por João Wanderley Geraldi | out 13, 2017 | Blog
A decisão do STF, em votação apertada, de 6 x 5, que devolveu o mandato ao senador Aécio Neves, mais conhecido como Aécim, ficará para a história não pelo placar apertado, mas pelos votos dos senhores ministros e pela confirmação de que se constrói a maioria da Corte com olhos bem abertos, dependendo do cliente!
E neste caso, o cliente era um senador do PSDB. E com tucanos, o STF toma precauções na aplicação das leis, segundo os ventos. Quando foi decretada a prisão de Delcídio do Amaral, inventou-se o “flagrante continuado” porque se dispunham de fitas gravadas de uma reunião em que o senador tentava convencer familiar de Cerveró para que o dito cujo não fizesse acordo de delação premiada. Não havia flagrante, como prevê a Constituição, então apareceu o conceito de “flagrante continuado”. E um Jorge Viana, senador petista do Acre, não apareceu na tribuna, furibundo, reclamando dos atropelos sobre o poder legislativo.
Quando Joesley Batista entregou as fitas de gravação do pedido de 2 milhões feito por Aécio Neves, ao mesmo tempo em que indicava o portador da dinheirama e o ameaçava de morte se viesse a delatar, e quando todos assistimos ao edificante filminho da entrega da mala ao portador e quando o rastreamento do dinheiro mostrou para onde foi a “póprina”, Aécio foi afastado do mandato pelo ministro Facchin, decisão revogada monocraticamente por outro ministro, Marco Aurélio. Corrido um bom tempo, a 2ª. Turma do STF julga, com decisão apertada, que estava certo o afastamento e reimpõe o que tinha sido revogado. Aparece na tribuna, furibundo, o senador petista Jorge Viana a apontar o dedo contra o STF. O embrulho foi para o pleno do Corte, todos os ministros, rigorosamente, compareceram encapados de preto.
Que diz, afinal, a Constituição? Que nenhum parlamentar pode ser preso senão em flagrante delito. Quando este não havia, criou-se o “flagrante continuado”, uma extensãozinha do conceito, mas tudo bem. Extensões de conceitos podem ser feitas sempre que envolvam algum cliente do PT: foi nesta toada que apareceram os conceitos de “domínio do fato”; “propriedade de fato”; “fato consumado” (este para beneficiar o imberbe pastor Deltan Dalagnol). A gravação, o filminho edificante e o rastreamento da dinheirama não constituem “flagrante delito”: primeiro não foram considerados como tal pelo ministro Marco Aurélio; agora deixaram de ser considerados como tal pelo pleno do STF. As sábias decisões do STF criam jurisprudência… mas aquela que prendeu o Delcídio não criou e tudo mudou para Aecim.
Um processo tem que seguir os ritos da lei. Do contrário, estamos diante de tribunais de exceção. E foi um tribunal de exceção que criou as extensões de sentido, elaborando o conceito de “flagrante continuado”. E está sendo um tribunal de exceção a 13ª. longa Vara do juiz Sérgio Moro, um juiz de primeira instância que põe medo ao Conselho Nacional de Justiça e ao pleno do próprio Supremo Tribunal Federal. Está errado. E assim como achamos errado não julgar segundo a lei, com base em provas, condenando Lula a torto e a direito sem qualquer fundamento, também não podemos aceitar que os ritos da lei e da Constituição sejam burlados mesmo que o “paciente” nos seja antipático, como o é Aécim.
Assim, se as gravações de Aecim não são “flagrante delito”, não pode um ministro ou o pleno do STF afastá-lo do mandato sem que o Senado autorize, prerrogativa constitucional do Parlamento. Também não poderia fazer isso, mas fez, no caso de Delcídio Amaral – e tudo com apoio midiático retumbante. Aliás, quando se trata de “tribunal de exceção”, a mídia detona, retumba e esmaga pessoas a seu bel prazer, desde que sejam desafetos petistas.
