DE MALAS (Sem dinheiro e sem cuias)

Saí de casa para esconder malas cheias de dinheiro e acabei na cadeia. Assim deve ter pensado e sentido o ex-ministro Geddel ao ser preso. Aí eu, indignado e ingênuo, fico me perguntando: será que algum dia no Brasil todos os políticos e os brasileiros seremos integralmente leais, honestos, sinceros, fieis aos princípios éticos e morais, preparados e cumpridores das nossas obrigações e dos nossos compromissos sociais e políticos? Declaro que me sinto imbecil e incapaz de responder a pergunta que formulei, perplexo diante das coisas terríveis que estão acontecendo no Brasil nos últimos dias.

Aliás, nestes últimos dias, quando vejo e ouço a toda hora políticos, empresários, advogados e juízes falando na televisão ao vivo e quando leio nos jornais e nas revistas o que eles falaram e disseram nos acordos e acertos das delações premiadas da Lava Jato e em conversas sigilosas gravadas, me vem ao pensamento as conversas dialogadas dos mortos que Dostoiévski escutou no subsolo do cemitério. Uso aqui a forma analógica do “diálogo dos mortos” no subsolo do cemitério para entender melhor e desmascarar, talvez, as conversas e falas dos vivos do Planalto e da Lava Jato. A história contada – narrada em linguagem literária em Bobók – por Dostoiévski é fascinante e instigadora para os leitores. O narrador – “uma pessoa” – saiu para se divertir  e acabou num enterro. No cemitério, exausto, “…sentei-me numa sepultura e passei a meditar de verdade”,  de repente o narrador começa ouvir vozes do subsolo no fundo dos túmulos. A princípio fica assustado ao ouvir os mortos falando. Mas, logo acha a conversa muito interessante e dá ouvido aos mortos faladores. Passa a escutar atentamente. Percebe que as conversas constituíam um diálogo polemizador, onde havia o tempo e o lugar da fala e o tempo e o lugar da escuta de muitos mortos, há poucos dias enterrados. Assim, vislumbrei a imagem, os lugares e os tempos dos acusados, dos delatores, dos advogados de defesa, dos juízes daqui de cima – os vivos nos tribunais. No subsolo não há hierarquia social nem voz de autoridade, embora haja sepulturas de classes sociais. Há uma nova ordem no subsolo: todos os mortos são iguais, não há autoridade e não há superioridade da fala do general, da mulher grã-fina, do barão,  do conselheiro da corte, do engenheiro civil, do filósofo… A conversa deles é em tom igual à conversa do vendeiro, do jovem, da mocinha, do velho…

Nas conversas dos mortos há revelações muito idênticas às da Lava Jato. Vejamos o que diz o morto filósofo: “Faz três ou quatro dias que morreu, e podeis imaginar que deixou um desfalque de quatrocentos mil rubros em dinheiro público? A quantia estava em nome das viúvas e dos órfãos, mas não se sabe porque ele a administrava sozinho, de sorte que acabou ficando oito anos livre de fiscalização”. Até parece que não há nenhuma semelhança com os nossos vivos de hoje. E essa outra fala: “ Passa-me vinte e cinco mil, senão amanhã a fiscalização estará aqui”. Não foi assim – e é – que se falava e se fala no Congresso para comprar votos dos deputados e senadores, para comprar depoimentos dos delatores? Isso também não tem nada a ver com os corruptos e corruptores de hoje. E tem uma conversa de morto que é uma lição para os nossos delatores. “Aliás, o diabo os tenha, porque tão logo se reúna a nossa turma, tudo entre nós se organizará naturalmente. Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas com o intuito de rir, aqui não vamos mentir…Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada”. E aí? Acho que no nosso caso é: aqui não vamos dizer a verdade. E há lições até para quem julga, para quem absolve ou condena: “Circulo em outras classes, escuto em toda parte. O problema é que preciso escutar em toda parte e não só de um lado para fazer uma ideia”. E pode se escutar somente alguns para os acusados selecionados por forças ideológicas em vez de à luz de princípios jurisdicionais? E os mortos decidiram de comum acordo: “Abaixo as cordas, e vivamos estes dois meses na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos!”. Dizer a verdade, sempre! Mas tirar a roupa…que atentado ao pudor! E Dostoiévski adverte: “…Ao trancar o outro numa casa de loucos você ainda não está provando sua própria inteligência”.

