Labuta de fala, labuta de leitura, labuta de escrita(1)

Labuta de fala, labuta de leitura, labuta de escrita(1)

Todos los escritores son ciegos – en sentido alegórico a la Kafka – no pueden ver sus manuscritos. Necesitan la mirada de otro. Una mujer amada que lea desde otro lugar pero con sus propios ojos. No hay forma de leer los propios textos sino es bajo los ojos de otro. (Ricardo Piglia. El último lector)

A dificuldade inicial para escrever este texto tem a ver com a relação entre a fala e a escrita. Para alguns, parece simples transformar o que se falou em um texto escrito. Para mim, não é. Ao contrário, é extremamente complicado, porque é necessário ao mesmo tempo dar conta da interlocução que houve e prever outras interlocuções possíveis.

Tenho falado muito com meus colegas professores, por todos os recantos deste Brasil. E tenho aprendido muito com suas perguntas, com seus olhares, com suas angústias. Aliás, talvez não teria escrito os textos que escrevi se não tivesse assumido como meus os sofrimentos que enxerguei nestas andanças.

Pois este texto é produto de mais uma andança: uma conversa no Rio, mais especificamente na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. É um texto que vai ter que dar conta de emergir de uma fala. Por isso ele ganha este título de três labutas: aquela da fala face a face, com os colegas que ajudam com seus olhares, com seus meneios de cabeça, com suas histórias; esta outra labuta solitária da leitura de uma transcrição, uma leitura que assusta porque de repente a gente se pega dizendo menos ou mais do que poderia ser dito e os sentidos sempre fluem, escapam pelas palavras; por fim esta labuta de escrever, de tornar escrito o que se aprendeu nas andanças tantas, em que a gente fala o que outros nos ensinaram, nada mais do que isso.

Vygotsky muito sabiamente começa seu livro Teoria das Emoções, remetendo a um enunciado de Goethe: certas ideias amadurecem em determinadas épocas como os frutos que caem das árvores simultaneamente em distintos pomares. Em minha história de trabalho, tenho tido a sorte de estar por perto das árvores quando os frutos caem. Talvez porque nunca tenha recusado estar atento ao diverso, ao não comportado, ao que circula na academia, mas também ao que viceja no mundo da vida prática. De modo que o leitor somente encontrará neste texto o que já é conhecido, e tantas vezes reformulado nestes diálogos sem fim que fazem nossas vidas.

Se aqueles que escrevem necessitam dos olhos de um outro para que seus próprios textos encontrem sentidos, produtos desta atividade ora “criminosa” que usa os textos em seu benefício, ora “recriadora” porque permite encontrar conexões perdidas no momento do vivido, é possível a todos nós imaginar como se sentem aqueles que, tendo falado para um grupo de pessoas, reencontram sua fala transcrita segundo uma escuta, e sobre esta transcrição debruçam-se para se lerem com o objetivo de transformarem o que agora leem, nas palavras que proferiram, num texto legível para outros tantos, ausente e distantes.

É desta experiência mais ou menos sofrida que nasce este texto, agora sob sua leitura. E, das condições de sua produção, pretendo que os rastros permaneçam de modo que nele se encontrem, em primeiro lugar, um pouco da situação de interlocução sobre um tema bem conhecido, bastante visitado e cuja exposição não foge a algumas características didáticas de uma aula.

Registro, pois, o projeto de um exercício, que se fará na caminhada e que não tem qualquer garantia de sucesso. O risco é explicitamente assumido.

A propósito da situação de interlocução

Certamente não há apenas leituras criminosas ou recriadoras. Mas se o leitor criminoso é aquele que lê um livro contra outro leitor, lê a leitura que toma por inimiga para contrapor outra leitura, tornando os livros objetos transacionais, superfícies por onde deslizam interpretações que os reescrevem, então gostaria de dizer que espero uma escuta criminosa para minha fala, e agora para minha escrita, porque elas não serão (e poderia ser diferente?) mais do que a exposição de leituras.

O leitor dedicado, aquele que não pode deixar de ler, e o leitor insone, aquele que está sempre desperto, são representações extremas do que significa ler um texto, personificações narrativas da complexa presença do leitor na literatura. Eu os chamaria de leitores puros; para eles a leitura não é somente uma prática, mas uma forma de vida (Piglia, 2005:21)

 

Penso que somos todos leitores dedicados, quase insones, e como nos dedicamos todos ao estudo das formas de trabalho com a linguagem, com a escrita, com a leitura, com a cultura escrita numa sociedade excludente, eu é que caí de paraquedas no meio de vocês, em meio a estudos e diálogos que marcam o grupo e marcam as histórias de cada leitor. Assim, estejam todos à vontade para construírem suas contraposições, única forma de escuta e leitura que não é perda de tempo.

Uma concepção de linguagem

Eu tinha proposto que gostaria de trabalhar com uma perspectiva, um uma concepção de linguagem muito específica, que pode ser resumida na expressão linguagem como atividade constitutiva, ou seja, pensar os processos dessa atividade como uma atividade constitutiva. A linguagem é uma atividade que constitui a própria linguagem e constitui os sujeitos discursivos não como posições prévias que o sujeito simplesmente assumiria ou a elas se submeteria, como parece querer uma certa sociologia, mas sujeitos discursivos porque sua própria consciência é sígnica, discursivamente construída.

É certo que há um conjunto de papéis ou conjunto de posições sociais que cada sujeito assume a cada discurso e, porque assume esse lugar, o seu discurso terá tais e tais características. Mas esta perspectiva, ainda que frutífera para a construção de compreensões do que se diz, é superficial no sentido de a ideia de constituição implica que nós nos tornamos o que somos ou nos constituímos como sujeitos pelo processo de participação nos processos discursivos; nos processo interlocutivos.

É neste espaço, e somente neste espaço, que construímos o conjunto de categorias com que enxergamos e compreendemos os outros, compreendemos o mundo e  a nós mesmos. O sujeito discursivo não é aquele que assume um papel, ou a ele se submete, e sai ileso da relação. Ao contrário, ele se constitui nesta relação e porque participa de diferentes relações e em diferentes momentos, em ordens nunca idênticas às de outros, traz para a relação – e para o papel que nela desempenha – algo que desestabiliza. O mundo social não tem a estabilidade que os modelos estruturais constroem como sua explicação. Dos processos saem mudados tanto os sujeitos quanto os lugares sociais por eles ocupados.

Estas observações primeira são tomadas de posição. Por isso falo em concepção e não em teoria, porque uma concepção é aberta e a extrema complexidade da linguagem talvez nos obrigue a operarmos muito mais com concepções do que com teorias.

Meu ponto de partida ou âncora é Bakhtin. Bakhtin, Vygotsky e a psicologia sócio histórica, com os quais faço dialogar Carlos Franchi (1977). Como toda tomada de posição, estas primeiras observações funcionam axiomaticamente. Todo posto de observação se constrói desta forma, ainda que muitas vezes os axiomas não sejam confessados. Pôr em questão o que se toma como axioma, põe em questão toda arquitetura da reflexão posterior.

Então, eu vou me dar – como qualquer teoria se dá – como existentes os processos interacionais: a interação entre nós humanos. Para esta interação jamais comparecemos de mãos abanando, de mãos vazias, como nossos alunos, aliás, não aparecem na escola sem nunca terem conhecido escrita, sem nunca terem falado e debatido assuntos, sem uma história de vida e de saberes. De que vamos carregados? De palavras, e as palavras funcionam como mediação necessária deste encontro entre o eu e o tu. E este encontro, este processo de interação, é um lócus de produção extremamente complexo: ele produz não só a própria interação pelo trabalho desenvolvido, mas produz também sua mediação necessária (a língua) e os sujeitos que nele trabalham.