Questão totalmente distinta é a existência do “foro privilegiado”, que a Constituição estabeleceu em boa hora, seguindo o que na Inglaterra virou constitucional em 1757. Não se trata de foro privilegiado às pessoas, mas aos cargos. Do contrário, qualquer juizinho desejoso de holofotes – e qual deles não o é, sendo deus como se julga ser – decretaria buscas e apreensões no Palácio do Planalto, nos gabinetes do Senado e da Câmara, mandaria prender e arrebentar… Quando se fala em “foro privilegiado”, ninguém fala que os próprios ministros do STF têm for privilegiado, mesmo quando pegos em flagrante delito!!! Eles só podem ser julgados por seus próprios pares. Um debate democrático pode levar à suspensão do “foro privilegiado”, mas não cabe aos ministros do STF fazerem isso como se fossem a encarnação divina da nação (o eco é proposital)!
E assim, por maioria apertada, Aécim voltou a seu mandato, mas seguindo o voto esdrúxulo da supostamente frágil senhora Carmen Lúcia, aquela que sabe português e decretou que “presidenta” é um erro!, deve Aécim voltar para casa às 18 horas; não pode conversar com pessoas que possam influenciar no andamento do processo, etc. etc. Realmente, uma graça este voto. Aécim volta ao Senado, mas está sujeito a outras penas que o ministro ou a Turma ou o pleno do STF desejarem aplicar. Assim, levou a ministra ao pé da letra o que diz a Constituição: não pode ser preso a não ser em flagrante delito, esquecendo que também não pode ser investigado. Ora, aplicar penas antes do julgamento é próprio de tribunais de exceção. Se o “jurisdicionado” (como chama ao povo brasileiro a mesmíssima senhora) estiver obstruindo o andamento das investigações, então elas se iniciaram antes da autorização da casa legislativa! Quem vai desembrulhar este pacote?
Se este voto da frágil senhora foi um voto esdrúxulo, mais preocupantes são as razões arrogantes dos votos de Edson Facchin; do ministro Luís Roberto Barroso, o medroso que se tornou defensor dos que o achincalharam por uma decisão jurídica; e principalmente do ministro Celso Melo, que muito à vontade disse que “A Constituição é o que o STF diz que é”!
Gostou? Jamais um policial, um delegado ou uma delegada, como aquela lá de Florianópolis que suicidou o reitor da UFSC, um juiz, um desembargador ou um ministro havia declarado tão peremptoriamente que estamos numa ditadura do Judiciário com a força da polícia que mobiliza ou pela qual é mobilizado. É por estes votos que a decisão a favor do Aécim entrará para a história do país.
Não há dois pesos e duas medidas, já que o Judiciário diz o que é e o que não é lei. Por que não mandam fechar o Congresso de uma vez por todas, sem direitos de aposentadorias e sem salários? O país estaria sob uma ditadura das mais violentas, porque do Judiciário, mas pouparia para os cofres do Sr. Henrique Meirelles ou, quem pode prever?, a dinheirama iria para os auxílios necessários aos procuradores, juízes, desembargadores e ministros… Ganham tão pouco, os coitados!!!
por João Wanderley Geraldi | out 12, 2017 | Blog
DESIGUALDADES E DIFERENÇAS: A ESCLEROSE DA SENSIBILIDADE*
João Wanderley Geraldi
jwgeraldi@yahoo.com.br
… la humanidad está hecha no sólo de los que son, nuestros contemporáneos, sino también de los que fueron y de los que vendrán. Entonces, pensar en humanizar el mundo, o pensar em humanizar nuestras prácticas sociales, incluída la educación, exige el triple trabajo de cuidar, desde uma memoria ejemplar, de los que fueron e no continuaron, de los que son y sigen maltratados, y de los que vendrán, quizá a un mundo peor del que nosotros mismos recibimos. (Fernando Bárcena, 2001)
Vivemos num mundo que vem produzindo e globalizando a miséria. Não que no passado a miséria não existisse: ela passou a ser presença nos grupos humanos desde que as sobras dos produtos (a coleta, a caça, a pesca e depois, a agricultura) sofreram uma apropriação por aqueles que, encarregados pelos grupos, tinham a obrigação de guardar estas sobras para o tempo que viria e que poderia ser de escassez. Não há uma dignidade humana que preceda ao homem. Fizemo-nos humanos pela consciência de existirem um passado, um presente e um futuro, e continuamos o processo de humanização na busca constante de uma melhor forma de viver nestes três tempos. Deles, foi o futuro que demandou uma organização social.