Quantas lições! Que lições da literatura de ontem para a vida real de hoje!

Dinheiro roubado em malas, guardado sigilosamente em apartamento, não traz benefícios materiais reais a ninguém, nem aos próprios ladrões.

O nazi-fascismo cotidiano das ruas brasileiras

Fiquei uns tempos na Dinamarca. Anualmente ficamos um bom período babando filha, netas e genro. Alugamos apartamento (desta vez um quarto junto a uma casa, compartilhando cozinha e banheiros), vivemos a vida comum: criamos rotinas, andamos de ônibus, atentos ao cotidiano que aparece até nas idas ao supermercado.

Certamente a sociedade dinamarquesa é fechada. Seus costumes são diferentes dos nossos. Por exemplo, ninguém pode se sente superior ao outro; numa sala de aula, se há um grupo que realiza com mais rapidez sua tarefa, não pode o professor lhes dar outra tarefa: isto mostraria que os membros deste grupo é “mais competente” do que os grupos que demoram mais para fazer suas tarefas… As avaliações não são em comparação com outro, numa competição aberta por “prêmios”, mas em relação a si próprio entre o estágio anterior e o que pode ser alcançado. Isto é parte da cultura escolar dinamarquesa.

Há competição no mercado de trabalho? Há. Mas também há uma diferença monstruosa entre as formas de distribuição da renda. Um professor universitário em final de carreira ganha um pouco mais do que uma babá ou do que um pedreiro. Não há a diferença abismal que existe por aqui. O estado ainda continua a ser um estado de bem estar social. Os impostos são altos (no preço de um carro, por exemplo, os impostos são mais ou menos de 150%). E todos pagam os impostos. Deve haver sonegadores por lá também, mas certamente não são como os daqui…

Neste retorno, conversando sobre os altos impostos pagos pelos dinamarqueses, ouvi alguém dizer: “mas lá eles têm retorno, aqui não há retorno algum”. Bom, estamos num círculo vicioso: o devedor de impostos justifica sua sonegação porque os serviços públicos são péssimos; os serviços públicos exigem recursos que não há precisamente porque os sonegadores se recusam a pagar mesmo que passem o valor destes impostos ao custo de seus produtos ou serviços. Esta corrente não será quebrada enquanto não houver uma revolução cultural neste país que inclui desde a destruição do fosso abismal das diferenças na distribuição de renda até o fim da sonegação, dos privilégios (lembremos: o bolsa família consome 28 bi anuais; os subsídios aos empresários custaram 270 bi – dados de 2015) e da corrupção.

Mas o choque vai por conta de outras coisas visíveis por aqui, inexistentes lá: fui ontem ao Mercado Público, caminhei mais ou menos um quilômetro (lá, caminhava diariamente 4 quilômetros) e fui abordado por mais de 5 pedintes, passei por mais de 8 pessoas dormindo na rua! Não consigo naturalizar!

Normalmente a classe média brasileira se espanta com o que aconteceu na Alemanha de Hitler. Impossível a população não ter percebido os desatinos do nazismo, de sua SS e de sua política de extermínio de doentes mentais, de deficientes, de homossexuais, de comunistas e de judeus (eleitos como “os inimigos” da nação como aqui a classe média elegeu como “inimigos da nação” toda uma concepção política defendida pelo PT). Não perceber a miséria crescendo, enxergar pessoas vivendo na rua e considerar isso tudo normal, é tapar os olhos, torna-los cegos como estava cega a população alemã durante o nazismo. Aliás, deste ponto de visa, já vivemos num regime nazi-fascista. Somente nos falta um Hitler, papel que Bolsonaro está disposto a preencher. 

O que será, que será?

Por Cristina de Araújo*

Chega um momento em que a atividade mental começa a transbordar para todos os lados, sai dos limites do trabalho e começa a invadir até os encontros com amigos.

Alguns amigos levam a sério essa ebulição de ideias e conduzem para que a efervescência não cesse.

Alexandre Costa é um desses caros amigos que estimulam, interpelam e promovem espaços para que o pensamento circule.  É, então, aquele que propõe destemidamente o diálogo, que é tomado pela catarse e diz: “É preciso escrever!”.

Eis o suficiente para se encontrar novos portos, outras passagens. E nesse caso, escrever é evocar outros pensamentos, outros interlocutores.

