por João Wanderley Geraldi | out 27, 2017 | Blog
Textos de Arquivo XIV: Formas de expressão de condições e hipóteses
Nota introdutória
Este texto foi publicado na revista Signo, vol. 9, n. 15, junho de 1984. Atualmente a revista é patrocinada pela Universidade de Santa Cruz – RS. Naquele tempo, ainda não havia a universidade e meu ex-professor, Prof. Ingo Voese, estava no Departamento de Letras da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e fundou a revista. Publiquei na revista dois textos, este foi o segundo e foi escrito a pedido do Ingo Voese. Ele estava com dificuldades de fechar este número da revista (este número tem apenas dois artigos). Como na época eu estava envolvido com a publicação das revistas do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/Unicamp na função de coordenador do setor de publicações (responsável então pela publicação das revistas Remate de Males (anual); Cadernos de Estudos Linguísticos (semestral) e Trabalhos em Linguística Aplicada (semestral) e Estudos Portugueses e Africanos (semestral)) sabia perfeitamente que a manutenção da periodicidade de uma revista era muito importante, particularmente porque inúmeras revistas acadêmicas, no Brasil de então, acabavam sua efêmera vida depois de quatro ou cinco anos.
Aceitei o desafio e fui para a minha velha máquina de escrever para compor este texto com anotações de leituras que havia feito para a minha dissertação de mestrado (defendida em 1978). O texto não tem outra pretensão que não fazer ver que é possível expressar condições e hipóteses de diferentes modos, e que a escolha de uma ou outra depende de decisões estilísticas. Cada fórmula sintática tem suas exigências estilísticas próprias: uma não vale pela outra, mas ter disponível um leque de possibilidades é salutar na composição de textos porque o que vinha chamando de “prática de análise linguística” fundava-se, de fato, nas possibilidades estilísticas de dizer de diferentes formas. Somente há pouco tempo foi traduzido o artigo de Mikhail Bakhtin que mostra a importância das possibilidades estílisticas no emprego de tempo verbal: sua proposta é explicitar estas possibilidades no ensino de língua materna (do russo, no caso).
Formas de expressão de condições e hipóteses
O objetivo deste trabalho é apresentar uma listagem sumária de formas de expressão de condições e hipóteses, já que os processos pelos quais o falante pode expressá-las não se esgotam na utilização das chamadas conjunções subordinativas condicionais, de que são exemplos típicos as sentenças
- Se Pedro vier, João virá. (condição)
- Se te interessa saber, parto amanhã. (hipótese)
Penso que uma listagem, como a que apresentarei aqui, tem no mínimo uma utilidade prática: possibilitar aos professores de português a organização de exercícios de “transformações intuitivas” de uma forma de expressão em outra. Fique claro, porém, que não defendo o ponto de vista de que expressar uma condição utilizando uma forma “x” ou uma forma “y”, “transformando”, por exemplo, a setença (1) em
(1’) Pedro virá? Então João virá.
seja uma mera questão de escolha sem consequências. Ao contrário, creio ser possível demonstrar que uma e outra forma não só obedecem a diferentes objetivos do fal1ante mas também abrem diferentes perspectivas no processo de interlocução e na continuidade do discurso. Isto porque ao descrevermos de maneiras diferentes um mesmo acontecimento, criamos situações diferentes.
Feita esta ressalva, tomo o esquema “Se A, (então) B” como identificador de forma de expressão de condições e hipóteses sem com isso querer reduzir os matizes semântico-pragmáticos de cada um dos demais esquemas a esta “matriz”.
Uma segunda observaç1ão necessária: nem sempre é fácil distinguir condição de hipótese quando o esquema é “Se A, então B”. Tradicionalmente, considera-se que a condição, ao contrário da hipótese, envolve uma relação de causa entre as duas sentenças, de tal1 modo que, na setença (1), ocorrendo a vinda de Pedro e a de João, a vinda deste será tomada como consequência da vinda daquele. O mesmo não se pode dizer da sentença (2), onde a partida1 do locutor independe do interesse em saber do interlocutor.
