aceitas, mesmo as inexistentes, desde que estas fossem obtidas de boa vontade e boa fé, e a definição da boa vontade e da boa fé ficaria por conta do fabricante da prova. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que policiais poderiam matar à vontade e não responderiam a qualquer invencionice de processo, desde que eles mesmos dissessem que agiram sob o medo e impulso de sobrevivência, e como eles vivem com medo e ansiosos pela sobrevivência, nenhum deles poderia ser acusado por nada. Assim lhes foi prometido pela revelação;

… que as milícias estariam livres para “libertar” o povo da opressão dos criminosos, autorizadas a matar se preciso fosse, com direito a chá de sumiço quando necessário, não sem antes se hospedar nos mais caros hospitais da nação. Assim lhes foi prometido pela revelação.

Satã aceitou cumprir as promessas desta revelação, repetindo a torto e a direito tanto o gesto de matar com arma de fogo quanto a papagaiar a única frase que aprendeu: “A verdade vos libertará”. E a verdade de Satã é aquela deste Livro das Revelações…

E os imbecis seguidores da religião de Satã reencarnado acreditaram, se tornaram hostes ferrenhas e perigosas, dispostas a defender para sempre o MITO cujas profundas e inescrutáveis razões desconhecem, mas nele creem.

Assim está no Livro das Revelações.  

Disse o Senhor, e o Bolsonauro repete, “A  verdade vos libertará”

Mormaço, de Maria Mortatti

Mormaço, de Maria Mortatti

Algumas portas ainda tem soleira.

Numa delas, era uma vez,

banhada em flor,

perfumada de lembranças,

uma mulher namora o fim da tarde,

as mãos cochilando entre passar a roupa e preparar o jantar,

o sol coado entre nuvens e árvores do quintal.

Emudecem anjos e demônios

e contemplam a criatura.

Tanta beleza no leve limbo desse mormaço!

(Maria Mortatti. Breviário amoroso de Sóror Beatriz. S. Paulo : Ed. Patuá, 2019)

Fedra, de Racine

Fedra, de Racine

A tragédia do par Hipólito/Fedra tem múltiplas versões. Originalmente de Eurípedes (480-406 a.C.), em dois textos Hipólito Velado e Hipólito Porta-coroas. Haveria também uma versão de Sófocles, de que restam pouquíssimas informações e que teria também sido referência para o texto de Sêneca. Em seu estudo “A releitura do mito de Fedra e Hipólito de Eurípedes e Sêneca – Interseções”(1)  Fernando C. Zorrer da Silva, citando o crítico Pierre Grimal, faz referências à existência da obra de Sófocles. Em O livro dos livros perdidos(2), Stuart Kelly, no verbete Sófocles, não faz qualquer referência a esta possível obra perdida, mas também no verbete Eurípedes este autor não refere os textos da tragédia, já que seu objetivo era tratar apenas “das grandes obras que você nunca vai ler”.

Com uma ascendência desta ordem, que passa por Eurípedes, por Sófocles, por Sêneca e por Racine – entre aqueles cujas referências conheço – a versão que leio de Racine, numa tradução de Millôr Fernandes reconhecido por seus trabalhos de transliteração ao traduzir – foi feita para ser levada aos palcos pela primeira vez no Brasil, em 1986, com elenco que contou com Fernanda Montenegro, Cássia Kiss, Jonas Mello entre outros. Na nota publicada pelo tradutor no programa, ele pergunta retoricamente “Quem decidiu montar Fedra em 1986” e “acusa”: Fernanda Montenegro. E escreve:

“Tudo pensado – se é que tudo foi pensado – decidimos, Fernanda, Boal e eu, o que parecerá iconoclástico para alguns, desde saibam o que é iconoclástico, que a peça, em português, preservaria mais sua autenticidade se abandonássemos a forma rimada e alexandrina (tão emprenhada nos ouvidos franceses) pelo verso branco. Compensando a perda da rima pela clareza da ordem direta, ganhando reprodução do sentido exato das falas, no ritmo, na correspondência poética, no maior rendimento dramático por parte dos atores e maior facilidade de recepção por parte do público.”

