Últimos dias

Últimos dias

Naquele tempo era incomum o frio, então quando começara a sentir por dentro das carnes, junto aos ossos, aquela dor fina e constante, soube que era chegada a hora. Ainda assim quis, sem acreditar que o que seria não estava dado, fechar as janelas, trancar as portas, cerrar os portões, esconder-se de todo jeito, e fazer de modo que o tempo parasse naquele momento para que o esperado não acontecesse e como sabia que resultaria inútil nada fez. Continuou ali mesmo. Olhou uma vez ainda para o relógio, e o tempo não tinha se atrasado, tampouco era possível que parasse.

Antes que o vento rompesse uivando pelas frestas todas da casa, fez sua oração para nenhum deus, tinha perdido a fé, tinha perdido muito. Se ao menos aquele momento não chegasse, poderia ainda. Tudo há muito resultava inútil.

Enfim, lá estava ele, tinha chegado conforme se anunciava desde os outros tempos.

Lá de fora ouviu os grunhidos dos vizinhos, talvez gemidos de dor e desespero, os homens eram mais ruidosos afinal, as crianças chorando, os velhos entre tosse e morte sem forças para grito, algumas mulheres em vão tentavam esconder aos seus filhos, os cachorros e gatos estavam em silêncio. As árvores balançavam parecendo que teriam as raízes arrancadas, mas contraditoriamente não havia violência nos ares que sopravam fortes.

Dentro da casa, por toda a parte já existia sinais do que estava acontecendo, durante toda a sua vida tinha sido assim, as coisas que aconteciam se davam, a saber, com certa antecedência, era como uma espécie de tortura. Na sua infância tentou falar sobre isso com os pais, e outras pessoas, foram suficientes para garantir-lhe um tratamento precoce para o que chamaram de esquizofrenia, de modo que aprendera a esquivar-se pelas brechas da linguagem, a partir dali aprendera a construir  versões literárias para seu sofrimento: tinha sonhado, não passava de um  desejo que as coisas não fossem ou fossem se desenrolar como soubera antes, e por último escolhia alguns sinais que pululavam no cotidiano e organizava-os de modo que fossem argumentos perfeitos para suscitar as dúvidas do porvir.

Tinha que ter o controle perfeito, nem uma palavra a mais, oferecia apenas a quantia exata para constituir em seus ouvintes a espera, embora fosse acumulando experiência e eficiência nisso, a sensibilidade cada dia mais reduzida das pessoas não permitia que vissem além do que era palpável.

A vela do quarto apagou, continuava claro e foi então que fez se silêncio como nunca antes. O sopro de friagem entrou rápido e veio alojar primeiro por todo canto, as paredes formavam películas finas de gelo, as coisas e móveis foram todos congelando, previsivelmente sobrou o vazio. O como fazia o profundo silêncio, soube que tudo estava cristalizado. Menos a dor. Não sentia mais os pés, estranhamente todo o corpo queimava, apequenou-se quando percebeu que não morreria. Era preciso a dor ainda mais aguda.

Desejou não saber, mas já apagava-se tudo. Restava o solitário som.  Um tambor alto que anunciava a vida, em marcha dava o tamanho e o peso da morte e como uma revolução, o pulso insistia em marcar o tempo.

QUANDO AS MENTIRAS NÃO TEM MAIS PERNAS (NEM CURTAS)

QUANDO AS MENTIRAS NÃO TEM MAIS PERNAS (NEM CURTAS)

Pode mentir? Pode levantar falso testemunho? Pode negar a verdade? Pode falsificar provas de crimes que foram ou que não foram praticados? Pode dizer que são mentirosos os fatos reais e verdadeiros? Pode matar com a língua? Com a boca? Pode estuprar com a língua? Quando as mentiras e as verdades são descobertas, pode continuar mentindo? Pode falsear, falsificar as verdades? Pode…?

