por João Wanderley Geraldi | jul 27, 2019 | Blog
Excelente! Robusto no enredo, no símbolo e na técnica narrativa. O romance se compõe de cinco capítulos, cada um deles tendo por título o nome da personagem que assume o ponto de vista da narrativa, falando de si mas, sobretudo, da relação com “o segredo” da personagem principal, Celina, que abre o romance e o encerra. Não por acaso ela abre e ela fecha a narrativa: acontece que são suas relações com o pai (Orlandão), com a mãe (Carmen) e com o irmão (Orlandinho) que estão em jogo, ao mesmo tempo que nestes capítulos, ao assumirem o ponto de vista da narrativa, as personagens falam também de si.
O tempo é de quinze anos: Celina está com trinta anos quando começa a contar no presente o seu passado, e refletindo no presente traz suas preocupações com o mundo e com a sociedade. O fato que fundamental, que será desenrolado aos poucos, como se fosse um novelo, aconteceu há quinze anos. Mas não se escreve como se fosse uma rememoração, antes pelo contrário. Este passado está ali, presente, mas o hoje das reflexões e das relações com o pintor Artur, um artista defensor de uma filosofia da marginalidade, que “ilumina” o passado e aponta para uma saída possível, ou um refúgio, a arte como escapatória de um mundo em decadência moral e sob forte aparato repressivo: o tempo histórico é aquele da ditadura militar no Brasil.
Pode-se simplificar o enredo: trata-se de uma jovem que aos quinze anos mantém uma relação com a empregada da casa, Marieta. E mesmo virgem, fica grávida. Marieta não era travesti. Mas mantinha relações com seu namorado, Neco. E depois das andanças noturnas com o namorado, vai ao quarto de Celina com quem mantém relações. A explicação “objetiva” da gravidez seria o fato de que Marieta, carregando os espermatozoides do namorado, transfere-os para Celina. Está dado o drama: uma jovem de uma família burguesa preocupada sobretudo com o “status” social aparece grávida. Primeiro, como compreender esta gravidez de uma virgem? Segundo, o que fazer com a gravidez. Obviamente a solução do aborto, mas no momento de realiza-lo Celina se revolta e não deixa que o pratiquem. Tem um filho, que se chamará com o nome do poeta nacionalista irlandês: William Butler Yeats. O negrinho Willi, que a família diz ser da empregada e que adotaram, embora o excluam do convívio: ele será aluno interno durante todo o tempo. Este o segredo de Celina: ter um filho resultado de uma relação homoafetiva! De uma paixão avassaladora.
Mas isto não é contado assim, em linha reta: o leitor vai tomando conhecimento aos poucos, como se estive desenrolando um novelo. E será sempre nos diálogos de Celina com seu namorado atual, o pintor Artur que esta história vai emergindo.
Pelo meio do caminho, os capítulos de cada um dos membros desta família burguesa: Carmen, a mãe, acaba tomando a filha como confidente e lhe narra suas aventuras, sempre conduzidas por sua amiga Vivi: não há que desperdiçar a vida e o viço da vida no cotidiano sem sal: é preciso aventuras. Então Carmen se torna uma “prostituta” eventual e de luxo, frequentando uma casa mantida pela senhora Cleveland para clientes especiais. Há na casa as prostitutas profissionais, mas há estas que “amam o sexo e a aventura”, que tem horário marcado com clientes especiais. E que recebem por seus serviços… Neste capítulo, em que a voz que narra é Carmen, as reflexões são sobre este desejo incômodo e eterno do “aproveitar a vida curta e passageira” sem, no entanto, ferir a moral burguesa: o destino do desejo, esconder-se para realizar-se. A mãe com muita frequência aponta para Celina esta vida possível, escondida, mas de prazeres que ela está deixando passar, ficando sempre em casa, reclusa.
Orlandinho é o típico jovem pequeno burguês, que aposta corridas, que participa de festas, de vai a embalos, que experimenta drogas. Está sempre ocupado. Sempre saindo. A casa dos grandes encontros é do amigo Horácio, um travesti com dinheiro. Tem uma namorada: Jacira. Numa destas festas de embalo, só para homens, mantém relações sexuais com um parceiro, pensa que descobriu o que de fato queria na vida. Mas na festa seguinte, leva Jacira como um teste para sua namorada: todo mundo nu, todo mundo transando sem qualquer vergonha. Livres e libertinos. Orlandinho transa com Jacira, depois sem que esta o compreenda, diz a ela que o salvou! E lhe propõe casamento… Orlandinho é também sarcástico com a irmã: todos na família sabem o segredo de que não se fala e que não pode ser espalhado para fora do ambiente familiar. Há constantes troca de farpas entre os irmãos, inclusive Celina com frequência se refere à relação homossexual de seu irmão.
Orlandão, o pai, é o típico burguês bem sucedido. Que constituiu uma família, que a sustentou e que mantém um padrão social invejado por outros que, numa sociedade de “sucessos”, estão sempre aspirando subir, sem jamais deixarem de ser o que de fato são: uma classe média mais ou menos endinheirada. Orlandão tem um escritório. E seu passatempo é jogar cartas – pif paf – na casa do amigo Osias, outro bem sucedido que vem do cais do porto e se torna grande investidor na bolsa. Na verdade, o que interessa a Orlandão é a mulher de Osias, Fernanda, que durante o jogo o provoca sob a mesa, com o pé em suas coxas… Orlando resume sua vida:
Ainda passara pelos tempos românticos, mas achava que escapara um tanto incólume para não viver mergulhado em ilusões – sabia e podia sentir que os navios não eram mais de velas pandas ao vendo, que as velas igrejas de outro haviam desaparecido sob a sombra dos arranha-céus de aço, que os homens, generalizados, empenhavam mais o valor do dinheiro do que o da honra.
Este pai burguês, que exige um encontro diário da família, jantando sempre todos juntos, sai depois da janta para a casa do Osias, para jogar e ver Fernanda – seus dois passatempos. Demora a acontecer o encontro sexual prenunciado. E da primeira vez no escritório de Orlando… para depois se tornar mais frequente e em lugares mais cômodos.
A história somente se completa no último capítulo, quando Celina já decidira que queria ir viver com Artur e por isso conta-lhe todo seu passado, sua paixão por Marieta, o filho Willi. E propõe viverem juntos, terem juntos um filho, que seria o irmão de Willi que, enfim, sairia de seu eterno internato para viver com a mãe.
Esta linearidade é totalmente desfeita na técnica narrativa. O escritor introduz aqui diferentes pontos de vista: cada capítulo tem por narrador a própria personagem, ela fala, a voz é sua. E ao mesmo tempo e esporadicamente aparece um narrador em terceira pessoa, onisciente que emerge e submerge quase imediatamente, confundindo sua voz com a voz das suas personagens, consciências equipolentes, como diria Bakhtin. Neste sentido, trata-se de um “romance polifônico” em que vozes independentes se narram e falam sub-repticiamente o tempo todo sobre “o segredo de Celina”, mas como signo bissêmico, como aponta Gilberto Mendonça Teles, num texto de crítica literária (“A visão entre parênteses”, com que se encerra esta primeira edição do romance) remeteria à realidade brasileira:
As datas de trinta e quinze anos, que estruturam o tempo desses capítulos, funcionam como um parêntese, a partir do qual se chega a um parêntese ideológico: os anos difíceis de 1964-1965 e a esboçada abertura política de 1980. E ai que a ideia de signo bissêmico atinge a sua plenitude de símbolo, abrindo-se francamente para o imaginário e criando a possibilidade de todo esse jogo de parênteses estar, no fundo, apontando para a revolução de 64. O filho espúrio, concebido de forma contrária à normalidade, não poderia ser o símbolo de uma anormalidade política instaurada no país? A família burguesa, em decadência moral, não teria alguma coisa a ver com a família brasileira, politicamente perturbada pelos anos que antecederam e pelos que se seguiram à revolução. A técnica dos parênteses e barras não estaria, no íntimo, relacionada ao problema da censura? E a única saída possível para Celina no romance não é também o símbolo, espelho e modelo, da única saída possível para o escritor neste período: o de sublimar-se pela arte?
