Os 51 milhões da coalizão e parlamentarismo de ocasião

Em entrevista à mídia alternativa em Recife, parada de sua caravana pelo Brasil, o ex-presidente Lula afirmou uma disjunção fundamental na vida política nacional: ou os movimentos sociais, os movimentos sindicais, os partidos de esquerda elegem uma maioria para o Congresso Nacional, ou o presidente eleito somente pode governar se conseguir construir uma base parlamentar, num presidencialismo de coalizão.

Infelizmente, no país, não há maioria parlamentar com base em princípios e linhas mestras de programa de governo. A coalização sempre se construiu de forma espúria no único princípio reconhecido pelos nossos políticos: o toma lá, dá cá. Isto implica distribuição de ministérios, de segundo escalão nos ministérios, cargos em empresas públicas, indo do topo ao faxineiro de qualquer repartição. Trata-se de um sistema patrimonialista que toma o público como privado, e que herdamos do tempo do Brasil Colônia, época em que se constituíram as famílias “de bem” e de bens do país que até hoje permanecem no topo da pirâmide social brasileira e que costumamos chamar de elite nacional. Aqueles que a ela chegaram depois, estes “sem nome e tradição” somente foram aceitos porque mostraram o bolso cheio de dinheiro.

Infelizmente este modo patrimonialista de ser expande-se a todos os rincões e a todos os setores da vida nacional, passando pela academia universitária chegando até mesmo ao que chamamos “empresas privadas” que, mostram os escândalos atuais, vivem  e sobrevivem do assalto ao patrimônio público na forma de subsídios que recebem descaradamente (todos reclamam dos gastos do bolsa família, em torno de 28 bi, mas esquecem o bolsa empresários cujo orçamento está em torno de 270 bi em forma de subsídios) ou na forma mais escandalosa da sonegação, já que esta é uma apropriação indébita pois os impostos estão todos nos preços das mercadorias… O entreposto arrecadador que sonega, na verdade recebeu dos seus clientes os impostos que deveria recolher, que não recolhe e embolsa desavergonhadamente num caixa 2 que, sendo de partidos políticos, os escandalizam porque são extremamente hipócritas.

Assim, um presidencialismo de coalizão que se lastreia no toma lá, dá cá será sempre um presidencialismo refém das artimanhas da caça ao tesouro de políticos patrimonialistas. O outro caminho, proposto na atual conjuntura política, o do parlamentarismo depende crucialmente da formação de uma maioria no Congresso para que um deles seja indicado primeiro ministro, isto é, chefe do Executivo! Estatuído um parlamentarismo num ambiente de patrimonialismo, será a farra: um primeiro ministro não tem um mandato outorgado pela população. Seu mandato depende dos deputados e senadores. Portanto, seu mandato pode durar o que quiserem estes mesmos políticos…

Se no presidencialismo de coalizão, a formação de uma base parlamentar tem no horizonte certo período, certo mandato com prazo definido, no parlamentarismo teremos uma questão de ocasião. E a ocasião faz o ladrão!!! Adotado o sistema, os apartamentos-cofre se multiplicarão e 51 milhões serão encontrados em qualquer um deles, pois o voto do parlamentar para que alguém se torne primeiro ministro e continue sendo primeiro ministro terá um custo maior do que aquele da coalizão! Não há tempo de mandato: a troca será ao bel prazer do Parlamento… quando o dinheiro da primeira leva acaba, acaba o mandato do primeiro ministro: ou será substituído ou pagará mais uma vez… e isso quantas vezes desejarem os parlamentares. Assim, no parlamentarismo a condução da Câmara dos Deputados seguirá o modelo “Eduardo Cunha”: no presidencialismo, construiu uma pauta-bomba que levou à paralisia do executivo dirigido por Dilma Rousseff. No parlamentarismo, cada deputado ou senador será um Eduardo Cunha com sua pauta-bomba a cobrar seus estipêndios a cada poucos meses.  Num executivo forte, com o capital político dos votos na urna, a coalizão é de difícil costura; no parlamentarismo, com um executivo sem capital político além daquele que lhe dão os parlamentares, a maioria temporária será construída ao bel prazer dos interesses pecuniários dos parlamentares.

