por João Wanderley Geraldi | set 14, 2019 | Blog
Este é o primeiro livro que Cortázar assina com o próprio nome [a publicação anterior – Presencia – uma coletânea de poesias assinou com o pseudônimo de Julio Denis]. E nele o autor retoma de forma extremamente criativa o mito do Minotauro, filho de Pasífae, esposa de Minos, que como disse ironicamente Millor Fernandes, “mandou ver com o Touro”. Como todos sabem, Minos encerrou o Minotauro no labirinto do plácio de Cnossos, em Creta.
Como salienta Ari Roitman em seu excelente prefácio a esta edição, o autor “recria o mito do Minotauro, desenvolvendo porém variações que produzem surpreendentes efeitos de sentido”. Para começar, o herói deixa de ser Teseu: o monstro, por ser o diferente, encarnaria precisamente o outro lado dos reis e filhos de reis: Minos, Teseu, Egeu, Ariadne. Ele é o duplo. O que se esconde “negro coração” por trás das paredes do peito, Minotauro expõe à luz do dia. Por isso ele é apresentado como o complemento de quem o encerrou e de quem o matará. E como tal será o mestre do jogo das palavras.
O texto é composto pelas seguintes cenas:
Cena 1 – longo diálogo entre Minos e Ariadne. Ambos estão em frente ao labirinto, e conversam sobre a necessidade que teve o rei de encerrar a monstruosidade, enquanto esperam a chegada de mais um grupo de donzelas e rapazes atenienses para o sacrifício a Minotauro. Deste diálogo, extraio a seguinte passagem, que revela o outro que habita cada personagem [e cada um de nós]:
Minos: – Uma mulher não sabe olhar. Só vê seus sonhos.
Ariadne: – Rei, assim olham os deuses e os heróis. Tu mesmo, o que vês do dia senão a noite, o medo, o Minotauro que teceste com as teias da insônia? Quem o tornou feroz? Teus sonhos. Quem lhe trouxe o primeiro grupo de rapazes e donzelas, arrancados de Atenas pelo terror e o prestígio? Ele é tua obra furtiva, como a sombra da árvore é um resto de seu terror noturno.
Cena 2 – Chegados os condenados, Teseu se aproxima de Minos e acontece o diálogo entre eles. Quando Minos lhe pergunta “quem és?”, responde-lhe Teseu “um igual”. Minos sabe que Teseu vem para matar. A conversa girará em torno do destino, do encarceramento, da prisão que nem a morte livrará o herói. E também do jogo das palavras, tanto que em certo momento Teseu diz: “De súbito descubro em mim uma perigosa facilidade para encontrar palavras. O pior é que gosto de tecê-las, ver no que vai dar, lançar as redes”. Numa passagem de intervenção de Minos, eis um achado: “É estranho Cada um constrói seu próprio percurso, é o seu percurso. Por que, então, os obstáculos? Trazemos o Minotauro no coração, no recinto negro da vontade?”.
Cena 3 – Trata-se aqui de um monólogo de Ariadne, prometida por Minos a Teseu na cena anterior [“Mata-o e guarda essa morte como uma pedra na mão. Então te darei Ariadne”],que se encontra do lado de fora do labirinto segurando o novelo de linha que permitirá o retorno de Teseu. Ao mesmo tempo em que pensa em Teseu, também deseja o encontro com o Minotauro: Nu e rubro, vestido de sangue, emerge e vem a mim, ó filho de Pasífae, vem à filha da rainha, sedenta de teus lábios rumorosos!” Eis outra duplicidade explorada por Cortázar. Ariadne explicita a compreensão do mito que nos propõe o autor:
Os olhos de Teseu me fitaram com ternura. “Coisa de mulher, teu novelo; jamais encontraria o retorno sem a tua astúcia.” Porque todo ele é caminho de ida. Nada sabe de espera noturna, do combate salobríssimo entre o amor à liberdade, ó habitante destes muros!, e o horror ao diferente, ao que não é imediato e possível e sancionado”.
Cena 4 – Aqui temos o diálogo, no interior do labirinto, entre Teseu e o Minotauro. Ao contrário da versão tradicional, é o Minotauro que se oferece em sacrifício. E Teseu sabe que carregará esta morte e que o mito permanecerá. Duas passagens:
Teseu – “ … Fala-se tanto de ti que és como uma vasta nuvem de palavras, um jogo de espelhos, uma reiteração de fábula inapreensível. Tal é ao menos a linguagem dos meus retóricos.
