por José Kuiava | out 16, 2019 | Blog
“Bobokl, bobok, bobok” – estranhas vozes enervadas e desdenhosas ecoam no plenário do supremo, em colóquios revesados nas sessões litúrgicas dos togados, sempre em atitudes e posturas rigorosamente solenes e sagradas. As togas vestidas a rigor;os cabelos cortados e penteados no estilo clássico; os ternos, as camisas, as gravatas dos homens rigorosamente nos modelos tradicionais; os brincos, os colares, as pulseiras, os rostos maquiados, os lábios pintados, os cabelos esticados das mulheres, sempre nos modelos da mais elevada nobreza.
Em linguagem jurisdicional imprecisa, inexata, de interpretações e de sentidos múltiplos e controversos, as excelências de togas leem os argumentos dos seus votos de condenação ou de absolvição dos sentenciados. É a imagem mítica do poder supremo.
Na história, o genial artista e cientista Dostoiéwski usou as palavras e a literatura como armas – argumentos estéticos e científicos – na luta contra os usos e abusos atrozes do poder. Isso, segundo ele, nos tempos em que “o humor e o belo estilo desapareceram e as injúrias substituíram o espírito de delicadeza”. E nos tempos de hoje? Aqui no Brasil? É de arrepiar os cabelos e fritar o cérebro.
Os seus críticos ignorantes e imbecis, Dostoièwski combatia com ironia fina – inventou o diálogo dos mortos – “Bobok”, o mais brilhante conto de Dostoièwski. Muitos e diversos mortos, lá embaixo no subsolo do cemitério conversando sobre os males dos vivos lá de cima.
Certo dia, ele saiu para se distrair e divertir – certamento numa bodega – e acabou indo num enterro, primeiro na casa do velório, depois no cemitério. Quando estava no cemitério, lugar nada atraente e agradável, porque mal cheiroso e triste, começou ouvir vozes quase surdas, como se estivessem saindo de bocas sufocadas por almofadas. Muito assustado, mas curioso, Dostoièwski sentou-se num túmulo de um general da corte e ficou quieto a escutar as vozes. Diversos mortos – uns da alta sociedade, das classes mais nobres e ricas, outros das classes do meio e outros ainda sem classe social nenhuma – conversavam respeitosamente, sem autoritarismo, sem imposturas, sem dar ordens, sem violência, todos falavam e escutavam os outros falar. Uma conversação elevada.
Lá, naquele tempo, os mortos dialogavam. O diálogo na literatura. Obra única. Genial.
Aqui, hoje, os vivos poderosos e autoritários mandam e determinam o que e como deve ser, sem escutar a fala dos outros. Condenam e mandam prender os críticos, os adversários e opositores. Para que estes, os pobres, nunca mais cheguem ao poder da nação. Não precisam sequer cometer crimes para serem condenados. Ser pobres já é o grande e doloso crime.
Ainda outro dia, muito aborrecido da vida, me conectei numa plataforma do Google para me informar dos temas mais elevados que circulam aqui no Brasil e que rondam o planeta terra e esbarrei nas vozes bizarras dos togados. Vozes gravadas sem permissão e proibidas de serem ouvidas.
Uma voz grave, em tom autoritário elevadíssimo, anunciava:
– “Excelência, esta é a nobre e justa sessão da “Vaza Jato” do nosso supremo”.
– “É isso! É a sessão de “Lava Toga” – completou outra voz bem serena.
– Meritíssimo, com perdão da palavra, a minha toga está limpa, passada e não precisa ir para a lavanderia.
– “Ei, meretríssima, a sua toga está de mau cheiro, está cheirando xixi e cocô” – exclamou uma doutora da plateia.
– “O que? Você aí sim é meretríssima. Eu sou meritíssima de verdade, por lei, portanto, de direito. Você é uma meretriz”.
– “Excelência, respeitosamente isso não se fala aqui no supremo, lugar do poder acima de todos, lugar de respeito aos poderosos, lugar de condenação dos fracos e pobres”.