Isto significa que não há um alguém, anterior a toda e qualquer interação com os outros; que não há um lugar social fixo, definido, imutável que dita o que nele pode ser produzido; e não há uma língua pronta e acabada desde sempre que somente é usada neste processo e sai dele incólume. Quando aceitamos os processos como pontos de partida e consideramos que eles são constitutivos dos ‘entes’ que neles se fazem, desfazem e refazem, então não temos um a priori dado como definitivo e acabado, mas somente temos processos de constituição. A Física Clássica, por exemplo, se dava como seu a priori que o mundo real existia. Tratava-se de conhece-lo(2). Ao contrário de nos darmos algo preexistente, na perspectiva sociointeracionista nós damos como existentes os processos interativos entre sujeitos, organizados numa sociedade.

Toda interação é uma relação entre o eu e o tu. Essas relações são mediadas, a linguagem verbal sendo uma das grandes responsáveis por esta mediação. Vamos restringir nosso campo à interação verbal(3). Obviamente esta é uma das formas de interação social, já que nenhuma delas se dá fora do contexto mais amplo. Nesses encontros, os sujeitos quando falam produzem discursos. Por isso, estou falando de um sujeito discursivo. Parece haver uma espécie de condenação ao sentido: dois homines sapientes postos um na frente do outro acabam produzindo linguagem.

O discurso sempre envolve colocar em circulação sentidos, compreensões que fazemos do mundo. A construção do homo sapiens é uma construção que se dá precisamente nos processos de construção discursiva. Consideramos como trabalho o conjunto de discursos que produzimos nestas relações. Um trabalho social, histórico, compartilhado e interativo. E constitutivo(4).

O conjunto desses discursos se constitui como trabalho linguístico. Usara língua não é como usar um objeto qualquer, uma camisa, por exemplo. Não existe uma língua que estaria ali, na outra sala, à disposição para meu uso. O que fazemos quando falamos é mais do que usar uma língua segundo suas regras. É um trabalho. E como todo trabalho demanda energia e, demandando energia, tem produtos. Todo trabalho tem um produto. Falar produz língua e não a desgasta como se desgasta uma camisa usada.

Na verdade, quando falamos em uso da língua, estamos nos associando a uma concepção de que a língua está pronta e que dela eu me aproprio, uso para dizer o que penso, para me comunicar. A língua não está disponível, pronta e acabada, como se o trabalho linguístico do passado a  houvesse completado (e matado, portanto). A língua existe na medida em que é falada e por isso está sempre sendo construída.

Representar o mundo através da linguagem é um trabalho. Toda vez que falamos, esta nossa fala é produtora de sentidos que são postos em circulação pelo discurso e, no conjunto do trabalho coletivo, produtora da própria língua. Quer dizer, este trabalho com a linguagem tem como produto uma língua.

A língua é o produto social do nosso trabalho. Como a sociedade é dividida, o produto revela estas faces desta sociedade: cada comunidade a constrói diferentemente. E constituem o conjunto das línguas e, no interior das línguas, o conjunto das variedades linguísticas. Portanto, é da natureza do processo constitutivo da linguagem as línguas serem diferentes. Existirem variedades é da natureza da linguagem. A linguagem jamais é “mono”. O mito do “mono”, da unidade, é estabelecido durante os processos escolares, reproduzindo a ideologia social da unidade nacional, e então nós temos que falar uma certa língua para ter uma certa unidade nacional ou uma certa variedade, ou seja, como se ela representasse a unidade nacional.

Agora, se esse produto do trabalho é social e histórico, então a língua nunca está pronta, fechada, acabada. Nós a estamos produzindo também hoje. Não há algo pronto que uso para produzir discursos. Produzir discursos hoje é também produzir a língua de hoje.

Somente de uma língua morta, não mais falada, pode-se dizer que está pronta e deve ser seguida à risca. O latim de hoje é o português, o francês, é o espanhol, é o romeno. Então, o latim não morreu, não existe língua morta que não deixe de estar presente em sua herança. Existe língua que vai se transformando. Vai se transformando pelo trabalho social, e vai construindo outra língua que se torna tão distante que nós chamamos de línguas diferentes.[5] Em certo sentido, posso dizer o seguinte: o grego e o latim, o grego clássico e o latim clássico não desapareceram na história, simplesmente o grego clássico de hoje e latim clássico de hoje são as línguas greco-romanas. Talvez somente haja língua morta quando o genocídio acaba com seus falantes. Pensar a língua como processo de transformação é mais ou menos como dizer que a humanidade não morre enquanto houver homens, porque nós somos descendentes de todos os outros que morreram, e um pouco deles está em nós o tempo todo. Temos todos os nossos antepassados em um mundo contemporâneo. Em outras palavras, meu pai que é morto é um pai que está vivo em mim. É interessante, porque a gente sempre vai dizer meu pai, minha mãe, mesmo depois de mortos. Isso é um exemplo para brincar um pouquinho. Nós podemos ser tudo ex, menos ex-pai. Também nunca posso ser ex-filho. Eu posso ser ex-marido, ex-amante, ex-aluno, ex-orientando, ex-orientador, ex qualquer coisa, mas não posso dizer que sou ex-pai da Tânia, ex-pai da Joana, como elas jamais poderão dizer: – Eu sou ex-filha do Wanderley… Pensar assim o funcionamento da linguagem e pensar assim as línguas é reintroduzi-la no mundo da vida. A vida é esse movimento para sempre e ininterrupto, que se lança sempre pra frente.

Que isso tem a ver com a sala de aula?

Quem aqui dá aula de português para as quatro primeiras séries sabe. Quem é professor aqui e já leu em algum texto de aluno frase do tipo O menino, ele foi à escola ou O menino, foi à escola. Todos sabemos como tais frases irritam os gramáticos e os puristas…

Em geral, nós, professores, olhamos para esta escrita e corrigimos, fazemos um risco, porque há um outro modo de escrita: O menino foi à escola. E este é o modo consagrado como se fosse o correto.

É a emergência desta vírgula, que os puristas da língua portuguesa tanto detestam e ainda consideram como uma espécie de erro, que interessa compreender. Ela é muito frequente nos textos jornalísticos. Olhar para o uso dessa vírgula e compreender o uso dessa vírgula é compreender um processo histórico que está se construindo no português. O sistema, ou seja, a nossa língua, se construiu com base no latim, também alterando a ordem sintática preferida por esta língua. O português, isto é, os falantes de português “optaram” pela ordem sujeito, verbo e objeto.

O que está acontecendo no português contemporâneo?

O português contemporâneo está alterando esse modo de perceber e olhar o mundo. Hoje nós falamos chamando a atenção para algo, para uma realidade que esteja ao redor, por exemplo o menino, a carne… Esta primeira palavra funciona quase como um modo de “apontar” para o assunto. É sobre este assunto (objeto, pessoa, etc) que digo algo a seguir. A estrutura do português está passando de sujeito/verbo para a estrutura tópico/comentário. Primeiro vem o tópico do meu assunto, depois o que digo sobre ele. É uma mudança da estrutura sintática para uma estrutura de base mais pragmática.

Esta vírgula que aparece é a marcação do tópico no português, tanto que há uma certa pausa entre o sujeito e o verbo. Isso é marcado na escrita pela vírgula, que pela regra da gramática tradicional é inadequada, porque não se separa o sujeito do verbo com a vírgula

Quando as crianças estão separando, elas estão demonstrando o processo de estruturação da língua que está se alterando. O japonês, por exemplo, todo ele tem uma estrutura sintática do tipo tópico/comentário. E como vocês podem perceber, formulei esta última afirmação na estrutura tópico/comentário [para o menos avisado, note que este enunciado tem como tópico “o japonês”, e como sujeito “todo ele”].

Esta é uma mudança nesses processos do trabalho contemporâneo sobre a língua e vem alterando a estrutura do enunciado. É mais fácil para perceber este trabalho na produtividade lexical: vivemos criando palavras. Qualquer um da área da educação quando lê um texto de Paulo Freire percebe claramente o seu gosto pelos neologismos. Ele n~]ao vai dizer a essência, mas vai falar da essencialidade. Com base em essencial usa essencialidade, que traduz ainda aqui a ideia de qualidade e não de substância. Há, pois, diferença de sentido entre essência e essencialidade. E no pensamento de Paulo Freire é fundamental estabelecer estas distinções, já que para ele os processos são mais importantes do que os entes: estes são produzidos por aqueles. Então, a língua está sempre sendo criada. Há mitos sobre o funcionamento do léxico da língua. É uma grande besteira, por exemplo, do Deputado Aldo Rebelo propor a proibição de coisas como deletar, acessar ou a introdução de expressões que vêm de línguas estrangeiras. Toda língua é penetrada e penetra outras línguas. Nós podemos chegar a uma lanchonete e pedir – “Eu quero um x egg sem ovo”.