Minotauro – É como se olhasses através de mim. Não me vês com teus olhos. Nem sequer tua espada me está justamente destinada. Deverias golpear com uma fórmula, uma oração: com outra fábula.”
Na passagem seguinte, Minotauro reflete sobre sua possiblidade de sair do labirinto seguindo a linha de Ariadne:
“… Sair para outro cárcere, já definitivo, já horrivelmente povoado com seu rosto e seu peplo. Aqui eu era a espécie e o indivíduo, cessava minha monstruosa discrepância. Só volto à dupla condição animal quando me olhas.A sós sou um ser de traçado harmonioso; se decidisse recusar-te a minha morte, travaríamos uma batalha estranha, tu contra o monstro, eu te olhando combater uma imagem que não reconheço como minha.”
Cena 5 – Aqui é o momento da morte do Minotauro, e o diálogo se dará entre o citarista que se aproxima para tocar, agradecendo ao monstro por ter ensinado a todos os que supostamente teriam sido sacrificados: em verdade estão todos vivos, livres e dançam agora como dançaram antes dentro do labirinto. O tema aqui será o do esquecimento, a vida como um percurso de esquecimentos.
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O grande jogo, neste genial exercício de recriação de Cortázar envolve a passagem contínua entre dois níveis: o da narrativa e o da metanarrativa, em que se discutem os acontecimentos. Neste sentido, se o Minotauro instaura a diferença e se os “reis” não conseguem conviver com a diferença e a encarceram num labirinto, persiste lá, recôndito, o que se quer negar. Ora o que não é “imediato e possível e sancionado”, ora o escuro de nós mesmos que habita as paredes do peito e se esconde no negro coração. Temos, pois, um jogo tríplice: do eu comigo mesmo; do eu e o outro diferente de mim; e da narrativa e metanarrativa. E como a tudo se dá pela chave da linguagem, ensina o Minotauro que somente se mata uma fábula com outra fábula; uma narrativa com outra narrativa.
Politicamente, isto é, na polis, trata-se de elaborar esta outra narrativa…
Referência. Julio Cortázar. Os reis. Rio de Janeiro : Civ. Brasileira, 2001.
por José Kuiava | set 11, 2019 | Blog
Vai aqui um convite amoroso para os indignados e desalentados: vamos fazer uma análise sincera do medo, que vem causando temor e tremor diuturnamente aos brasileiros e às pessoas do mundo inteiro. Vivemos uma crise internacional globalizada, fundamentada e instituída pelo populismo de extrema-direita. Este autoritarismo nega e destrói os valores da liberdade, da diversidade étnica, cultural e das diferenças ideológicas, de crenças, de estilos de vida, que não sejam os valores internos proclamados e que ameaçam a unidade e a hegemonia do próprio sistema – autoritário – mascarado de democracia, mas exclusivo e excludente.
No Brasil, sob o comando do atual chefe da nação, o populismo, além de autoritário, é grotesco, estapafúrdio, ignorante, terrificante, destruidor, que envergonha e aterroriza os brasileiros e o mundo inteiro. Proclama e propaga ódio aos adversários e opositores; propôs, institui e vem fortalecendo um modelo autoritário de Estado, está matando a educação, a ciência, a pesquisa, a cultura, a saúde, os direitos sociais e trabalhistas; acirra as desigualdades sociais, enriquecendo e empoderando cada vez mais os poucos donos do capital, empobrecendo cada mais os muitos muito pobres, fragilizando cada vez mais as condições de sobrevivência dos mais fracos.
Este modelo de populismo autoritário – vestido e fantasmagorizado de democracia – é terrificante. Mas, o que mais amedronta, desalenta, atormenta e provoca medo e terror é a harmonia matrimonial-conjugal dos Três Poderes da Nação: Executivo – presidente, governadores, prefeitos; Legislativo – senadores, deputados federais e estaduais e vereadores; Judiciário – juízes, promotores, procuradores e ministros do Supremo. A harmonia constitucional – letra escrita – na realidade é uma aliança corporativa fatídica, combinada, recíproca de benefícios mútuos às custas dos bens públicos, bens comuns de todos, transformando as instituições democráticas em armas políticas ideológicas em defesa e proteção das elites do capital. O medo maior é o fato segundo o qual estes poderes agem comprando a mídia, como aliada, para divulgar a imagem montada de justiça, de ordem e progresso, junto à opinião pública. Este é o paradoxo trágico da aliança dos Três Poderes.