Nossa democracia não é como a alemã ou a inglesa, onde o parlamentarismo funciona. Jamais no Brasil um primeiro ministro duraria tanto tempo como duraram os governos de Margareth Tatcher ou Tony Blair ou dura o governo de Ângela Merkel. Aprovar o parlamentarismo no país é servir o banquete para os políticos que nos assolam.

Ou temos outra saída, que nos livraria dos males da “coalizão” com base no toma lá, dá cá. Chegarmos ao que Lula aponta como horizonte de uma eleição de outros parlamentares procedentes de outros espaços e comprometidos não com as benesses que usufruirá no mandato, mas preocupado com o país!

Mas conseguir outro parlamento, “aposentando” os políticos patrimonialistas implica numa mudança radical da cultura brasileira, e não só da cultura política. Depois de quase duzentos anos de independência, talvez fosse hora de começarmos a pensar que a nação que temos é a que construímos. E todo o futuro se constrói ultrapassando o passado que, redivivo por nossas visitas históricas, nos serve para evitarmos seu retorno no futuro. É difícil, mas não impossível. Mesmo que outros duzentos anos sejam necessários!  

O Fim da Ética no Brasil (?)

O diagnóstico social revela que a ética no Brasil atual está em estado de coma terminal. O cérebro e o coração da ética estão em estado depressivo na UTI do hospital público do sistema representativo, cada vez mais oligárquico. Assim, a ética sofre de atrofia por desuso e desrespeito dos seus princípios. A ética só continua viva por força e energia da indignação de brasileiros e de brasileiras engajados no movimento da rejeição do sistema político representativo, empoderado por golpes sucessivos de políticos e empresários. Esse movimento de luta do povo precisa ultrapassar – ir além – a indignação, a rejeição e desencadear um  movimento de luta ideológica, social e política por uma democracia viva, participativa, substantiva da sociedade brasileira.

Assim, ao chegar a um diagnóstico mais preciso, mais verdadeiro do estado real da crise ética no Brasil de  hoje, ou seja, o estado de crise que atinge toda sociedade brasileira, primeiramente precisamos perguntar: que Brasil é o nosso Brasil de hoje? Em que país, em que mundo vivemos? Estamos vivendo – e fazendo parte – um movimento do mundo da igualdade ou um movimento do mundo da desigualdade cada vez mais radical? Os nossos sistemas representativos – o político e o judiciário – garantem o que para quem? Por acaso, os nossos 33 partidos políticos se alimentam da ideologia, da ética, da igualdade e da justiça social, da fidelidade…? Ou alimentam os interesses pessoais dos políticos que os inventaram e os mantém como garantia de poder político? Quem, realmente, tem interesse e luta pela manutenção e vivência dos princípios éticos no Brasil de hoje? Sem a pretensão de responder estas perguntas, esclarecer as dúvidas e incertezas, é preciso reconhecer que  há um pressuposto real, verdadeiro, que determina as crises que vivemos no sistema neoliberal brasileiro de hoje, segundo o qual os princípios éticos já não se constituem mais como valores determinantes dos atos responsivos dos políticos e nas vidas de cada um. Como resultado inevitável – trágico para o povo e  glorioso para as elites capitalistas e seus aliados políticos no poder – temos um pensamento depressivo e incrédulo na política por parte das massas populares. Temos um povo indignado e ao mesmo tempo  indiferente e omisso. Não engajado. Na correlação de forças, o poder econômico, aliado ao bloco no poder, está derrotando os trabalhadores com  a aprovação das medidas no congresso. Assim, em vez de termos um povo “sujeito”, temos um povo indignado, mas passivo, alienado, talvez, por conta das forças e armas do sistema político representativo.

E como, então, a depravação da ética acontece no dia a dia das vidas reais, existentes? Pelos princípios pedagógicos e morais ensinamos e aprendemos na teoria os princípios éticos verdadeiros, mas, na prática acontece o contrário.

