por João Wanderley Geraldi | set 28, 2017 | Blog
Estamos em tempos de implementação da Reforma do Ensino Médio, vendida ao Congresso como algo inadiável: foi encaminhada como Medida Provisória, dada a urgência. Mas o próprio texto, agora lei, prevê que teremos cinco anos para realizá-la. E mesmo assim, não serão atingidos os objetivos a que se propôs, pois os prazos de algumas alterações previstas são mais largos do que estes cinco anos. São as urgências deste governo que precisa mostrar serviço de uma ou de outra forma, ainda que as verdadeiras urgências, que o assolam, sejam as negociatas para arquivar processos de investigação que envolvem o presidente usurpador e seus auxiliares mais próximos.
Já em outubro de 2016 o MEC cria e normatiza o Programa de Fomento à Implementação da Escola de Tempo Integral (Portaria 1.145, de 10.10.2016), para ir agilizando a concretização da reforma, então ainda uma Medida Provisória. O programa – EMTI – recebe nova regulamentação através da Portaria 727, de 13.06.2017.
Como sabemos pela propaganda maciça, o chamado “novo ensino médio” permitirá ao aluno que escolha seu “itinerário de formação”, elencando a lei os seguintes caminhos: 1. Linguagens e suas tecnologias; 2. Matemática e suas tecnologias; 3. Ciências da natureza e suas tecnologias; 4. Ciências humanas e sociais aplicadas; 5. Formação técnino-profissional. Como as escolas não são obrigadas a oferecerem todos os itinerários, na verdade o estudante optará por um deles dentre os oferecidos por sua escola.
Considerando que a formação técnico-profissional demanda recursos inexistentes e jamais aplicados na educação, para a instalação de laboratórios e oficinas, e considerando que os sistemas de ensino não dispõem nem de material físico nem de professores especializados, já se sabe que as ofertas excluíram, por razões óbvias, precisamente a formação profissional tão cantada no marketing do MEC nas televisões brasileiras.
A tentativa de tornar o ensino médio profissionalizante, no Brasil, não é nenhuma novidade: esteve no ideário da primeira república; reapareceu no Estado Novo (Reforma Capanema); foi imposta na ditadura militar pela lei 5692/71 e retorna agora à ordem do dia. A inspiração e as constantes retomadas destas ideias se devem particularmente ao fato de que inúmeros países têm um sistema dual: os estudantes são encaminhados pelo próprio sistema ora para a formação propedêutica visando o ensino superior, ora para a formação profissional. Em alguns países o sistema é tão dual que estudantes que foram encaminhados para a formação técnico-profissional, terminado o curso, não podem acessar ao ensino superior. Nestas sociedades, no entanto, há duas diferenças essenciais: a educação é realmente uma prioridade e há recursos para uma boa formação profissional e, em segundo lugar, o técnico é bem pago no mercado de trabalho, com salários muito próximos daqueles dos profissionais com curso superior. As diferenças não são escandalosas como as existentes no Brasil. Mas mudar esta cultura de desvalorização do trabalho manual, em benefício do trabalho intelectual de controle e comando, está a anos-luz dos interesses do sistema econômico. Por isso, o faz de conta da formação ajuda: como não são bons técnicos (porque a escola não tem infraestrutura para formá-los), não precisam receber bons salários.
As tentativas anteriores falharam e há duas razões fundamentais para isso: 1. Inexistência de recursos para equipar as escolas e estas poderem oferecer efetivamente uma formação técnica de alto valor ou ao menos em valor equivalente às escolas do Sistema S e às antigas escolas técnicas federais; 2. A desvalorização do técnico no nosso mercado de trabalho.
Mantidas estas condições – de infraestrutura e de desvalorização salarial – a nova tentativa introduzida como novidade (como disse Cazuza, “um museu de grandes novidades”) fracassará. Enquanto a consciência do fracasso não vier, muito tempo será gasto discutindo a implantação da “novidade”.