No nosso mundo que vivemos, temos que responder, com amarga tristeza na alma e profunda dor no coração, sim! Pode mentir! Quem e quando pode mentir? Podem mentir os candidatos desonestos quando e toda vez que a mentira for eficiente e eficaz para garantir a eleição para presidente da nação, para senador, para governador…; pode mentir quando a mentira for necessária e poderosa para o presidente e seus apoiadores se manterem no poder; quando a mentira for arma poderosa e necessária dos poderosos liquidar os opositores e adversários políticos.

Enfim, as elites do capital e do poder político podem mentir; podem inundar o mundo com falsas propagandas para vender mais; podem espetacularizar tragédias humanas e naturais ao vivo para ganhar muito dinheiro; podem enriquecer mentindo, enganando, fantasmagorizando.

Pode levantar falso testemunho? Sim, pode! Pode inventar e declarar mentiras na delação para condenar e prender inocentes. Quer dizer, o delator deve dizer as mentiras impostas pelo juiz para impedir – mediante falsas e mentirosas testemunhas, mediante delação pré-inventadas – os líderes políticos das classes sociais baixas a serem candidatos quando com potencial de serem eleitos.

Assim, a mentira na delação vira prêmio para o mentiroso corrupto e perdão e liberdade para o criminoso político – corrupto poderoso. Na inexistência de provas de crimes dos adversários políticos, a mentira e a delação serão provas suficientes e mortais, legais para juízes condenarem as vítimas inocentes nos processos judiciais político-ideológicos.

Nestas situações históricas, é próprio, é uma estratégia dos presidentes e dos líderes políticos dizer uma coisa na teoria para fazer o contrário na prática, na vida real. É o grande e poderoso princípio da enganação, da trapaça. E não há juiz competente, capaz de punir e impedir  estas mentiras, estes crimes contra os princípios éticos. Pelo contrário, há juízes que incentivam e determinam a mentira na delação para poderem condenar os adversários políticos dos grupos ideológicos contrários. Assim, eles protegem os poderosos. É trágico! A mentira e a mediocridade se constituíram em estratégia poderosa para líderes políticos – nos processos das eleições e nos programas de governo. E mais, não basta só parecer ser medíocre. É preciso ser medíocre bobo para iludir, alienar as massas de incautos – submissos voluntários.

A tragédia é grande e tenebrosa: o mundo dos líderes e políticos está infestado pelo vírus tóxico da mentira. Infestado, também, pelos agrotóxicos mentirosamente chamados de defensivos agrícolas. Falsear e contestar a realidade, mentindo todos os dias dia todo virou estratégia de popularização dos políticos de extrema direita, aqui e no mundo todo.

Por este método político foi inventado o governo autocrático – a autocracia do ultraneoliberalismo.  Nos processos de popularização dos governos autocráticos os mentirosos se divertem, se deleitam e morrem de rir dos incautos e bobos que batem palmas para eles.

Os mentirosos se postam soberanamente diante das câmeras sorridentes , imperturbáveis, maquiados mentem em cenas reais ao vivo, cinicamente, desavergonhadamente. Até primeiros ministros e primeiras ministras dos países mais ricos e civilizados do planeta mentem feio. Alguns debocham da verdade.

Segundo o presidente Bolsonaro, os dados do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial – INPE “não conferem com a realidade”, porque são frutos da “psicose ambiental”. Isso que a metodologia do Instituto é reconhecida como científica pelos cientistas do mundo inteiro. Diversos cientistas vêm se dedicando na pesquisa rigorosa usando a tecnologia eletrônica mais exata que existe, por mais de trinta anos sem parar. Enquanto Bolsonaro, para justificar a liberação do desmatamento da Amazônia aos estrangeiros colonizadores, diz que os dados não são verdadeiros. Como se todos fôssemos uns caras-de-pau.

A verdade é que as questões de desmatamento e das mudanças climáticas são questões científicas e tecnológicas e não políticas de interesse de cartéis estrangeiros.  A verdade, e não a mentira, é que essa liberação do desmatamento da nossa Amazônia é criminosa, é extrativista colonialista. Só falta entregar o INPE às empresas privadas para liberar a mentira – os dados falsos.