– “Excelência, trocando de assunto, eu tenho uma gravação sigilosa e proibida fora deste supremo. Escutem excelências:
– “Eu me admiro muito e vou me admirar para sempre por ter condenado à prisão um comunista. Assim, impedi que ele voltasse a ser presidente do Brasil. E não sou um tolo por me admirar. Me sinto mais nobre”.
– “Sim. Excelência, mas e aquelas tramas articuladas fora do supremo”?
– “Eu obedeci os poderosos. Tive que cumprir ordens. E que eram a minha vontade também”.
– “Isso contradiz ao mesmo tempo imparcialidade e parcialidade”.
– “Eu sou especialista formado em julgar e condenar inocentes pobres e especialista fino em absolver criminosos ricos”
– “Isso mesmo excelência, a verdade acima de todos”.
– “Prezado colega, quando vossa Excelência condenou o Lula ele…
– “Calma! Eu fui obrigado a condenar o Lula. Por força da lei da alta estratégia.
– “Mas se não há provas do crime?
– “Isso não vem ao caso”.
– “Excelências, o assunto é muito grave. Precisamos de muita lucidez e juízo para tratar. Para tanto vamos todos e todas até a sala ao lado, sala da farmácia biológica. Mas cuidado! Bebam com moderação”.
Assim, a sessão do plenário foi suspensa. As investigações das gravações do subsolo também foram silenciadas.
por João Wanderley Geraldi | out 14, 2019 | Blog
Dois políticos emergiram como temas nesta semana que passou, o primeiro como sempre com sua “metralhadora giratória” como disse Luis Nassif: o segundo fazendo críticas à presidenta Dilma, dizendo lenha para o fogueira inimiga, ao dizer que ela colaborou para que o impeachment se tornasse “necessário” para por a economia nos rumos certos…
Ciro Gomes é um político paradoxal: quer o apoio da esquerda mas não consegue guardar para si seus ranços dos tempos da Arena, dos tempos dos coronéis, dos tempos em que crítica alguma poderia ser feita ao “chefe”. Ele se tem por “chefe”… e a cada vez que abre sua boca, sempre estará pronto para criticar Lula, para acusá-lo, para condená-lo. Ou para atribuir ao PT a culpa por não ter conseguido ir para o segundo turno. No fundo o raciocínio de Ciro é: eu sou confiável, a esquerda ME DEVE apoio. Eu preciso mostrar que sou confiável para o outro lado para me tornar uma unanimidade nacional. Por isso bate pesado na esquerda, desta a vez contra os jornalistas Paulo Moreira Leite e Kiko Nogueira, sem qualquer base em fato reais. Simplesmente acusa. Que quer? Tornar-se simpático à direita.
Fernando Haddad é o bom moço da USP. Foi candidato à Presidência num momento de crise enorme. Foi ao segundo turno, tornou-se uma liderança importante no campo da esquerda. Tem um passado como ministro da educação de Lula e de Dilma, e como prefeito de São Paulo. No ministério, para o ensino básico, manteve a política neoliberal das avaliações de larga escala, criou mais uma prova aos 8 anos de idade, a prova Brasil ou provinha que recebeu aplausos de Paulo Renato, seu antecessor no ministério da educação. Lembro que à época Paulo Renato se ofereceu para ajudar a implementar a “provinha Brasil”. No ensino superior, foi levado por Lula a uma política de expansão. Não se sabe se contra sua vontade ou não. Mas importa que a realizou. Aumentou o número de universidades federais, abriu novas vagas e saímos durante sua gestão do patamar vergonhoso de sermos o país da América Latina a termos o menor percentual de universitários na faixa etária dos 18 aos 25 anos! Na Prefeitura, conduziu políticas públicas elogiáveis, ainda que não tenha negociado adequadamente, em 2013, o aumento das passagens de ônibus, por não ter conversado com os usuários, somente com o setor empresarial do negócio.