Todos somos a favor de uma escola de Tempo Integral que vise a formação integral das crianças, dos adolescentes e dos jovens brasileiros. A reforma, no entanto, quer implantar o tempo integral não visando a formação integral (até os temas transversais que poderiam integrar disciplinas desapareceram da BNCC do ensino fundamental e não reaparecerão no ensino médio). Trata-se de proporcionar uma formação focada num dos itinerários. Afastada a “ideologia da formação integral” que tem por objetivo último a formação da cidadania (aliás, o projeto de uma Escola Sem Partido está aí na ordem do dia para realizar tamanha tarefa), restarão os estreitos limites impostos por cada um dos itinerários!!! Uma especialização antes da hora. Ou pelos limites da formação profissional: a lei prevê inclusive que as disciplinas que compõem o ensino básico no nível médio tem um limite máximo de carga horária total de 1.800 horas. Não especificando o mínimo exigido, um curso profissional poderá ter uma carga qualquer nas diferentes áreas do conhecimento científico, para centrar a atenção na especialidade profissional: há que aprender a apertar parafusos… É preciso ter claro que há uma distância enorme entre tempo integral e formação integral (esta pode até ser dada sem que haja regime de tempo integral, embora este fosse desejável)
Pois graças ao programa de fomento do tempo integral, eis que os Estados estão implantando o regime em suas escolas, pois o canto de sereia de recursos a mãos cheias encanta as Secretarias Estaduais de Educação. Esquecem que na Portaria 727, de 13.06.2017, o segundo parágrafo do artigo 28 diz: “Os repasses às SEE será calculado anualmente, segundo disponibilidade orçamentária”. Ora, com o congelamento de gastos em educação para os próximos 20 anos, feito pelo governo, permitirá folga orçamentária para financiar o tempo integral das escolas de ensino médio?
A SEE de Sergipe está lutando com unhas e dentes para impor o tempo integral mesmo quando a comunidade escolar – estudantes, professores e pais – se manifestam contrários ao regime! E faz mais esta Secretaria: seleciona professores para o regime de tempo integral, oferece-lhe vantagens – uma gratificação de 100% sobre o salário ou a unificação numa mesma escola de seu duplo vínculo (uma excrecência história do Estado, que permite a professores terem duplo contrato de 40 horas semanais, que obviamente não podem ser cumpridas, pois ninguém cumpre uma carga horária (que não precisa ser de horas-aula) de 80 horas por semana!). E vai mais longe: como a implantação está sendo no primeiro ano de algumas escolas, estabeleceram-se diferenças dentro de uma mesma unidade escolar: os professores do regime de tempo integral tem tempo integral na escola, mas tem pouquíssimas aulas para ministrar porque somente dão aulas aos alunos do primeiro ano. Uma cisão interna na categoria dos professores. Mas vai além: há salas de professores distintas, uma para os “integrais” e outra para os outros, os “desnatados” (estes apelidos são correntes entre os professores da rede estadual de Sergipe) e, pasmem!, até a alimentação escolar é diferente para uns e para outros!!! Trata-se, simplesmente, de um escândalo!
No entanto, as escolas não preenchem as condições de infraestrutura exigidas pelas normas para sua inclusão no programa EMTI. Mas isso pouco importa a esta – e provavelmente a outras secretarias estaduais. Estão de olhos gordos nas verbas… que provavelmente não virão. Quando a MP da reforma indicou um valor a ser gasto para torná-la – 1.500 bi de reais – esqueceu de dizer de onde sairão estes recursos, já que a correção do orçamento do MEC será apenas aquela da inflação, e estes recursos não davam conta do que existia antes das escolas de tempo integral!!! Sabe-se, no entanto, que o governo está correndo atrás de um empréstimo de 250 milhões para fazer frente a estas despesas. Se obtiver o empréstimo, Henrique Meirelles estaria disposto a aplicar tanto dinheiro na educação, tendo um rombo para cobrir??? Se fosse outro o governo, diriam que é irresponsabilidade fiscal!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Em suma: a reforma do ensino médio é um engodo e só a engole quem quer engolir. Acham que os pais que pagam um rio de dinheiro nas escolas particulares vão aceitar que seus filhos façam uma formação “focada” num dos itinerários e fiquem despreparados para enfrentar as exigências dos cursos superiores? Nem brincando!!! Mas a lei é para todos e a classe média ainda não descobriu que está elogiando o sapo que seus filhos terão de engolir!