Mentez, mentez, il en restera toujours quelque chose … (Voltaire). Ou, a mentira falada e escrita muitas vezes de maneiras diferentes acaba se transformando em verdade. Para os incautos, é claro.

Enquanto isso, “a verdade continua revolucionária” (Gramsci).

Toffoli gostaria de ser Moro

Toffoli gostaria de ser Moro

Volto a Toffoli, ao advogado do passado, ao sabujo do momento. Indicado para o STF vindo de atuações à esquerda como advogado, elevado por Lula a advogado geral da União, ao chegar à Corte começa seu calvário de se mostrar digno para a classe que sempre teve nas mãos o Judiciário e a decretação da ‘justiça’ de sua classe!

Percurso difícil de percorrer para quem até então havia militado com proximidades com, digamos assim, ‘classes subalternas’. Em suas primeiras decisões surpreendentes, quando agiu como um acólito de Gilmar Mentes – como tenho ainda boa memória e não esqueço as relações entre o eleito e falso paladino da moralidade o cassado Demóstenes e a alegação de Gilmar de que haveria ‘gravações’ das conversas entre eles, preciso lembrar isso com um pequeno ‘erro’ de ortografia porque Mentes é um verbo e Mendes um sobrenome – todos acreditaram na história que circulou à boca pequena: Gilmar Mentes estaria com um processo contra o irmão de Toffoli e para garantir o irmão ele estava obedecendo ao seu colega. Nunca acreditei no boato. Sempre pensei que de fato era o discurso da servidão voluntária para angariar fundos ou moedas de aceitação na classe a que não pertencia!

E penso que a sequência dos fatos estão confirmando isso. Ao se tornar presidente do STF, pôs-se sob a proteção de um assessor general, fato inédito na Corte. Depois jogou para as calendas gregas a votação em plenário da inconstitucional prisão antes da sentença transitar em julgado. E no seu mandato de presidente não só foi fazer acordos com o Executivo, acabando de vez com a independência dos Poderes, mas passou a obedecer com humildade repugnante aos desígnios de seu chefe: o presidente Bolsonaro.

Assim, com medo de não ter sido o que hoje pensa que deveria ter sido, morre de inveja de Moro. Gostaria de ter sido também ele, no passado, um caçador da esquerda esquecendo que somente chegou onde está, graças aos ares de esquerda que usou como máscara.

Para garantir sua entrada na classe em que não nasceu, obedece.

E em obediência suspendeu todas as investigações que se originaram em informações do COAF, reduzindo a titica de galinha as funções da fiscalização. E assim salvou o filho do patrão de momento. Flávio Bolsonaro e todos os milicianos e todos os chefes do tráfico ficaram gratos.

E o indiciado – não pela justiça, mas pelo senso comum – Toffoli sai a defender que está garantindo a cidadania… Só rindo. Ele imita Moro que na falta de argumentos para defender o que fez como juiz-acusador usa de artifícios como a obtenção ilegal das informações ou de adulteração do conteúdo das mensagens.

Aliás, Moro nos considera tão estupidos quanto ele: houve um hacker que ilegalmente invadiu os celulares, depois alterou os conteúdos das mensagens e por fim – pasmem – os conteúdos, a se crer na argumentação, são legais, normais! Vai ser hacker burro assim no inferno para fazer adulterações para ‘apresentar resultados normais e legais’! O Moro quer passar atestado de burros para todos e seu seguidor invejoso, o Dias Toffoli agora faz o mesmo.

Toffoli está cada vez mais próximo de seu MITO!

José Serra e meus canários belgas

José Serra e meus canários belgas

Houve um tempo em que o senador José Serra esteve em evidência. Quase diariamente uma foto de Serra ilustrava alguma de suas atividades – obviamente, sempre propostas em benefício das grandes petrolíferas e em prejuízo do país.

Depois começaram a aparecer denúncias de corrupção. O amigo Gilmar Mendes, a pedido do senador, declarou extintas todas as ações que tramitavam na justiça e em que Serra era réu! Tudo por decurso de prazo.