 

Uma pessoa da plateia questiona: Então, essa forma de entender a língua está mais no aspecto cultural do que no aspecto estrutural?

 

Primeiro, não dá nunca para separar a língua da cultura e pensá-la como mera estrutura, porque nenhuma estrutura linguística é infensa à cultura. Se ela não é infensa à cultura, e se a cultura é algo que está sempre em movimento, a estrutura da língua não pode ser uma estrutura fixa, mas o lugar onde essa cultura se marca e por isso ela não é uma estrutura acabada. No máximo, uma língua é uma estruturação em aberto. Para mim, uma língua é uma sistematização em aberto. Não é dizer que não tem estrutura nenhuma. Você não pode fazer o que quiser, porque aí é negar a história do passado, mas estamos sempre sistematizando essa língua e quanto você constrói um novo item lexical ou coisa semelhante, você desloca sentidos. Consideremos o seguinte exemplo:

Hoje você dificilmente ouve uma criança dizer: “Professora, o Pedrinho ‘malufou’ a minha caneta”.

O menino dizer “o fulano malufou”, no sentido de tomar algo que não era seu, desapareceu de nosso vocabulário. O verbo ‘malufar’ hiperbolicamente remetia a uma posição de que era acusado o político Paulo Maluf. É uma expressão que desaparecerá da língua. Ela surgiu das tomadas de posições políticas. Quando se dizia que “fulano malufou”, significava que passou a apoiar o Maluf, como candidato; este o primeiro sentido de “malufar”. Como esse candidato tem uma certa fama, o verbo ‘malufar’, de apoio político, passou a significar uma ação que supostamente seria de Maluf (quem dera que fosse somente dele”).

Existem outros que seguiram os mesmos processos, como por exemplo “tancredar”. Claro que a geração de vocês não vai lembra disso. Mas, quando nós lutamos, a nossa geração do Movimento pelas Diretas-Já chega à eleição de Trancredo neves ouvindo que “o Deputado tal tancredou, embora seja da Arena”. Isso queria dizer que não vai obedecer ao chefe de plantão, e vai votar na oposição. Como se sabe, Tancredo fica doente, não chega a tomar posse e morre. O verbo “tancredar”, com o sentido de dar apoio a Tancredo desaparece da nossa linguagem, mas persiste como gíria entre os médicos, na época. Na medicina, quando certos médicos, certos grupos de médicos estão na cirurgia e alguém diz que o cara “tancredou”, implícita que a coisa e não está indo bem, e que o paciente está com septicemia e possivelmente acabará morrendo. Os sentidos são construídos ao longo da história. Nesse sentido, a cultura penetra na língua, algumas expressões ficam e outras não. As que ficam vão perdendo também a sua origem de construção, como neste último exemplo ou como desaparece em outras expressões, como “esclarecer” na qual não enxergamos mais os sentidos racistas que lhe subjazem.

Os processos de construção de linguagem vão construindo novos sentidos e vão perdendo os sentidos anteriores, de tal ordem que a gente poderia pensar, por exemplo, que uma expressão tem o sentido como tem essa lâmpada. Por exemplo, num contexto de quatro lâmpadas, qual a lâmpada que ilumina o Marcos (a pessoa apontada na exposição? Todos nós enxergamos um foco de luz. Uma expressão na língua é como se tivéssemos um foco que abre, se espraia. Eu gosto dessa palavra porque um determinado jornalista disse para Olívio Dutra (então Ministro das Cidades) trocar “espraiar” por “espalhar”, imaginando que espraiar fosse uma variante de espalhar, mostrando sua burrice, porque espraiar é totalmente diferente de espalhar…

A luminosidade desta lâmpada tem um ponto focal, se espraia e ela ilumina esta sala porque as paredes a limitam. Por exemplo, se você colocar uma lâmpada de 100W na sala de jantar, ela ilumina por completo a sala, mas se você colocar essa lâmpada em um pátio aberto não ter o mesmo efeito, teremos bons lugares escurinhos para se namorar. Como a luz que se espraia, assim são as palavras. Seus limites, suas paredes são o discurso; produzir discursos é construir, com os recursos expressivos de uma língua, as paredes que permitem enxergar, isto é, compreender. Portanto, produzimos os sentidos a cada discurso que fazemos. É desse sentido que se trata. Ao contrário do que disse o estruturalismo e depois foi ensinado na escola, a denotação está no discurso, no contexto, e não na língua. Cada expressão da língua se esparrama em sentidos, é plena de conotações e o trabalho discursivo é um trabalho que, operando com esses recursos, procura fechar o sentido do discurso. Portanto, a denotação é do discurso. O trabalho de produção de um discurso é o trabalho de produção de denotações. A possibilidade de conotações está inscrita na língua e se realiza nos processos metafóricos, nos processos metonímicos. Eles funcionam e são os lugares privilegiados da construção de novos sentidos.

Eu estou querendo colocar que ao contrário do que a gente poderia imaginar, aquilo que é produto do trabalho social e histórico de construção de uma língua não é um produto fixo, fechado cuja estrutura eu posso apreender, mas é um conjunto aberto e inacabado de recursos expressivos, desde a entonação até a estrutura de um longo texto de um obra, passando pelos gêneros discursivos, passando pelos textos, passando pelas estruturas sintáticas, morfológicas e pelas estruturas fonológicas. Essas estruturas não são fechadas, elas são estruturas abertas, por isso estou chamando de sistematização em aberto.

Por isso, na sala de aula, há que haver muito cuidado ao corrigir. Poderemos estar trabalhando para manter o que já não existe, o que já é passado na língua, como no exemplo do uso da vírgula apontado anteriormente. Também será necessário ter presente que o processo de aprendizagem se dá pela participação nos processos interativos, ou seja, somente com práticas linguísticas – inclusive práticas de reflexão sobre os recursos linguísticos – que podemos aprender a língua que nos faz sermos o que somos.

As interações verbais não se dão como se nós fôssemos anjos pairando num universo, e nos encontramos e entramos em interação. Nós vivemos efetivamente no interior de uma determinada estrutura social, organização social. Toda e qualquer organização social produz as suas instituições sociais. Nessas instituições realizam-se diferentes atividades, e por isso se organizam determinadas formas de discurso, que são os gêneros discursivos. Por isso, esses discursos são extremamente marcados pela instituição social. Sempre operamos com uma língua pra produzir um discurso, estando dentro de uma determinada instituição. Esse discurso e as nossas possibilidades de operações são arregimentados, contêm regime que a própria instituição oferece. Mas não se tornam camisa de força, pois, se assim fosse, o trabalho seria sempre repetição e não criação. Por exemplo: numa escola, você vai requerer matrícula. Na justiça, você entra com uma petição. O gesto (simbolismo) é o mesmo. Já em casa, se você for requerer a janta para a mulher, provavelmente você vai ao computador, escreve, imprime e entrega a solicitação da janta. [E provavelmente e merecidamente deveria ser expulso de casa!]. Em casa não requeremos, nós pedimos, nós fazemos.

Uma pessoa da plateia fala: – Quando no Sindicato dos Metalúrgicos o pessoal se aproxima para falar notícias de jornal que estavam apurando que a “gata” tinha dado um problema e precisava de um Bombril, e aquilo era indispensável, fui conversar com a pessoa do Sindicato e ela me explicou que Bombril era o atestado médico (INSS) e a gata era a empresa que o contratava, era uma subempreiteira. Se você não tratasse com o discurso utilizado, você não era entendido.