por João Wanderley Geraldi | set 22, 2017 | Blog
Nota introdutória
Este texto foi escrito para uma mesa-redonda realizada na Conferência Brasileira de Educação, II CBE, ocorrida em Belo Horizonte em 1982. Infelizmente as Conferências desapareceram depois da IV edição. Este é meu segundo texto publicado em que me voltei para o ensino de língua portuguesa. Havia escrito antes, como trabalho de conclusão de uma disciplina de Linguística Aplicada que frequentei no começo de meu doutoramento, em 1981, um texto mais longo que acabou sendo publicado no mesmo ano pela Fidene (Subsídios metodológicos para o ensino de língua portuguesa – 5a. a 8a. séries. Cadernos da FIDENE 18, Ijuí, Fidene, 1981, 70p.). Este Caderno é minha primeira publicação sobre o ensino da língua e o artigo que publico aqui foi uma espécie de síntese daquele Caderno. O convite para participar da mesa-redonda sobre práticas docentes veio como surpresa. No ano seguinte, telefonam-me da revista ANDE pedindo autorização para a publicação do texto. Foi publicado em ANDE, ano 1, n. 4, 1982, p. 52-56. Esta publicação se constitui no primeiro texto sobre o tema que publiquei em revista de circulação nacional. Mais tarde, este texto comporá, com modificações, dois capítulos do livro “O Texto na Sala de Aula”. Mantenho aqui a terminologia própria da época, e o número de anos escolares então vigentes no chamado 1º. grau.
O leitor notará também que o proposto para a então 8ª. série é hoje muito mais própria ao ensino médio. É que nos anos 1980 ainda prevalecia uma realidade social em que a escolaridade da maioria da população se encerrava nestes oito anos. E havia milhares de crianças e adolescentes fora da escola! Grande parte das escolas, particularmente as situadas nos campo, encerrava a escolaridade de seus alunos na 4ª. série, ou seja, no antigo primário!
Sobre a publicação deste texto na revista ANDE, não posso deixar de registrar que na época, obviamente, não faltou a maldade acadêmica: este texto somente teria sido publicado porque citei nominalmente Guiomar Namo de Mello, então uma das diretoras executivas da revista.
Mas, sobretudo, entre linguistas, o texto não tinha qualquer valor. Por muitos anos, a partir de então, convivi com este olhar de que estava me ocupando com coisas menores (certamente por causa da forma de tratamento que eu dava ao tema, já que sobre o ensino da língua, à época, escreveram textos os professores Rodolfo Ilari e Carlos Franchi, mas sempre como algo marginal à pesquisa séria em Linguística). Gostaria de registrar também aqui que num evento em que participei com uma colega de outra universidade que escreveu um livro sobre alfabetização, ouvi surpreendido que todos nós, linguistas, deveríamos escrever um texto sobre esta questão menor para os estudos da linguagem, para justificar socialmente nosso investimento nos estudos – no caso da professora – em fonologia gerativa da língua latina.
Somente bem mais tarde surgirá na Unicamp o Departamento de Linguística Aplicada (ao qual não pertenci, porque quando fui consultar alguns de seus membros que me eram mais próximos sobre a possibilidade de minha transferência para a Linguística Aplicada, fui desencorajado porque jamais seria aceito naquele Departamento). Somente depois de muitos anos trabalhando na Unicamp, ofereci uma vez e somente uma vez, uma disciplina eletiva sobre o ensino de língua portuguesa. Mas consegui, na abertura do curso noturno de Letras, incluir na grade curricular uma disciplina a cargo do Departamento de Linguística: Linguística e Ensino. Não tenho a menor ideia sobre a permanência ou não desta disciplina no currículo atual.