Assim, José Serra ficou livre e pode usufruir à vontade dos mais de vinte milhões de dólares armazenados em bancos suíços. Estes valores certamente, dado que Serra é ‘incorruptível’, e somente defende os interesses da Chevron porque a ama, têm sua procedência nos salários que recebe como professor aposentado da Unicamp somados aos muitos salários de prefeito, governador, ministro, senador…

No entanto, mesmo ‘perdoado’ por decurso de prazo, o senador sumiu dos noticiários. Alguns dizem – mas devem ser más línguas – que ele anda fora da casinha. Parece não ser verdade, porque vem articulando um novo golpe sobre o petróleo brasileiro. Aquele que conseguiu em 2016 lhe parece insuficiente. É preciso destruir definitivamente as ‘veleidades brasileiras’ de explorar seus recursos naturais, e para isso nada melhor do que afastar a Petrobrás de qualquer concorrência ou qualquer prioridade na escolha de campus de exploração do pré-sal. Vem por aí nova regulamentação que o senador está articulando.

Mas infelizmente para meus canários belgas, suas fotos não aparecem nos jornais. Quando apareciam, sempre estavam expostas ao forrar o chão da gaiola: punha as fotos para que os canários nela largassem suas titicas…

Isto porque sabe José Serra o que faz. Não é ingênuo. E fez de tudo para enriquecer a pobre filha Mônica Serra… tadinha, tenho uma pena dela. Porque sou um sonhador, torço para que o senador esteja dentro da casinha para ainda compreender o quanto destruiu este país.

Debaixo do Tamarindo, de Augusto dos Anjos

Debaixo do Tamarindo, de Augusto dos Anjos

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,

Como uma vela fúnebre de cera,

Chorei bilhões de vezes com a canseira

De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,

Guarda, como uma caixa derradeira,

O passado da Flora Brasileira

E a paleontologia dos Carvalhos!(1)

Quando pararem todos os relógios

Da minha vida, e a voz dos neerológios

Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,

Abraçada com a própria Eternidade

A minha sombra há de ficar aqui!

  • “E a paleontologia dos Carvalhos” é verso com jogo de palavras: no primeiro sentido, o Tamarindo ‘guarda o passado da flora brasileira porque, como indivíduo, revive a aventura biológica de sua espécie, havendo nele, como que fossilizados (a paleontologia é a ciência dos fósseis animais e vegetais), até os carvalhos; no segundo sentido, note-se que o poeta se chamava Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, razão por que a notação com maiúscula, para indicar a espécie (notação que levou, por certo, ao mesmo processo em Flora Brasileira) Carvalho, foi extremamente sugestiva, pois insere seu ser humano no ser vegetal do tamarindo. (Nota de Antônio Houaiss, organizador da antologia. Augusto dos Anjos. Poesia. Rio de Janeiro : Livraria Agir Editora, 1960)
A formação dos jovens diante das exigências do mercado de trabalho desde a perspectiva da construção de novos paradigmas laboriais: segurança social e justiça social (1)

A formação dos jovens diante das exigências do mercado de trabalho desde a perspectiva da construção de novos paradigmas laboriais: segurança social e justiça social (1)

Bom-dia a todos. Antes de mais nada, parabenizo a Comissão de Educação e Cultura pela realização deste seminário e agradeço ao Deputado Ariosto Holanda o material com que nos brindou para estudarmos e ao INEDD o convite para ocupar esta posição um tanto ambígua de observador de uma área que não é a minha. A minha área é Letras, é literatura, é linguagem, e estar em um seminário sobre formação para o trabalho é um pouco surpreendente, mas também me dá o direito de falar externamente e observar mais de longe.

Nesta observação, muito rapidamente gostaria de retomar as três teses principais do Prof. Huisinga e a tese que entendi como principal da exposição do Dr. Ricardo Henriques, como também de tecer algumas considerações sobre esse tema, levantando de novo as questões, talvez quase como um debatedor.

Concordo realmente que os sistemas de produção e de reprodução crescem em temporalidades distintas.