A educação é, para mim, um assunto sobre o qual não apenas penso, mas vivencio. E essa condição permeia meu cotidiano, direciona meu olhar e incita minha postura responsiva. Só me parece possível estar nessa condição, porque estamos em constante deslocamento, assim como se deslocam nossos horizontes. Disso decorre a necessidade de uma vida de encontros, de escolhas e de participação em uma experiência estética que desconhece a isenção ou a indiferença.

É nesse sentido que pretendo fazer minha passagem por esse blog: pensando e escrevendo, já que ninguém mais poderá ver o mundo como apenas eu vejo; pensando e escrevendo, uma vez que a experiência estética torna-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade.

E acima de tudo, minha passagem por esse blog é uma atitude responsiva àquele que é parte constitutiva do sujeito que sou. Desde o início dos anos 1990, é com Geraldi que dialogo. O primeiro deslocamento que ocorre na professora que eu era, em minhas classes de ensino fundamental, decorre de um encontro com O texto na sala de aula. E a palavra de Geraldi – o autor, o professor, o militante – passa a ser um apelo a minha contrapalavra. De Portos de passagem sou lançada a Bakhtin e Foucault, e assim minhas inquietações e minha escritura vão enunciando a ética que me constitui.

Mas, finalmente, Geraldi passa a ser também o Wanderley – o amigo do Alexandre, o blogueiro do Passagens – que abre uma via para que, em seu blog, eu faça minha travessia. E o que penso sobre isso? O que será, que será? Gratidão. Respeito.

* A professora Cristina de Araújo escreverá às segundas-feiras neste Blog.

Domingo com Luiza Neto Jorge

A Casa do Mundo

           Luiza Neto Jorge

Aquilo que às vezes parece

um sinal no rosto

é a casa do mundo

é um armário poderoso

com tecidos sanguíneos guardados

e a sua tribo de portas sensíveis

 

Cheia a teias eróticas. Arca delirante

arca sobre o cheiro a mar de amar.

 

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.

O corredor lembra uma corda suspensa entre

os Pirenéus, as janelas entre faces gregras.

Janelas que cheiram ao ar de fora

à núpcia do ar com a casa ardente.

 

Luzindo cheguei à porta.

Interrompo os objectos de família, atiro-lhes

a porta.

 

Acendo os interruptores, acendo a interrupção,

as novas paisagens têm cabeça, a luz

é uma pintura clara, mais claramente lembro:

uma porta, um armário, aquela casa.

 

Um espelho verde de face oval

é que parece uma lata de conversvas dilatada

com um tubarão a revirar-se no estômago

no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

 

É a casa do mundo:

desaparece em seguida.

(apud. Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra (orgs). Séclo de Ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa do Século XX)

 

 

 

 

Textos sobre textos: O Imperador

Correspondente no exterior, o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski fez reportagens memoráveis, particularmente de guerras no Irã, na Rússia e outros países. Especializou-se em África.

Para além da reportagens destinadas a jornais, ele também trabalhou em textos longos, numa linguagem que o aproxima da literatura, ainda que seus textos continuem jornalísticos. Desta série é Imperium sobre a Rússia. Agora acabo de ler sua longa reportagem sobre a Etiópia, neste O Imperador. Nele o jornalista vasculha os “bastidores do palácio!” nos tempos do imperador Hailé Selassié I, que reinou por 44 anos.

Esta longa reportagem, produzida na segunda metade dos anos 1970 (o imperador morreu em 1975), e publicada na Polônia em 1978, retrata em cores vivas e locais o mundo interno ao palácio, o seu cotidiano, as andanças de serviçais e de dignitários. E o faz a partir da voz daqueles que exerceram funções de serviço dentro do palácio.

Certamente o jornalista enfrentou inúmeras dificuldades para realizar seu projeto, num tempo em que a Fetacha, isto é, a revista de qualquer cidadão poderia ser feita por qualquer outro que, no momento, se investia de autoridade para ver se o revistado portava armas ou era um perigo para a nação.