Possíveis Alternativas para o ensino da Língua Portuguesa
“Pode-se tratar a queda de uma telha como um problema dinâmico, formulando hipóteses teóricas alternativas e debatendo a adequação destas últimas. É uma abordagem legítima, mas não é a melhor do ponto de vista de quem está embaixo.” (Rodolfo Ilari)
Introdução
No inventário das deficiências que podem ser apontadas como resultados do que já nos habituamos a chamar de “crise do sistema educacional brasileiro”, ocupa lugar privilegiado o baixo nível de desemprenho linguístico demonstrado por estudantes na utilização da língua que na modalidade oral, quer na modalidade escrita. Não falta quem diga que a juventude de hoje não consegue expressar seu pensamento; que, estando a humanidade na “era da comunicação”, há uma incapacidade generalizada de articular um juízo e estrutura linguisticamente uma sentença. E para comprovar tais afirmações, os exemplos são abundantes: as redações de vestibulandos, o vocabulário da gíria jovem, o baixo nível de leitura comprovável facilmente pela baixa tiragem de nossos jornais, revistas, obras de ficção, etc..
Apesar do ranço de muitas destas afirmativas e dos equívocos de algumas explicações que têm sido dadas aos fatos, é necessário reconhecer neles um fracasso da escola e, no interior desta, do ensino de língua portuguesa tal como vem sendo praticado na quase totalidade de nossas aulas.
Reconhecer e mesmo compartilhar com os alunos tal fracasso não significa, em absoluto, responsabilizar o professor pelos resultados insatisfatórios de seu ensino. Todos nós sabemos e vivemos as condições de trabalho do professor, especialmente do professor de 1º e 2º graus. Mais ainda, sabemos que a educação “tem sido muitas vezes relegada à inércia administrativa, a professores mal pagos e mal remunerados, a verbas escassas e aplicadas com tal falta de racionalidade que nem mesmo a ‘lógica”’ do sistema poderia explicar” (Mello, 1979).
Aceitando, com a mesma autora, a “premissa de que apenas a igualdade social e econômica garante a igualdade de condições para ter acesso aos benefícios educacionais”, acreditamos também que é no interior das contradições que se presentificam na prática efetiva de sala de aula que se poderá buscar um espaço de atuação profissional em que se delineie um fazer agora, na escola que temos, alguma coisa que nos aproxime da escola que queremos, mas que depende de determinantes externas aos limites da ação da própria escola.
Neste sentido, as questões e sugestões deste trabalho pretendem se colocar no interior da terceira opção apontada pela Profa. Maria Umbelina C. Salgado, procurando fugir tanto da receita quanto da denúncia, apesar dos perigos resultantes da complexidade do tema: ensino da língua materna.
Ensino da língua ou ensino da metalinguagem?
Antes de qualquer consideração especificamente sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria da compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula.
Assim, os conteúdos ensinados, o enfoque que se dá a estes conteúdos, as estratégias de trabalho com os alunos, a bibliografia utilizada, o sistema de avaliação, o relacionamento com os alunos, tudo isto corresponderá, nas nossas atividades concretas de sala de aula, ao caminho por que optamos. Em geral, quando se fala em ensino, uma questão que é prévia – para que ensinamos o que ensinamos? – é esquecida em benefício de discussões sobre o como, o quando, o que ensinar. No entanto, a resposta ao “para quê?” que dará as diretrizes básicas das respostas às demais questões.
No caso do ensino de língua portuguesa, uma resposta ao “para quê?” envolve tanto uma concepção de linguagem quanto uma postura em relação à educação. Uma e outra se fazem presentes na articulação metodológica. Por isso são questões prévias. Esperamos que a postura quanto à educação transpareça no decorrer deste texto. Uma p0alavra, porém, se faz necessária a respeito da concepção de linguagem, apesar dos riscos da generalização apressada.