Como são o passado e o futuro que fornecem as orientações da vida presente, em que os eventos ocorrem e os acontecimentos emergem no interior mesmo das práticas cotidianas(1), criamos e recriamos continuamente os sentidos do que foi – por isso passado perdura como presente – e elaboramos os horizontes de possibilidades do que poderá vir a ser. E como cada grupo, cada sociedade, fez percursos distintos nestas interpretações do que passou e nas visualizações que apontam o porvir, construímos uma humanidade comum e ao mesmo tempo diferenciada. A riqueza da história está na diferença. A riqueza do presente está na diferença.
Mas os processos resultantes das apropriações e suas acumulações produziu um efeito distinto daquele da diferença: houve um eclipse do sentimento de pertença a uma mesma humanidade. O roubo do que era comum construiu a desigualdade. Lembremos apenas de existências e permanências de sociedades de castas, dos regimes escravocratas, da insistência e permanência de uma sociedade de classes. Em constrições sociais baseadas na apropriação dos bens coletivos, somos desiguais socialmente embora pertençamos todos à mesma história de nossos grupos, onde nos fazemos humanos. É por isso que a desigualdade deforma, porque ideologicamente é também apresentada como se fora diferença. Obviamente, restritos às condições econômicas mais adversas, as populações (no interior de uma mesma sociedade) constroem modos de vida de sobrevivência, culturas da pobreza que, num passe de mágica do pensamento conservador, se tornam “diferenças” a serem “respeitadas”, esquecendo-se a origem do processo social que humilha e escraviza estas populações e as obrigaram a encontrar formas de viver e de se compreender diversas daquela dos privilegiados pelo regime de apropriação.
Construído este esquecimento fundante, sobre ele outros foram acrescidos, de modo que vivemos numa sociedade sem memória. A memória, que demanda o silêncio da compreensão, deslocou-se vagarosamente do homem para outros artefatos. Platão reclamou um dia que a escrita acabaria com a memória. No entanto, foi precisamente a escrita que permitiu a permanência de um passado que podemos recuperar para o ressignificar.
Hoje, a memória não precisa ser exercitada e deslocou-se para fora do próprio organismo humano (Serres, M. 2013), efeito que a escrita não produziu porque a consulta ao escrito demanda sempre memória de leitura. Hoje a memória está ao alcance de qualquer clique no celular! Carregamos a memória no bolso, não mais dentro de nós. E isto poderia nos libertar para ocuparmos nossas potencialidades cerebrais em processos interpretativos das informações a que temos acesso.
No entanto, mais uma vez esta liberdade nos é afanada, tanto pelo esquecimento das desigualdades quanto por um projeto de uniformidade espelhado, paradoxalmente, nos modos de funcionamento das “máquinas” que um dia os homens criaram. O projeto de uniformidade vem ditando, historicamente, a destruição da diferença. Se num passado não tão distante, os “diferentes em suas crenças e compreensões da vida” eram considerados, de um e de outro lado, “infiéis” (Wheatcroft, A. 2004), hoje aqueles que projetam mundos diferentes são apontados como retrógrados; e os fundamentalismos religiosos, de lado a lado, produzem seus “terroristas”, levando à doutrina Bush, seguida por Obama e recrudescida por Trump: o mundo um “palco de guerra” (Scahill, J. 2014), cuja finitude é aquela do próprio planeta; cá mais próximos, entre nós, a intolerância fundamentalista neopentecostal oferece a traficantes o perdão pelos pecados desde que destruam os sagrados terreiros da Umbanda e Candomblé.
La finalidad de este proceso destructivo es, en fin, muy clara: limitar el alcance del pensamento y estrechar el radio de acción de la mente. Pero si esto se hace en el marco de uma cultura electrónica y de uma sociedad informatizada, convencida como está de que los humanos pensamos como las inteligentes máquinas que un día nosostros mismos fabricamos, además de destructivo es estúpido y paradójico. (Bárcena, 2001, p. 140)
Recuperar a diferença implica em recuperar a capacidade humana de se deixar afetar já que “o que nos faz humanos não é tanto nossa racionalidade mas a capacidade par anos deixarmos afetar – na vida afetiva – pelos outros” (op.cit. p. 95).
Os outros do mundo contemporâneo estão cada vez mais distantes pela proximidade falsa trazida pelos dois polegares que digitam curtas mensagens no wahtsapp. Nestas máquinas, lê-se muito e não se lê nada porque o apanágio da sociedade uniforme é a velocidade. Mesmo vídeos – já que retorna uma “nova oralidade” – escapam a esta superficialidade veloz: mensagens mais longas do que 5 ou 6 minutos raramente são escutadas até o fim. É preciso abrir outra janela, outro site, outra mensagem, acumulando cada um de informações com baixíssimo nível de reflexão.