Estes, em aliança, legalizam e legitimam constitucionalmente os golpes de Estado – impeachment – contra governos democráticos comprometidos com programas sociais, que beneficiam as massas populares de trabalhadores e as classes populares de baixa renda. Esta onda populista de extrema-direita gera medo com a legalização dos golpes de Estado democrático, estes engenhados e articulados pelas elites do poder político e do capital, e com o fim das instituições críticas e com a morte da democracia.
O que mais mete medo no jogo de alianças nefastas dos Três Poderes é a justiça cega. Sim, aquela estátua de mulher sentada com os olhos vendados por um pano e com a espada no colo, na praça do Planalto, é o símbolo real da cegueira. Símbolo disfarçado de imparcialidade da justiça seletiva e parcial – a corporação política e ideológica do Poder Judiciário.
O caso da Lava Jato – Vaza Jato – é uma prova real da hegemonia dos valores ideológicos dos togados, levando em conta as condições de classes sociais dos acusados nos processos de julgamentos – condenação dos pobres e absolvição dos ricos. Os atos de absolvição ou de condenação resultam não por força de crimes reais, comprovados, mas de posturas dos magistrados de conformidade com os vínculos de classes sociais dos acusados. A parcialidade é que prevalece sobre a imparcialidade. A Lava Jato é o desmascaramento da justiça brasileira – juízes, juízas, ministros, ministras do Supremo – em todas suas escalas regionais e nacional – ao julgarem e condenarem ou absolverem acusados por força dos princípios ideológicos das classes sociais, escondem os reais valores corporativos de aliança – em nome da harmonia constitucional.
Um verso da música caipira enuncia perfeitamente esta verdade:
“pobre não ganha demanda
rico não vai pra cadeia”.
Aplicando este verso aos atos do Supremo, hoje, temos: político ladrão e corrupto das elites do capital não é condenado e não vai pra cadeia; político honesto, acusado, sem crimes e competente das classes trabalhadoras, é condenado, vai para cadeia para não ser presidente, mesmo eleito democraticamente.
por João Wanderley Geraldi | set 9, 2019 | Blog
Com as revelações da Vaza Jato deste domingo, há muita gente querendo justificar a decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender a posse de Lula como Ministro da Dilma, porque ela teria sido baseada em informações selecionadas pelo ex-juiz e agora ministro apequenado de Jair Bolsonaro.
Assim como fui com vergonha quando vi a foto de Lula abraçando Maluf para angariar votos para a eleição de Haddad para a Prefeitura de São Paulo, hoje sou contra esta absolvição do ato político – e não de base jurídico – aquela tomada por Gilmar Mendes.
Como todos sabem, os ‘sorteios’ do STF somente funcionam quando o caso não interessa a ninguém… quando interessa – por exemplo, todos os processos que envolvem próceres do PSDB caem na mão ‘por sorteio cego’ de Gilmar Mendes.
O caso da posse de Lula como ministro também caiu com o golpista Gilmar Mendes – ou alguém está disposto a defender que o PSDB, de Tasso Jereissati a Fernando Henrique Cardoso, passando por seu ministro no STF, o dito cujo Gilmar Mendes, não foram golpistas?
Ora, Gilmar Mendes decidiria o que decidiu independente do vazamento criminoso do atual Ministro da Justiça. Sempre foi assim, assim sempre será quando se trata de Gilmar Mendes.
Ou alguém acredita na boa fé da proposta absolutamente sem fundamento legal, no último julgamento do Habeas Corpus de Lula? Primeiro, Gilmar Mendes pede ‘vistas’, ou seja, adia a decisão. Depois volta com o processo, não com seu voto favorável a Lula ou contra Lula, volta com uma chicana jurídica: não se decide o mérito, mas enquanto não se decide, Lula fica preso. Ora… todo mundo sabe que Lewandowski fez um esforço enorme para no palavrório do juridiquês tentar salvar a proposta de Gilmar Mendes, que a fez sabendo que não teria sucesso!
E está dando no que está dando: até hoje no processo continua esperando julgamento! E Gilmar Mendes saiu vitorioso, com aplausos da esquerda!!!
Por isso, não absolvam Gilmar Mendes!!! Ele faz questão que Lula permaneça preso. Não se deixem engambelar pelas críticas a Lava Jato. Elas somente começaram a acontecer que ele percebeu que os próceres do seu partido, o PSDB, poderiam também entrar na vala comum da demonização da política.