Fundamentalmente, três concepções podem ser apontadas:
- a linguagem é expressão do pensamento que faz pensar na existência de uma outra linguagem, própria do pensar, que se traduz pela linguagem comum. Esta concepção ilumina, basicamente, os estudos tradicionais. Se concebemos a linguagem como tal, somos levados a afirmações – correntes – de que pessoas que não conseguem se expressar linguisticamente não pensam;
- a linguagem é instrumento de comunicação: esta concepção está ligada à teoria da comunicação e vê a língua como código (um conjunto de signos que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor uma certa mensagem. Em livros didáticos, esta é a concepção confessada nas instruções ao professor, nas introduções, nos títulos, embora em geral seja abandonada nos exercícios gramaticais;
- a linguagem é uma forma de ação: mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Através dela o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria praticar a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não p-ré-existiam à sua fala. Como tal, a língua só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na interlocução, e é no interior de seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal jogo.
Procurando nos situar no interior desta terceira concepção de linguagem, somos forçados a uma posição, em sala de aula, quanto às variações linguísticas. Referimo-nos ao problema enfrentado cotidianamente pelo professor das variedades linguísticas, quer regionais, quer sociais. Afinal, dadas as diferenças linguísticas e dado que sabemos, hoje, por menor que seja a nossa formação, que tais variedades correspondem a distintas gramáticas, como agir no ensino?
Parece-nos que um pouco da resposta à perplexidade de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estão envolvidos com o sistema escolar, em relação ao baixo nível de ensino contemporâneo, pode ser buscada no fato de que a escola de hoje não recebe apenas alunos provenientes das camadas mais beneficiadas da população. A democratização da escola, ainda que falsa, trouxe em seu bojo outra clientela, e com ela diferenças dialetais bastante acentuadas. De repente, não damos aulas só para aqueles que pertencem a nosso grupo social. Representantes de outros grupos estão sentados nos bancos escolares. E eles falam diferente.
Sabemos que a forma de fala que foi elevada à categoria de língua nada tem a ver com a qualidade intrínseca desta forma. Fatos históricos (econômicos e políticos) determinaram a
“eleição“ de uma forma como a língua portuguesa. As demais formas de falar, que não correspondem à forma “eleita”, são todas postas num mesmo saco e qualificadas como “erradas”, “deselegantes”, etc. Entretanto, “uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais. Esta afirmação é válida, evidentemente, em termos “internos“, quando confrontamos variedades de uma mesma língua, e em termos “externos” pelo prestígio das línguas no plano internacional.” (Gnerre, 1978)
Dada a situação de fato em que estamos, qual poderia ser a atitude do professor de língua portuguesa? A separação entre a forma de fala de seus alunos e a variedade linguística considerada “padrão” é evidente. Sabendo-se que esta resulta de uma imposição social, desclassificando os demais falares e dialetos, a postura do professor em relação às formas de fala de seus alunos poderá aprofundar ainda mais o sentimento de que “falamos errado”.
Por outro lado, a simples valorização das formas dialetais consideradas não-cultas, mas linguisticamente válidas, tomando-as como o objeto do processo de ensino, é desconhecer que “a começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder.” (Gnerre, 1978)
Como saída prática, nos parece que cabe ao professor de língua portuguesa ter presente que as atividades de ensino deveriam oportunizar a seus alunos o domínio de uma outra forma de falar (a padrão) sem que isto signifique a depreciação ou abandono da forma de falar de seu grupo social.
É preciso romper com o bloqueio de acesso ao poder, e a linguagem é um de seus caminhos. Se ela serve para bloquear – e disto ninguém duvida – também serve para romper o bloqueio. Não estou com isso querendo dizer que através das aulas de língua portuguesa se processará a modificação da estrutura social. Estou, tão só e unicamente, querendo dizer que o princípio de que “não se comunica se trumbica” não pode servir de fundamento de nosso ensino: afinal, nossos alunos se comunicam em seu dialeto, mas têm se “trumbicado” que não é fácil…
A opção de um ensino de língua considerando as relações humanas que ela perpassa (concebendo a linguagem como lugar de um processo de interação) a partir do ponto de vista de que na escola se deveria oportunizar o domínio de mais outra forma de expressão influenciará no “o que” vamos ensinar. Isto nos leva à dicotomia ensino da língua/ensino da metalinguagem.