E a superficialidade desvela ignorâncias tamanhas que bem recentemente, nas nossas redes sociais, afoitos “políticos” recém-chegados à discussão social, defendiam que o nazismo é de esquerda, porque o nome do partido era “nacional socialista”. A literalidade atribuída a expressão “socialista”, fixando-a nos sentidos duvidosos do presente, demonstra que cada vez mais uma des-historicização generalizada. Os pequenos relatos que cabem na mensagem do wahtsapp substituíram o vazio deixado pelas grandes utopias, pelos grandes relatos. A amnésia estabeleceu-se como virtude, como potência capaz de suplantar qualquer pensamento histórico relevante.
O escritor húngaro Imre Kertész, refletindo diante do “Não” que deu como resposta a quem lhe perguntou se tinha filhos, escreve um livro em que deixa correr o fluxo de consciência, ao mesmo tempo dialogando com uma criança não nascida, seu filho ou filha, e refletindo sobre as possibilidades de vida depois de Auschwitz. Num suposto encontro de sobreviventes, cada um dizendo o “campo de concentração” de que renasceram, quando Auschwitz é citado, imediatamente se afirma que ele “não tem explicação”. Escreve
… parem com isso, eu poderia ter dito, que não há explicação para Auschwitz, que Auschwitz seria um produto das forças irracionais não apreensíveis pela razão, pois para o mal há sempre uma explicação racional, pode ser que o próprio Satanás, como Jago, seja irracional, mas suas criaturas certamente são seres racionais, todas as suas ações deixam-se derivar como uma fórmula matemática: derivadas de algum interesse, da ganância, da preguiça, da cobiça de prazer e de poder, da covardia, da satisfação de um ou outro instinto e, se de nada além disso, então de algum delírio da paranoia, da doença maníaco-depressiva, da piromania, do sadismo, do assassinato compulsivo, do masoqui8smo, ou megalomania demiúrgica ou outras megalomanias, da necrofilia, de alguma entre as tantas perversidades que conheço , ou talvez de todas ao mesmo tempo, porém, eu poderia ter dito, tenham agora bastante atenção, pois o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, ao contrário: é o Bem. (Kertész, I. 1995, p. 46-47)
O Bem se torna inexplicável num mundo em que predomina o esquecimento do que funda a desigualdade e o desejo de apagar as diferenças – incluindo aquelas que a natureza produz, pois não foram assassinados somente judeus na Alemanha nazista, mas todos os doentes mentais e todos os deficientes físicos – para construir a uniformidade modelada por uma raça ou etnia (os passados e ressurgidos nazi-fascismos); por uma cultura econômica e modo de vida (os impérios do passado e o império norte-americano do presente) tudo à custa da riqueza histórica produzida ao longo do processo de humanização do homem. Lutar contra as desigualdades é da dignidade humana, porque assim estaríamos lutando contra o esquecimento fundante que permite, hoje, apontar para o uniforme único com que nos querem vestir: o corpo (com investimentos nos músculos e na anorexia feminina); o pensamento pela defesa de que só há uma saída para a sociedade, o pensamento único “produzido” pelo ser mágico denominado mercado; os sentimentos banalizados com que se apaga o que há de humano em nós em troca do prazer rápido e do consumo do outro.
Para compreender as diferenças, desde as culturas de sociedades diferentes até as diferenças individuais dentro de uma mesma sociedade, será necessário recuperar o silêncio da compreensão da vida, porque a modernidade somente conhece o silêncio da parada brusca das máquinas e da tecnologia. O totalitarismo da informação e da comunicação social tem impedido a emergência da interioridade, onde moram os sentimentos que, a todo custo, precisam ser exorcizados pelo excesso da comunicação e do consumo, inclusive dentro de salas de aula, de modo que se produza uma esclerose dos sentimentos que anestesia a possibilidade de sermos afetados pela diferença enriquecedora e pela desigualdade deformadora.
Isto exige de nós o esforço hercúleo de revisitar e ressignificar o passado e o presente, porque um passado e um presente não modificados em seus sentidos manufaturam um futuro que repete, repete, repete o mesmo que tão custosamente estamos tentando enxergar.