Uma curta passagem do diálogo entre Celina e seu namorado Artur ilustra esta saída:
Artur lhe falara nisso uma vez, mais uma vez: só os artistas podem sentir e aceitar a finitude e ao mesmo tempo a liberdade sem fim, o que faz com que eles escrevam, pintem, sonhem, amem a beleza das coisas efêmeras.
– Será mesmo, Artur?
– Só os artistas autênticos e as pessoas sensíveis.
– Eles não temem a morte?
– Temem como qualquer um, mas a aceitam como mais um desafio da criação.
Independentemente deste aspecto simbólico menos visível para o leitor contemporâneo (note-se o cuidado do crítico em referir “a revolução de 64”, num texto publicado em 1982), vale a pena destacar o aspecto técnica da composição. Assis Brasil (Francisco de Assis Almeida Brasil) parece aceitar a tese de Bakhtin de que o romance é o único gênero ainda em construção, ainda inacabado, e inventa uma forma narrativa polifônica na forma de mudança contínua do ponto de vista, da voz que fala, da voz que narra e da voz que traz ao texto reflexões sobre o estar no mundo.
O autor faz uso frequente de parênteses, de barras. Estas parecem marcar os versos, porque há inúmeras citações, alusões, discurso direto e discurso indireto livre ao longo do romance: aparecem Machado de Assis, Jorge de Lima, Poe, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa… Daí as barras, os parênteses.
Outro aspecto bastante explorado é a “interpolação” de enunciados, em que os diálogos entre dois personagens são atravessados por diálogos com outros personagens, como no exemplo abaixo, passagem extraída da cena em que Celina está contando a Artur a sua história (último capítulo), em que se explora a técnica do discurso direto:
Ingenuidade, sei. Só mais tarde, muito mais tarde, eu compreenderia que é preciso um freio para todos os nossos atos: o ser livre é um condenado, eu concordo. Lançado ao mundo, sem se ter criado a si próprio, é responsável por tudo quanto fizer.
– Não me diga, Celina, que filosofou naqueles momentos.
Não. Não podia. Mas foi dali em diante, acho, que comecei a pensar. Muito depois da fase Marieta, ou no ato mesmo da revolta contra a trama para assassinarem meu filho. Não sou apenas uma coisa que sente, disse pra mim mesma. Sou uma coisa que sente e que pensa e que tem dúvidas
Foi bom, queridinha? – Marieta me perguntou, a chama se afastando num bruxulear de espanto.
– Foi bom, queridinha?
Não disse nada.
Esta técnica lembra outro livro, anterior: Conversas na Catedral, de Mário Vargas Llosa (publicado no Brasil em 1969).
O interessante é que o leitor, já embalado pelo enredo e seguindo o balanço da técnica narrativa, nunca tem dificuldades de saber quem fala quando um diálogo é entrecortado por outro diálogo. No exemplo, isso é evidente. Mas em outras passagens, quem não leu o livro pode ficar perdido em falas que parecem incoerentes ou desconexas. Escolhi aqui um exemplo claro de entrada em discurso direto de outro diálogo no interior da narrativa que Celina fazia para Artur.
Outro aspecto da técnica narrativa que merece relevo é o longo desenrolar do “segredo de Celina”. A memória de leitor me levou diretamente ao livro de Renato Tapajós, Em câmara Lenta (1977). Também aqui a cena de tortura se prolonga e vai sendo contada a conta-gotas, como o segredo de Celina vai aparecendo e somente no último capítulo o leitor toma conhecimento dos fatos, narrados pela voz da protagonista para seu namorado.
Enfim, trata-se de um romance tecnicamente muito bem construído, com uma história que deixa o leitor em atenção contínua, numa linguagem que prende o leitor que, ao mesmo tempo, o angustia pelas inúmeras perguntas que são levantadas pelas personagens, particularmente o pinto Artur e a personagem central, Celina.
Um romance polifônico, sem dúvida. Um romance que vai fundo na alma de suas personagens que se apresentam como independentes do autor, como seus outros.
Para aqueles que estudam o trabalho desenvolvido por Bakhtin, este livro pode ser um bom lugar para encontrar em nossa literatura, e contemporânea, o que o pensador russo encontrou em Dostoiévski, guardadas as proporções, é claro.
Referência. Assis Brasil. O destino da carne. Rio de Janeiro : Nórdica, 1982.
por João Wanderley Geraldi | jul 26, 2019 | Blog
INTRODUÇÃO
Queria agradecer o convite para estar neste seminário. Este convite é uma consequência, na verdade, de um encontro que tivemos em Santos, a Profa. Lílian e eu, e ela me pediu que eu retomasse o assunto que tratei lá e, portanto, o que eu vou falar não é nada de instabilidade, não vai desestabilizar nenhum propósito de pesquisa, é simplesmente uma preocupação que está no contexto de minhas preocupações mais recentes e que envolve talvez um retorno a um tipo de trabalho que fiz durante toda a minha carreira, num contato constante com professores e com a questão da formação do professor de língua portuguesa. Em consequência, acabei sempre envolvido com a questão da identidade profissional do professor.
Vou defender aqui um ponto de vista mais geral e um mais específico. Como estamos entre professores de língua portuguesa, vou alterar um pouco o que falei em Santos, mesmo porque não consigo repetir na mesma ordem.
O ponto de vista que eu vou defender aqui é que, ante as características da sociedade em que estamos vivendo hoje, o modo de funcionamento desta sociedade, o seu embasamento tecnológico e as suas formas de instituição, a escola deixou de ser um lugar de informação. A informação está noutro lugar, não está mais na escola e, por isso, ela tem uma tendência a uma mudança radical, nesta virada de época, em suas funções tradicionais, deixando de ser um lugar de socialização de um conjunto de informações. Seguramente, nós estamos ainda por descobrir qual vai ser a função social da escola no contexto contemporâneo. Nos vamos ter uma nova identidade para o professor, teremos que construí-la e isso envolve toda e qualquer disciplina.
No que diz respeito a nossa área, mais especificamente o ensino de língua portuguesa meu ponto de vista é que estamos, todos ou muitos de nós, vivendo um período de resistência. Há um retrocesso e o que se aponta como horizonte futuro é o retorno ao ensino da gramática tradicional. É sobre esse aspecto específico que vou falar.