Uma coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados adequados aos diversos contextos, percebendo as diferenças entre uma e outra forma de exp0rssão. Outra coisa é saber analisar uma língua, dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua.
Entre estes dois tipos de atividades, é preciso optar pelo predomínio de um ou outro. Tradicionalmente, prevaleceu o ensino da descrição linguística; nos manuais didáticos mais modernos substituiu-se tal descrição pela teoria da comunicação e os alunos de hoje sabem o que é emissor, receptor, canal, etc. Isto é, substituiu-se uma metalinguagem por outra.
Parece-nos que, para o ensino de primeiro grau, as atividades deveriam girar em torno do ensino da língua e apenas subsidiariamente deverão apelar para a metalinguagem de análise da língua, sem a preocupação em descrever a língua.
Práticas no ensino da língua
A partir das perspectivas expostas, consideramos como unidades básicas do ensino da língua três tipos de práticas: a prática da leitura de textos; a prática da produção de textos e a prática da análise linguística.
Prática da leitura de textos
Esta prática envolveria dois tipos de textos e dois níveis de profundidade: a) a leitura de narrativas longas (romances, novelas e peças teatrais) e b) a leitura de textos curtos (crônicas, notícias, contos, reportagens, etc.).
Para a prática de leitura de narrativas longas destinar-se-ia um período de auloa por semana. Embora alguns teóricos da literatura considerem o enredo como algo não fundamental na obra literária, para esta atividade nos parece importante precisamente o enredo: ´o enredo que enreda o leitor. Por isso, a seleção de romances e novelas e não de obras de “narrativas curtas”. Selecionados os romances para esta atividade (títulos diferentes na proporção do número de alunos de cada turma), na primeira aula em que as obras estiverem disponíveis os alunos escolherão um ou dois livros pra a sua leitura individual, que se iniciará na própria aula, podendo continuar fora da classe se os livros puderem ser levados para casa pelo aluno.
Antes da escolha dos alunos, o professor poderá explicar como será desenvolvida a atividade e como ela será avaliada. Em princípio, nenhuma cobrança. O que se busca é desenvolver o hábito de leitura e não a capacidade de análise literária. Por isso, não se deve tornar o ato de leitura num martírio para o aluno que, ao final, terá que preencher fichas de leitura, roteiros ou coisas parecidas. Bastará a leitura e terminada esta, o sistema de rodízio entre colegas funcionaria.
A avaliação, já que necessária, incidirá apenas no aspecto quantitativo. A experiência de aplicação desta proposta tem demonstrado que é possível estabelecer os seguintes critérios quantitativos:
Ao final do Quantidade
1º. Bim. 2
2º. Bim. 5
3º. Bim. 8
4º. Bim. 10
de tal sorte que ao final do ano letivo cada aluno terá lido no mínimo dez romances ou novelas. Considerando a aplicação da proposta nos quatro anos finais do fundamental, ao final cada aluno terá lido no mínimo 40 obras de ficção, o que lhe permitirá efetivamente realizar estudos de literatura durante o segundo grau.
Quanto à leitura de textos curtos, atividade a ser desenvolvida em grande grupo por professores e alunos, exigir-se-á maior nível de profundidade, correspondendo ao que comumente tem sido chamado de interpretação de textos, com uma diferença: o texto servirá de pretexto para a produção de novos textos pelos alunos. Assim, um texto será o primeiro passo para o exercício de produção. Quanto aos assuntos, eles estarão ligados aos temas propostos como básicos para cada séria na prática de produção de textos.
Prática de produção de textos
O exercício de redação, na escola, tem sido um martírio não só para os alunos mas também para os professores. Os temas propostos têm se repetido de ano para ano, e o aluno que for suficientemente “vivo” perceberá isto e, se quiser, poderá guardar redações feitas na 5ª. série pra novamente entregar ao professor de 6ª. série na época oportuna: no início do ano “Minhas Férias”; em maio, “O dia das mães”; em junho, “As festas juninas”; em setembro, “A semana da Pátria”,etc. Tais temas, além de insípidos, são repetidos todos os anos de tal modo que uma criança de 6ª. série passa a pensar que só se escreve sobre estas coisas.