Assim, temos hoje disponível um excelente texto através do qual podemos ter acesso à história trágica de Hipólito, pelo qual é apaixonada Fedra, mulher de Teseu. Lembremos, Teseu foi aquele que matou o Minotauro em Creta, auxiliado pelo fio que lhe deu Ariadne, irmã de Fedra; Ariadne amou Teseu, mas foi por ele abandonada – ele preferiu levar Fedra como esposa para Atenas; lembremos ainda, as duas irmãs são filhas dos reis de Creta, Minos e Pasifaé, “aquela senhora que se apaixonou por um touro, ora!, ora, e  mandou ver, dando à luz o Minotauro” (Millôr Fernandes)reis de Creta.

Como se pode ver, Fedra traz de origem o comando da paixão. E desde que conhece Hipólito, filho de Teseu e Hipólita (Antíope?), rainha das Amazonas, precisa esconder a chama que a devora. Por isso persegue Hipólito, faz com que Teseu o exile em Tresena. Mas numa das viagens do rei, também Fedra vai para Tresena, acompanhada de seu séquito e de sua confidente, Enone. Lá o amor que recalcava reaparece com toda sua força. Fedra, para não se desonrar, decide que o melhor seria tirar a própria vida. As angústias da rainha levam à confidência de seu segredo e Enone convence-a:

Não, senhora! Esquece esse terror injusto!

É um erro perdoável e deve ser perdoado.

Tu amas! Não se pode lutar contra o destino.

Um encanto fatal te arrebatou a alma.

Será isso, no mundo, um prodígio tão raro?

O amor, por acaso, venceu somente a ti?

A fraqueza é natural ao ser humano;

Mortal, tens o destino dos mortais.

Lamentas um jugo que te escraviza há tanto tempo;

Mas os que moram no Olimpo, os deuses mesmos,

Que trovejam ameaças terríveis contra nossos delitos,

Também se queima, às vezes, em chamas proibidas.

Hipólito é desenhado como um jovem que não deixa dominar por Vênus: aparentemente não ama a ninguém. Mas confidencia a seu tutor, Terâmeno, que está apaixonado por Arícia, precisamente uma proscrita pelo pai.

Como surge o boato de que Teseu morreu em sua demorada viagem, Enone convence Fedra, cujos laços com Teseu teriam se rompido, a confessar seu amor a Hipólito, que o rejeita como uma desonra cruel. Rejeitada, Fedra pede a espada de Hipólito para se suicidar. Novamente Enone entra em cena para incitá-la a permanecer viva para garantir o futuro de seus filhos, já que a sucessão de Teseu seria disputada tanto por Arícia, única descendente da família desbancada do poder por Teseu como por Hipólito, filho da estrangeira. Entra então no jogo psicológico um embate entre a paixão que desonraria Teseu e Fedra e o instinto materno de proteção aos filhos.

Enquanto Hipólito resolve ir a Atenas para defender os interesses de Arícia, a quem confessa seu amor correspondido, Teseu retorna vivo de sua viagem. Está construído o drama: um amor desonroso ao leito do rei, mas confessado ao amado Hipólito, desespera Fedra. Por conselho de Enone, ela acusa o amado de ter tentado desonrar o pai. Este, furioso, expulsa Hipólito do reino e ora a Netuno para que execute o filho já que o deus lhe havia prometido atender a seu pedido.

Neste ínterim, Teseu depois de um encontro com Arícia, desconfia que ouvira falsos testemunhos. Manda chamar Enone, mas esta, a quem Fedra acusou de responsável pela tragédia, havia se suicidado entrando mar adentro. Chama pelo filho, manda procurá-lo para que se defenda.

No entanto, Hipólito que combinara com Arícia um himeneu às escondidas, para partirem juntos e com honra, se dirige para um templo abandonado na floresta. No caminho, de uma grande onda surge um monstro que assusta seus cavalos. Na narrativa posterior de Terâmeno:

Dizem até que alguém viu, na confusão caótica,

Um deus lanceando cruelmente

Os flancos enlameados dos nobres animais.