Alguns indícios sobre a situação atual
Na área de língua portuguesa, neste momento, podemos perceber claramente alguns indício (no sentido de Ginzbourg, 1989) que estão mostrando uma guinada em relação aos caminhos que começaram a ser percorridos especialmente após os anos 80. Consideremos alguns destes indícios:
- o sucesso de Pasquale Neto, que alcançou os meios de comunicação de massa para neles fazer circular um certo modo de enxergar a língua, com um objetivo extremamente claro: a correção gramatical com base numa variedade linguística dita de prestígio, mas que sequer é falada ou escrita em nosso tempo. O mesmo governo que incorpora no discurso dos PCNs aquilo que foi produzido na academia na área de estudos da linguagem, muito especificamente questões sociolinguísticas, enunciativas, discursivas, e que levaram a uma certa conformação do que nós conhecemos hoje como Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, oficializando um discurso sobre a linguagem e sobre a língua que embasam inúmeros projetos em execução nas salas de aula de muitos professores, esse mesmo governo entrega, por exemplo, a propaganda do ENEM para Pasquale Neto, e, portanto, põe em circulação uma fisionomia e um modo de pensar que ela condena, apresentando-se como exemplo para o jovem contemporâneo. Esse é o sujeito que entende de língua, e entender de língua é saber o que ele professa, ensina: o que de mais retrógrado há nos estudos linguísticos;
- nos cursos de graduação em Letras (Licenciatura), uma das reclamações mais recorrentes é que eles não estão preparando para dar aulas, pois as escolas estão exigindo professores que ensinem a gramática tradicional. Em uma pesquisa de mestrado sob minha orientação, o tema é trabalhado com base me depoimentos de formando de diferentes cursos de Letras do país. Nos cursos cuja formação se fundamenta nos estudos linguísticos e literários, criticando e deixando de lado o ensino da gramática tradicional, a reclamação é uma constante. Os cursos que sustentam seu currículo no estudo da gramática tradicional foram elogiados pelos alunos. Para ser professor das melhores escolas (diga-se de passagem, das escolas particulares que pagam melhor) há que conhecer gramática, e um conjunto de firulas ou filigranas que revela, digamos assim, uma espécie de erudição que cheira a mofo e que é típico da presença do Pasquale Neto na TV ou nas suas crônicas, ou assemelhados, publicadas pelos grandes jornais. Na pesquisa referida, três cursos foram considerados, e entre eles está o curso da Unicamp, uma universidade de renome na área. Esses formandos são jovens, e como jovens, mais sensíveis do que nós, estão detectando algo que vem ocorrendo em nossa sociedade a respeito da suposta correção linguística;
- como professor de uma das mais importantes universidades brasileiras, ouço os ecos de uma reivindicação que retorna ano a ano: retirar do vestibular a prova de redação. E isso numa Universidade que tornou todas as suas provas discursivas. Nada ouso dizer sobre outras universidades (a introdução da prova de redação se deu em 1976 e foi uma reação aos exames organizados com questões de múltipla escolha: havia na segunda metade dos anos 70 uma reclamação constante de que os alunos entravam para a Universidade sem saber escrever porque todo o sistema de avaliação de ensino estava lastrado na “tecnologia educacional” de então). A prova de redação parece não estar mais selecionando (e excluindo) de forma tão drástica como no passado, o que pode significar que a escola está ensinando a escrever e por isso já não é mais necessário “testar” essa capacidade dos futuros universitários. Do meu ponto de vista, não é somente isso: há que saber escrever, sim, mas há que saber escrever na forma como se escreveu no passado e há que se somar a isso um conjunto de conhecimentos absolutamente inúteis como as funções da palavra “que”, pois estes conhecimentos poderão excluir muitos do excesso de candidatos a vagas nas melhores universidades brasileiras;
- há um retorno, em pequenos jornais, mas também em grandes jornais como a Folha de S. Paulo de crônicas a propósito da língua: curiosidades, pequenas e esparsas informações sobre regras e até mesmo etimologia de palavras. Essas crônicas tinham desaparecido. Meu amigo Celso Luft manteve, por mais de 40 anos, uma crônica “No mundo das palavras” no Correio do Povo” de Porto Alegre. Essas crônicas eram mais comuns na primeira metade do século XX. Há algumas publicações de coletâneas dessas crônicas que merecem nosso manuseio por mostrarem o quanto se gastou em tinta e papel a propósito de formas linguísticas que hoje estão absolutamente integradas à línguas. Dou um exemplo: no começo do século, segundo os gramáticos, era um erro de sintaxe de colocação haver numa sentença dois pronomes, um ao lado do outro. Perguntas como “Onde você estava?” eram condenadas porque um pronome interrogativo se seguia a outro pronome.
Uma curiosidade: consegui encontrar num sebo um livro que se chama o Problema da Colocação de Pronomes, numa edição de 1928 (o prólogo da 1ª. edição está datado: Lisboa, 1-1-1909). Trata-se de um conjunto de crônicas publicadas no Jornal do Comércio em que Cândido de Figueiredo debate com Paulino de Brito, um gramático brasileiro, a propósito das boas formas de colocação dos pronomes. Eles discutiam questões do tipo “Um poema me pediste” ou “Um poema pediste-me”. Essa foi a frase estopim que gerou um conjunto das discussões, entre outras regrinhas. A maioria das crônicas hoje publicadas servirá no futuro para exemplos ao estilo do que estou usando agora. Infelizmente, elas são tão repetitivas que, certamente, não faltarão questões desse tipo para serem retomadas e quem sabe se obtenha uma legislação que proíba “errar”, isto é, falar como falamos hoje.
- No ano passado, no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, cometi um desses atos de que a gente se arrepende: era começo do ano e, embora eu já tivesse ganho uma agenda, fui procurar uma agenda poética de Mário Quintana. E eis que encontro uma agenda em que a cada dia, em doses homeopáticas, eram oferecidas ao leitor inúmeras regras, classificações morfológicas, curiosidades etimológicas! Estupefato, não comprei a agenda e agora não posso usar seus exemplos. Mas restou a pergunta: o que está acontecendo de tão sério em relação à língua que há “mercado” consumidor para agendas desse tipo?
Enfim, fiquemos com esses cinco indícios, sei que seguramente vocês devem estar percebendo outros. O que está acontecendo para que isso esteja ocorrendo? A pergunta me levou para a história: parece-me que sempre que nos assustamos com o presente é preciso voltar atrás, verificar o que construiu o que nos assusta para reencontrar um caminho para o futuro. Meu retorno para a história, no entanto, não se dará com o conjunto de instrumentos com que hoje a área de “história das disciplinas escolares” está operando. A história que estou interessado em recuperar é outra.
Voltar ao passado
Nós temos só 250 anos de implantação do Português no Brasil. Nós sempre esquecemos disso. É o Marquês de Pombal e a política linguística de seu gabinete que proíbe o uso das línguas gerais, que foram duas. Uma no norte, no Grão-Pará, e outra paulista, de base tupi-guarani (o Nheengatu, a ‘boa língua’ de que nos resta a Arte da Gramática de Anchieta). A presença da língua geral era tão forte que, a propósito da situação, em meados do século XVII, Vieira escreve que as famílias dos portugueses e dos índios estavam tão ligadas que a língua que nelas se falava era ‘a língua dos índios’, e que os filhos de portugueses somente iriam aprender a língua portuguesa na escola (cf. Soares, 1996).
A emergência das línguas gerais, resultado do contato entre um povo falante de uma única língua – os colonizadores – e uma população distribuída em várias nações de diferentes línguas, mostra que os processos interativos, as necessidades da vida forma mais fortes do que a língua trazida pelos colonizadores. Certamente o interesse dos portugueses era muito mais de exploração imediata das possíveis riquezas do novo território, mas também há um fato incontestável: a presença dos colonizadores aproximou as nações indígenas entre si, o que lhes exigiu a construção de uma língua de contato. Não fosse a política linguística do gabinete do Marquês de Pombal, hoje seríamos um país no mínimo bilíngue(2). Tivesse sido outra a história, poderíamos estar às voltas com os mesmos problemas linguísticos enfrentados pelas antigas colônias portuguesas da África, como Cabo Verde, Moçambique, etc. ou enfrentando as mesmas discussões entre o português e o totum como acontece hoje no libertado Timor Leste(3).
Digamos que de 1750 a 1850, portanto, até meados do século XIX, houve no Brasil uma política linguística de glotocídio, uma política inicialmente da metrópole e também depois do país já independente. Quer dizer, uma política de glotocídio histórico de extermínio de populações indígenas. Implanta-se o português. Os colonizadores foram muito bem sucedidos nesse sentido, pois em menos de 100 anos, um país do tamanho do nosso já fala o português. Isso é um sucesso espetacular em termos linguísticos. Obviamente, nós somos plurilíngues, temos mais ou menos 180 línguas indígenas, mais umas trinta outras línguas faladas no Brasil, mas na verdade a língua nossa, de uso comum, é o português.
É em meados do século XIX que, pela primeira vez, aparece a questão da língua no ambiente cultural da “inteligência brasileira”. Os letrados latino-americanos em geral, em todas as nossas cidades, formaram uma espécie de um anel em torno do poder(4). Mesmo Machado de Assis, por exemplo, apesar da sua genialidade, circula em torno do círculo do poder, jamais em torno de sua própria etnia.
Chamo a atenção para um fenômeno marcado na língua: o gesto de escrever, a escritura, é também o documento pelo qual se garante cartorialmente a propriedade. É por uma escritura pública que você adquire a propriedade da terra. A expressão escritura tanto nos serve para definir um certo modo de escrever quanto um certo modo de propriedade. Para além dos grafitis, das pichações e outras raras escritas nos muros da cidade, talvez a escritura pública de propriedade seja uma das poucas escritas públicas deste país, ainda hoje. E ambas serem escritura são resquícios dessa relação entre letras e poder.