É preciso lembrar ainda que a produção de textos na escola foge totalmente ao sentido de uso da língua: os alunos escrevem para o professor (seu único leitor). A situação de emprego da língua é, pois, fictícia. Afinal, qual a graça em escrever um texto que não será lido por ninguém ou que será lido apenas para ser corrigido?
Para fugir de tal ficção, propomos que os textos produzidos em aula tenham outro destino. E deste destino os alunos devem tomar conhecimento no início do ano letivo:
para os textos produzidos na 5ª. série: a publicação, mimeografada, de uma antologia dos histórias produzidas em aula;
para os textos produzidos na 6ª. série: como na série anterior, a organização de uma antologia de textos ou a organização de um jornal mural da classe;
para os textos produzidos na 7ª. série: organização de um jornal mimeografado na escola, com circulação mensal;
para os textos produzidos na 8ª. série: a publicação no jornal da cidade (quando interiorana) ou a publicação no jornal da escola.
5ª. série
Nesta série, a atividade de produção incidirá basicamente sobre o texto narrativo, ou seja, os alunos escreverão histórias. Um aluno, a quem previamente o professor solicitou que pedisse a seus pais, tios, avós, etc. que lhe contassem uma história em casa, contará tal história para a classe. Ouvida a história, toda a classe passaria a escrevê-la. Assim, não se coloca a criança perante o dilema: é preciso fazer uma redação e não sei o que dizer. Em vez de colocarmos o aluno perante duas dificuldades (criar e escrever), terá apenas uma: escrever.
A cada semana, um novo aluno, uma nova história. Ao final do ano letivo o professor disporá não só de uma antologia de histórias… Saberá, também, quais são as histórias que os pais, avós, etc. contam a seus alunos. Saberá, portanto, um pouco mais da realidade do local onde está situada a sua escola. Dois aspectos são importantes nesta atividade: a) ao tomar como temas de redações dos alunos histórias familiares, foge-se ao autoritarismo pedagógico do professor. Afinal, ele também entrará na sala de aula para ouvir uma história que desconhece; b) o tempo disponível depois da atividade de produção poderá ser aproveitado para discussões sobre a história, tomando algum de seus temas.
Entremeados a tal tipo de atividade de produção, pode-se pensar em produzir textos não narrativos, tais como formulação de regras de jogos (textos normativos) e correspondência familiar a ser realmente remetida para amigos ou parentes distantes.
6ª. série
Nesta série, além da produção de textos na linha metodológica proposta para a série anterior, a introdução para o exercício de redação se dará através da leitura, interpretação e discussão de textos “curtos”, cuja temática seria a história do Brasil e o noticiário da imprensa.
Metodologicamente, a aula partirá agora do texto escrito para a discussão oral, finalizando novamente em texto escrito, desta feita de produção dos próprios alunos. Os debates orais, tal como aconteceram na série anterior, incidirão sobre o porquê dos fatos, procurando-se levar os alunos a expressá-los também em seus textos escritos.
7ª. série
Permanecerá a linha apontada na série anterior: do texto escrito utilizado como pretexto para a discussão e, posteriormente, pra a produção de novo texto sobre a mesma temática.
Centraria os temas em comentários, editoriais, reportagens (inicialmente curtas) de um lado, e de outro lado em textos de ficção: lendas e contos.
8ª. série
Temática: economia, política e sociedade. É hora também da página policial e principalmente do porquê da página policial. Temas como partidos políticos: o que são, porque existem, quais as diferenças. Na literatura, além dos gêneros já trabalhados, incluir a poesia.
Nesta série, o problema essencial a ser desenvolvido é no interior do porquê, ou seja, a argumentação, coerente e adequada, será a base de todo o trabalho de leitura, discussão e produção de textos.
Como se pode notar, a proposta parte da narrativa (histórias familiares) para a dissertação, e em todos os momentos a temática provém de fatos mais ou menos conhecidos da classe. Apenas na 8ª. série o processo de construção do texto dissertativo se completa.