Pois veio ele com um artigo na Folha de S. Paulo criticar a política econômica do governo Dilma. Seria mera falta de sensibilidade com o “timing” político? Talvez não. Lembremos que levado ao segundo turno no ano passado, Haddad perdeu um longo tempo tentando o apoio da direita, particularmente do PSDB – que suponho ele imagina como sendo de centro-esquerda!
Dilma teve um programa econômico muito claro: negociou o programa com a CUT, com a FIESP e com a CNI: trata-se de expandir a indústria nacional para que ela pudesse fazer frente à demanda provocada pela saída de 40 milhões de pessoas da miséria. Aumentar este contingente sem fortalecer a indústria nacional teria dois problemas: uma demanda que elevaria a inflação que se tornaria incontrolável e uma pressão externa para abertura do mercado brasileiro para que empresas do exterior atendessem a esta demanda, desequilibrando a balança de pagamentos.
Para conseguir isso, combinou com os dois segmentos a queda dos juros para com isso financiar, a longo prazo e juros baixos, a indústria nacional. Acontece que não havia mais industrialistas no país, mas somente rentistas! A queda da taxa Selic prejudicou os rentistas e a FIESP comprou o pato amarelo… E deu no que deu. Ou alguém acredita que Skaf é industrialista?
Haddad, ao dar de bandeja sua crítica à política de Dilma estava visando o quê? Do meu ponto de vista a mesma coisa que Ciro: a esquerda, como supõe erroneamente Ciro, já está com ele – e não está. Por isso pode coicear à vontade a esquerda para conquistar a centro-direita e no caso dele, a direita mesmo. Haddad considera que a esquerda, o PT particularmente, já estão com ele como estiveram nas eleições de 2018. Então também ele pode dar alguns coices na injustiçada presidenta Dilma, para angariar prestígio junto a centro-direita e, talvez, oxalá, da direita!
Ciro é um mau caráter; o bom mocismo de Haddad parece aquele do aluno da USP que precisa da aprovação do velho professor, dos catedráticos, dos que têm renome (no caso, de FHC, que ele tanto paquera). Acontece que dando coices à esquerda, ele será levado ao ostracismo porque foi a esquerda que o levou à liderança política que hoje exerce!
por Mara Emília Gomes Gonçalves | out 13, 2019 | Blog
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
-O livro sobre nada, Manoel de Barros.
por João Wanderley Geraldi | out 12, 2019 | Blog
Em dois volumes, esta biografia romanceada de José Carlos do Patrocínio, redesenha o fim do século XIX e os começos do século XX, numa Rio de Janeiro de fins do império. E obviamente, é a Rua do Ouvidor o espaço mais estrito da história que aqui se conta, mas também grande parte da história da imprensa brasileira de então. É na rua do Ouvidor e em suas imediações que estão as sedes dos jornais da época – que não eram poucos – e por aí que se tomava um cafezinho para conversar, que se visitava redações e que se discutia literatura e vida política.
Ciro Vieira da Cunha não nos faz um relato cronológico de seu biografado. Ao contrário, avança no tempo de vida do abolicionista, retorna a Campos e ao nascimento, vai com ele para o Ceará na campanha – o Ceará foi o primeiro estado brasileiro a se ver livre da escravatura: “a primeira localidade a emancipar todos os seus escravos” foi a vila de Acarape, em 1882 e à festa compareceu o tribuno da abolição.
Recompor a cronologia que o autor desconsiderou pode ser útil do ponto de vista mnemônico. Como a narrativa começa com Patrocínio aos 14 anos nas escadarias da Santa Casa, tomando coragem para entrar e pedir emprego porque seu desejo era um dia ser médico, e logo informa sobre a vida anterior, vamos marcar: ele nasceu em Campos, filho da quitandeira Justina Maria do Espírito Santo e do Pe. João Carlos Monteiro, orador sacro concorrido e de quem, talvez, tenha aprendido Patrocínio seus primeiros passos de oratória frequentando a igreja e ouvindo o pai pregando.