Voltemos a meados do século XIX e tomemos José de Alencar como um nome mnemônico dessa época do segundo Império, com o poder centralizado na figura do Imperador, com Assembleia praticamente nomeada pelo Imperador. Estávamos sob a monarquia, e um intelectual como José de Alencar, mas não só ele, todos os indianistas escrevem em português, trazendo o mundo indígena para dentro das letras – não só como heróis mitificados e mistificados, mas também alterando sintaxe e vocabulário do português. José de Alencar é um bom exemplo, porque dirá que cabe ao povo criar a língua e cabe ao escritor burilar as criações e fazer com que essas criações entrem no sistema da língua. Eis que encontramos aí um papel linguístico atribuído ao povo: o da criação. Efetivamente, só vira língua depois que passou pelos grandes escritores, mas se dá ao povo o direito de ser criativo em termos de linguagem, como se dissessem: vocês podem criar, depois nós apadrinhamos as suas criações que julgamos adequadas e as criações assim apadrinhadas por nós passam a ser legitimamente portuguesas. Um resquício desse espírito? Nossa preocupação em usar palavras dicionarizadas, como se o dicionário as tornasse adequadas. Não está no dicionário, mas faz parte da língua. Glotocídio e cartorialmente estão devidamente sublinhadas em vermelho pelo meu computador, como a me dizer: procure outra expressão adequada!!!
Em 1889, inauguramos a República com uma sequência de ditaduras militares. Deodoro e Floriano são militares que assumem o governo. Somente no alvorecer do século XX que temos a primeira eleição para presidente. A partir daí temos um Estado de Direito, um conjunto de leis, com a distribuição do exercício do poder definida. Não há mais a concentração do poder na figura do Imperador ou dos ditadores [particularmente Floriano]. O poder se exerce segundo certas regras estabelecidas e de forma compartilhada por vários agentes sociais.
O que acontece na “inteligência nacional” como fenômeno importante na área da linguagem nos anos 1900 é o debate entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro a propósito da correção gramatical do Código Civil. Não interessa que o código civil trate, nessa época, a mulher como inferior e subordinada ao homem – a falta da virgindade era motivo de anulação de casamento enquanto vigorou esse Código – mas interessava se deveria ou não haver uma vírgula. E isso se discutiu publicamente, na revisão do código, com direitos a réplicas e tréplicas. Monumentos da nossa cultura, até hoje reverenciáveis.
Isso revela um período em que a “inteligência nacional” é extremamente marcada pelo purismo linguístico. Se você tem um Estado de Direito que se democratiza pelos processos republicanos, então o poder passa a ser compartilhado, quer dizer, é alargado o número de pessoas que exercem o poder e, nesse momento, é preciso “reconhecer” que o povo não sabe falar, que é preciso corrigir o português desse povo. São desse período as velhas crônicas jornalísticas com discussões de “firulas gramaticais”. É do contexto dessas discussões que surgem livros como o de Cândido Figueiredo ou de Paulino Brito. E não são somente eles, nem somente no que hoje chamaríamos de “grande imprensa”. Discutir correção gramatical é também uma ação da imprensa de negros!(5).
Em 1933, a “inteligência nacional”, especialmente os artistas plásticos, se une na Semana da Arte Moderna, com um pouco de atraso em relação ao resto da Europa, em nome do Modernismo. Esse Modernismo na área da linguagem vai ficar marcado na obra dos Andrade, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Do primeiro, temos a “gramatiquinha”(6), até hoje em circulação, uma espécie de modernização da língua portuguesa, uma admissão da variedade na língua portuguesa falada no Brasil. E o que temos politicamente? Temos a ditadura Vargas. A “inteligência nacional” perde poder, que já não é mais exercido segundo regras estabelecidas com uma certa distribuição de suas benesses. E quando os letrados perdem poder, eles se aproximam do povo, inclusive admitindo que se fale de outros modos.
Em 1945, final da ditadura Vargas. Em 1946 temos uma nova Constituição e um Estado de Direito mais uma vez nestas nossas raras experiências de democracia formal durante o século XX. Estamos na segunda República. Nesse período, a “inteligência nacional” retorna à questão da língua. São dessa época as publicações das gramáticas que até hoje continuam sendo reeditadas, com exceção da gramática de Rocha Lima. A segunda edição de Napoleão Mendes de Almeida é de 1948 (não consegui acesso à primeira edição); Celso Luft escreve sua primeira gramática nesse período e na área da Literatura surge a geração e 45, que não é composta apenas por Drummond. Há entre eles poetas extremamente puristas em termos de linguagem (que o nome do mineiro Abgar Renault sirva de exemplo). Essa geração, incluindo mesmo João Cabral de Melo Neto, é extremamente purista em termos de correção linguística. Note-se que mesmo um socialista como Houaiss é um filólogo extremamente exigente e formal. O dicionário é até muito aberto a novidades: para ele, a riqueza de um idioma se ‘mede’ também pelo número de itens lexicais [daí ser ele, enquanto lexicógrafo, mais aberto]. Em certo sentido, Houaiss é um José de Alencar de um século depois.
A questão da gramática, da correção gramatical e do ensino da gramática permanece como uma característica da formação da “inteligência nacional”(7), dos anos 1945 até mais ou menos os anos 1960. Em 1964, novo golpe militar. A Universidade é esvaziada por cassações de direitos políticos e aposentadorias obrigatórias. Os letrados são alijados do poder, em benefício dos milicos e seus supostos técnicos. Não podemos negar um paradoxo: para obter e manter apoio da classe média, a ditadura de então produz uma expansão da oferta educacional, a enorme custo social. A escolaridade básica passa de quatro para oito anos; o ensino superior se interioriza e se expande com queda de qualidade. Mas é inegável uma democratização do acesso à escolaridade. Certamente, estariam os letrados até hoje discutindo se haveria ou não condições de um ensino fundamental de oito anos no Brasil!
O golpe militar se firma de fato em 1968, com o AI-5. Nos quatro primeiros anos do Castelo Branco, ainda colocávamos a cabeça para fora, chegando até a haver um candidato à sucessão do Castelo Branco, o general Albuquerque, supostamente mais democrata do que o sucessor efetivo, o general de plantão Costa e Silva, depois assassinado e substituído por uma junta militar que assina o AI-5 e se deixa suceder por Garrastazu Médici, período mais tenebroso de nossa última ditadura.
Que acontece com a reflexão sobre a língua portuguesa neste período? Ela desaparece até como disciplina escolar, torna-se “Comunicação e Expressão. Para carnavalizar a política linguística da ditadura, talvez possamos tomar como modelo maior de comunicação e expressão, encontrado na televisão, o bem sucedido Chacrinha! Ele continua balançando a pança e as massas. “Quem não se comunica se trumbica”. Importa é comunicar, o resto não interessa. Muitos de vocês são produtos dos cursos de primeiro grau idealizados e realizados dentro dessa perspectiva comunicacional. Desde então, uma espécie de crise do ensino tradicional da gramática fica exposta: ferida não cicatrizada até hoje e certamente agora, a crer nos indícios apontados anteriormente, ressurgindo como uma fênix com força e poder para excluir o máximo possível, rarefazendo os sujeitos falantes de nossa sociedade.
Não por acaso, de novo, durante uma ditadura, temos uma liberalização linguística. Quando se tem uma concentração no poder, libera-se a fala e o espírito gramatiqueiro de nossa cultura baixa a guarda. Com as cassações e perseguições políticas e com a expansão das universidades, abre-se o espaço para a presença, no meio intelectual, de convidados não previstos. Sobrou a grande liderança de Antônio Candido, aberto às questões sociais. Mas a Universidade, após seu esvaziamento com as cassações, buscou sangue novo, que vem de um outro lugar e o que se tem agora é a constituição de uma outra inteligência ou de intelectuais brasileiros fortemente vinculados aos estudos linguísticos e não à cultura clássica, aos estudos filológicos ou aos estudos da crítica literária clássica. A maioria dos sobrenomes que povoam nossas bibliografias é de descendentes de imigrantes, de intelectuais procedentes dos níveis sociais ditos “inferiores”. [Não são quatrocentões paulistas…]
A Universidade expandida é tomada, em nossa área, pelos estudos das disciplinas linguísticas, que acabam ocupando um grande espaço nos Cursos de Letras, um grande espaço curricular que traz consigo um conjunto de informações e perspectivas sobre a língua, levando a um conjunto de produção nas áreas de sociolinguística, gramáticas descritivas e não normativas etc.