A avaliação do trabalho se baseará no processo: a comparação entre os primeiros textos produzidos e os últimos é que dará o parâmetro para a atribuição de um conceito.
Prática da análise linguística
Antes de mais nada, algumas considerações de ordem geral sobre este tipo de atividades:
– a análise linguística que se pretende partirá não do texto bem escrito do bom autor selecionado pelo livro didático. Ao contrário, o ensino gramatical somente tem sentido se for auxiliar o aluno no domínio de mais uma forma de expressão. Assim, a prática de análise linguística será realizada com base nos textos produzidos pelos próprios alunos da turma;
– a preparação das aulas de prática de análise linguística será a própria leitura das redações produzidas pelo aluno nas aulas de produção de textos;
– para cada aula de prática de análise linguística, o professor selecionará apenas um problema. De nada adianta querermos enfrentar todos os problemas que podem acontecer num texto relativos à falta de domínio da língua padrão;
– fundamentalmente, a prática de análise linguística terminaria com a reescrita, em algum aspecto, do texto produzido anteriormente;
– o fundamenta esta prática o “partir do ‘erro’ para a auto-correção”.
Dadas estas condições iniciais, válidas para a prática da análise linguística em qualquer das quatro séries a que estamos nos referindo neste trabalho, é possível estabelecer um conjunto de problemas mais frequentes em textos produzidos pelos alunos, embora cada professor tenha condições (e é o único que está em condições) de diagnosticar os problemas que precisam ser enfrentados.
Considerando a variação do tipo de textos produzidos nas diferentes séries, também os problemas a serem enfrentados serão diferentes. Apenas a título de exemplificação, apontaremos alguns destes problemas:
Problemas de ordem textual
– a narração contém respostas às questões: quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê?
– a sequenciação dos acontecimentos correspondem à história narrada? O que está faltando é importante? Torna a sequência inteligível?
– alterações do ponto de vista do narrador;
– passagem do discurso direto para o indireto e vice-versa;
– a argumentação é coerente?
– a conclusão decorre dos argumentos apresentados?
Problemas de ordem estilística
– transformações simples de oração;
– reescrita de parágrafos;
– emprego de anafóricos, dêiticos, etc.
Problemas de ordem sintática
– problemas de concordância verbal e nominal;
– problemas de regência;
– emprego de pronomes relativos;
– emprego de modos verbais.
Problemas de ordem morfológica
– adequação vocabular;
– conjugação verbal;
– formação do plural e do feminino.
Problemas de ordem fonológica
– ortografia;
– acentuação gráfica;
– divisão silábica.
Esta listagem se pretende apenas ilustrativa. Na prática de análise linguística importa considerar um conjunto ordenado de problemas e somente interessa estudá-los se se manifestarem nos textos produzidos pelos alunos. De nada adianta o estudo de todos os modos e tempos de verbos regulares e irregulares se o problema de nossos alunos, sem eus textos escritos (e portanto no domínio de uma das modalidades da linguagem) forem outros.
As sugestões aqui registradas são apenas indicações de alternativas para uma didática do ensino da língua. É claro que os professores, dada a situação real de ensino, poderá estabelecer outro tipo de atividade e outras questões. A única coisa que nos parece essencial na prática de análise linguística é a substituição do trabalho com metalinguagem pelo trabalho produtivo de correção e auto-correção de textos produzidos pelos próprios alunos.
Esperamos que o debate deste texto possa servir para uma re-definição do ensino da língua portuguesa. Se as colocações aqui feitas servirem para testes, modificações e complementações a partir da prática efetiva de ensino no interior da sala de aula, este texto terá comprido sua finalidade.
Referências bibliográficas
Gnerre, M. “Linguagem e poder”. Subsídios à proposta curricular de Língua Portuguesa. Vol. IV, Sec. Educação, São Paulo, 1978.
Mello, G. N. “Fatores intra-escolares como mecanismo de seletividade no ensino de 1º. Grau”. Educação & Sociedade, 2:70-77, 1979.
Salgado, M.U.C. “O papel da didática na formação do professor”. In. ANDE, ano 1, número 4, 1982.
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