O medo os atirou em cima dos rochedos;

O eixo grita e se parte: o intrépido Hipólito

Vê seu carro quebrado voar em mil pedaços.

E ele cai, ele mesmo, embrulhado nas rédeas.

[…]

Eu vi, senhor, eu vi teu desgraçado filho

Arrastado pelos cavalos que ele mesmo criou.

Tenta detê-los mas sua voz os assusta;

Eles disparam; todo o corpo de Hipólito agora é só uma massa.

A tragédia chegou a seu ápice: Hipólito morto e Teseu descobrindo que foi injusto. Oferece o corpo de Hipólito a Fedra, para que goze ao “até o fim, justo ou injusto” sua vitória. Então ela confessa seu ‘crime’, inocenta Hipólito que será enterrado com honras, e diz que ela própria seguirá para o mundo dos mortos pois um veneno que lhe trouxera Medeia já circulava em seu sangue. Tudo isso não sem antes culpar Enone por ter sido aquela que, confidente, mantinha acesa sua paixão. Nos versos

Aduladores malditos; esse é o presente mais funesto

Que a cólera celeste reserva aos poderosos!

se encontra uma espécie de “lição” aos poderosos que Eurípedes, que havia na vida se tornado um grande crítico aos poderosos de Atenas, deixaria nesta tragédia. Zorrer da Silva, analisando a versão de Sêneca, aponta que esta permite outra compreensão: Enone com suas ações estaria fazendo de fato uma oposição ao donos do poder, fazendo-os aparecerem com realmente são.

Para fechar este registro, adiciono dois comentários. O primeiro está em Stuart Kelly:

Sófocles dizia que mostrava os homens como deveriam ser, mas Eurípedes os mostrava como são; naquele tempo, esse “realismo” era, sem dúvida, kconsiderado um defeito; com o tempo, tornou-se virtude. Eurípedes também mostrou as mulheres, pela primeira vez, como seres inteligentes, vingativos, complexos. A sua Medéia ainda impressiona, com a estrangeira assassina assumindo a estatura de uma deusa no final, e, sem dúvida, Filhas de Pélias, Mulheres de Creta e Alcmeão em Psófis também impressionariam se ainda existissem. Polêmico, Eurípedes usou a tragédia como veículo para especulações filosóficas.

O segundo comentário vem do mesmo autor, mas remete a Aristófanes que sempre elogiou Eurípedes. Em As rãs, quando Dioniso tenta libertar do inferno um dos maiores dramaturgos, perguntam-lhe:

– Para que você quer um poeta?

– Para salvar a cidade, naturalmente.

Em tempos em que há gente no poder que diz ter precisado de carpinteiros, de marceneiros, mas jamais de artistas, é sempre bom relembrar esta passagem de As rãs. Escrevendo esta nota, percebo que devo reler a comédia de Aristófanes! Nada melhor do que ler os clássicos para compreender o que nos acontece hoje.

Referências

Fernando Crispim Zorrer da Silva. “A releitura do mito de Fedra e Hipólito de Eurípedes e Sêneca – Interseções”. Revista Hélade,vol. 1, n. 2, 2015. Disponível em http://periodicos.uff.br/helade/article/view/10540/7340

Stuart Kelly. O livro dos livros perdidos. Rio de Janeiro : Record, 2007.

Referência: Racine, Jean Baptiste. Fedra. Tradução de Millôr Fernandes – 2ª. ed. – Porto Alegre : L&PM, 2007.

“Essencialidades” em Paulo Freire: ser, falar e conhecer (1)

“Essencialidades” em Paulo Freire: ser, falar e conhecer (1)

Para Maria, neta por adoção, de coração

O sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. Não há um ‘penso’ e mas um ‘pensamos’. É o ‘pensamos’ que estabelece o ‘penso’ e não o contrário. (Paulo Freire. Extensão ou Comunicação?)

Retornar a Paulo Freire é reencontrar o pensamento da esperança, sejam os tempos que forem, mesmo quando eles são de desilusões tantas, para tecer com outras palavras o já tecido, bordando sobre os mesmos traços outros desenhos, com outras tonalidades porque outros são os tempos e outras são as realidades.