Em termos políticos, não há mal que sempre dure. Em 1982 temos a primeira eleição para governadores. Foi a primeira vez que a nossa geração votou para governador, a geração que nasceu na segunda metade dos anos 40. Temos o movimento das “Diretas já”, o processo de redemocratização que vai desaguar na eleição indireta do Tancredo Neves e, depois na presidência exercida por Sarney. Nesse período, temos uma espécie de abertura (política, mas não econômica). Agora temos uma “inteligência” muito ligada à escola também na Universidade e a um conjunto de pesquisas na área da linguística sobre ensino e um conjunto de estudos na área de leitura. Veja, não se trata mais da Literatura, mas de um estudo que envolve o outro, o leitor; não só a produção e as noites de autógrafos nos cafés, mas a circulação social do próprio livro é o que interessa a essa nova inteligência. É outra perspectiva que está por trás disso.
Na Universidade, em nossa área, os estudos discursivos, enunciativos, pragmáticos passam a prevalecer a partir dos anos 80. O período de redemocratização política veio encontra a Universidade fervilhando de ideias, sem que houvesse e uma posição hegemônica: estávamos nos processos de derrocada dos estudos estruturalistas, não havia um só modelo que merecesse o apoio de todos os pesquisadores. Os resultados das pesquisas sociolinguísticas, da análise da conversação, dos estudos da língua oral estavam todos apontando para outras perspectivas totalmente distintas do normativismo(8).
Talvez a grande novidade – ou o pecado original da Linguística – seja a presença do falante como autoridade em termos de língua e não mais os escritores! Isso representa uma democratização nos procedimentos de estudos, na negação da rigidez da norma em benefício da estandardização flexível, própria do movimento de qualquer língua viva.
É nesse contexto universitário que a política da redemocratização encontrará seus “intelectuais orgânicos”. Com a redemocratização, os governadores eleitos trouxeram para as secretarias intelectuais do meio universitário. Na universidade, estava concentrada a oposição [intelectual] à ditadura. O momento era de abrir as gavetas e ver que propostas havia. Eu lembro de discussões com o Prof. Gadotti, que dizia que estávamos passando da crítica à ação e a pergunta fundamental era: o que fazer agora? E essa era uma pergunta constante para todos nós. Muitas teses surgiram nesse contexto e sobre esse contexto. Em São Paulo, na Prefeitura, a Profa. Guiomar Namo de Mello assume a Secretaria de Educação e promove estudos curriculares que resultaram nos Planos Curriculares, os primeiros elaborados após a redemocratização. Eles servirão posteriormente de modelo para os inúmeros planos curriculares dos estados, a partir dos quais nascerão os Parâmetros Curriculares Nacionais.
Em 1990, o neoliberalismo se aprofunda fortemente no processo econômico, com políticas neoliberais, iniciando-se com Collor, mas chegando a seu auge durante todos os oito anos do governo FHC. Nesse contexto, que novidades são gestadas? Não havendo na pesquisa, na ciência, nas universidades, qualquer perspectiva mais ‘moderna’ que justificasse abandonar as conquistas ou perspectivas dos anos 1980, a única novidade aportada pelo neoliberalismo foram os sistemas de avaliação, muito próprios de uma política de exclusão e de informação ao mercado. O projeto educacional neoliberal transformou os planos curriculares em parâmetros curriculares (parâmetros são formas de medida que exigem um tipo específico de ação, mas jamais um convite a ações de outra ordem). Trata-se agora de dizer o que se quer e aplicar provas para verificar se os alunos estão bons ou não estão. E informa-se ao mercado onde estão se “formando” os melhores.
Um curso que é em tempo integral, que tem como professores a bibliografia do Provão e cujos alunos são de classe média alta, é óbvio que vai se sair muito melhor do que um curso de Letras feito no interior do Rio Grande do Sul, de Rondônia, do Amapá, à noite, numa escola sem condições e sem biblioteca. Então, é injusto aplicar um Provão para o aluno de Letras da PUC Campinas, da USP e de Nova Santa Rosa , no interior do Paraná, e a mesma prova, pensando que, dados os parâmetros, cada um faz como previsto. Com base nas provas, organiza-se a “ranquimização” das instituições de ensino. Essa é a proposta neoliberal. O mercado vai fechar as piores; as piores, em vez de merecerem apoio e assistência constante, devem desaparecer. É por isso que um governo que pensa a educação dessa forma somente pode chamar um Pasquale Neto para fazer a Campanha do ENEM.
Infelizmente esta política somente vem se agravando ou aprofundando nos últimos anos, agora acrescida de um sistema meritocrático: circula uma proposta de certificação de professores. Quem for certificado, isto é, que mostrar que já sabe, que não precisa, receberá um plus em seu salário. Mas aqueles que mais precisam, pelo contrário, ficam soltos à sua má sorte! Quer dizer, quem estiver mostrando que já não precisa, este terá auxílio maior!
É nesse contexto que aparecem os indícios apontados anteriormente. Estamos mais uma vez num Estado de Direito, com uma constituição prevendo as formas do exercício do poder, com as formas de compartilhar esse poder. E eis que retorna na nossa cultura a preocupação com a linguagem, com a correção, com a gramática.
Acho que estamos entrando numa época barra pesada. O Lula toma posse, mas o quartel não entra em prontidão, ocorre uma transmissão democrática e tranquila, inclusive o governo que entra dizendo-se disposto a trabalhar junto com o governo que estava saindo. Pela primeira vez na história uma transmissão extremamente democrática, um Estado de Direito. Obviamente sei que esta nossa sociedade não é uma sociedade democrática, estou falando do ponto de vista formal: temos um Estado de Direito em pleno funcionamento.
Seguindo a história, a história de como a “inteligência brasileira” sempre colocou a questão da linguagem, está mais uma vez na hora de calar o povo, porque não sabe falar. É preciso primeiro aprender a falar direito, aprender a escrever sem erros, para depois querer participar do governo, do poder.
Para mim, é um exercício de poder e não é por acaso que nós, professores de língua portuguesa, estamos trabalhando em perspectivas discursivas, enunciativas, etc. Estamos novamente caindo na resistência, porque o quente dos próximos anos, que só poderão ser avaliados daqui a vinte anos, vai ser o ensino de gramática e o ensino da gramática tradicional como uma forma de exclusão dos sujeitos falantes, uma forma de seleção e exclusão de sujeitos num Estado de Direito, quando a “inteligência brasileira”, os intelectuais brasileiros alteram os seus vínculos de classe e retornam ao bom abrigo de sua pertença de classe. Sobrarão resistências.
Acho que são poucas as possibilidades que temos, hoje, com novos vínculos com a presença da terceira geração de imigrantes se aproximando do poder e exercendo o poder, e às vezes até ditatorialmente. É o meu partido, eu ajudei fundar, então é uma crítica que eu faço de dentro em lugar de um novo poder, o que temos é o exercício por novos mandantes de um mesmo poder. Há uma certa continuidade de implantação neoliberal no país, que necessariamente vai produzir exclusões como já tem produzido. E continuar é aprofundar as exclusões. Quer dizer, a vergonhosa distância produzida pela má distribuição de renda no país vai permanecer. E permanecendo isso, mas permanecendo os nossos direitos de conviver com o poder e nos acertamos, tudo bem. Só vamos voltar a olhar para o povo de novo quando de novo voltar uma ditadura, alijando do poder os letrados de hoje.
Pensar o futuro
Mas gostaria de reafirmar a resistência: o trabalho com processos enunciativos, com processos discursivos, o trabalho com leitura de textos, o trabalho com produção de texto, com reflexão sobre os recursos linguísticos mobilizados ainda são caminhos possíveis para aqueles que não querem se submeter a mais esse logro dos letrados e à continuidade cíclica de nossa história intelectual.
Ao defender o trabalho produtivo, pensar-se que há condições de produção, agentes de produção, instrumentos de produção. Há um conjunto de coisas envolvidas na produção. Portanto, o que caracteriza esse tipo de ensino de língua, trabalhando a linguagem em seu funcionamento e pensando o ensino da linguagem como um processo de práticas, admite-se a indeterminação dos processos. Não há espaço para o normativismo. Não existe uma regra de como é que se escreve um texto. Escrever um texto não é uma questão de aplicar regras. Todos sabemos que um texto sempre pode ser escrito de outro jeito. Todos nós que já escrevemos artigos publicados, quando o vemos impresso, olhamos com distância e nos perguntamos “mas por que eu não escrevi assim ou assado?”.