– “Não pode mentir”, porém, se for preciso, mente, prometa para os eleitores que vai lutar pela educação, pela saúde, pelo bem dos mais pobres, pelos trabalhadores… e depois de eleito, esqueça; quando for acusado de práticas de corrupção, de crimes contra a vida, contra o meio ambiente… diga que é para o progresso, para gerar empregos, para produção de alimentos…, enfim, diga que é mentira dos acusadores;

– “não pode roubar, tirar o que é dos outros, o que é de todos”, porém, para enriquecer muito em pouco tempo tire o que é de todos, pegue o dinheiro do estado e deposite nos bancos fora do Brasil, compre carros importados, aviões, barcos, dê dinheiro para a mulher comprar joias, vestidos, sapatos no valor de milhões de reais…;

– “não pode matar”, porém, para defender o que é de sua propriedade ou para defender a si mesmo, mate e contrate um bom advogado para se defender e ser absolvido pelo Juiz, sempre em legítima defesa; isso se você tiver muito capital, bastante dinheiro e se for político;

– “é proibido andar acima da velocidade determinada”, porém, se não tiver policiais de trânsito,  câmeras e radares no caminho, ande a 130, 150, 180km por hora;

– “não pode prometer a redenção e salvação pela bondade e graça dos deuses”, porém, para garantir o pagamento do dízimo e muito mais do dízimo, prometa a salvação eterna em nome dos deuses;

– “é proibido comprar e vender votos”, porém, se for preciso para se eleger e aprovar medidas contra o povo e os trabalhadores, pegue dinheiro sem medida dos órgãos públicos em parceria com empresas e gaste em campanhas políticas sem limites;

– “é proibido sonegar impostos públicos”, porém, se não houver fiscais honestos e sistema de controle eficaz, suborne os fiscais e camufle as máquinas de controle;

– não pode enganar os consumidores com mercadorias de má qualidade, falsas…, porém, se os compradores forem ingênuos, de pouca inteligência, logre o quanto puder.

Com certeza, existem maneiras ao infinito na vida real em que a ética é violentada. E tem solução? Qual? Certamente, porém, a indignação é o primeiro ato responsável, o ponto de partida, apenas o começo. A solução para a crise está na caminhada e na chegada para além da indignação. Precisamos de uma sociedade como “sujeitos coletivos”, conscientes.

                                                                                        Cascavel,6/9/2017

Domingo com Carlos Vogt

Produto Perecível

Aqui & Agora

intervalo de provisoriedade

único definitivo possível.

Acordo político

Ou acordamos agora

ou

desacordamos depois

 

Arqueologia

Com um silêncio alugado

feito de poros e arcos

instala-se a noite versada

nas manhãs da solidão

é uma noite alongada

terna de furos e arestas

contida não no ser antes

tambpouco no ser porém

ir sendo aquilo que resta

noite enjaulada em macacos

bichos no sótão

– balança –

o tempo pendido na cauda

do bicho preguiça que avança

O tempo é breve

para consumi-lo

séculos de consumação

(Carlos Vogt. Paisagem doméstica. Massao Ohno/Ismael Guarnelli Editores, 1984)

Textos sobre textos: O Quieto Animal da Esquina

Depois de ler algumas páginas deste romance, comecei a ficar com um pé atrás… Estava achando que o personagem, um jovem desempregado, poeta anônimo, estava mal acabado. Introduzido por suas andanças em Porto Alegre à procura de emprego, vivendo numa ocupação urbana com sua mãe, tudo parecia indicar que se iniciaria aí um percurso de luta pela sobrevivência, “retratando” a vida miserável da cidade grande.

Mas não! O rapaz comete um estupro, é denunciado pela vítima, é preso… e eis que aparece não se sabe donde, um personagem que o tira das mãos do delegado, carrega-o para um “clínica de recuperação”. Do tratamento, sobre na narrativa apenas um possível sonho: o personagem vivia no campo, numa casa, com a estuprada e seu filho! Não sobra do período da clínica, e reaparece o personagem de terno e gravata – depois se fica sabendo que é Kurt – e o leva para seu sítio próximo de Porto Alegre.