Sei que tudo poderia ter dito de outro modo, porque
tudo isso poderia ter sido escrito de outra maneira, mais equilibrada, mais cautelosa e, digo agora: talvez mais amável, porém, é de se recear que eu só possa descrever tudo (…) com uma pena manca, como se alguém sempre a repelisse quando ela se dispõe a escrever certas palavras, assim minha mão finalmente escreve outras palavras em seu lugar, palavras das quais simplesmente nunca se dá uma apresentação amável, arredondada, talvez simplesmente por isso, porque é de se recear que também em mim não haja amor. (Kertész, 1995, p. 12)
Notas
* Texto elaborado para a conferência de encerramento do VII Encontro do Despatologiza, o movimento contra a medicalização da vida, ocorrido na Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, 10.10.2017.
[1] É preciso fazer uma distinção entre eventos e acontecimentos. Enquanto aqueles são ocorrências da rotina cotidianas ou organizados como celebração e festa, e por isso previsíveis ou ainda eclosões sociais como guerras, explicáveis e evitáveis ou imprevisíveis e inevitáveis catástrofes naturais. Os acontecimentos são qualquer evento recoberto por duas características essenciais: eles nos afetam e reorientam o presente e o futuro; e os acontecimentos estão sempre sobrecarregados de peso de cunho ético e moral. O acontecimento não está na ordem da continuidade rotineira e pode ser tanto uma vivência pessoal quanto coletiva. Um evento como uma catástrofe natural, causada pela imprudência dos modos de exploração do planeta, será normalmente um acontecimentos para os afetados mas um mero evento para o poder que se recusa alterar o sistema de exploração da natureza e nossa moderna produção de lixo. Uma aula pode ser um acontecimento para um aluno e não ser para outro.
Referências bibliográficas
Bárcena, Fernando. La esfinge muda. El aprendizaje del dolor después de Auscwitz. Barcelona : Anthropos, 2001
Kertész, Imre. Kadish. Por uma criança não nascida. Rio de Janeiro : Imago, 1995
Scahill, Jeremy. Guerras Sujas. O mundo é um campo de batalha. São Paulo : Cia. das Letras, 2014
Serres, Michel. Polegarzinha. Uma nova forma de viver em harmonia, de pensar as instituições, de ser e de saber. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2013.
Wheatcroft, Andrew. Infiéis. O conflito entre a Cristandade e o Islã. 638-2002. Rio de Janeiro : Imago, 2004
por José Kuiava | out 11, 2017 | Blog
“O Brasil ainda não é um país capitalista”. Imaginem se fosse! Talvez, o autor genial e os apoiadores fieis e crentes deste enunciado tenham uma pitada de razão: o Brasil continua “colonialista escravocrata” – uma colônia imensa e extensa de muitas e finitas riquezas naturais e civilizatórias, disponíveis aos interesses do grande capital mundial, globalizado colonialista.
A origem deste enunciado estridente tem um cenário imperialista lá nos Estados Unidos – o grande palco das encenações espetacularizadas para a grande plateia consumista mundial, onde as decisões ocorrem ocultas nos bastidores do grande teatro cósmico. Em matéria jornalística – Folha de S. Paulo, 3 de outubro de 2017, A20 – Silas Martí informa, com excepcional precisão e visibilidade, que grandes empresários investidores, advogados, consultores e banqueiros estiveram num encontro na Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, na última semana de setembro, e saíram decepcionados com a Reforma Trabalhista, recém articulada e imposta pelo Planalto sob as trapaças de Temer. Alguns participantes do encontro, falando alto e em bom tom, perguntaram: “Então quer dizer que ainda não vamos poder reduzir salários?” E outros: “E se perdermos dinheiro? Vamos também dividir os prejuízos?”. Já outros afirmaram: “Isso é a coisa mais anticapitalista que existe”. “O Brasil ainda não é um país capitalista”. Assim, concordaram todos os presentes, americanos e brasileiros.