O texto não tem uma regra, a leitura não tem uma regra, eles resultam de uma prática. E é um saber de experiência feito, você só é leitor se você lê e só a sua experiência que vai tornando você mais leitor, e quanto mais você sabe como é que você se tornou leitor mais profunda é a sua leitura de um novo livro, de um novo texto. Também na produção ocorre a mesma coisa. Um escritor se faz escrevendo.
De onde emergiu, nos anos 80, esse tipo de perspectiva que veio a compor esse novo conteúdo de ensino? Responder a esta pergunta nos obriga a tratar das crises dos paradigmas científicos. Creio que estamos vivendo um momento de uma quarta ferida narcísica. A modernidade começa com a ferida de se descobrir que a Terra não é o centro do mundo. Vocês já imaginaram o que significou para um homem da Idade Média, criado por Deus à sua imagem e semelhança, não habitar o centro do mundo, se Deus é o centro do mundo? Isso é uma espécie de brincadeira do criador, jogar-nos num planetinha secundário, uma estrela de quinta grandeza no comando do sistema… Isso foi uma ferida monstruosa. Galileu nos salvou dizendo que temos a alma, somos a imagem de Deus, etc. No início do racionalismo se mantém a questão da alma e a questão da fé. Somos criados por Deus e somos racionais, capazes de conhecer o mundo. Aí vem Darwin e nos diz que somos descendentes de macacos! Foi a criação à imagem e semelhança do Criador. Restou-nos a racionalidade. Mas acontece Freud: temos o inconsciente, há outras coisas e não somos somente razão. É claro que a psicanálise age de forma paradoxal, porque o tratamento terapêutico visa nos trazer de volta à racionalidade.
Hoje parece que temos uma grande novidade: é que a verdade não existe! A verdade é uma construção nossa, e nisso se resume a grande crise dos paradigmas científicos. A ideia de uma ciência universal objetiva e preditiva começa a desaparecer no século XX. Primeiro quando Einstein se coloca a questão de como é que eu posso dizer que dois acontecimentos se deram ao mesmo tempo. Como estabelecer essa relação de igualdade? Só se pode dizer que “algo aconteceu ao mesmo tempo que outro algo” considerando onde está o observador e a distância de onde aconteceu cada fato de onde está o observador, porque, mesmo à velocidade da luz, gasta-se tempo para que o observador tome conhecimento do acontecimento. Ao estudar a questão da simultaneidade em acontecimentos cósmicos, Einstein reintroduz na Física o observador, o espaço e o tempo – três característica tão marcantes das línguas naturais sem as quais seria impossível seu funcionamento. Trata-se do fenômeno da dêixis de pessoa (eu), de lugar (aqui) e tempo (hoje). Agora introduzidos na Física.
Como sabemos, somente no discurso é possível definir as referências dêiticas. Pessoa, tempo e espaço só se definem discursivamente. São expressões que, na gramática normativa ou no purismo linguístico, não merecem reflexão porque introduzem a vida na língua. Mas são objetos privilegiados de reflexão nas posições enunciativas, nas posições discursivas e vão produzir esse caldo científico que vai levar aos anos 80 às noções de práticas de linguagem como o objeto do trabalho do professor.
Mas essa crise dos paradigmas não ficou em Einstein. A indeterminação introduzida por ele é retomada por Eisenberg em sua teoria da incerteza ou da indeterminação no estudo das moléculas. Se há indeterminação, já não temos mais universalidade, porque pode aparecer o acaso. E mais ainda: Bohr e Eisenberg vão elaborar a teoria do sujeito instrumento. Todo cientista usa instrumentos e eles modificam o real que se quer conhecer de tal ordem que o que conhecemos não é o real, mas o real modificado por nossos instrumentos. Esse é um golpe fatal na verdade!
Todos nós já sabíamos que quando lemos um segundo livro já não somos iguais ao que éramos quando lemos o primeiro, porque nós viemos com a experiência do outro, isto é, nós somos sujeitos instrumentados.
Aquelas aulas nossas de Literatura, lá no curso de Letras, em que o professor mandava ler um romance X, a gente lia, e em aula, no debate, o professor enxergando tanta coisa que a gente não viu! E a gente leu o mesmo livro. Porque os instrumentos que você tem para essa leitura são totalmente distintos.
Isso acaba com a ideia de objetividade na ciência. E há mais. A ciência se diz preditiva, todas suas regras se escrevem na fórmula “se x, y” (se a temperatura da água atingir tantos graus, a água ferve). Isso é verdade para a água e para várias regras que temos: se o sujeito está no plural, o verbo vai para o plural. É o nosso ‘se x, y’. Só que Prigogine mostrou que pode se ter x sem ter y, mas z ou h nas estruturas dissipativas. Além disso, se não havia no cosmos y, se nós produzimos x no mundo para produzir y, nós alteramos o mundo e nunca mais o mundo será o mesmo, porque agora nele existe y. Nunca mais o mundo vai ter de novo a situação x para ter y, porque no mundo agora já tem y, de modo que jamais terei um mundo com as condições de apenas x. Eu só terei um mundo que contém agora y, portanto, eu tenho que rever o que tenho para poder produzir z, e assim sucessivamente. Portanto, a regra científica, uma vez aplicada, muda o mundo. Nunca mais teremos a mesma camada de ozônio depois do buraco que produzimos!
No entanto, é impressionante que não estejamos conseguindo introduzir a noção de indeterminação nos estudos da linguagem. E que, ante tanta novidade nos estudos das ciências naturais, haja um retorno ao fixado, ao estável, ao normativismo em nossa área. E esse retorno somente me parece atribuível às correlações entre o exercício do poder e as questões de linguagem na nossa sociedade.
Por fim, para ir encerrando agora um pouco o ponto de vista mais geral da mudança das funções da escola. É claro que aqui aprofundamos somente a questão específica de que eu queria tratar neste encontro. Mas como as questões específica terão suas soluções no interior das questões mais gerais, é necessário pensar um pouco sobre os fenômenos da tecnologia da informação, das mídias, da Internet. Que função vejo para a escola do futuro? Não é a escola da informação, porque esta está disponível na Internet, no CD, no computador. Nós podemos dizer que hoje você tem milhões de sem-teto digital. Mas hoje mais de 98% dos lares brasileiros têm TV. E muito brevemente a televisão, o computador serão um e mesmo aparelho, um eletrodoméstico em casa, acessível, ainda que não utilizado em todas as suas potencialidades. A escola não vai ser mais o lugar para onde se vai para buscar informação. Aliás, qualquer um de vocês que dá aula sabe que os alunos têm mais informações do que nós mesmos. O conjunto de conhecimentos disponíveis hoje no mundo é de tal ordem que ninguém consegue dominar.
Então, se a escola não é mais o lugar dessa informação, isso nos obriga a nos interrogarmos sobre o que temos a fazer na escola. O máximo, que eu posso dizer aqui, com a reflexão que venho fazendo, é que a escola é o lugar de um acontecimento interlocutivos, a aula é um acontecimento interlocutivos, e a escola, um lugar de baixar a poeira. Se nós estamos sendo bombardeados e temos disponível um conjunto enorme de informações, o tempo de aula não o tempo de novas informações, mas o tempo da decantação, da seleção. Isso aparece, por exemplo, em projetos que trabalham com o jornal na sala de aula. Obviamente que não estão trabalhando com o jornal na sala de aula – até porque trabalham com o jornal que não é o do dia – ainda que tenham o jornal na mão. Estão decantando o jornal, porque o jornal não foi escrito para ser trabalho em sala de aula, ele não é um material didático. O jornal de ontem é a coisa mais antiga do mundo. Ora, quando estamos trabalhando o jornal na sala de aula, estamos trabalhando com o jornal de ontem, portanto, já não é mais um jornal, e é outra a leitura que nós fazemos porque é um processo agora de decantação na leitura, talvez esse seja o trabalho fundamental do professor de linguagem. Esse trabalho nos obriga a reconstrução da identidade profissional. Afinal, como ser professor no século XXI, quando o magistério e a escola não se definem mais como sujeitos da informação e lugar da informação?