Fiquei irritado com estes lances narrativos em que uma força oculta vem salvar o herói… Uma força que aparece assim, sem mais nem menos!!! Mas mais irritado fui ficando comigo mesmo: não conseguia parar de ler a narrativa, não conseguia fechar a página e me dizer, como consolo, você não é obrigado a ir até o fim!

Acontece que não é o enredo que enreda o leitor nesta narrativa! É a própria narrativa, o modo de narrar. João Gilberto Noll não nos prende pelo enredo, como faz qualquer telenovela. Ele nos prende pelo modo de narrar e em narrando, não importam que acontecimentos do enredo sejam encadeados, vai mostrando a quase inutilidade dos gestos, a distância que guarda o personagem daqueles com que convive, aproximando-se somente quando seu interesse comandava a ação: o apetite sexual o leva à cama de Amália, a empregada da casa de seus “benfeitores”; a camaradagem com Otávio, uma espécie de capaz do sítio, somente acontece uma vez e para mostrar a Kurt que ele era um “bom homem”; e mesmo a aproximação com Kurt, depois da morte de Gerda, sua mulher, somente acontece porque o personagem pretendia saber o que afinal seria dele depois que Kurt morresse!!!

Trata-se, portanto, de um romance sobre as mazelas humanas mais profundas, cuja superficialidade apenas se apresenta no enredo. Na contracapa , Manuel da Costa Pinto dá a dica: seria um “romance de deformação”, opondo-se ao tradicional “romance de formação”.  É possível.

Em todo caso, romance de deformação ou não, se lhe cair nas mãos este livro, saiba que você será fisgado pela narrativa e não vai parar de ler o livro até seu final, ainda que o fim não tenha nada de fim, mas muita abertura para pensar sobre o tipo humano que a sociedade construiu! E começará você mesmo a adjetivar este homem feito que conta sua história pela pena de João Gilberto Noll.

  

Os juízes na berlinda e nas denúncias da grande mídia: por quê?

A presença indecorosa de juízes nos holofotes da imprensa, entre nós, é uma novidade dos anos 2000. Mesmo um Nélson Jobim esperou sair de STF para se tornar militante político. Agora, isso é desnecessário. Permanecem com a toga a julgar a torto e a direito, exercendo ao mesmo tempo militância partidária.

Certamente o melhor exemplo, aquele que em Semântica chamaríamos de “prototípico” é o militante do PSDB e nas horas vagas ministro do STF Gilmar Mentes. Sempre foi suspeito, desde que chegou ao STF pelas mãos do não menos suspeito sociólogo suposto estadista FHC. Antes quem falava do ministro era a “esquerda” supostamente inconformada com suas decisões ao arrepio de outras interpretações da lei. Mas agora ele (deveria escrever Ele?) virou unanimidade nacional! Até a possuída professora Janaína Paschoal, aquela que recebeu a pomba gira e girou, girou a bandeira nacional! Ela mesma. Pois até ela está falando mal de Gilmar Mentes (grafia proposital, só para lembrar).

Obviamente há outros juízes que podem aparecer na lista dos “prototípicos”: o Moro é o candidato maior e que estava por suplantar o ministro. Ele inexistia como jurista e mesmo como juiz até retornar bem informado dos EEUU, prender seu amigo Alberto Youssef e saber através dele do esquema todo da Petrobrás. É público e notório que um doleiro sabe tudo… As pessoas se “confessavam” com ele, e por isso ele pode abrir o jogo para Moro. Nada a ver com a espionagem dos EEUU grampeando telefones e descobrindo segredos industriais (e falcatruas de diretores) de uma das maiores empresas do mundo, e a primeira em tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas.  Nada a ver. Tudo lhe foi dito, dito ao juiz dos holofotes:  Sérgio Moro se tornou herói nacional. A imprensa o incensou e o elevou aos céus, ao infinito… De repente, eis que aparece um criminoso que queria ser delator e que diz o que não deveria ter sido dito: há cinzas por baixo da Lava Jato e não provêm apenas dos queimados vivos! Veio a público o juiz a dizer que não se pode dar crédito a um criminoso confesso que delata… Ora, ora… é precisamente com base em delações de criminosos que Moro condena a torto e a direito, mas quando são delatados pessoas de bem, ou “não vem ao caso” ou não merecem crédito!!! Até mesmo a reportagem sobre o lançamento do filme sobre a Lava Jato está eivada de ironias… Que está acontecendo, afinal?