Esta é a antiga, atual e permanente lógica da lei da mais valia do capitalismo: maiores lucros para os empresários capitalistas com menores salários dos trabalhadores. Estes, os trabalhadores, precisam comer o suficiente – e somente isso – para terem forças fisicobiológicas para trabalhar e produzir; viver e habitar em senzalas, hoje favelas e bairros das periferias sem infraestrutura mínima. Conforto e bem estar aos trabalhadores assalariados e suas famílias, para que? Assim, para nós, os indignados, fica mais uma prova de que o nosso governo está tomando as medidas políticas, sociais e administrativas sob pressão das forças capitalistas nacionais e estrangeiras. Enquanto isso, os trabalhadores devem ficar longe dos palácios e das casas grandes do Planalto.
Este fato me faz lembrar de uma lei da história do capitalismo, segundo a qual o sistema capitalista precisa superar e vencer as próprias crises com suas próprias forças. Precisa aceitar as críticas dos seus inimigos opositores, que querem o fim do capitalismo e, acima de tudo, articular e tecer a autocrítica com seus próprios intelectuais orgânicos. Não foi por outra razão, em outros tempos de crises do capitalismo, que setores do próprio capitalismo pensavam e admitiam a social-democracia – uma ideologia política segundo a qual o Estado deveria ser mais forte e presente na economia e promover a justiça social dentro do sistema capitalista, inclusive garantindo a organização dos trabalhadores, com sindicatos, leis trabalhistas para promover a distribuição de renda e outros direitos de vida digna da condição humana. A lógica era a seguinte: o capitalismo em vez de ganhar mais por peça produzida e vendida passaria a vender mais peças (mercadorias) e ganhar menos por unidade. E mais: se o trabalhador ganhasse maiores salários ele mesmo poderia comprar as peças que produzia: rádios, geladeiras, televisores, bicicletas, motos, carros, etc. Assim, todos ganhariam mais se os trabalhadores e funcionários públicos tivessem melhores salários. Isto é, maior poder de consumo.
Porém, veio o neoliberalismo com Estado mínimo, com a terceirização dos trabalhos e salários, sob a ditadura do consumo. O capital rentista determina as leis do consumo: o cartão de crédito. Instituiu o mito da felicidade: o consumo.
Diante da crise do capitalismo neoliberal mundial globalizado, a pergunta final: já não estaria na hora e no momento histórico oportunos para reinventar a social-democracia autêntica e legítima para um novo mundo?
por João Wanderley Geraldi | out 10, 2017 | Blog
De repente, vemos que alguma coisa está no ar! Tudo indica que a falsa ingenuidade, quando não escrota ingenuidade, começa a fazer água… Houve ingênuos de fato? Talvez, só talvez. Porque quando esta parecia ser verdadeira, por baixo dos panos o que havia mesmo era ódio de classe, medo desta chegada dos eternamente não convidados – o povo – a que tinham acesso os ricos e a classe média enriquecida, e de cujas migalhas se locupletava a classe média em geral, olhando para cima e aspirando “chegar lá”, porque “eu mereço!”.
Indícios de mudanças? São ainda fumaças… Mas onde há fumaça, diz o ditado, há fogo. E as labaredas estão clareando os pensamentos de alguns que depositaram toda sua confiança nos “Kim Kataguari” brasileiros, arremedos atrasados dos jovens esquadrões da SS nazista.
O segredo era de polichinelo: todos, absolutamente todos, até os “ingênuos de carteirinha” sabiam que o MBL era financiado, recebendo inclusive recursos de fora do país através de Fundações com filiais cá dentro. Mas o que agora aparece é algo mais interessante: a dnúncia vem de dentro do próprio MBL!
Primeiro, foi a Revista Piauí que veio a público com sua reportagem com base na participação do repórter no WhatsApp do grupo (foram 685 páginas de transcrições de mensagens entre militantes e executivos do mercado financeiro). Só para dar o gosto do que veio a público:
“A reportagem teve acesso ao histórico de conversas do grupo no período de 25 de julho a 27 de setembro. Criado por um “entusiasta do MBL”, o grupo de WhatsApp funciona como canal entre o movimento e executivos de médio e alto escalão do mercado financeiro. Com mais de 150 funcionários de empresas como Banco Safra e XP Investimentos, o objetivo inicial do grupo era levantar dinheiro para o movimento e levar pautas dos executivos para discussões internas. (…)
Embora não faltem críticas aos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, ao PT, ao PSOL e à Rede, críticas ao deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e ao apresentador de TV Luciano Huck, virtuais candidatos ao Planalto, aparecem com mais força. Enquanto Bolsonaro é chamado de “tosco”, “ignorante”, “sem noção” e “inadmissível”, Huck é visto como um perigo por sua eventual capacidade de “diluir o voto da direita”. “Huck é lixo. Politicamente correto, desarmamentista, ambientalista de boutique, intervencionista”, escreveu Santos. (…)
No grupo de WhatsApp, os executivos do mercado financeiro informavam valores de doações. Em um período de duas semanas, a troca de mensagens apontou, diz a reportagem, um volume total de doações de 50 mil reais para o MBL.”