Em ouro trabalho, já pensei um pouco sobre a questão das identidades profissionais, em Portos de Passagem. Ainda mantenho, por exemplo, as distinções lá traçadas de forma genérica. Houve uma época de escolas de sábios, em que o professor era professor porque era o que produzia o conhecimento, que era objeto do trabalho pedagógico, digamos assim, usando uma expressão contemporânea para pensar o passado. Sócrates era filósofo, e por ser filósofo era professor, tinha discípulos e tinha discípulos e seguidores, não tinha alunos. Na Idade Média ainda se mantêm as escolas de sábios, porque a escola da época são os conventos. E entre as diferentes ordens e diferentes mosteiros, há distinção entre uma compreensão do evangelho feita por Francisco de Assis, por exemplo, e uma compreensão do evangelho feita antes por Agostinho ou posteriormente por Inácio de Loyola. São ordens religiosas totalmente distintas, conventos distintos, escolas distintas, digamos assim.
No começo da modernidade há, em nossa profissão, a construção de uma outra identidade, aí pelo século XVII. Com o mercantilismo, com o capitalismo mercantil, há uma primeira grande divisão social do trabalho. Comenius traz para dentro da escola essa divisão. Ele era um visionário que enxergou o século XX nessa época. A Didática Magna em algumas das imagens e em algumas de suas teses, desvela o que viria a acontecer. A Europa se expandiu com as descobertas do século XVI; no século XVII era necessário ensinar a todos esses novos povos, e ensinar significava ainda ensinar a religião e a teologia. Como não havia doutos em número suficiente para fazer isso, então que os doutos escrevam como é que deve ser feito e tudo o que deve ser feito, pois então qualquer um pode ensinar. Foi nesse momento que surgiu o professor. Ou seja, esse que pode ensinar. Há uma divisão social do trabalho, a produção de conhecimentos cabe aos doutos, doutores da época, e a transmissão de conhecimentos fica por conta do professor. Essa transmissão de conhecimentos vai se fazer a partir do eixo de uma relação com o conhecimento produzido e outro eixo de uma compreensão do sujeito que aprende, uma concepção de criança, uma concepção de aprendizagem que vai-se desenvolver depois com a Psicologia, vai produzir mais tarde uma disciplina.
Uma segunda grande divisão social do trabalho ocorre no século XX, quando já não se tem mais doutos, sábios, mas pesquisadores e isso é muito significativo para quem analisa a linguagem. Quer dizer, a Universidade não é mais o lugar da sabedoria, nem o do douto, é o lugar do pesquisador, que produz conhecimentos. O autor do livro didático assume o eixo epistemológico, o da relação com o conhecimento, organiza esse conhecimento na forma de material didático, a parafernália didático-pedagógica que o professor ocupa para dar aulas. E, portanto, você reduz o professor não mais àquele que transmite um conhecimento, ele não precisa nem saber nada, ele vai usar o livro e dar a respostas do manual do professor. Esse é o professor dos anos 60, 70 que é o professor que controla o tempo, sua função na sala de aula é o controle da disciplina, não pode acaso, a avaliação se tornará a política neoliberal, quer dizer, o professor se transveste em avaliador. E controlamos o tempo. Quantos de nós já fizeram a pergunta: “Terminaram?”. Na história, pela segunda grande divisão social do trabalho, nos transformamos em capatazes do tempo e do controle do trabalho de aprendizagem dos alunos.
Penso que nós estamos chegando na quadra em que haverá uma mudança de identidade, e essa mudança de identidade exigirá um professor com a capacidade profissional de farejador dos acontecimentos, para chamar a atenção do aluno para questões que acontecem, para com eles construir as perguntas de hoje e com elas alavancar a produção de outros novos conhecimentos, operando com o que nos deixou o passado apenas como instrumento e não como verdades acabadas e definitivas.
O homem do futuro não é o homem que tem respostas, o homem do futuro é o homem que tem perguntas para produzir respostas. E, tendo perguntas, será capaz de caminhar na construção de respostas e ter a humildade que o homem moderno não teve, de dizer “Não sei a resposta”. Não há resposta. É preciso viver mais para podermos responder. Não há caminhos prontos nem corrimãos. Viver é ser capaz de imaginar a vida sem transformá-la numa cópia do que supostamente é a realidade (já que esta é uma construção nossa e não um determinação!).
Há, pois, que assumir a provisoriedade, provisoriedade que funciona como instrumento, como alavanca de produções novas, que serão também elas nada mais do que provisoriedades. A escola do futuro não é uma escola que dá respostas, um bom aluno é o sujeito que sai com algumas perguntas. E a boa escola do futuro é a escola que transforma o vivido em perguntas para buscarmos produzir no nosso tempo aquilo que deixaremos para o futuro como herança cultural nossa. A escola não é o lugar só para consumir a herança cultural do passado, mas também é o lugar de produzir herança cultural para deixar. Por isso e num novo sentido, a escola é o lugar do futuro.
Discussão
Uma questão do público remete à relação com o conhecimento disponível. Foi impossível transcrever a pergunta.
Essa é uma inquietação que não é só sua, é de todos nós, e na verdade ela existe no nosso modo de conceber o mundo. Quando eu estou propondo levar em conta o acontecimento, transformar a questão vivida em perguntas, estou apostando na produtividade do conhecimento disponível. Como vocês todos sabem, toda vez que se tem uma pergunta, mesmo que aparentemente muito simples para fazer a dissertação, quando você começa a buscar a resposta, você vê o quanto se é obrigado a ler, a estudar e dominar muito mais um conjunto de conhecimentos do que aquele que normalmente a gente aprenderia. Portanto, a pesquisa e a pergunta são sempre produtoras de aprendizagens, de novas informações, etc. de um currículo muito mais pesado do que aquele que nós planejamos como currículo. Na verdade, aquilo que nós planejamos como currículo é ridículo, porque começa falando dos conteúdos mínimos. Eu quero conteúdos máximos! Pode ser que o máximo que eu consiga fazer com uma turma não chegue àquilo que eles chamaram de mínimo, mas eu vou fazer pelo máximo, não pelo mínimo. Isso para mim dá uma outra forma de articulação entre os professores numa escola que se transforma, portanto, num grupo em que eu vou dar aula para a quinta série esse ano, eu não posso entrar na sala da quinta série esse ano sem saber o que aconteceu na quarta com o outro professor, e aí isso para mim é experiência, isso para mim é o grupo. Também não posso fazer coisas do seguinte como me aconteceu. Eu fazia um curso de especialização [e cheguei a um impasse na resolução de um problema] e o professor falou que se resolvia com “filtro”, mas isso se aprenderia só na sintaxe II. “Filtro” é na hora que eu preciso do conceito e não segundo prevê o currículo, para a Sintaxe II.
A quantidade de questões a que esta posição nos leva a um planejamento flexível e com muito maior aprofundamento. Por isso eu chamei de decantação. Claro que esta prática vai produzir diferentes currículos, como as vidas são diferentes. Todo processo de planejamento curricular é sempre a ideia de construção da uniforme; em nome da uniformidade de oportunidades nós temos mantida a desigualdade social. Nós estamos produzindo, como efeito da uniformidade, a desigualdade, reproduzindo esta desigualdade social. Talvez se nós trabalharmos com as diferenças seja mais interessante do que com a uniformidade, porque talvez as diferenças permitam que se descubram alavancas de outra ordem do modo de ser cidadão, do modo de ser homem, do modo de estar aqui.
Nós estamos numa época de crise e nessa época temos que voltar às perguntas fundamentais. Quem somos nós? Para que estamos aqui? São perguntas fundamentais porque não têm respostas. A única coisa que pode acontecer é elas continuarem como perguntas, para nós, o tempo todo. Sempre presentes para garantir que não nos fixemos numa verdade absurda porque absoluta. É preciso, então, pensar o currículo em ação e não no currículo formalizado e seriado. Isso não quer dizer ser menos exigente.
A segunda questão do público, também inaudível na gravação, remete aos problemas postos pelos estudos de gêneros do discurso.