O problema é que agora os holofotes já não fazem brilhar. Moro começa a ser ligeiramente criticado (até a publicação da “falsa” delação inexistente surpreende por ocupar páginas dos jornalões!). Já não se fazem mais “dallagnóis” como antigamente. A imprensa deixou de fabricá-los. Que está acontecendo com a imprensa e sua relação com os superiores desígnios da magistratura?

E anotem: com uma frequência nunca vista, aparecem reportagens sobre salários e penduricalhos percebidos por juízes, desembargadores, procuradores et caterva. Tudo mancheteado e denunciado. Consequência da “Lei da Transparência”, uma herança deixada pelos governos petistas, herança que a mesma imprensa faz questão de silenciar? Somente porque agora se tem acesso, a imprensa ficou sabendo dos salários acima do teto nacional do servidor público? Ora, o jornalismo investigativo não existe apenas em blogs da internet. Antes existiu na imprensa “oficializada”. Mas a imprensa sabia e calava. Está falando agora: qual o motivo?  

Tudo que desabona juízes e procuradores está chegando às páginas dos jornais. Os encômios, as laudas em louvor, quando não o descarado de puxa-saquismo está cedendo lugar aos podres que rolam nas alturas! Por que a delação não aceita foi para a imprensa? Por que Gilmar Mentes e as suspeições sobre ele se tornaram temas de reportagem da imprensa “oficial”?  Que há por trás das manchetes sobre salários de juízes, desembargadores, procuradores?

Como interpretar esta reviravolta na imprensa? Uma resposta superficial poderia ser o fato de que procuradores e juízes estão deixando de dizer “isso não vem ao caso”, e “pessoas de bem”, como Aécio Neves ou Jacob Batista, estão entrando na lista de criminosos. Seria mesmo isso? Um salvar os amigos? Afinal, como ensinou um assessor do tirano imperador da Etiópia, Hailé Selassié I, “que melhor forma de limpar um nome senão sujando daquele que achamos que queria sujar o nosso?” (Kapuscinski, O Imperador, p. 90)

Penso que esta é uma resposta superficial. Para o capital, para a verdadeira elite nacional, pouco se lhe dá que um Aécio Neves vá para a cadeia! Seria apenas para mostrar que “eles” cortam na própria carne! Penso que as razões para tudo vir à tona (e que vem à tona não é nada bom para esta magistratura descarada e aproveitadora, o que não significa toda a magistratura nacional, mas esta em particular) devem envolver interesses econômicos mais profundos. Envolvem? Quem sabe a resposta? Eu não sei.

Os três poderes batem em harmonia, contra os trabalhadores

Era uma vez no país das maravilhas um vice presidente que tomou o poder da nação pelo golpe baixo do “impeachment”, beatificando este ato obsceno de “democracia constitucional”. O nome de batismo deste pseudopresidente é Michel e o sobrenome, Temer. Ele é acusado, este presidente, de múltiplos e poderosos crimes contra a Nação. Continua livre e soberano.

Dias atrás,  em cena na televisão, com voz e gestos de plena amabilidade, o presidente autocompetente, proclamou e advertiu que, neste momento, o Brasil precisa de plena harmonia dos Três Poderes da Nação. Advertiu a todos os incrédulos que a harmonia dos Três Poderes é constitucional, portanto, é lei e precisa ser cumprida com rigor para garantir a ordem e o progresso que tanto precisamos. No final daquele dia, também na televisão, falou um ministro do governo temeroso e confirmou tal e qual o dito pelo seu presidente, a quem está servindo. Uma descoberta inédita e incrível nos horizontes da opinião pública: um amor conjugal a três, determinado pela Constituição.