Talvez devêssemos perguntar: que compulsão é esta de dizer novamente e sempre, repetindo o já dito, tornando-o outro dizer? Que apostas podem estar contidas nos enunciados para que eles retornem em novas enunciações, em outras situações e como significados sempre outros? Certamente há boas razões para este quefazer continuado. E cada um que retorna traz suas contrapalavras que desvelam algumas de suas razões. Confesso de imediato as minhas: primeiro, porque o mestre, como o poeta, ensinou que não há caminhos prontos e que pensar não é seguir uma trilha de corrimãos dados; em segundo lugar, porque nos ensinou perguntas que, por serem fundamentais, permanecerão não respondidas e a elas sempre retornaremos já que as respostas construídas vem marcadas pelas épocas vividas e são sempre já história. O homem está permanentemente convidado a construir  suas outras respostas. Não pode haver convite maior do que esse; não pode haver desafio maior do que pensar sem corrimãos.

Que perguntas trago, aqui, para este diálogo cujo produto não quer ser “um pensamento sobre”, mas um pensamento com Paulo Freire, a partir de Paulo Freire? Escolher ‘essencialidades’ pode parecer um desejo de construir permanências, estabilizar os enunciados fixando-lhes um valor e um sentido. É o contrário que me move: gostaria de defender que em Paulo Freire não há essencialidades pré-dadas exceto um paradoxal princípio fundador: tudo está sendo, tudo é movimento e historicidade; as respostas são provisoriedades.

Conhecer, na dimensão humana, que aqui nos interessa, qualquer que seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito , transformado em objeto, recebe dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe.

O conhecimento, ao contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. (Freire, 1977:27)

 

A propósito do “ser”

 

Uma das primeiras essencialidades de que somos acusados diz respeito precisamente à noção de sujeito que subjaz aos princípios pedagógicos que abraçamos, e que Paulo Freire sintetiza em Pedagogia da Autonomia como ‘saberes’ enunciados na forma de afirmações sem fugir à responsabilidade e responsividade que a afirmação pressupõe. Responsabilidade porque não se nega a assumir posições; responsividade porque sabe que seus ditos respondem a outros ditos e provocarão novos ditos.

Por nos assumirmos como “pedagogia crítica”, situamo-nos no campo crítico. E o pensamento crítico deste final e início de século tem ramificações de toda ordem, ora apontando para as tensões dialéticas que falam sobre a modernidade ocidental (Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, e sua trilogia de tensões: entre regulação social e emancipação social; entre o Estado e a sociedade civil e entre o Estado-nação e o que designamos por globalização); ora apontando para as crises dos paradigmas científicos, reintroduzindo o tempo, o acontecimento e o acaso onde a modernidade apostava na previsibilidade inscrita nas “leis da natureza” (Ilya Prigogine, por exemplo, e a reintrodução da seta do tempo e sua irreversibilidade que demanda o reencantamento do mundo); ora apontando para a construção de subjetividades autônomas, pra o exercício da cidadania e para a construção de uma ação contra hegemônica (conceitos tão presentes nos textos da pedagogia crítica quanto nos movimentos sociais contra hegemônicos).

Todas essas direções remetem a concepções de sujeito, de forma explícita ou implícita, concepções nem sempre partilhadas, mas todas elas com um denominador comum: compartilham crenças e certezas nas possibilidades de ação dos sujeitos sociais, que se definem de formas distintas relativamente aos condicionamentos históricos [escapando portanto aos dispositivos de regulação que definem desde sempre a ação prevista]. Essas direções podem tomar diferentes fundamentos para o sujeito – uma vocação para a eternidade? uma vocação à solidariedade? uma vocação à racionalidade? Uma vocação à subjetividade eticamente fundada, razão convertida em paixão pelo humano de cada um e de todos? – mas nenhuma dessas direções dispensa ou se dispensa de uma tomada de posição.