O interessante deste livro-reportagem é sua construção através das vozes dos informantes. O autor dá a palavra a seus informantes (sempre apresentados com iniciais, provavelmente falsas para dificultar identificações, embora em alguns casos a descrição do trabalho que realizavam para seu amo no palácio poderia aponta-los com certa facilidade). É impressionante como, já morto o Imperador, seus “serviçais” continuam a tratá-lo como um ser vivo e poderoso, usando de expressões de respeito e submissão total à vontade tirana de Hailé Selassié. Nos relatos ainda se respira o medo de errar, o medo de não agradar, o medo de dizer ou não dizer em momentos inadequados. Em palácio, estes homens deviam viver eternamente sob uma pressão enorme para realizarem, às vezes, tarefas que impressionam a nossa cultura. Por exemplo, o encarregado das almofadas que devia colocar uma das 52 almofadas disponíveis aos pés do Imperador quando ele se sentava, para evitar que sua baixa estatura se tornasse evidente ficando o “amo” com as pernas soltas no ar. Ou então aquele que deveria ajoelhar-se diante do Senhor para que ele percebesse que era hora de encerrar a atividade em que estava envolvido para seguir para uma próxima “sessão”.

Chamam atenção, obviamente, estas vozes que falam no livro – o jornalista aparece apenas raramente, sua escrita é marcada graficamente por um tipo de letra diferente, em que nos fornece um discurso relatado abreviando os dizeres de seus informantes.

A fala dos “submissos” funcionários do palácio não desenham um quadro lisonjeiro dos dignitários etíopes de então. Suas rusgas, frustrações, empurra-empurra para estarem próximos do Imperador e serem vistos, tudo isso aparece junto com as formas de tráfico de influência e da corrupção e apropriação do público para o patrimônio de cada dignitário.

É certo que o Imperador foi um tirano. Mas sua tirania correspondia passo a passo ao invertebrado corpo de dignitários que se sujeitavam a tudo para terem as benesses do Senhor.

Há no livro passagens que se aplicam à política brasileira contemporânea. Por exemplo: “… o fato de um ministro estar ou não à altura de suas funções não tinha a menor importância; o essencial era que demonstrasse uma inabalável lealdade ao imperador (p.62).

O Império parecia de ferro, pois nada o abalava. Mas a partir do retorno de um dos agraciados pelo Imperador que foi estudar no exterior e que retorna e assume o governo de uma província, chamado Germame, a solidez das estruturas começa a mostrar suas frinchas. Novidadeiro, estava governando olhando para o povo, o que foi lá – e é aqui no Brasil até hoje – uma afronta aos dignitários. A passagem abaixo é reveladora:

“Após algum tempo, os dignitários de Sidamo voltaram a aparecer, dessa vez acusando Germame de ter passado das medidas: ele estava distribuindo terras improdutivas entre os camponeses, pondo em risco o princípio da propriedade privada no país. Germame revelara-se um comunista, o que era muito grave. Hoje, ele está distribuindo áreas improdutivas, amanhã tirando terras de seus legítimos donos, começa pelas pequenas propriedades, depois se apossa dos bens do império todo! Diante disso, o digníssimo amo não podia mais permanecer em silêncio. Germame foi convocado para a capital e na Hora das Nomeações foi revaixado para o posto de governador do Jijiga, onde poderia distribuir terras à vontade, já que toda a população era nômade.” (p. 80)

Germame liderou uma revolução fracassada. Ele acabou se suicidando. Mas a “semente do mal” já fora lançada nas terras do império…

É na fala de F.U-H. que encontro uma passagem que se aplica como uma luva à classe média brasileira… Naquele tempo, diz o informante, ele era um humilde funcionário do Departamento de Séquitos, que definia a ordem em que dignitários estariam no séquito do monarca quando de suas viagens ou aparições públicas. Segundo este depoimento, a briga era de foice e martelo (para que jamais esqueçamos o símbolo), particularmente na composição das fileiras do meio, isto é, da abominável classe média… Eis o que diz o informante:

“… toda vez que nosso amo tinha uma visita programada ao estrangeiro ou ia deixar Adis-Abeba para distinguir alguma província com sua augusta presença, iniciava-se no palácio um luta sem trégua para participar do séquito imperial. Os combates eram sempre travados em dois assaltos – no primeiro nossos dignitários duelavam para ser incluídos na comitiva; no segundo apenas os vencedores desse primeiro processo eliminatório disputavam entre si a posição mais alta e a mais digna possível no séquito. (…) Tais fileiras eram formadas por membros da família imperial e do Conselho da Coroa (…). Também não enfrentávamos problemas para compor as últimas fileiras do séquito, formadas pelos guarda-costas, cozinheiros, colocadores de almofadas, camareiros, porta-bolsas, carregadores de presentes (…). Mas entre o topo e o fim da fila havia uma vasto campo livre que era objeto de cerradas disputas entre os favoritos da corte. Enquanto isso, nós, os responsáveis pela composição do séquito, vivíamos como se estivéssemos entre duas grandes pedras de moinho, prontos para ser esmagados por uma delas, porque a nossa função era propor nomes aos escalões mais elevados da hierarquia palaciana. Assim, era sobre nós que desabava o desejo daquela multidão de cortesãos, manifestado através de pedidos, ameaças ou lamentos; havia os que nos ofereciam dinheiro, outros nos prometiam montanhas de outro e outros, ainda, nos ameaçavam com denúncias. Por dias a fio os protetores dos favoritos exaltavam as qualidades de seus protegidos, insistindo para que fossem incluídos na lista, fazendo-nos as mais severas ameaças. Essa insistência dos protetores era até compreensível, pois, ao sentirem as pressões vindas de baixo, eles disputavam entre si a honra de conseguir incluir o nome de seu protegido no séquito.”  (73-74). Como se vê, mutatis mutandis, na descrição dos bastidores de um palácio de um tirano temos uma descrição da estrutura social de nosso próprio país.

“Já foi comprovado na prática: um homem exaurido pela fome por toda a vida jamais se rebelará. Lá, no Norte, nunca tinha acontecido um levante. Nenhum dos habitantes jamais elevara a voz ou a mão. Mas basta que um súdito consiga encher a barriga e depois você queira tirar-lhe o prato para ele imediatamente se rebelar. Aí reside a utilidade da fome, no fato de a mente dos homens permanecer exclusivamente focada no pão. Todos os seus pensamentos concentram-se em comida e ele não tem mais cabeça nem disposição para ser tentado pelo prazer da desobediência. Basta ver quem destruiu nosso império. Não foram os que tinham muito nem os que não tinham nada, mas aqueles que tinham apenas um pouco. Sim, sim, é preciso sempre se proteger desses que têm um pouco, pois eles representam a pior e a mais gananciosa das forças – o desejo de ascender.”  (p.129).

O ensinamento de A.A. a propósito da utilidade da fome talvez justifique, por exemplo, a exclusão de mais de milhão de brasileiros do programa Bolsa-Família: o governo atual de Michel Temer está reintroduzindo o Brasil no mapa da fome da ONU. E a fome tem sua utilidade… mas aconteceu o que não deveria ter acontecido na história do país: um momento fora da curva!!! E neste momento alguns chegaram a ter pouco e descobriram que podem ter mais… Agora, retirar-lhe o prato de comida pelo desemprego ou pelo congelamento de recursos para políticas sociais pode levar à revolta… É isto que teme a elite brasileira. É isto que odeiam em Lula e nos governos petistas: já não há os que se submetem a trabalhar por um prato de comida e uma roupa velha!!!

Ler O Imperador nos ensina a história da Etiópia, os ensina a história da tirania e nos ensina a ler a realidade vivida num país como o nosso, onde a elite impera com a mesma ganância dos dignitários do palácio de Hailé Selassié I.

Talvez explique as explicações e justificativas de economistas, juízes e procuradores

O texto abaixo, de André Araújo, precisa ser lido por todos nós. Porque traz explicações às explicações que cansamos de ouvir de economistas e as pretensões que cansamos de denunciar de procuradores e juízes bem formados…

Como retornam a países emergentes alunos de Universidades dos EUA?

DOM, 20/08/2017 – 13:19

Foto: Divulgação

Por André Araújo

Comentário à publicação “Xadrez da influência dos EUA no golpe, por Luís Nassif

A influência americana sobre corações e mentes não se dá por um plano estruturado de determinado governo ou Presidência, e sim por um sistema de atração intelectual que vem dos anos 20, com o cinema e a disseminação do “american way of life”, como sendo o modo mais elevado de vida na Terra. Esse “imã” atrator funciona em qualquer governo americano, Democrata ou Republicano, é automático e os países emergentes caem na rede da aranha como insetos, sentem uma atração inexplicável para cair nessa rede, uma espécie de néctar: os induz a ser catequizados.