Fiquei comovido perante estas cenas. Tive a sensação súbita de náuseas e vontade de vomitar. E fiquei também intrigado e curioso, já que não sou um conhecedor profundo e nem leitor assíduo da nossa amada Constituição. Conheço, apenas, o estritamente necessário para cumprir as obrigações e usufruir dos direitos garantidos na Constituição. Embeveci-me de coragem e fui ler o texto constitucional.  Fiquei encantado de súbito quando li o que está escrito no Parágrafo Único, do Art.1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Não tinha nem abafado o suspiro e senti um calafrio em dobro quando li o Art.2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Eis que o presidente Temer tem razão. Só que no mesmo instante vi uma luz resplandecente iluminar uma inscrição bem grande no firmamento: “Dilma tem que voltar à presidência do Brasil”. Claro, pensei, ela foi deposta por ato de “desarmonia” dos Três Poderes, por ter praticado pedaladas pelos caminhos do Planalto Central nas manhãs de sábados, domingos e feriados. Portanto, se a harmonia dos Três Poderes é lei constitucional, Dilma foi deposta de forma inconstitucional. Ou, é o caso em que prevalece a força soberana do poder quando a lei vale apenas para uns e em certas situações ela não se aplica? Vejamos de novo: “Todo o poder emana do povo, que [o povo] o [poder] exerce por meio de representantes eleitos…”, como isso é possível se mais de 95% do povo brasileiro não queremos o Temer como presidente, mas que seja condenado e vá para a cadeia? Como ele pode governar a Nação – que amamos tanto! – em nome de menos de 5% dos brasileiros? Claro, com a força da lei da harmonia e com a força do amor casamenteiro dos Poderes.

Ao continuar a leitura do texto constitucional me deparei com outra maravilha no Art.5º: “Todos são iguais perante a lei…”. Pensei: está aí a questão. A igualdade humana é constitucional, está na letra da lei! Mas, de repente, o sentimento maravilhoso se esvaiu e me perguntei pela bilionésima vez: porque uns são mais iguais que os outros se a Constituição determina que todos somos iguais? Ah, mas é somente iguais perante a lei, dizem os inteligentes, não nas condições sociais de vida real. Aí vem mais uma pergunta – essa velha e “diabólica” maneira de fazer perguntas ao estilo de A Conversão do Diabo – porque os senadores, os deputados, os governadores (quem mais?) podem roubar, corromper e ser corrompidos, praticar crimes sem fim e de todos os tamanhos e não podem ser condenados, nem presos e nem perder seus mandatos e cargos políticos? Mas é claro, eles, os senadores, os deputados, os governadores se deram “foro privilegiado”, “imunidade parlamentar”. Certa vez na história dos homens era proclamado: “todo poder vem de Deus e em nome Dele deve ser exercido”. Aí está a fonte da inspiração.

A harmonia social é do pensamento e método idealista-positivista e requer a ordem total para o progresso da humanidade, mesmo nas desigualdades sociais, que devem obedecer a rigor as leis naturais. Enquanto que, em seu oposto, o conflito social é do pensamento e método dialético materialista histórico, que busca a igualdade social no conflito das contradições e na desarmonia das desigualdades. Na ideologia positivista é a desordem, altamente nociva à sociedade capitalista.

Pelas leis positivistas, os Três Poderes precisam estar em harmonia constitucional: as medidas e os planos  pensados e tramados, mesmo quando contra os trabalhadores e os contribuintes, no Gabinete da Presidência – Poder Executivo – precisam ser apreciados, votados e aprovados nos nobres salões dos plenários da Câmara e do Senado – Poder Legislativo – que precisa, em sua instância final, da aprovação no Tribunal Supremo – Poder Judiciário.

Assim, esta lei da harmonia dos Poderes é válida e se aplica somente quando o governo é das elites do capital, mas quando o governo é dos trabalhadores, vale a lei do conflito, do confronto e desarmonia dos Poderes para destituir o(a) Presidente da Nação.