A essas concepções e a compartilha de crenças de outros possíveis (para usar uma clave paulofreireana, outros inéditos possíveis), opõem-se não somente discursos pragmaticistas, com interesses a defender, em que a noção de “adaptação aos tempos” é o condão mágico do pensamento sobre a constituição das subjetividades, como se os tempos não fossem “regíveis”, mas regentes. Esses discursos podem ser encontrados na imprensa, na política, nos acordos de uma economia planejada para a liberdade dos mercados, nos planejamentos educacionais: o discurso hegemônico sempre encontrou porta-vozes eficientes.

Mas também no campo crítico essas concepções e sua compartilha básica de possibilidades de construção de um outro futuro são postos sob suspeita. As críticas endereçadas ao pensamento crítico pelas análises foucaultianas, pelas desconstruções derridianas ou pelas reflexões deleuzianas, necessariamente devem ser postas sob escrutínio, porque elas não representam mais uma diferença de opção entre campos de luta, mas resultam de um refinamento necessário às concepções para não cairmos no engodo da inovação que repete e reproduz os mecanismos mesmos que quer destruir.

Para exemplificar essas posições críticas, gostaria de retomar aqui uma passagem de Deleuze. A citação será longa, mas necessária para retomarmos a força propulsora da conscientização a partir de novas concepções sobre o sujeito, sem perder com isso o entendimento de que o futuro se constrói como possibilidade do que há de vir e não como produto constante de uma mutação contínua e sem rumos.

Se hoje em dia o pensamento anda mal é porque, sob o nome de modernismo, há um retorno às abstrações, reencontra-se o problema das origens, tudo isso […]. De pronto são bloqueadas todas as análises em termos de movimentos, de vetores. É um período bem fraco, de reação. No entanto, a filosofia acreditava ter acabado com o problema das origens. Não se tratava mais de partir nem de chegar. A questão era antes o que se passa ‘entre’. E é exatamente a mesma coisa para os movimentos físicos.

Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar um peso, etc.: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se define cada vez menos a partir de um ponto de alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa delta – são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, ‘chegar entre’ em vez de ser origem de um esforço.

E no entanto, em filosofia se volta aos valores eternos, à ideia do intelectual guardião dos valores eternos. É o que Benda já criticava em Bergson: ser traidor da sua própria classe, a classe dos clérigos, ao tentar pensar o movimento. Hoje são os direitos humanos que exercem a função de valores eternos. É o estado de direito e outras noções, que, todos sabem, são muito abstratas. E é em nome disso que se breca todo pensamento, que todas as análises em termos de movimento são bloqueadas. Contudo, se as opressões são tão terríveis é porque impedem os movimentos, e não porque ofendem o eterno. Sempre que se está numa época pobre, a filosofia se refugia na reflexão “sobre” […]. Se ela mesma nada cria, o que poderia fazer, senão refletir sobre? Então reflete sobre o eterno, ou sobre o histórico, mas já não consegue ela própria fazer o movimento. (Deleuze, 1992:151-152)

Se a noção paulofreireana de conscientização demanda um compromisso histórico e se a inserção crítica na história implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo, que criam sua existência com o material que a vida lhes oferece (Freire, 1979), então encontramos aqui uma oposição entre os pontos de vista defendidos pela pedagogia crítica e pela crítica deleuziana (e de outros pensadores contemporâneos). Isso porque a concepção de sujeito que nos atribuem é a de sujeitos livres, racionais e fontes de construção deste fazer e refazer o mundo. No entanto, nada me parece mais distante do pensamento de Paulo Freire do que a admissão de uma ‘origem’ humana acabada e dada antes de o homem se fazer homem. Isso porque, nas

[…] nas relações com o mundo, através de sua ação sobre ele, o homem se encontra marcado pelos resultados de sua própria ação.

Atuando, transforma; transformando, cria uma realidade que, por sua vez, ‘envolvendo-o’, condiciona sua forma de atuar.

Não há, por isso mesmo, possibilidade de dicotomizar o homem do mundo, pois que não existe um sem o outro. (Freire, 1977:28).