Estou hoje num grupo que pretende homenagear a Luiza Erundina e Paulo Freire, recordando os 30 anos de começo do governo municipal de Erundina! Todos querem um evento suprapartidário, aglutinando as forças democráticas!!! Logo terão José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes, João Doria, todos no mesmo evento… Não se faz “frente” alguma esquecendo a história!!! Frente que esquece a história constrói o próximo golpe contra a democracia logo ali, na curva da primeira esquina da história!
Por, pelamor de deus, não absolvam Gilmar Mendes. Ele continua o mesmo golpista de 2014…
por Mara Emília Gomes Gonçalves | set 8, 2019 | Blog
—Eu sou pela eleição direta, e você?
—Eu também, claro. Está duvidando de mim?
—Ótimo. Então conto como seu voto para aprovação do meu projeto que restabelece a eleição direta.
—Ah, como meu voto você não conta não.
—Mas se você é pela eleição direta, por que vai votar contra a eleição direta?
—Perdão. Vou votar contra o projeto, não contra a eleição direta.
—É a mesma coisa.
—Não é a mesma coisa. Projeto é projeto, eleição é eleição.
—Então você é a favor e contra ao mesmo tempo. Ou por outra: é a favor do contra, ou contra o a favor.
— Você não entende nada de nada. Ser a favor não significa votar a favor. Significa ser, e ser não é votar, como votar não é ser. Votar é ato exterior, de gesto ou de boca. Ser é muito mais profundo, mais intenso, mais… Sinto uma tal felicidade sendo a favor da eleição direta que não quero comprometer esse estado de espírito radiante com uma providência de ordem convencional, ato vulgar e contingente. Como se as minhas ideias precisassem de votação! Você está questionando a pureza das minhas ideias, isso eu não admito!
por João Wanderley Geraldi | set 7, 2019 | Blog
Este é um livro para se guardar e volta a ele toda vez que um disparate acontecer no governo Bolsonaro ou naquele, improvável, que vier a substituí-lo caso ele não atravesse os quatro anos de mandato.
Aqui temos a história contada enquanto ela acontecia. Os fatos marcantes do ano em que a maioria da população preferiu participar da construção de um regime autoritário do que tentar continuar numa democracia que nos últimos anos fez um ensaio de transformar o Brasil numa nação e não apenas num território de poucas pessoas e milhares de subalternos, alguns passando fome ou trabalhando em regime de escravidão. Foi o que decidiu a maioria, ou por voto direto ou por omissão ou por ressentimento de alguns líderes políticos como Ciro Gomes ou a minúscula – em todos os sentidos – Marina Silva e, acima de todos, o vaidoso neoliberal Fernando Henrique Cardoso.
O que mais ensina o autor aos que ensaiam na crônica é a condensação que faz com as informações de que dispõe. Ao contrário do que se poderia esperar de textos escritos antes da poeira baixar, a técnica de Mário Magalhães é transformar um fato em tema, e partir do tema ir aos arquivos do passado e do persente para dar ao fato um contexto mais amplo, mas sem deixar de tomar posições sobre o acontecimento que deu início ao que se pode chamar de pesquisa do cronista.
Neste sentido, os textos que compõem o livro ultrapassam o gênero porque também fazem história. Trata-se de um gênero em construção, filho da crônica porque se debruça sobre um acontecimento do presente; filho da narrativa histórica porque engancha o presente a séries do passado, articulando semelhanças e diferenças entre o hoje o ontem histórico; mas também filho da política porque todos tratam de fatos políticos. Tem um parentesco ainda com a reportagem, no sentido de que esta também toma um fato e levanta seus contextos próximos.
Insisto que neste caso é mais importante, como em muitos outros, estar atento às relações intergenéricas que gestam, nas diferentes esferas da comunicação, os gêneros discursivos adequados ao projeto de dizer e à relação interlocutiva pretendida: o autor fala do presente não para registrá-lo como fonte futura de historiadores. Ele fala do presente e ao mesmo tempo escreve história, ao militar politicamente sem contudo cair em partidarismos.
Nestes textos, Mário Magalhães mostra o quanto está informado e como são diversas as suas fontes, desde livros de história até recados e mensagens nas redes sociais, de modo que o leitor de seus textos tem sobre cada tema uma rede que recobre com seus diferentes nós as reações dos sujeitos face às interpelações ideológicas a que se encontra submetido.