(https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/10/whatsapp-do-mbl-revela-maracutaias.html).
Agora, é um ex-dirigente do MBL/Espírito Santo que dá longa entrevista ao DCM. (http://www.diariodocentrodomundo.com.br/pmdb-deu-dinheiro-casa-e-carro-para-o-mbl-ex-dirigente-do-movimento-fala-ao-dcm-por-sacramento/). Bráulio Fazolo se desligou do MBL em 12.06.2016 com a seguinte mensagem:
“Estou saindo da coordenação do Movimento Brasil Livre Espírito Santo representado aqui na figura de sua coordenadora geral Raquel Gerde pelos seguintes fatos. Após a sua confirmação pessoal de filiação ao PMDB e pela sua postura pessoal que vem defendendo de forma aberta escancarada esse partido, usando a mim e as pessoas do movimento para auto promoção política, não compactuo com corrupção e não defendo corrupto, defender o PMDB que é um partido tão corrupto quanto o PT é fazer associação criminosa”.
Raquel Gerde, a coordenadora do MBL/ES e membro da coordenação nacional dos Kimboys, não só se filiou ao PMDB. Passou a defender o partido, orientando a todos que não se podia “bater no partido”! Gerde foi, pasmem, candidata a deputada estadual em 2014 pelo PC do B!
A se dar crédito ao ex-dirigente do MBL – em são consciência, pode-se dar crédito a militantes do MBL? – corre dinheiro grosso pelas veias do movimento, sem que qualquer prestação de contas que diga donde chegam e para onde vão os recursos! Acusa Bráulio Fazolo:
“O MBL se modificou bastante desde a votação do impeachment no Congresso. Uma coisa que eu quero que fique clara é que o movimento recebeu dinheiro do PMDB. Não só do PMDB mas de alguns outros partidos, mas vou citar o PMDB em especial porque o nome do partido foi falado internamente nas reuniões. É um assunto que a gente nunca levou para fora dos grupos internos, dos núcleos. O MBL tem vários grupos abertos para quem diz simpatizar com a causa, e essas situações não são levadas para esses grupos, são tratadas em grupos internos. Essa questão do PMDB ter destinado fundos para pixulecos, panfletos, movimentação de pessoas que foram a Brasília acompanhar o impeachment sempre foi tratada com bastante tranquilidade, porque eles passavam para a gente que o PMDB era uma peça fundamental no impeachment.”
Mesmo que as reclamações sejam motivadas sejam e venham a ser por não terem sido convidados para o festim, futuras denúncias hão de aparecer… e talvez alguns jovens descubram que Kim Kataguari, Rubens Nunes, Renan Santos, Fernando Holiday… são vinhos da mesma pipa podre que dizem condenar! E são todos candidatíssimos a cargos eleitorais no próximo ano!!! Para fazerem “lá” o que aqui denunciam sem prestar contas, desde já, dos recursos obscuros que recebem! Já chegarão “lá” escolados, formados e diplomados.
por Cristina Batista de Araújo | out 9, 2017 | Blog
O cotidiano é permeado pelas mais diversas formas de interação social que, por ser considerado corriqueiro, muitas vezes é desprezado como fonte de pesquisa e dificilmente se pensa na riqueza e nas peculiaridades que possam estar presentes nessa esfera. Conversar é uma das maneiras por meio das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações estabelecidas no cotidiano e, por isso, são práticas discursivas, compreendidas como linguagem em ação. Se considerarmos a informalidade das situações em que ocorrem, as conversas representam modalidades privilegiadas para o estudo da produção de sentidos.