O sistema influencia muito mais as pessoas de origem simples, não influencia as pessoas de elite, que são, em geral, criticas do “american way of life”, motivo de piadas nas altas rodas do mundo. Sobre mentes simples, o sistema produz um efeito religioso e os convertidos passam a agir como americanos, sem uma visão crítica dos muitos defeitos do “american way of life”, um modelo de vida que tem pontos positivos e muitos, cada vez mais, pontos negativos.

A grande arma são os “cursos e treinamentos’ nos EUA. Há um aproveitamento bom nos cursos de Ciências Exatas e muito ruim nas Ciências Humanas, especialmente Economia e Direito. Os economistas formados nos EUA são devastadores para os países que lhes enviaram, economia é uma ciência que exige compreensão histórica de alto nivel, o método americano de ensino de economia dava (hoje já está mudando) maior valor a formulas matematizadas e padrões fixos, formando viés para os que  retornam com a cabeça cheia de padrões, que podem ser lógicos na economia americana, mas são estranhos nas economias emergentes. 

E os que fazem Direito para uso no mundo corporativo privado pensam viver em função de multinacionais, único universo onde o aprendizado se aplica, especialmente na área de contratos, os cursos LLM atraem brasileios que forçosamente se convertem ao “ethos” cultural subliminar dos EUA. Mas o mais grave de todos esses treinamentos é quando o aluno vem e volta para o Direito Público, aí o ensino americano é trágico para o País que mandou o aluno. E o pior é que o Estado geralmente paga esse custoso treinamento, após o qual o “treinado” passa a operar dentro da “teia” de relacionamentos e influência cultural do sistema americano, que é COMPLETAMENTE diferente do sólido e muito mais profundo sistema jurídico brasileiro, baseado no direito romano e no sistema de direito positivo do Código Napoleão, mais sofisticado do que o “Common Law” anglo-americano.

No caso dos economistas, a devastação causada nos países emergentes é lendária, países foram destruídos por esses economistas, que voltam totalmente “lavados” pelos seus mestres e sem a capacidade de fazer adaptações críticas a seus países. Passam a ser críticos de tudo o que existe e acontece em seus locais de origem, querem empurrar reformas à força para chegar o mais perto possivel do que aprenderam, e o padrão de tudo passa a ser o modelo que lhes carimbaram na cabeça. O pior é que muitos desses convertidos fazem cursos pagos pelo Estado brasileiro.

Essa atração pela matriz é impressionante. Um caso emblemático foram os últimos dois capitães da equipe econômica do Governo Dilma: Joaquim Levy e Alexandre Tombini. O primeiro Ministro da Fazenda e o segundo Presidente do Banco Central, um governo de esquerda e que se presume que deveria ter comandantes com uma visão nacional. Ambos deixaram seus cargos e imediatamente foram morar e trabalhar aonde: nos Estados Unidos, impressionante.

As equipes econômicas desde o Plano Real se encaixam nesse padrão inteiramente americanizado no pior sentido do termo. Presume-se (é falso) que os “mercados” só aceitam economistas deste perfil. Na verdade, os mercados aceitam qualquer coisa, eles sempre se adaptam, até em guerras e revoluções. Delfim Neto jamais teve esse perfil e comandava o mercado, é uma questão de personalidade e postura. Um País não precisa ser subserviente para ser respeitado pelos mercados, os comandantes das economias da Russia, India e China não têm perfil “americanizado” e são respeitados pelo que são seus países, como potências econômicas.

O livro clássico de Maria Rita Loureiro “Economistas no Governo” explora esse filão da americanização da politica econômica brasileira, é essa a maior devastação da colonização cultural que, depois disso, atravessou a ponte e passou a contaminar também o Direito, área tradicionalmente nacional na História brasileira, hoje também colonizada.

Os EUA souberam vender muito bem seus “cursos” para brasileiros basbaques, o Brasil é o País que mais manda alunos para universidades americanas. Atualmente, 220.000 grandes universidades americanas tem escritórios em São Paulo para atrair alunos-clientes. O Estado brasileiro chegou a pagar, em um mesmo ano, 10.000 cursos no exterior, alguns desses poderes “autônomos” pagam seus membros para cursos infindáveis, um emendado no outro. Pagam o curso e mantêm o emprego e salário no Brasil, assim os alunos voltam catequizados contra o Estado que lhes pagou o curso.