 

Isso mesmo. O discurso é extremamente situado. Você tem o uso de expressões que são extremamente marcadas e que se constroem no interior de processos institucionalizados. Obviamente, não encontraremos essas palavras específicas no dicionário. Por exemplo, essas palavras que têm um sentido no dicionário, não é proibido que sejam usadas em outro sentido, como no exemplo que você fornece. Palavras são recursos expressivos na língua, mas são as operações com esses recursos que produzem o sentido efetivo do discurso.

Toda e qualquer sociedade, toda formação social produz na sua organização um conjunto de redes ou um conjunto de controles que incidem sobre as interações possíveis, e por isso incidem sobre o nosso trabalho linguístico. Assim, incidem sobre o produto que é a língua. Esta rede de controles não é, no entanto, imóvel e tão rígida que não nos restaria vida se não a repetição da vida dos outros. Não repetir, não se fixar, deixar-se criar: esta a labuta com a palavra falada, lida ou escrita. Talvez ensinar a língua também signifique ensinar que a vida não está pronta, não está acabada e que sempre há um horizonte para aquilo que virá.

Notas

  1. Este texto resulta de uma fala num encontro na UNIRIO. Não lembro a ocasião, mas certamente foi a convite da colega Carmen Sanches. Posteriormente foi tornado texto escrito para publicação in.  Lígia Martha Coelho (org) Língua materna nas séries iniciais do ensino fundamental. De concepções e de suas práticas. Petrópolis : Vozes, 2009, p. 213-228.
  2. Sabemos que a Física Quântica já não parte deste pressuposto.
  3. Ao considerar a interação, como uma relação entre um eu e um tu, mediada pela linguagem, estamos excluindo interações diretas entre sujeitos e objetos. Há teorias da ação que admitem estas interações, não considerando inclusive o aspecto fundamental da mediação linguística ou da mediação do outro.
  4. Uma analogia simples: na análise das funções sintáticas aprendemos que, na oração “Os operários construíram a ponte”, a ponte é objeto direto. No entanto, não é um objeto que sofre a ação, mas é produto da ação. Esta ação é constitutiva. E no sentido que estamos usando aqui, uma ação constitutiva não só da ponte, mas dos próprios operários que se fazem ‘construtores de ponte’ como tais à medida que constroem.
  5. [nota acrescentada] Obviamente uma língua pode ‘morrer’ porque todos os seus falantes morreram [ou foram assassinados como no caso de muitos povos indígenas que não chegaram a se integrar à nova sociedade colonizada que se formava sobre o seu território]. Ao morrerem todos, morre a língua: não há herança possível com a morte de toda uma comunidade de falantes de uma língua.

Referência bibliográfica

Piglia, R. (2005). El ultimo lector. Barcelona: Anagrama.

Sugestão indigesta

Sugestão indigesta

Outro dia que não hoje uma amiga pediu-me que escrevesse sobre mulheres, sobretudo mulheres negras, eu penso que é preciso escrever muito sobre esse assunto, mas de pequena me ensinaram a não “futucar” as feridas, de modo que a escrita sobre mulheres negras está em todos os meus textos, e se não se declaram, posso afirmar que estão nos silêncios deles também.

Na verdade, ou melhor, na minha verdade é preciso confessar que sempre que ouço isso, ou suas variações (supostamente elogiosas???) que são:- você escreve como mulheres brancas! Dou conta de quão longe estou do meu compromisso com o a minha voz literária.

E tudo é marca discursiva, segundo o Bakhtin, mas na verdade eu descobri isso em conversa com o  amigo Wanderley Geraldi, com quem aprendo sempre.

Escuro que meu texto é cheio de silêncios, porque é com essa prática que fui violentamente educada na sociedade (nunca pela minha família), e suas principais instituições, sem nenhuma dúvida, foram responsável por o malfeito e bem aprendido: Escola, mídia, igreja, universidade e ainda partido político. Todos têm seu quinhão de racismo e miséria para dar, e deram e darão sempre até que algo aconteça.

Aprendi a estar invisivelmente em muitos lugares, percebam que estar é diferente de ocupar. Estar exige permissão, ocupar é outra paradinha.

Acreditem, ou não, ainda parece que quando escrevo sobre invisibilidade negra as pessoas pensam apenas nos muito pobres, ou miseráveis, ou seja, eles são mesmo invisíveis (e daí, não é?), o que não é verdade, nem parcialmente.

As mulheres, sobretudo as negras, são preteridas sim em empregos, relacionamentos, lideranças, processos seletivos, mestrados, …. E a lista infindável continua, é só olhar para o lado, e em muitos casos os homens negros estão juntos de nós na invisibilidade até que eles ascendam e possam eles mesmos nos invisibilizar.

Assim como as mulheres brancas, e as afro convenientes, elas amam sororidade, mas amam ainda mais nos pagar para cuidar dos filhos delas ou mesmo limpar suas casas, enquanto elas vão pros roles, ou precisam estudar, ou se qualificar, ou escrever, ou tantas coisas… Adoram pautas emancipatórias, mas sequer pensam quão prioritárias são as pautas das mulheres que não tem vaga na creche para deixar seus filhos para trabalhar, quão prioritária é discutir o encarceramento dos filhos e filhas dessas mulheres que foram criados sem a presença das mães trabalhadoras, lutar pelo fim do assassinato dessa juventude negra.

Onde será que essas mães ausentes estavam? Essa pergunta é sempre recortada pelo silêncio, dos que fingem não ver quem lhes serve quase sempre de cabeça baixa.

É verdade não falo da mulher negra, porque nem sou. Quando se é invisível, a gente não existe. Não é uma ameaça, mas quando eu resolver incomodar…

ÚLTIMA MEDIDA PROVISÓRIA: “COCÔ DIA SIM, DIA NÃO”

ÚLTIMA MEDIDA PROVISÓRIA: “COCÔ DIA SIM, DIA NÃO”

Queiramos ou não queiramos, pelo bem ou pelo mal, o governo Bolsonaro é um resultado, um produto histórico de todos nós. Bem ou mal, Bolsonaro foi eleito, embora em processo eleitoral democrático  trapaceiro conspurcado pela ambição desmedida. A poderosa elite do capital – nacional e estrangeira – com o poder e trapaças de nossos juízes implodiu a democracia brasileira. Porém, por força dos princípios da democracia, precisamos continuar a gritar mais, denunciar, convidar e estimular a participação de todos na organização de uma sociedade democrática ativa, substantiva, acima de tudo com o direito da participação, sempre na divergência e na tolerância mutua.

Fazer cocô pelo canal escrotal uma vez, duas vezes ao dia é da lei biológica dos animais – humanos e salvagens. Agora, fazer cocô tempo todo todos os dias pela boca, isso não é da biologia humana. É uma deficiência, um distúrbio cerebral.

De todos os produtos do baixo corporal e do baixo material que são expelidos tempo todo pelas bocas do atual governo e de todas as medidas provisórias, o que mais me atormenta é a reforma da Previdência.

Por conta das insônias estressantes, me lembrei de um escrito de Victor Giudice: “O arquivo” – conto brasileiro mais publicado no exterior. Cada leitura que faço do conto é como se fosse a primeira – uma ficção científica que nos faz entender a alienação do “trabalhador João” nos tempos atuais – no Brasil e no mundo neoliberal.

Sugestão: quem já leu, reeleia. Quem ainda não leu, leeeia.

O arquivo – Victor Giudice

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal.

Fonte: http://www.releituras.com/vgiudice_arquivo.asp

Agora cresci, de Jacques Prévert  

Agora cresci, de Jacques Prévert  

Criança

vivi divertidamente

ria sem parar todos os dias

ria sem parar no duro

e depois vinha uma tristeza de tal modo triste

algumas vezes junto com ela a alegria

Então me julgava desesperado

Na verdade não tinha mais esperança

nada tinha além de estar vivo

estava intacto

contente

e estava triste

mas nunca fazia de conta

Conhecia o gesto para continuar vivo

Balançar a cabeça

para dizer não

balançar a cabeça

para não deixar entrar as ideias dos outros

Balançar a cabeça para dizer não

e sorrir para dizer sim

sim às coisas e às pessoas

às pessoas e as às coisas vistas acariciadas

amadas

ou tudo ou nada

Erar como era

meio desmiolado

 

(Jacques Prévert. Poemas. Seleção e tradução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 8ª. reimpressão, s/data

O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa

O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa

O povo do mar e dos ventos antigos, de Wilson Rio Apa

Este é o primeiro volume do que surgiu como trilogia e se tornou uma tetralogia, com o quarto volume publicado pela Secretaria de Cultura do Paraná: Os vivos e os mortos.