 

Em outra passagem e sob outro ângulo, mais uma vez este ser que se faz na história – portanto no movimento – e por isso não nasce já pronto e jamais encontrará seu ponto final, afirma:

Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. (2.1. Ensinar exige consciência do inacabamento). (Freire, 1996:55)

 

Creio que Paulo Freire consegue escapar à concepção cartesiana de sujeito, um sujeito fonte de seu próprio fazer, mas também não o reduz, como fez o estruturalismo, a produto maleável pelas determinações e pelas constrições de seu tempo. E consegue isso porque encontra um outro posto de observação a partir do qual constrói pontes entre o fazer e o deixar-se levar, entre criar a existência e o se fazer aceitar pelo movimento de uma grande onda.

Parece-me que, precisamente no percurso de busca de respostas a perguntas que não se deixam apagar, porque são perguntas constantes de respostas provisórias, Paulo Freire encontra categorias com que constrói outra noção de sujeito. Sem defender qualquer perenidade a não ser o movimento permanente – e neste sentido os direitos do homem não são valores eternos, mas valores a que outros se acrescentam no movimento da história, (re)configurando cada um deles – Freire encontra no “modelo” não estruturalista de funcionamento da linguagem os elementos para pensar um sujeito que se insere no movimento, sem perder sua energia, material e social, de transformar o que encontra e no que se faz o que é e como é.

 

A propósito do falar

 

Um dos processos mais notáveis da linguagem é sua vocação constante à repetição e à mudança. Se não houvesse repetição, a cada nova enunciação teríamos que construir os recursos expressivos mobilizáveis para sua realização: isso impediria qualquer possibilidade de partilha de sentidos. Se não houvesse mudança, toda enunciação seria citação constante dos mesmos enunciados. A linguagem não funciona nem sobre a permanência dos recursos expressivos, nem sobre a criação ininterrupta que não produz história. Por isso a linguagem é uma atividade constitutiva de si mesma, uma sistematização em aberto, produto do passado e projeção do futuro.

Desse modo de funcionamento Freire extrai uma primeira lição: nenhuma sociedade é uma estrutura em cujo movimento temos que nos inserir, mas uma arquitetura que demanda enunciações singulares a cada momento histórico em que o que se repte muda de sentidos e o que se altera adquire sentidos no que se repete. Indeterminação com história, movimento com futuro. Explicitamente, em Paulo Freire (1977:70) na

 

[…] comunicação, que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade.

Não há pensamento que não esteja referido à realidade, direta ou indiretamente marcado por ela, do que resulta que a linguagem que o exprime não pode estar isenta destas marcas.

 

Em consequência, por aceitar a linguagem como atividade constitutiva, Paulo Freire reconhece que a relação entre o mundo da cultura, onde os sentidos circulam, e o mundo da vida, onde os atos são executados – incluindo entre eles os atos discursivos – é também uma relação constitutiva, em que um mundo somente existe porque constituído pelo outro. Um muda o outro permanentemente. Reencontro aqui o movimento, mas agora com história, que funda raízes não para garantir o futuro, como se dele fosse a origem, mas para tornar possível o próprio movimento como criação e não repetição do já dado. Tal como os recursos expressivos permitem a enunciação sem, no entanto, fixar-lhe os limites de seus enunciados nunca antes ditos e jamais repetíveis em sua singularidade, também as constrições sociais se oferecem como recursos da ação transformadora em que necessariamente o homem está engajado pelo simples fato de agir, já que não é dada a ninguém a possibilidade de enunciar responsável e responsivamente “eu não estou aqui”. Não há álibi para a existência (Bakhtin, 1926).

Em estudo anterior (Geraldi, 2003) aproximei teses co-enunciáveis por Paulo Freire de Mikhail Bakhtin e aqui retomaria apenas um dos momentos desses encontros possíveis – aquele em que os autores tratam da constituição da consciência, ambos colocando esse processo na história:

 

[…] el mundo de la conciencia no es creación sino elaboración humana. Ese mundo no se constituye em la contemplación sino en el trabajo (p. 19).

Humanización e deshumanización, dentro de la historia, en un contexto real, concreto, objetivo, son posibilidades de los hombres como seres inconclusos e concientes de sua inconclusión (p. 38).