Logo o menino sai de Campos – para onde retornará já jornalista bem sucedido e de onde trará sua mãe já na velhice. Na “corte” procura emprego e teve a sorte de consegui-lo na Santa Casa como aprendiz da Farmácia. Mais tarde fará os exames para ingressar no curso superior: não é aceito para o curso de Medicina, mas faz o curso de Farmácia, profissão que não exercerá, mas os ensinamentos aprendidos lhe serão úteis no momento em que Floriano decreta seu desterro, junto com um grupo de intelectuais e jornalistas que viajam para o posto militar de Cucuí, no alto do rio Negro. Nunca chegaram até lá, mas em Santa Isabel adoecem – malária – e Patrocínio será o farmacêutico a atender seus companheiros de infortúnio.
Da farmácia, vai para o ensino num lugar de explicador de lições. E na Faculdade, funda com Dermeval da Fonseca Os Ferrões, que conhecerá curta vida. E pela mão de Dermeval, Patrocínio entra para a Gazeta de Notícias, cujo chefe de redação era Ferreira de Araújo. Inicialmente tem o papel de “recortar” os jornais de S. Paulo (a tesoura sempre foi grande repórter…). Depois assume uma coluna política, onde mostra seu espírito de luta. E desde sempre sua bandeira: a abolição da escravatura.
Com Joaquim Nabuco constituirá a grande dupla abolicionista. Enquanto Nabuco é mais comedido, Patrocínio é direto, um polemista sem folga, “desde a primeira hora um radical sem concessões” que ataca, que fere e que não se deixa abater. Da Gazeta de Notícias vai para a “Gazeta da Tarde”, e sua razão para a mudança é que “não compreende como um homem possa submeter uma ideia a interesses de qualquer ordem” como fazia Ferreira de Araújo mantendo a vida de seu jornal.
Seu sonho será realizado: funda em 1887 seu próprio jornal, Cidade do Rio, que sobreviverá até 1902. Estará neste jornal quando o alcança a libertação, a assinatura da Princesa Isabel a que Patrocínio passará a prestar uma espécie de apoio explícito, ainda que tenha ideais republicanos. Afasta-se do Partido Republicado, dirigido por Bocaiúva, por não concordar com os caminhos que se queria imprimir à república, mas será o tribuno que falará em frente ao quartel para Deodoro, no movimento do dia 15 de novembro.
Como sabemos, Deodoro assume. Há uma tentativa de golpe de florianistas. Deodoro renuncia ao cargo, e Floriano assume a presidência com mão de ferro. Patrocínio será desterrado. Mas retorna logo, menos de seis meses depois da longa viagem do Rio até Santa Isabel, à margem esquerda do Rio Negro.
Participa então de todos os acontecimentos políticos e artísticos. É membro da Academia (cujo verdadeiro fundador, segundo o autor, é Lúcio de Mendonça pondo em prática a ideia de Medeiros e Albuquerque), vota em Machado de Assis para seu primeiro presidente. Frequenta os cafés e em seu jornal dá guarida a jornalistas e poetas (Olavo Bilac trabalhará com ele por muitos anos).
Casado, teve dois filhos – teve a infelicidade de enterrar a filha; teve com Zeca, o filho, muitos desgostos. Enfrentará tudo e no final da vida, já sem nada de seu, trabalha escrevendo crônicas semanais para dois jornais para juntar os recursos necessários para a manutenção da casa e da família.
Enquanto todo o primeiro volume desta obra vai contando a história numa linha de recortes cronológicos, com idas e vindas no tempo, todo o segundo volume é dedicado a episódios em que se envolveu Patrocínio, entre eles a descrição de suas ações no dia 15 de novembro; ou da chegada de Santos Dumont; ou da visita que lhe faz o inventor brasileiro para conhecer o balão a que Patrocínio dedicou grande parte de sua vida: o Santa Cruz, que jamais cruzou os ares e que depois da morte do tribuno da abolição será vendido como “ferro velho”.