Qual a grande novidade para nós em relação ao sistema de produção no mundo contemporâneo e as exigências que se estão fazendo aos mecanismos de reprodução?

Parece que duas coisas aconteceram no sistema de produção capitalista tal como estamos vivendo hoje. Não dá para escondermos isso, se quisermos pensar com certa seriedade qualquer formação para o trabalho.

O sistema capitalista de produção se quer libertado de qualquer prejuízo e risco. Portanto, não quer atalhos, sob hipótese alguma porque atalho pode produzir risco. Nesse sentido, liberou-se a mão-de-obra pela tecnologia. E, quanto àquelas coisas que as máquinas ainda não são capazes de fazer, tenta-se liberar o tempo todo de toda e qualquer relação de trabalho por meio da ideia de prestação de serviços. Quer dizer, toda relação de trabalho envolvida na produção efetiva, e que é necessária para a produção, hoje não passa de um serviço executado na corporação por uma outra empresa, de tal ordem que o setor de produção, o setor do fazer na sociedade contemporânea encontrou uma ética que não tem futuro. É uma ética preocupada só e unicamente com o hoje, aliada a uma preocupação extrema com a lucratividade, a realidade única em que tantos vivem.

É, portanto, impossível formar, pelo sistema de reprodução, sujeitos capazes de trabalhar nesse sistema de produção, seja qual for a escola, seja qual for a educação que possamos oferecer aos jovens.

A pergunta do Deputado Ariosto Holanda é fundamental: que solução apontar para milhões de jovens que estão for ada escola e fora desse sistema? O que oferece o sistema em que estão?

Se a sociedade perdeu o controle sobre a juventude, então há um paradoxo. Ao mesmo tempo em que a tese do Prof. Richard Huisinga, a da perda do controle da juventude se expõe, a tese principal defendida pelo Prof. Ricardo Henriques mostra, ao contrário, que o medo da perda desse controle produz na nossa sociedade a intolerância. E essa intolerância vai aliar-se à intolerância das diferenças, na medicalização, na criminalização da juventude e na invisibilidade dos sujeitos da periferia no sistema escolar e no sistema produtivo. Uma invisibilidade de tal ordem que, digamos, dá até para pensar se hoje ainda existe função econômica nesse sistema de produção a que no passado nos referíamos a categoria de “exército de reserva” de mão de obra. Talvez, o excluído hoje já não seja mais sequer exército de reserva, mas um descartado para o sistema. Mas ocorre que, nesse lugar do descarte social, que é o lugar da desigualdade, está-se produzindo uma heterogeneidade.

O Prof. Ricardo Henriques chama a atenção para a heterogeneidade, a diferença, e ainda mostrando a intolerância com a diferença. Vejam que uma sociedade como a nossa, intolerante com a diferença, mostra-se anestesiada diante da desigualdade. A desigualdade social nos anestesia! Estamos o tempo todo dizendo que o mercado é cada vez mais seletivo, e que, portanto, queremos soluções para um mercado de trabalho cada vez mais seletivo. Ora, se ele está cada vez mais seletivo, não há solução. A questão recai sobre os modos de construção da desigualdade social. É o sistema de produção que é problemático!

Talvez a nossa sociedade ocidental tenha transformado aquilo que sempre nos dignifica e que também dignificamos, que é o trabalho humano, para fazer  referência a uma frase do Exmo. Sr. Presidente da Câmara dos Deputados. Se o homem dignifica o trabalho, talvez nossa sociedade tenha transformado o trabalho não mais em “trabalho”, mas em tarefa, em mera execução de ações. E enquanto há somente execução de ações [previstas] estamos condenados a esta espécie de produção em série, para dar conta do fato de que a população cada vez aumenta mais. Como esta produção em série já é executada pelas máquinas, isto nos torna a nós, seres humanos, desnecessários à produção. Talvez nós nos tenhamos acostumados a considerar somente o fazer e as práticas. E quando não há mais práticas, mas apenas tarefas? Aquelas práticas, que implicam aprender que remete ao conhecimento, à área da cognição, e envolvem o ontem, não o hoje. Como a realidade é outra, digamos, abstraída aquela realidade vivida nos moldes do fazer, da prática, restam apenas tarefas que não demandam o aprendiz, mas apenas o autômato.