[…] la situación concreta en que se encuentram los hombres condiciona sua conciencia del mundo condicionando a la vez sus actitudes e su enfrentamento. ( Freire, 1974: 169)

A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social (p.35).

A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobre nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora deste material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido de sentido que os signos lhe conferem. (Bakhtin /Volochinov), 1929:35-36)

 

Se a consciência é sígnica, está repela de signos nunca neutros porque produtos da história; e se a referência ao mundo com a linguagem não supõe algo que, existindo, “fotografamos” com palavras, mas sim construímos com palavras porque nelas ficam as marcas da relações homem-mundo daquele que fala, então nós, homens e mulheres, somos todos produtos da história: mutáveis, múltiplos e singulares. Irrepetibilidades e responsividade irreversíveis. E estar aqui é uma resposta a si mesmo e ao outro, com o qual necessariamente estamos e a quem dizemos “estou aqui”. Conscientizar-se é ser uma resposta à alteridade? Do outro que se foi, eco e memória na herança cultural: do outro com que se compartilha o tempo presente; do outro que virá necessariamente distinto do que se é porque trará suas novas lições.        

 

A propósito do conhecer

 

Reconhecer a unicidade de cada sujeito, a singularidade de cada momento, o desprezado cotidiano em que os enunciados circulam nas enunciações cada vez únicas, e onde se praticam ações ora conducentes, ora não, à memória de futuro imaginado, até porque a própria memória de futuro não é perene e imutável, implica construir novos caminhos do olhar perscrutador que deseja captar nas “grandezas do ínfimo” os movimentos diminutos em direções cada vez múltiplas e desiguais.

Por não esquecer que o singular não sobrevive sem compartilhas, sem as estruturas que nele estão e por ele são vagarosamente corroídas, não é por acaso que Paulo Freire escolhe sempre a narrativa para, da experiência vivida, extrair ensinamentos. Seus livros estão carregados de casos, acasos, histórias curtas. Conhecer é uma ação gnosiológica inseparável das situações concretas.

 

O que se pretende com o diálogo, em qualquer hipótese (seja em torno de um conhecimento científico e técnico, seja de um conhecimento ‘experencial’, é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a realidade concreta na qual se gera o sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la […]

Tudo pode ser problematizado (Freire, 1977:52-54)

 

Só há história onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História {…] (Freire, 1996:81)

 

Creio que estes elementos apenas abrem o caminho de uma construção paulofreireana: ser, falar e conhecer são ações e por serem ações se cruzam com outras ações. Não há princípio nem há um fim. Há processo. Por isso as ‘essencialidades’ paulofreireanas não são ontologizadas. Suas estabilidades são aquelas dos processos, transformação sem porto de chegada.

Ainda não sabemos costurar uns casos aos outros, uns acasos aos outros, umas histórias a outras histórias sem perder o vigor de sua singeleza, sem perder as cores próprias da sua singularidade. Talvez hoje tenhamos aprendido que hão há como compor uma cor outra, produto da abstração, porque os futuros já definidos estão para sempre problematizados. Talvez este seja um momento necessário para nos sentirmos dentro da floresta, examinando minúcias, pra depois retornarmos ao promontório de que saímos e cuja existência não esquecemos. E uma vez lá, recuperarmos nossas utopias. Mas a viagem de retorno ao promontório nunca mais será uma volta, será sempre outra viagem.

Dispúnhamos e dispomos de certas técnicas de escuta, mas não sabemos com precisão que toque, que palavra, que gesto produziu o encontro com outro toque, outra palavras, outro gesto, e na faísca deste encontrou escreveu e sulcos no ar uma outra imagem, uma terceira palavra capaz de criar uma compreensão, exigir um investimento intelectual e desencadear este encanto que é o pensamento. Pensar exige liberdade. Pensar exige silêncios e vazios. Inacabamentos. As palavras de Paulo Freire contracenam com as palavras de Mikhail Bakhtin e ambos ressoam nas palavras do poeta, porque eles – e também nós – escolheram – e escolhemos – no ínfimo, nas periferias, as raízes de que brotarão, sempre renováveis, outros tempos e outras existências.