Essa é uma parte um pouco mais técnica, por isso vou dizer que é a posição que eu assumo como estudioso de Bakhtin. Eu faço uma distinção entre gênero discursivo e tipo de texto. O gênero discursivo tem que ver, fundamentalmente, como propôs Bakhtin, com a complexidade social: quanto mais complexa uma sociedade, mas complexa são as atividades, e mais produz gêneros discursivos. E se os gêneros estão sempre se produzindo nesse processo, os gêneros têm uma ligação com as instituições, por isso, para mim, você pode falar do gênero jornalístico, do gênero científico, do gênero religioso, do discurso literário, etc. Portanto, há um vínculo com o institucional. Na leitura que eu faço de Bakhtin, só existem dois tipos de gêneros: o primário e o secundário; a tipologia de gênero que ele propõe é só essa. Há um grupo pensando hoje que teria um gênero terciário, a Internet, etc. Eu não acredito muito, mas, enfim, é preciso que apresentem mais argumentos. Se existe um gênero que é primário, o primário mais próximo de nós é a interlocução face a face. Essa é a base que estaria coerente com o ponto de partida de Bakhtin, que é a interação, e, dentro das interações sociais, a interação verbal. Em toda a arquitetônica do pensamento bakhtiniano, a noção de interação e de dialogia, que ela implica, são fundamentais. Você tem um gênero que se produz com base no gênero primário, é um gênero secundário, por exemplo, da interlocução que temos face a face, com interlocução através do telefone, esta seria um gênero secundário; a conversa telefônica não é a conversa face a face, então são dois gêneros. Posso juntar um gênero secundário com um gênero primário e produzir um terceiro gênero secundário. Eu posso juntar dois secundários, por exemplo, a carta e o romance e produzir um outro secundário, que é o romance epistolar, só que o romance epistolar tem como sues gêneros primários os gêneros secundários carta e o gênero secundário romance. Quando Bakhtin estuda o romance polifônico de Dostoievski, ele se pergunta: como é que esse romance pôde existir? Quais são as características: primeiro ele trabalha com as características desse romance, depois ele começa a pergunta como é que ele emerge. Seria pura e simplesmente uma genialidade de Dostoievski: Sim e não. Ele jamais disse que Dostoievski não foi um gênio na literatura. Mas via para trás e vai vendo que o primário do gênero polifônico é o gênero menipeia. E ele faz todo esse retorno histórico para chegar até Menipo, mas certamente seria possível ir além se houvesse documentos para tal. Quer dizer, um gênero não surge do nada! Ele mantém relações intrínsecas com outros gêneros como as novas atividades sociais mantêm relações com as atividades que lhes deram origem.
Todo gênero se materializa, tem uma materialidade institucional discursiva, isso é a materialidade do discurso e toda materialidade discursiva tem uma materialização no texto. Há vários tipos de textos e a tipologia de texto que você constrói depende do critério com que você está construindo essa tipologia. Saber qual é o critério que levou à tipologia e qual é o critério que levou a outra tipologia é mais importante do que meramente classificar um texto dentro de uma tipologia. Assim, por exemplo, uma notícia pertence ao gênero discursivo jornalístico e ao tipo de texto narrativo em que muitos outros textos se enquadram, embora distantes do jornalismo, como por exemplo, o “causo”, a lenda, o conto, o romance. Cada um desses tipos, por seu turno, pode ser subdividido, dependendo dos critérios que estão sendo usados.
O nosso trabalho pedagógico com vários tipos de texto não pode se produzir a partir do esquecimento de que eles são materializações de discursos. Sob pena de voltarmos à mesma formalidade, ao mesmo formalismo purista. Ensinar o tipo de texto, x e y e z … e depois exigir a produção deste tipo de texto é tão ruim quanto ensinar sujeito e predicado. Se eu desvinculo o tipo de texto do tipo de gênero discursivo, e portanto de outras possibilidades de entender como as organizações criam para si seleções de tipos de textos, há um retorno do ensino das formas sem conteúdo.
A ideia atualmente em voga de trabalhar com gêneros na escola é, para mim, um modo de apropriação de um discurso que pensava o estudo dos gêneros de outra forma. Por isso que eu disse que os PCNs se apropriam dos discursos, dos planos e propostas de ensino dos anos 80, mas não se apropriam das perspectivas que os sustentavam.
Notas
- Este é mais um texto de transcrição de fala, e por isso mesmo com retomadas e solavancos… A convite da Profa. Lílian Ghiuro Passarelli, que então fazia pós-doutoramento sob minha orientação, retomei, em 15.12.2003, no segundo Seminário de Agenda do Grupo de Pesquisa Estudos da Linguagem para o Ensino de Português, da PUC/SP, uma exposição que fizera em Santos num seminário para professores organizado pela Fundação de Desenvolvimento da Educação. O leitor notará que o tema que me ocupava então – 2003 a 2008 – era aquele do texto Tranças do poder, danças dos letrados. A infatigável tarefa de frear a língua, já postado neste blog. Em verdade sempre explorei um mesmo tema por algum tempo, na forma de falas, de palestras nos meus inúmeros compromissos que assumo pensando que a data jamais chegará e de repente tinha que viajar! Penso que falei muitas vezes sobre esta questão dos “letrados” e seu incorrigível ziguezaguear de um lado para outro, sem assumir efetivamente um compromisso com uma das classes sociais antagônicas. Depois destas falas todas – esta realizada em 2003 e transcrita e publicada somente em 2008 – escrevi o texto acima referido para uma publicação em Lisboa, com convite que me foi transmitido pela colega e amiga Profa. Idália Sá-Chaves, da Universidade de Aveiro. Aqui o tema aparecerá tratado de forma mais solta, tipicamente falada. Acrescentei aqui a nota de rodapé (7) e (8). Devo ainda agradecer mais uma vez a inclusão desta fala no livro organizado pela Profa. Ana Maria Marques Cintra, Ensino de Língua Portuguesa. Reflexão e ação [São Paulo : EDUC, 2008, p. 13-34].
- Obviamente, sei que a unidade linguística em torno do português é uma afirmação falsa, porque esquece as minorias linguísticas existentes no país.
- Isso não quer dizer que nossa situação é melhor do que aquela enfrentada pelos países africanos, oficialmente de língua portuguesa.
- A propósito, ver Rama (1986).
- Getulino, um jornal da imprensa negra de Campinas, da década de 1920, também publica discussões desse tipo, conforme pesquisa em andamento de um orientando meu. [Chega-se a defender que os negros devem aprender a falar um bom português!]
- A “gramatiquinha” é um pouco anterior à ditadura Vargas, e contém o espírito modernista que se propaga pelos anos 1930.
- A questão é tão importante, que no final dos anos 1950, mais precisamente em 1958, decreta-se a Nomenclatura Gramatical Brasileira [NGB]. A metalinguagem, uma produção do fazer científico sobre a língua, torna-se a partir de então objeto de lei e tem força de lei!
- Mas não esqueçamos: Sarney nomeia uma Comissão Nacional para definir Diretrizes para o Ensino de Língua Portuguesa já no ano de 1985! Ainda que a minoria de seus membros fossem defensores do ensino tradicional da gramática (Abgar Renault –presidente; Celso Cunha, o filólogo Antonio Houaiss, o lexicógrafo Sérgio Buarque de Hollanda – que substituí na Comissão – a maioria da comissão trazia outros ares: Celso Luft, Magda Soares, Ítala Wanderley, Raimundo Jurandir, Fábio Lucas (que no entanto defendeu o retorno do ensino de Latim no fundamental), e eu. Note-se, portanto: redemocratização política, imediatamente uma comissão para “ajustar” as formas de ensinar e falar o português!
Referências bibliográficas
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Figueiredo, C. (1928) O problema da colocação de pronomes. 2ª. ed. Lisboa : A. M. Teixeira & Cia.
Ginzburg, C. (1989). Mitos emblemas sinais. São Paulo : Cia das Letras.
Rama, A. (1985). A cidade das letras. São Paulo : Brasiliense.
Soares, M. (1996). “Português na escola: história de uma disciplina curricular. Revista de Educação da AEC, vol. 101 (out-dez) p.. 9-26.
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