No entanto, nem é necessário ler todos os volumes para se entusiasmar com a narrativa, com o estilo e com os enredos que já aparecem neste primeiro volume. Trata-se de um livro que se lê encantado pelos encantamentos em que se envolvem suas personagens. E precisamente porque encanta, é difícil de tratar do livro; ele exige que se leia por inteiro.

Tentemos ao menos um registro: todas as personagens estão envolvidas com o mar. Uma delas, já falecida, Januare, fora expulso da terra e passou a viver numa Ilha. Apelidado de Espia, a ilha lhe herdou o nome. Lá construiu sua vida, para lá levou sua neta Ana, a Ana das Almas que será central nesta história. Ana vive os tempos com seu avô, que ouve o mar, que ouve as almas, que ouve os ventos. As almas povoam a vida, estão junto com os vivos. São almas que sofrem, que gemem, que pedem notícias de parentes, que dão notícias, que pedem que Ana cuide de seus filhos… São almas falantes, como o mar fala para quem sabe escutá-lo. Os ventos trazem mensagens e é o poder da ideia que faz de tudo: desde a capacidade de puxar peixes como fazia o velho Espia, transmitir pedidos de urgência e até a compartilhar os pensamentos, como vai acontecer entre Ana das Almas e seu filho, o Menino: eles conseguem tal afinidade e intimidade que um sabe o que outro está pensando, um invade a cabeça do outro.

Este o jogo do encantamento: almas, vozes, falas dos elementos da natureza. Os muitos naufrágios que levam afogados às praias levam ao surgimento de uma família com profissão: Elesbão é o canoeiro que leva os corpos para a Ilha dos Mortos. Carrega em sua perna o sinal da “escravidão”: uma corrente. O Elesbão atual, desta narrativa, foi com o pai em sua última viagem à Ilha dos Mortos. Lá ficou o pai, o filho teve um desmaio e acordou já marcado: a corrente presa. Toma o lugar do pai, e assim por gerações, até o possível rompimento na sucessão do Elesbão de hoje: os filhos temem o mar, trabalham em casa, saem do litoral. Certamente Elesbão é aqui a figura lendária de Creonte, mas sem que haja a paga das duas moedas.

Elesbão é o padrinho do filho de Ana das Almas. Como pôde ela ter tido um filho, vivendo solitária? Ao tempo do avô vivo, ela se apaixona pela alma de um jovem, alma bonita… e vive esta paixão a que se entrega. O avô lhe diz que ela precisa se libertar da alma para ter um homem vivo e de verdade. Era do precisava. Assim, Januare, o espia, o avô, começa a trazer da terra jovens candidatos para substituírem a alma por quem Ana se apaixonou. Não deu certo. Ninguém lhe atraía. Certa tarde, quando o vento era forte, ela na praia não suportava o desejo. Em algum momento, alguém lhe cobre a cabeça com um saco e lhe faz um filho. Surge então o Menino. Isso tudo se fica sabendo porque o filho vivia querendo saber quem era o seu pai, até que Ana das Almas acaba contando seu segredo a Elesbão, mas o filho escuta: nem a mãe nem o filho saberão quem é o pai [desconfio que no desespero de ver a neta feliz, o pai seja o próprio avô, mas isso é intuição de leitor].

Ana das Almas vive às voltas com raízes, com frutos, com a fabricação de remédios. Ela cura os doentes da terra, e deles recebe alimentos inexistentes na ilha. Elesbão será sempre o mensageiro, o que faz o trânsito entre a terra (a colônia) e a Ilha do Espia: traz doentes, leva remédios. É o padrinho do Menino. Teríamos aqui um “Creonte” de dupla face: que transporta os mortos afogados que aparecem nas praias, mas também o que leva vida, que traz a salvação, o remédio de Ana das Almas.

Dois grandes episódios dominam este volume: a alma da Tia já avisara Ana de que vinham em busca de socorro Quirino e sua noiva, Salema. Salema era bela, robusta, a mais bonita do lugar. No entanto teve uma doença: a velheira. Foi ficando velha, velha… O noivo, desesperado vai em busca de ajuda, e lhe falam de Ana das Almas. O percurso é longo, os perigos muitos, mas lá se vai o casal em busca da cura. Enquanto se narra esta caminhada triste, Ana das Almas anda às voltas para conseguir ‘fabricar’ o remédio que cure a velheira.

Quirino queria sua noiva novamente. Como tudo é encantamento, mesmo tendo passado por inúmeras dificuldades, uma delas foi instransponível. Numa Lagoa vivia uma Moça linda, de névoas. Quirino a vê e não consegue mais se desvincular da Névoa… e corre atrás dela, inicialmente abandonando Salema, mas depois levando-a para um barco que encontra na praia, não no rumo da cura, mas para mata-la afogada, o que faz sob o olhar distante do Menino. Salema morre afogada, sem cura, mas não quer sair do próprio corpo agora rejuvenescido pela morte. Elesbão toma o corpo para levar para a Ilha dos Mortos, mas se apaixona pela noiva de Quirino. Ela só pensa em seu ex-noivo, então Elesbão lhe conta quem a matou… Elesbão fica grande tempo na Ilha dos Mortos, até conseguir de livrar desta paixão. Retorna fraco e doente para a Ilha do Espia, Ana das Almas cuida dele, cura-o e ele retorna ao seu trabalho de Creonte.

O segundo grande episódio tem a ver com a peste. Encalha um navio na costa, sem ninguém que o levasse. Logo descobrem: todos no navio estão mortos. O povo da terra corre com suas canoas para retirarem do navio tudo o que havia de bens. Carregam tudo para si, brigam entre si pelo espólio. Ana das Almas insiste que não façam isso, mas assim mesmo o roubo se dá. Acontece que então começa a peste: a Morte – outra personagem central deste romance – colhe vidas e mais vidas. Ana não sabe que remédio poderia curar o povo. Somente a alma de Januare poderia lhe fornecer a receita… No terceiro aparecimento da alma do Espia, o segredo é revelado: havia uma planta com um pequeno olho. Era preciso encontra-la na ilha. Com ela o povo seria curado.

A busca por esta planta durou muito tempo, enquanto isso o povo morria e a Morte fazia sua festa. Ana e o Menino não conseguiam encontrar, até que o Menino tem uma ideia: a planta deveria estar numa região inatingível, perigosa, que a maré rapidamente encobre. Enfrentando o perigo, o Menino acha a planta. Então foi necessário colhê-la e deixar secar com a claridade da lua cheia. Depois de tudo seco, fez Ana das Almas colares com os olhos vivos da planta. E o Menino foi para a terra curar o povo, lutar contra a Morte, correr para chegar antes dela.

É então que o Menino passa a ser o Santo Menino… e isto abrirá, sem dúvida, o próximo volume desta tetralogia de homens, mulheres, almas, mortos e encantos.