A terceira ponta deste triângulo – as primeiras foram o controle da juventude através do fazer e do ensino do fazer e a intolerância à heterogeneidade, sendo esta a sede e fonte do conhecimento –  estaria no campo do projetar ou do sonhar, do imaginar futuros. Estamos na área da estética, da ficção que produz memória do futuro, e portanto, fora do lugar da realidade vivida, única e repetitiva do fazer, tão pouco estamos na realidade abstraída do conhecimento científico: é a realidade como projeto que efetivamente se preocupa com o amanhã.

Talvez tenhamos que inverter isso um pouco. Sempre consideramos as relações com o fazer. Se produzo conhecimento, aprendo. Aliás, aprender para fazer é a ideia da formação. Então, talvez tenhamos que colocar no ápice desse nosso triângulo não mais o fazer, mas talvez o projetar e o sonhar. Uma das incompetências levantadas pelo Prof. Richard Huisinga é a incapacidade do sistema educacional de projetar utopias, ou seja, o lugar onde efetivamente devemos nos sentar para refletir, porque, quem sabe, o que esteja faltando à nossa sociedade e, consequente, para nossos jovens, é um conjunto de utopias que não sejam mais utopias modernas de homogeneização [todos uniformes] nem utopias que tinham o trabalho como tarefa [a produção capitalista em série], mas outra utopia, uma que podemos criar, que é uma utopia das possibilidades de investimento nos potenciais, repetindo uma expressão do Prof. Huisinga e não um investimento nas faltas.

Temos excessivamente pensado em investimento nas faltas e pouco no social, nas potencialidades do homem. Talvez isso nos leve a pensar, como cientistas, que tenhamos que levar mais a sério a ideia de atalhos, ou a ideia de inéditos viáveis de Paulo Freire. Eu traduzo e compreendo a noção de atalhos, trazida pelo Deputado Ariosto Holanda, como um lugar social fundamental nessa relação. Quer dizer, tal como estamos nesse sistema de produção e nesses mecanismos de reprodução, não há formação para um trabalho possível, porque nesta sociedade não há trabalho, mas apenas tarefas. Portanto, o mundo do trabalho se transformou num mundo de tarefas. E ao mundo de tarefas, o homem não é chamado. Nossa parte mais ‘autômata’ é chamada. E para recuperar ou para corrigir isso, talvez tenhamos de reorganizar nossas relações entre o fazer, o conhecer e o projetar, ou entre a ética, a estética e a cognição.

Muito obrigado.

 

 

 

Nota

  1. Este texto é transcrição de minha participação em Seminário da Comissão de Educação e Cultura Câmara de Deputados, realizada em 31 de maio de 2007. Minha participação se deu graças ao fato de ser então professor visitante da Universitat Siegen, no Programa Internacional de Doutorado em Educação – INEDD. Foi o coordenador deste programa que me convidou para o Seminário. Foi a primeira e única vez em que estive na Câmara – Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. Durante os governos do meu partido, jamais fui chamado a qualquer atividade em Brasília – e penso que poderia ter colaborado com alguma coisa da minha experiência de formação continuada de professores. Devo esta ida ao centro do poder político ao fato de ser professor de um programa na Alemanha! Meu papel seria o de ‘observador’ das exposições, fazendo a partir delas uma exposição própria para abrir o debate. Como o leitor notará, ponho em questão a própria possibilidade de uma formação para o mundo do trabalho porque deste restaram apenas resquícios numa sociedade de produção capitalista: tudo virou tarefa e mercadoria. A fala foi transcrita e publicada pela Comissão de Educação e Cultura, em livro sob o título Perspectivas e propostas na formação para o mundo do trabalho. Brasília : Câmara dos Deputados; Edições Câmara, 2008, p. 50-53. Fiz aqui pequenos reparos em relação à publicação, complementando passagens para torna-las compreensíveis fora das entonações próprias da oralidade.