Segundo Abreu (1983), pode-se até mesmo dizer que
“CONDIÇÃO = CAUSA + HIPÓTESE”
O autor mostra as relações entre hipótese e causa, formando a condição, pelo gráfico (1):
HIPÓTESE Ex. Veja se ele saiu.
CONDIÇÃO Ex. Se ele precisar, vai me telefonar.
Uma vez que ele venha, você pode sair.
CAUSA Ex. Uma vez que ele veio, você pode sair.
Os dois últimos exemplos do autor mostram que não basta listar conjunções, classificadas previamente como condicionais, para que tenhamos expressão de uma relação condicional entre as sentenças.
Assim, o tempo e modo verbais em
- Uma vez que ele venha, você pode sair.
- Uma vez que ele veio, você pode sair.
distingue (3) como expressão de condicionalidade e (4) como expressão de causalidade.
A distinção entre condição/hipótese também pode ser buscada a partir de critérios disnti9os do conceito de “causalidade” e do tempo/modo verbais. Tomando as hipóteses da teoria dos atos de fala, distinguimos as duas relaç1ões observando que na condição apenas um ato de fal1a é praticado, e nele o locutor afirma/pergunta esta relação, enquanto que na hipótese há dois atos de fal1a distintos, um de suposição e outro de afirmação/pergunta, etc.
Consideradas as dificuldades apontadas, passo à listagem das formas de expressão de condições e hipóteses:
- Pelo emprego de verbos apropriados, do tipo “imaginar”, “supor”, etc. (para hi8póte4se) ou de expressões como “será suficiente que”, “será necessário que”, “x depende de y”, etc. Exemplos:
- Bas1ta que Pedro venha para que João venha.
- Suponho que te interessa saber que parto amanhã.
- Em elementos da própria proposição, de que é exemplo típico o esquema “sem + substantivo”:
- Sem avinda de Pedro, João não virá.
- Sem uma forte base militar, o candidato não terá condições de levar a frente o processo de recessão econômica.
- Na justaposição de orações quer pela utilização de orações independentes, quer pela utilizaç1ão de esquemas coordenativos:
- 1. Oração interregativa + oração declarativa
“Vejamos esta frase, própria da língua escrita: “Não leve o chapéu, se não lhe agrada.” A ligação entre as duas orações do período é perfeita, rigorosamente lógica: vem primeiro a oraç1ão principal, depois a subordinada, precedida da conjunção condicional se. Mas a língua corrente prefere a essa frieza intelectual, própria de gabinete, o alvoroço ativo, próprio da vida em comum. E diz assim: “Não lhe agrada o chapéu? Então não leve!”. Houve aqui um verdadeiro terremoto. Em primeiro lugar, desapareceu a ligação lógica, introduzida pela condicional se. A ordem dos elementos foi invertida, e a entoação mudou por completo, passando de narrativa a interrogativa e exclamativa.” (Rodrigues Lapa, 1970, p. 206)
- 2. Imperativo + (e) oração declarativa. Exemplo:
- Compre agora e economize!
“Nestas construções, o imperativo muitas vezes é mera ficção retórica. Não se espera que o ouvinte cumpra a ação, porém se convença mais prontamente do que asseveramos na proposição subsequente.” (Said Ali, 1969, p. 137)
- 3. Duas orações declarativas
“É este uma dos recursos mais eficientes da língua oral1 para exprimir a hipótese e sua consequência. Encontramos vários exemplos em escritores modernos: “Tranca Pés encostoru a ponta da faca na barriga do cabra: – Triscou via também!” (João Felício dos Santos, João Abade, p.229). Observem-se a rapidez que a justaposição confere à frase, sugerindo rapidez de ação, e o efeito df1e certeza que p0roduz o emprego de um pretérito e um prsente, em relação ao momento do futuro.” (Vaz leão, 1961, p. 59)
- 4. Posposição do sujeito/ (e ou que)
O processo consiste na anteposição do verbo (no pretérito ou no presente do subjuntivo), justapondo ou coordenando as duas oraç1ões através de “e” ou de “que”. Exemplos:
- Era uma época difícil. Pensassem os subordinados diferente do chegf1e e (ou que) estariam bem arranjados.