Ler biografias romanceadas tem suas vantagens: enquanto se vai conhecendo o herói, vão aparecendo os cotidianos de um tempo passado que desconhecemos, pois a história que aprendemos na escola fixa tempos e mudanças, grandes acontecimentos, mas não nos fala deste dia a dia que levaram aqueles que ficam em nossa memória como seres da História, cujas histórias de vida pouco sabemos. Ler este livro é também andar pelo Rio de Janeiro da corte imperial, da rua do Ouvidor, é ouvir murmúrios da história, é saber fofocas e briguinhas relegadas aos cantos de página mas que, no seu presente, sofreram aqueles ‘nomes’ que conhecemos sem conhecer os homens que foram. Muitas das personagens com que cruza Patrocínio, neste tempo, tiveram seus nomes registrados na história que se ensina – na literatura ou na política – mas muitos deles desapareceram quando, presentes, foram fundamentais para a emergência de alguns acontecimentos que continuamos a reverenciar.
Referência. Ciro Vieira da Cunha. No tempo de Patrocínio. Rio de Janeiro : Edições Saraiva, 1960.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | out 10, 2019 | Blog
Muitas vezes falta. Não aquela que Freud anunciou, mas tantas outras e várias. E então, eu me visto de substância líquida, como as relações atuais, e estou de novo pronta para meu exílio de dentro, desses que a gente tem febre de saudades.
Imagino ter saudades da liberdade, não vale ou vale? Valha-me deus!
Ontem ainda tive as danadas, sabe? Elas, as febres. Vem e vão até que não, e de tão acostumados acreditamos gostar do calor de dentro, mesmo sentido ainda doer todo o corpo. O corpo dos amigos, dos bairros, das cidades, e dele afinal.
Não se vá ainda, eu juro não é um texto hermético. Embora eu ache bem chique que eu possa ter a pretensão de fazer um texto hermético, mas esse, essinho não é não. Esse é um texto falando de amor e dúvida.
Por isso falei de liquidez, dessas que me toma os olhos e não param de liquidar. Eu sempre disse que não sei bem usar os verbos, acho que não era isso que quis dizer, mas digo. Acabou enfim o tempo de não dizer, porque quando escrevo tenho fúria mesmo falando de amor.
Leia atentamente. Confusão. É assim como gostar de coisas que antes se dava pouco ou nenhum valor, liberdade tem preço alto, por isso pagamos com vidas negras até hoje, mas hoje falo de outras coisas, e menos importantes.
Nas linhas escritas, trago noites e dias que distam do encontro, é estranho perceber que faz falta querer estar num lugar que não se poderá ocupar, a não ser que… Enfim se possa entrar e sair, livremente. Tenho dúvidas cruéis demais.
Talvez seja o tempo certo de sair, talvez seja tempo de entrar, o significado de liberdade está na escolha, na verdade e não no lugar. Nunca quis ir a Paris, mas os gestos e os símbolos valem sempre, ocupam-nos de não sentir as dores, renovam-nos esperanças adormecidas.
Nada digo sobre aprendizagem, ou ensinagem, meus textos têm silêncios apropriados para uma cela, é assim que sinto arder em mim às febres. Não pensem que não sinto, porque não está dito com as palavras certas, acontece que aprendi a dizer quase sempre com as erradas: desculpa, silêncio e resignação.
Ainda assim consegui fazer fortaleza, rota de fuga, e tenho os temperos e ervas certas para usar quando as febres voltarem, e elas voltam incessantemente: matam crianças, mulheres, índios, homens pretos, pobres, queimam árvores, destroem lares, encerram empregos, fecham universidades. Embebidos de seus próprios egos, prendem e agora mandam soltar, como se fossem senhores e senhoras do tempo e da lei.