Dizer isto tudo, apagando o trabalho de composição é estar absolutamente aquém do que o livro merece. Vou registrar aqui algumas passagens para mostrar este trabalho de estilo, de composição, de linguagem. Inicio com uma pequena passagem em que o narrador está nos apresentando seus mais importantes personagens:

É lá.

lá naquela Ilha de três cômoros, bem na boca da barra, onde começa o parcel da Bandarra e acaba o banco das Palmas

lá vive Ana das Almas, sozinha faz tempo com o filho pequeno chamado Menino

magrinho, ligeiro, sempre pulando na pedra e brincando de pássaro no meio das gaivotas e tesoureiros

Noite q’nem esta de Lua, vazante parando coa brisa no fim da maré

mãe e filho vão pra enseada

quietos se agacham na escuta e na espera

ele das águas

ela das almas

Um segundo trecho, para dar saliva e gosto. Elesbão e o afilhado estão juntos. Em silêncio. Só o Vento e o Mar, numa toada, falam… e o Menino sabe que o canoeiro das almas entende este canto, essa fala:

Conta, padrinho…

O rosto mais escuro que a noite se vira pra ele

os grandes braços se esticam, um pra cima, mão aberta no Vento

outro mostrando o Mar

e o brilho do solhos apontando bem pros dele

– “… o mundo não tem pai nem mãe…

q’nem a vida da gente, igual a bolha

que o Vento tira da espuma

e deixa soinha no Mar

Se não é a onda que acaba com ele

é o sol que na praia seca a bolha

Dela sai um ar que é alma

vive perdida mais um pouco

e some no Vento do Mar…”

É quase assim que o Menino escuta e entende a fala baixa e raspada do canoeiro

– Quanta coisa… ?! Então, ninguém tem pai nem mãe… q’nem a bolha e o mundo? – pergunta o filho da Ana

Elesbão continua contando o que o Mar diz pra ele

agora aponta uma pedra, a corrida dágua voltando

o voo dum pássaro bem na curva da onda

“… tudo em seu passo

até a pedra passa

no rumo da vida

voa o pássaro

anda o homem na trilha

o peixe no corso

a nuvem no Céu

tudo saindo e voltando

pro começo do rumo no Mar…”

A toada do canoeiro some e aparece de novo

e assim vai, até que o Menino já nem sabe direito quem é que fala

se o Vento e o Mar ou o homem  que está junto dele

Quando a maré chega no fim da vazante os dois estão quietos faz tempo, só escutando

aí o filho de Ana sente o peso da mão do padrinho e o cochicho dele coçando no seu ouvido

– … conto pros redeiros a tua resposta certa pro Esfio

O mar é o pai de tudo…

– Até da gente? Pergunta para Ele – pede o Menino

– … a gente só escuta e nunca pergunta pro Mar… 

Referência. Wilson Rio Apa. O povo do mar e dos ventos antigos. Os vivos e os mortos [livro primeiro]. São Paulo : Brasiliense, 1977.

 

 

Ingo Voese: notas biográficas & lembranças de convívio (1)

Ingo Voese: notas biográficas & lembranças de convívio (1)

Ingo Voese nasceu em 25 de maio de 1940, em Santa Cruz do Sul, filho de descendentes de imigrantes alemães. Ainda que terceira geração de imigrantes, sua língua materna foi o alemão, que dominou fluentemente em toda sua vida. Seus pais, Sr. Ervino Voese e Sra. Lúcia Voese, à época de seu nascimento, dedicavam-se à agricultura e posteriormente radicaram-se nos arrabaldes da cidade, ele trabalhando como operário na Mercur e ela dedicada ao lar, que nesta época e circunstâncias, significava praticamente conduzir um pequeno sítio, com produção de hortaliças, frutas, verdura para consumo da família e, às vezes, também para a venda a fim de engrossar o orçamento familiar. Não faltava um galinheiro nem uma vaca de leite.

Ingo Voese em 1942

Foi deste convívio produtivo com a terra que Ingo herdou e carregou durante toda sua vida uma preocupação em produzir e conservar as terras em que lhe foi dado viver: todos os amigos que o frequentaram lembram que os terrenos urbanos de suas casas sempre foram grandes e situados nos arrabaldes das cidades que elegeu para viver(2). Neles produzia, ora mais ora menos. Os pássaros sempre foram suas visitas constantes, pois duas vezes por dia os alimentava, em vários pontos do pátio. Para isso, levantava-se cedo, como todo agricultor – a alimentação dos bichos tinha precedência sobre sua própria primeira refeição. Em cada um desses gestos, muito carinho e determinação

Ingo Voese na infância com a mãe

Paradoxalmente, este agricultor amante da terra e das raízes, foi também marinheiro que nunca encontrou um porto definitivo em que se fixar, esperando que as árvores plantadas envelhecessem(3). Inquieto nos sonhos, foi também irrequieto nos instituições e nos aconchegos que foi construindo ao longo da vida. A cada um de nossos novos encontros, eu me encantava com o ambiente que ele havia criado para viver. Poucos anos depois, desfazia-se de tudo e seguia a estrada em busca de outros lugares: de Santa Cruz do Sul para Campo Bom, Três de Maio, desta para Ijuí; retorna para Santa Cruz do Sul; e desta muda-se para Palhoça em Santa Catarina; de lá para Maceió, e desta para Quatro Barras, no Paraná, novamente num sítio aliado ao trabalho na universidade – e deste sítio para Curitiba. Pouco tempo depois, descubro-o em Laguna, no Morro da Glória!(4)

Mas retornemos ao tempo cronológico desta biografia: Ingo cresceu e fez seus primeiros estudos nos arredores de Santa Cruz do Sul, à época os níveis primário e ginasial. O secundário ele realizou em São Leopoldo, Escola Normal Evangélica. Acompanhando seus pais, Ingo teve uma formação evangélica que lhe possibilitou uma bolsa de estudos na Alemanha, no ano de 1963, depois de concluída a escola normal. Este estágio o prepara o exercício do magistério em escolas (internatos) de confissão evangélica, escolas em que chegou a ser Diretor de Internato. Destas escolas, aquela em que permaneceu mais tempo foi o CEAP – Colégio Evangélico Augusto Pestana, em Ijuí. Vindo de Três de Maio, em 1966. Começa suas atividades no CEAP em 1957. Mas este deslocamento tinha também outro objetivo: fazer o curso de Letras na FIDENE, em Ijuí.

Nesta época havia cursos de graduação chamados de Licenciatura Curta, que permitiam o exercício do magistério nas séries finais do ensino então chamado de 1º. Grau. Somente mais tarde é que apareceram oportunidades de conclusão da Licenciatura Plena. Por isso seu diploma de graduação em Letras foi expedido pela Universidade de Passo Fundo, somente em 1973. Mas o curso foi realizado mesmo na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí, que mantinha um convênio com a Universidade de Passo Fundo: os professores de ambas as instituições foram responsáveis pelas primeiras turmas de licenciatura plena em Letras formadas em Ijuí.

Ingo Voese: diretor, professor e regente do Coral da Escola Evangélica Tiradentes de Campo Bom, 1962

Vivia-se, neste tempo, a ideologia desenvolvimentista. Estávamos em plena ditadura militar e, como já apontou Luiz Antônio Cunha, um dos prêmios concedidos à classe média pelo apoio ao golpe militar foi a abertura de cursos superiores em cidades do interior – em quase sua totalidade faculdades particulares e com condições mínimas de funcionamento. Enquanto o meio acadêmico percebia estas novas faculdades como um rebaixamento da formação universitária, as comunidades do interior, incluídos os jovens candidatos aos estudos superiores, lutavam pelo que então se denominou “interiorização do ensino superior”. Como o Brasil são muitos brasis, há diferenças enormes entre as escolas particulares então criadas: se nas grandes capitais se tratava de um negócio lucrativo como qualquer outro, em pequenas cidades do sul a abertura de escolas, depois chamadas de “comunitárias”, envolvia quase todos os segmentos sociais e oferecia àqueles que não podiam se sustentar na capital para fazer um curso das concorridas universidades públicas e diurnas, a única chance de formação superior em geral em cursos noturnos, o que nos permitia trabalhar e estudar. Há mais do que uma geração formada nestas condições de ‘estudante trabalhador’. E outras há, ainda em formação.