 

As coisas jogadas fora por motivo de traste

são algo da minha estima.

Prediletamente latas.

Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.

Se você jogar na terra uma lata por motivo de

traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.

Por isso eu acho as latas mais suficientes, por

exemplo do que as ideias.

Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo

espírito, elas são abstratas.

E, se você jogar um objeto abstrato na terra por

motivo de traste, ninguém quer pegar.

Por isso eu acho as latas mais suficientes.

A gente pega uma lata, enche de areia e sai

puxando pelas ruas modo um caminhão de areia.

E as ideias, por ser um objeto abstrato concebido

pelo espírito, não dá para encher de areia.

Por isso eu acho a lata mais suficiente.

Ideias são a luz do espírito – a gente sabe.

Há ideias luminosas – a gente sabe.

Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba

atômica, a bomba atôm …………………………….

……………………………………. Agora

eu queria que os vermes iluminassem.

Que os trastes iluminassem.

(Manoel de Barros, Teologia do Traste)

 

Nas palavras ainda do mesmo poeta, encontraremos a esperança nas escolhas das coisas desimportantes que ensinarão que a vida se tece também com o canto dos pássaros, o perfume das flores e o sorriso das crianças:

 

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras fatigadas de informar.

Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença.

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios

(Manoel de Barros, O apanhador de desperdícios)

 

 

 

Nota

  1. Texto escrito para minha participação no V Colóquio Internacional Paulo Freire: desafios à sociedade multicultural, realizado em Recife, na Universidade Federal de Pernambuco, pelo Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas, de 19 a 22.09.2005. Inicialmente o título deste texto, que apareceu no programa do Colóquio, era Subjetividade, linguagem e conhecimento. Depois de ouvir uma das palestras do Colóquio que fez referência ao fato de Paulo Freire gostar mais dos verbos do que dos substantivos, porque aqueles remetem ao agir, ao fazer, ao ser, estes remetem às coisas e têm certa característica estática, de fixidez, fechando os sentidos dos objetos, das coisas e das gentes; ao contrário, os verbos levam ao movimento mesmo quando servem apenas para ligar a algo uma qualidade, porque esta é mutável ou quando falam de um estado, também mutável. Assim, quando o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo me pediu um texto para sua revista, alterei o título do texto nesta publicação que foi minha homenagem ao grande mestre e amigo Paulo Freire. No entanto, fui infeliz na escolha, ainda que tenha posto entre aspas o “essencialidades”. Talvez mais adequado fosse pensar em “pontos de partida” ou “postos de observação”. Fiel à publicação, mantenho aqui o título. Publicado nos Cadernos de Pesquisa em Educação – PPGE – UFES. 2007, número 25, p. 9-23. Este texto foi incluído na coletânea organizada por Jean Mac Cole Tavares Santos (org) Pauo Freire. Teorias e práticas em educação popular. Escola pública, inclusão, humanização. Fortaleza : Edições UFC, 2011, p. 21-33.

Referências

Bakhtin, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1929-1979

_____________ Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tesse, para uso didático e acadêmico, de Towards a Philosphy of the Act. Austin : Texas University Press, 1916-1993.

Barros, Manoel. “O apanhador de desperdícios” in. ______ Memórias Inventadas: a infância. São Paulo : Planeta, 2003.

____________  “Teologia do traste” in. ______ Poemas Rupestres. Rio de janeiro : Record, 2004.

Deleuze, Gilles. “Os intercessores”. L’autre jornal  n. 8, out. 1985. Entrevista concedida a Antoine Dulaure e Clare Parnet. In. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro : Editora 34, 1992.

Freire, Paulo. Pedagogía del oprimido, 7ª. ed.. Buenos Aires : Siglo Veintiuno, 1974.

__________  Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1996.

__________  Extensão ou comunicação?  12ª. ed., Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2002.

Geraldi, João Wanderley “Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. O encontro que não houve in. Norma Sandra de Almeida Ferreira (org) Leitura: um cons/certo. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 2003.

___________________ “Problematizar o futuro não perder a memória do quehá de vir”. Comunicação apresentado no IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, Porto, setembro de 2004.