Sem hora certa percebem-se presos em espelhos que multiplicam suas imagens distorcidas e reais infinitamente, já não cabem máscaras. Não são nada, não mandam em nada.
O espelho quebrou, a sorte está lançada ou seria laçada?
por José Kuiava | out 9, 2019 | Blog
Ainda outro dia – mais um da minha vida muito breve – eu estava caminhando pelas avenidas e ruas da minha cidade, aferindo e conferindo a degradação ambiental, lubrificada pela ganância do consumismo desenfreado da mítica “fase planetária” dos seres humanos.
Ao chegar em frente a praça, fiquei estarrecido, mais uma vez, depois de muitas tantas vezes. Fiquei triste, indignado, revoltado, inconformado com o desmonte de uma árvore. Uma árvore inteira estava esquartejada, cortadas das pontas dos galhos mais altos até as raízes. O tronco feito em pedaços, roliços para serem queimados em fogões, lareiras, churrasqueiras. A serragem encobria as calçadas. Um fim trágico. Igual à árvore, me senti estraçalhado, todo partido em pedaços.
Caminhei mais um pouco pela praça até uma árvore ainda em pé. Uma arquitetura natural incrível, única. A arquitetura humana jamais foi capaz de desenhar a beleza da arquitetura biológica de uma árvore. Esta árvore em pé, era frondosa, alta, seu tronco robusto, seus galhos copados eram braços abertos, cheios de dedos finos e delicados, pareciam um guarda-sol a proteger e refrescar as pessoas. A árvore parecia estar orgulhosa da sua beleza e do seu potencial de vida para as vidas de todo planeta. As flores desta árvore eram formadas em cachos formosos de cores vermelhas escarlate, amarelas, brancas, eram lindas. Os beija-flores, as borboletas, as abelhas e muitos outros bichinhos voadores, em voos leves, com muito cuidado, sugavam deliciosamente seu néctar. Alimento vital.
Muito comovido, cheguei mais perto e escutei uma voz delicada, suave, amorosa. A voz da árvore. Aí, de forma educada e respeitosa, escutei.
– “Senhores seres humanos, autoproclamados donos e proprietários poderosos e únicos do planeta terra e de tudo que há nele, escutai-me.
SENHORES “ANIMAIS HUMANOS”
Não me cortem
Não me desgalhem
Não me mutilem
Não me derrubem
Não me arranquem
Não me queimem
Não me envenenem
Não me matem
Quando me cortam
Estão praticando
Um suicídio coletivo
A morte de todos
O fim de tudo
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Eu sou a natureza
Eu sou o ar refrescante e puro
Eu sou a beleza
Eu sou o perfume
Eu sou o fruto
Eu sou o néctar
Eu sou o oxigênio
Eu sou a vida “viva”
Eu sou a sombra fresca
Eu sou o alimento
Eu sou a casa
Eu sou o abrigo.
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SEM MIM
O clima seca
O ar queima
As nuvens desaparecem
A chuva não cai
Os animais morrem
Os pássaros ficam sem lar e sem comida
As borboletas ficam sem lugar para pousar
Os beija-flores sem flores
As abelhas ficam sem néctar
A paisagem fica feia
O planeta terra explode
Acaba a vida “viva”
Eu sou como a criança: só preciso de cuidado,
de amor para crescer e viver
O progresso sem mim – a árvore – morre
Sem mim, vocês todos – senhores humanos – morrem
O vosso dinheiro sem mim não vale nada.
Eu nunca fui
Não sou
Nunca serei
A “porra”.
Depois de escutar a fala honesta e verdadeira da árvore, eu li a crônica do meu amigo e confrade sociólogo, Cândido Grzybowski: “Cuidado e Compartilhamento para uma Vida Sustentável – Cuidado: Coração Invisível da Nova Economia”. Escrito inédito.
Todos deveríamos ler, reeler, sempre com amor e cuidado.
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