Foi neste contexto que conheci INGO VOESE. Ele já era professor de Linguística e Língua Portuguesa na Fidene (hoje Unijuí). Eu residia em Santo Ângelo. Nesta cidade, a 45kms de Ijuí, a Fidene manteve cursos de licenciatura de curta duração até 1970, quando suas ‘extensões’ foram fechadas, muito mais por razões políticas e burocráticas do que pela implantação de uma política mais austera de expansão do ensino superior. Em Santo Ângelo, lutou-se pela continuidade dos cursos de licenciatura, abrindo-se uma nova Faculdade: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santo Ângelo, mantida pela Fundames – Fundação Missioneira de Ensino Superior. Obviamente os bairrismos imperavam, e uma e outra fundação (Fidene e Fundames) representavam ideologias opostas. A esquerda estava em Ijuí; a direita se concentrava na Fundames. Era muito difícil penetrar nos recintos desta, cravando ‘cunhas de esquerda’ em seus quadros. Eu me tornei aluno do curso de Letras da Fundames e em 1972 assumi o cargo de Diretor de Ensino desta Fundação, e como tal recorri aos amigos de Ijuí: Gustavo Maciel (da área de estudos literários) e Ingo Voese (da área de estudos linguísticos) assumiram aulas em Santo Ângelo em 1973, apesar dos riscos que tal decisão poderia acarretar, por desagrado de um e de outro lados. Eis o que hoje não se consegue avaliar, pois na época da ditadura militar o simples gesto de estar vinculado à Fidene e aceitar trabalhar em Santo Ângelo era um gesto de coragem.

Foi a partir de 1973 que passei a um convívio extremamente frutífero com meu professor. Pacientemente, o Ingo viajava de ônibus de Ijuí a Santo Ângelo e nós nos encontrávamos em nosso apartamento, onde ele se hospedava. Íamos juntos para a faculdade; eu assistia sua aula e depois das aulas ficávamos madrugada adentro discutindo linguística, literatura, ditadura, possibilidade e impossibilidades. Longas aulas em meu benefício e em benefício de alguns amigos próximos, até que lhe permitíssemos que fosse dormir.

O ‘estruturalismo’ linguístico era nosso calcanhar de Aquiles: qual o sentido, afinal, da fórmula mattosiana do verbo em português? Lembro de minha incapacidade de compreender certas passagens de um texto de Derrida que o grupo da filosofia de Ijuí tinha traduzido e estava estudando(5): como que o centro que sustenta a estrutura está fora da estrutura? A pergunta tomou muitas noites, também etílicas. Neste tempo Ingo já estava ensaiando sua análise do conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, que nos apresentou, em seus primeiros esboços, em sala de aula e na qual o flagramos interpretando o conto.

Em 1975, ‘perdemos’ o Ingo para a FISC – Faculdades Integradas Santa Cruz do Sul. Um dos motivos da transferência era a realização do mestrado, que iniciou neste mesmo ano na PUC-RS, concluindo em 1977, com a dissertação “A linguagem deficitária: perspectivas para a interpretação e produção de textos”, orientada pelo Prof. Dr. Elvo Clemente. Este retorno à terra natal não respondeu somente a razões profissionais, mas também pessoais. Ainda conviverá alguns anos com seus pais, o Opa e a Oma, como seus filhos e ele os chamavam. Ao mesmo tempo, o trabalho na Faculdade, onde criou o CEPELL – Centro de Pesquisa e Estudos Literários e Linguísticos, responsável pela edição e publicação da revista SIGNO. Um olhar para sua produção desta época, publicado na revista, revela seus interesses ao mesmo teóricos e práticos: Estudo da Influência do Sistema Fonológico da Língua Materna sobre a o da Língua Portuguesa (Signo 1:6-12, 1975); A linguagem da propaganda e o ensino da língua materna no 2º. Grau (Signo 2:5-16, 1975); A linguagem deficitária: perspectivas para a interpretação e produção de textos (Signo 5:4-24 e Signo 6:4-48, 1977); O conceito de ruptura no discurso da subjetividade (Signo 8:33-56, 1979); Um estudo crítico do discurso educacional (Signo 10:3-27, 1980).

Neste período reencontrei várias vezes o meu professor. Ou porque o fui visitar ou porque, mais tarde, ele me convidou para ministrar aulas num curso de especialização que coordenou na FISC. Sua dissertação de mestrado e a orientação que imprimiu ao curso de especialização tinham um sentido: a busca pela melhoria do ensino básico, uma preocupação interferente que acompanhou de forma intermitente a carreira do Ingo.

Como outros, o Ingo acabou assumindo a Direção de Centro e depois a Direção Geral da FISC, exercício de cargos administrativos (e políticos) nem sempre fáceis e sobretudo, incompreendidos quando não se trata simplesmente de deixar correr o que vem sendo feito, mas interferir nas formas e conteúdos das produções institucionais. O Ingo travou luta de democratização da instituição, propondo novos estatutos, direções mais colegiadas e até mesmo eleições diretas para os cargos de direção. Arrumou inimigos. Mas trabalhou muito para a constituição da atual Universidade, ainda que esta história fique às escuras na Instituição. Sobre este período, talvez a melhor síntese seja aquela expressa à época pelo Prof. Dr. Luís Alberto Warat, da Universidad de Buenos Ayres que aportou em Santa Cruz do Sul a convite do Ingo Voese, acrescentando a FISC uma série de instituições de ensino superior brasileiras que contaram com a participação do Warat. Em entrevista ao jornal Integração, órgão de circulação interna da própria FISC, perguntaram ao professor como ele sentiu a instituição na qual começava a trabalhar e sua resposta foi:

Como uma instituição ‘marginal’. Porque, a começar pelo diretor geral, todos demonstram uma sensibilidade muito especial. Já disse no painel e volto a repetir, o professor Ingo é o único diretor vivo que conheço na América Latina. Para estar vivo tem que estar um pouco enamorado da marginalidade. Ele também é capaz de sair à rua e gritar: “BOM DIA SOL” (Jornal Integração, Ano IV, n. XXIII, set/aut/84)

Ao terminar sua gestão, Ingo afasta-se para a realização do curso de doutorado na PUC-RS, mas sob a pressão de uma crise que, de institucional, agravou-se em pessoal[6]. Retorna o espírito do agricultor – aquele que quer viver da terra e de seu trabalho. Por alguns meses o Ingo abandona seus estudos e vai residir entre pescadores em Palhoça.

Refeito das indignidades, principalmente por obra e amor da Márcia, nosso amigo se dedicou à tese doutorado que defendeu em 1991, ano em que prestou concurso público para a Universidade Federal de Alagoas. Do ponto de vista acadêmico, esta passagem pela UFAL o faz reencontrar algumas leituras abandonadas na década de 1970, particularmente Lukács que retorna a suas referências bibliográficas. Neste período ele participa de grupos de estudos sobre o marxismo. Também neste período ele começa a se aproximar dos estudos bakhtiniano [que lhe apresentei], que terão influência bastante forte, a partir de então, em todos os seus trabalhos.

Em seu pós-doutorado feito em Campinas [sob orientação do Prof. Sírio Possenti], tive oportunidade de nova convivência mais constante. Inúmeras eram nossas discussões sobre os conceitos de ‘sujeito discursivo’, ‘ideologia’, ‘compreensão’, ‘significação’: sempre passávamos pelos tópicos das relações sociais e destas com a linguagem. Discutíamos filmes, músicas, letras de canções. Como desde sempre que o conheci – e agora seria necessário falar no plural, porque é preciso incluir sua companheira Márcia em tudo o que se segue – a marca maior foi/é/será a tenaz vontade de ambos em construir uma coerência entre a vida vivida e as teses defendidas: a fraternidade, a igualdade, a amorosidade do mundo futuro pretendido tinham que conduzir, minuto a minuto, as práticas do presente.

Depois do estágio pós-doutoral, o Ingo retorna a Maceió por curto espaço de tempo. Já aposentado, desloca-se para um sítio em Quatro Barras e inicia seu trabalho na Universidade Tuiuti, reencontrando o Prof. Dr. Luiz Alberto Warat, uma parceria que teve início na década de 1980, em Santa Cruz do Sul. É deste período seu estudo sobre argumentação jurídica e sobre a questão da mediação, então um tema constante nos meios jurídicos. Na Universidade Tuiuti o Prof. Ingo trabalha muito mais junto com o grupo de professores da pós-graduação em Direito do que na área de Letras.

Neste período, ficamos um bom tempo afastados. Três anos, talvez. E eis que o reencontro já como professor da Unisul, de Tubarão, residindo em Laguna. Retomamos nossas velhas discussões: tive o prazer de ler e discutir os originais de Análise do Discurso e Ensino de Língua Portuguesa, que indiquei para publicação na coleção “aprender e ensinar com textos” da editora Cortez. Foi neste período também que publicou o seu último livro, Contexto Refletido: vozes sobre postas de um diálogo, pela editora da Unisul, em 2007 (7).