Se tomarmos o conceito de parole numa perspectiva de produção coletiva, veremos as conversas como algo extremamente rico e importante na arena da comunicação na vida cotidiana, que articula processos de produção em geral e esferas ideológicas. Bakhtin (1995) lista algumas situações típicas de conversas, enfatizando sua importância como prática social:
a psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espécie, e é neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criação ideológica ininterrupta: as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro e, no concerto, nas diferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência auto-referente, a regulamentação social, etc. A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da “enunciação” sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores. (BAKHTIN, 1995, p. 42)
Para Bakhtin, a forma e os estilos da enunciação ocasional são determinados pela situação e pelos integrantes mais imediatos, já “os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor” (BAKHTIN, 1995, p. 114). Assim, o trabalho com conversas pressupõe que se leve em consideração o conceito de enunciado, a tipicidade da situação e a inter-relação estabelecida entre o tempo curto da situação relacional e o contexto mais amplo de circulação das idéias.
O conceito de enunciado está inerentemente ligado ao conceito de voz (polifonia) e tem na enunciação o produto da interação entre falantes, portanto, não pode ser considerada como um ato individual estrito senso, mas de natureza social, expressa por meio de palavras e sentenças que se articulam em ações situadas. Então, a voz é entendida como ponto de vista resultante da significação e/ou ressignificação de muitas outras vozes, e o enunciado constitui-se em um dos elos de uma corrente de outros enunciados, complexamente organizados.
E se “não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 113), o sujeito, ao formular um enunciado, certamente expressará seu horizonte conceitual e sua visão de mundo resultantes de suas relações constitutivas. Não porque ele seja o princípio causador de tais relações, tampouco porque sua intenção significativa possa determinar o que ele quis dizer, mas porque há um lugar nessa enunciação que pode ser ocupado por diferentes indivíduos e que faz da significação algo multiforme.
Ainda que se considere que a enunciação tenha um autor – mesmo que seu enunciado esteja povoado de múltiplas vozes – e um interlocutor, a quem esteja sendo direcionada, haverá que considerar um duplo caminho que faz das conversas um ato dialógico. Por outro lado, também será preciso compreender qual a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito. Em qualquer uma dessas instâncias, o foco de estudo voltar-se-á para as especificidades que compõem uma conversa tanto em relação ao local de sua ocorrência, integrantes e contexto imediato da situação, quanto em relação à sua dimensão histórica que constitui não só o sujeito, mas também o acúmulo e a exterioridade do discurso.
A meu ver, utilizar conversas do cotidiano escolar como fonte de investigação significa estar em pesquisa durante todo o tempo, e quando surgem temas de interesse é necessário redobrar a atenção. Algumas situações presenciadas acabam se perdendo devido à dificuldade de registro (não registrar durante a conversa ou logo em seguida, por exemplo). Em algumas das situações, o registro é feito de memória; em outros momentos até mesmo os participantes da conversa auxiliam nas anotações; e ainda é possível registrar quando essa conversa está inserida nas aulas observadas. De todo modo, é impossível padronizar a forma de registro, já que ela acompanha o inesperado das situações do dia-a-dia.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. (Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira). São Paulo: Hucitec, 1995.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. (Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
por João Wanderley Geraldi | out 8, 2017 | Blog
Creio, logo existo
Ergo a mão e ponho pontos no espaço
traço e fio a realidade que crio
ergo sum assim ungido
O mito se volta e vira
estátua de sal
só a crença é real
A verdade é onde não está
Mentira é o que não vivi
murmúrio do credo
que não aprendi
A crença é matemática:
serpente que em si mesma se enleia
e come a própria cauda
prova dos nove, tautologia
vício em círculo
alfabeto em que é escrito o universo
B é igual a C que é igual a A que é igual a B
ou o reverso
perante deus, todos iguais,
no inferno, no céu, ou talvez
purgatório
O homem existe proque crê
ou por ter criado a matemática
dá no mesmo
Deus faz conta e o homem conta com deus
todo resultado é válido
o mais é classificação: F ou V
Só o sonho é uma heresia.
“E pôs um novo cântico na minha boca”
(Salmo 40:3)
O criador cria o demônio
os templos o pluralizam
Demônios não me infernizam
são-me alheios
carrego apenas um cântico
que pluralizo
sempre em novas harmonias
de improviso
Criatura,
só crio o que me foi dado
e aceito
como o cântico em que creio
posto na minha boca
singular
único
sem demônios
(Luís Alberto C. Bellissimo. Concerto para cordas cósmicas, 2017)
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