Tomemos um exemplo. Em “Pra mim chega”, inicia-se o texto referindo-se à comovente foto publicada em fevereiro (de 2018) em que um pai, aritxa Iwyraru Karajá velava o túmulo de seus dois filhos que se suicidaram entre 2012 e 1026. Este fato o leva ao tema do suicídio, de que traz inúmeros dados e estudos, e também outros suicídios. Obviamente não faltaram referências a Virgínia Woolf, a Getúlio Vargas e ao reitor da UFSC, o Prof. Luiz Carlos Canceller de Olivo. Dentro do tema, a questão que discutirá será aquela do jornalismo: noticiar suicídios produz o efeito Wether, isto é, o aumento do número de suicídios logo após o noticiário. Por outro lado, é adequado não informar? Neste texto o autor acaba por colocar o leitor em outro quadro distinto para revisar sua compreensão dos suicídios, trazendo dados da economia que levam ao “pra mim chega!, de modo que inúmeros suicídios, como o do reitor da UFSC, retratam uma época como o suicídio de Stefan Zweig retratou a época do nazismo alemão, ainda que sua morte tenha ocorrido em Petrópolis, longe de Hitler e do furor nazista de que escapara para o Brasil.
O livro é composto por um longo prólogo que situa o ano de 2018, correlaciona-o a 1968 e aos anos anteriores à ditadura militar. Depois se seguem as 43 crônicas que em certo sentido comprovam empiricamente o que defendeu no prólogo: 2018 foi “um ano que tão cedo não vai terminar.
Nada melhor para ler, para lembrar e para deixar para os filhos para que compreendam o que aconteceu quando a ameaça que temos pela frente é a da censura ao rela em benefício de uma narrativa fabricada segundo a voz de um clã que foi elevado à presidência da república graças às ações de um judiciário partidarizado e de uma elite política e econômica mesquinha e burra.
Referência. Mário Magalhães. Sobre lutas e lágrimas. Uma biografia de 2018. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | set 5, 2019 | Blog
Uma mão. Ela que segura o chicote que alcança o menino ladrão. Bate, bate, bate, bate, bate, bate, bate, bate, …, … bate, bate, bate, bate, bate. Uma mão com ódio e energia que não sabe precisar quem tem fome. Uma mão que não se sabe igual, e não pensa, então chicoteia o menino freneticamente. Sente-se bem. Faz seu trabalho com vigor, é um forte, um vencedor.
Seu trabalho é esse. É, pois, um trabalhador. Empregado, em um país de desempregados, de precarizados, de subalternos, e antes desse tempo, não tão antes, de escravos. Ambas as mãos envolvidas neste episódio, possivelmente, receberam como herança o chicote: embrulhado no papel da Constituição, sem laço que não seja a corda no pescoço.
Sublime.
Em êxtase e frenesi, a mão que bate, esqueceu-se dos seus sofrimentos, de suas revoltas, de suas fomes, de seus desejos. Esqueceu-se de Deus. Esqueceu-se da história, da própria mazela de miséria que o cerca.
Bate no menino com vigor, tanta fúria há nesse bater, e marcando as costas do menino com as chibatadas sente-se um mito:
-Direitos humanos é coisa de bandido! Vai pra Cuba!
As crianças em Cuba não dormem na rua, não passam fome.
Um mito é um mito. Lembro-me do conhecido mito da Caverna. Está deveras preso à sua imbecilidade, à sua limitação, acredita que o menino roubou sem necessidade, nem em sonho o compara ao filho do político que recebeu depósito em sua conta, esse era apenas um menino, está sendo perseguido porque é filho de quem é, oras! Volta-se à sua própria cegueira, sem luz, sem holofotes, não mais… Agora é um herói, já que enfim, mostrou-se necessário à loja. Quem sabe uma promoção, uma entrevista para a imprensa.
Sim a imprensa. As mídias e as propagandas. Jornalistas que filmam esses casos e colorem as telas dos noticiários com sangue preto. Aquelas faces rosadas que franzem a testa e são as defensoras dos grupos econômicos, da justiça seletiva, do linchamento de ladrões, moradores de rua, pobres em geral, mas, sobretudo de negros.
A mão não tem apenas um dono, mas é uma mão coletiva. É uma mão que vocifera contra meninos que roubam chocolates, e que têm fome.
Escrevo sobre a mão porque não posso escrever sobre o chicote, sobre tal só poderia se como disse Machado de Assis: O melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão. E, em geral, quem tem o cabo na mão, não tem nos lombos de seus antepassados as marcas dos mesmos.
Ninguém solta a mão de ninguém, a menos que…
A outra mão, a do menino, é a que tem medo e que está sozinha, até que se saiba coletivamente que haverá o tempo da volta *no lombo de quem mandou dar…
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