Durante o pós-doutorado, houve uma decisão que desviou o curso da vida a dois: experimentar ter novamente filhos(8). Revertida uma vasectomia, Ingo e Márcia tiveram dois filhos: Marcelo Augusto e Marco Antônio. Para quem teve a sorte de conviver, muito menos do que o desejado, com a família do Ingo, acompanhar a educação que se expressou pela relação de igualdade e autoridade paterna, ao mesmo tempo, impressiona, sobretudo a largueza amorosa que acompanhou/acompanha cada gesto da vida compartilhada a quatro cabeças pensantes.

Dentre os sonhos de futuro, sobre dois deles conversamos muito: completar o trabalho Discurso e Amorosidade, de que se publica um pequeno excerto nesta edição e escrever literatura para crianças, com base na experiência de pai e de contador de histórias: tratava-se de recuperar, tornando ficção, experiências vividas com os filhos e amigos dos seus filhos. O tempo foi insuficiente não só para estas, mas também para tantas coisas outras. Ingo não viu, nós não veremos também, o mundo mais feliz e mais humano por que lutamos. Mas restam o silêncio e o sonho.

A partir de 31.06.2007, Ingo começa a nos fazer falta. O Ingo me faz falta. Supro com Marcelo Augusto e Marco  Antônio e com Márcia, mas fica sempre um gosto de ausência presente. Somente o Ingo, e um espírito como o dele, poderia escrever, durante uma noite de insônia no hospital, num tratamento que sabia não haver volta, e em que, para tranquilidade da família, se deixou acompanhar por um enfermeiro, o texto que compartilho com os leitores. Este é um de seus últimos textos. É um projeto de texto a ser escrito. O que se segue são traços de uma narrativa possível que diz muito do que foi Ingo Voese, pelo que diz nas circunstâncias em que diz:

SOBRE A VIDA – UMA HISTÓRIA POSSÍVEL

  • Certa vez, um homem, já com idade um pouco avançada, teve a grande alegria de tornar-se pai de dois filhos.
  • Preocupação: como ensiná-los a viver, dar-lhes um rumo à felicidade antes que morresse e que eles tivessem compreensão para entender.
  • O problema: o próprio pai fazia-se constantemente perguntas: “Quando concordar em ir por aí e quando discordar”, por exemplo. Não havia, na verdade, um começo e um fim: o homem era “explodido” para dentro da vida.
  • Aconteceu tudo o que o velho pai temia: os meninos ainda eram jovens para que ele, agora acometido de uma grave doença, lhes pudesse ser útil na resolução da questão que considerava importante.
  • Hospital: a morte X a vida, a dor para descobrir que viver encobre segredos sobre diferentes formas de produzir a felicidade. Era preciso descobrir incessantemente segredos/sagrados.

 

1º. Segredo: por que a dor? (o que as religiões ensinavam?)

2º. Segredo: Uma revelação. Para dar ao velho homem, à noite, melhores condições de controlar as intensas dores, a esposa amorosa, contratara um enfermeiro que precisava de ganhar algum dinheiro extra para manter a família.

O doente compreendeu a intenção, mas preocupou-se com seus efeitos, como poderia o enfermeiro desempenhar bem suas tarefas de dia, se tivesse que passar a noite acordado?

E foi o que aconteceu, na primeira noite: o enfermeiro saiu do trabalho em outro hospital, exausto e com fome. Mal tivera tempo para engolir um lanche rápido durante o dia.

E o doente fez das suas dores intensas um exercício de paciência para ajudar o enfermeiro esgotado: deu-lhe comida, facilitou-lhe o banho e o sono e, após isso, cuidou para que, nada, nem seu próprio sofrimento, pudesse impedir a restauração do enfermeiro.

E nesta noite, fez-se um silêncio e uma penumbra, na qual se vislumbravam o reflexo de lágrimas e os suspiros de um raro tipo de felicidade.

 

Notas

  1. Este texto foi escrito para um número da revista SIGNO, hoje editada pela Universidade de Santa Cruz (RS), em homenagem ao Prof. Ingo Voese, que foi diretor geral da instituição mantenedora da então Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, Faculdade de Administração e Ciências Contábeis e Faculdade de Direito de Santa Cruz. O Ingo foi meu professor de Linguística em 1973, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santo Ângelo, onde fiz a licenciatura curta em Letras. Naquele tempo ele era professor da Fidene (hoje UNIJUÍ). Depois ele se transferiu para Santa Cruz do Sul, quando realizou seu mestrado na PUC/RS, em Porto Alegre, onde também fez seu doutorado. Quando de seu falecimento, propus à revista SIGNO, que ele havia fundado, que fosse organizado um volume em homenagem a seu criador. Recebi a incumbência de organizar o volume, o que fiz com muita tristeza, ainda. Dividi o volume em quatro grandes seções: um de depoimentos sobre Ingo Voese; uma segunda seção sobre sua produção científica; uma terceira seção em que seus ex-orientandos escrevem textos sobre os trabalhos -–dissertações e teses – realizadas sob sua orientação. Com segui contato com os seus oito ex-orientandos e todos eles escreveram um texto para este volume da revista. Por fim a última seção foi a publicação de um texto inédito de Ingo Voese – Um discurso como possibilidade: a amorosidade, trabalho em elaboração sobre a questão que o ocupava naquele momento. Publicado in Signo, 33, n. 54, jan.jun. 2008. Disponível em https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/501/338
  2. Agradeço à querida amiga Márcia Voese pelas precisões acrescentadas a minhas lembranças e pela generosidade de permitir o acesso a documentos e a suas próprias lembranças.
  3. Houve um curto período em que viveu no meio rural na cidade de Santa Cruz do Sul. Naquele tempo sonhava com auto-suficiência, uma vida na natureza e com a natureza. A continuidade de seu trabalho docente universitário seria apenas um acréscimo, reduzido em horas, quase um roubo do tempo a ser dedicado ao sítio, ao cultivo e à criação de animais (lembro especialmente sua criação de coelhos!).
  4. Sírio Possenti, em seu texto sobre o homenageado por esta edição, chama-o muito adequadamente de cigano.
  5. Trata-se da seguinte passagem do texto A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (Derrida, J. Escritura e a diferença. S. Paulo : Perspectiva, 1971); “… o centro encerra também o jogo que abre e torna possível. Enquanto centro, é o ponto em que a substituição dos conteúdos dos elementos, dos termos, já não é possível. No centro, é proibida a permita ou a transformação dos elementos (que podem aliás ser estruturas compreendidas numa estrutura). Pelo menos sempre permaneceu interditada (e emprego propositadamente esta palavra). Sempre se pensou que o centro, por definição único, constituía, numa estrutura, exatamente aquilo que, comandando a estrutura, escapa à estruturalidade. Eis por que, para um pensamento clássico da estrutura, o cnetro pode ser dito, paradoxalmente, na estrutura e fora da estrutura. Está no centro da totalidade e contudo, dado que o centro não lhe pertence, a totalidade tem seu centro noutro lugar. O centro não é o centro.”
  6. [nota acrescentada aqui] Efetivamente, o que aconteceu foi que a Instituição, ao liberá-lo para fazer o doutoramento (com bolsa de estudos), exigiu que ele, terminado o doutorado, não retornasse para a FISC. Como se pode aquilatar, esta exigência teve impacto psicológico enorme sobre o Ingo: uma mistura de raiva e amargura e ao mesmo tempo de felicidade por ter conseguido, com sua ação, transtornar tanto assim a direita que prevalecia na cidade. Foi esta crise que o levou para Palhoça, depois de cumpridos os créditos do programa de doutoramento.
  7. Como os demais livros do Ingo, estes também são comentados nesta edição de SIGNO. Ver a seção respectiva a propósito das obras de Ingo Voese.
  8. No primeiro casamento com Ingue Voese, teve dois filhos: Kerstin e Fernando.