- Saia fulano do esconderijo que será preso.
Vaz Leão observa os seguintes tipos de construção:
- Que fulano saia do esconderijo e (ou que) será preso.
- Fulano que saia do esconderijo e (ou que) será preso.
em que, para a autora, não se expressa somente uma relação de condicional1idade entre “sair do esconderijo” e “ser preso”, mas também a atitude do fal1ante frente aos fatos: desafio em (12) e apreensão em (13).
- Em orações subordinadas
A expressão de condições através do destaque destas em oraç1ões subordinadas própria pode-se dar através de formas reduzidas ou através de conjunções subordinativas.
Entre as formas1 reduzidas, pode-se notar:
- 1. Orações com verbo no infinitivo, introduzidas por “a”, “no caso de “, “sem”. Exemplo:
- Reconhecem que já não é possível, sem por em riscos os seus privilégios, manter um sistema discricionário de escolha de dirigentes.
- 2. Orações com verbo no gerúndio:
- Confirmando a maioria na Câmara Federal1 e alcançando resultado decoroso na eleição direta, o governo atual terá fechado com saldo a sua conta.
- 3. Orações com verbo no particípio:
- (Uma vez) devolvida a autonomia à cidade, o atual prefeito nomeado entregaria o cargo.
Para a gramática tradicional, a conjunção condicional por excelência é “se”, as demais se formando por composição ou mudança de classe. Entre elas temos:
- 4. salvo se, a não ser que: para excetuar uma hipótese. Exemplos:
- Eu não tenho nada de especial para conversar com ele, a não ser que ele tenha alguma novidade para contar.
- O1 governo não tem planos para promover eleições diretas, salvo se houver mudança radical1 na situação política.
- 5. conquanto que, com a condição de que: usadas para representar condição imprescindível e taxativa de que depende o cumprimento de outra ação, ou ainda a condição única que se exige ou se deseja, sendo indiferente o cumprimentio da outra ação, conforme os exemplos obtidos por Vaz Leão:
- Entrego-te as joias contanto que (ou com a condição que) me restituas o dinheiro.
- Duigam o que quiserem contanto que não me ofendam.
- 6. sempre que, uma vez que, desde que: exprimem aquilo que se exige como condição:
- Severo Gomes admite ser candidato desde que fosse conveniente.
- 7. caso: exprime sempre uma condição necessária:
- O presidente prometeu que agiria com firmeza caso as denúncias de violência correspondam à verdade.
- 8. Quando: arrolado entre as conjuções condicionais pela gramática tradicional, é quase impossível, para Vaz Leão, distinguir o que há de condicional1 do que há de concessivo na relação que exprime. Para Epiphânio Dias, “em asserções gerais, as orações de quando avizinham-se muitas vezes das condicionais de se. Ex.: Não se é pobre quando se tem esperança. As orações de quando são propriamente condicionais quando a oraç1ão subordinante diz o que há de, ou havia de acontecer em um caso (indicado na oração de quando) cuja real1idade não é afirmada nem negada”. (E. Dias, 1918, p. 288)
Exemplo:
- Quando respeitada a pureza do jogo, qual1quer processo é democrático. Este n ão é o caso do colégio eleitoral.
- 9. Sem : considerada como conjução condicional, a expressão “sem que” admite várias interpretaç1ões:
- Exprime concessão:
- Ele é responsável, sem que o saiba, por todas essas coisas erradas.
- Nega uma consequência:
(25) Saiu sem que fosse percebido.
c) nega uma causa:
(26) Estudou sem que lhe pedissem.
Depois de oração principal negativa, a expressão “sem que” indica que a consequência se repete sempre que ocorre o fato expresso na principal:
(27) Não brinca sem que acabe chorando.
(28) Não passará sem que estude.
É no esquema “não-A sem que B” que se expressa uma condição, mas inversamente ao esquema “Se A, (então) B”: a oração introduzida por “sem que” é a consequente; a oração principal (negativa) é que exprime, semanticamente, a condição:
Antecedente/subordinada Consequente/principal
Se brincar acaba chorando
Antecedente/principal Consequente/subordinada
Não brinca sem que acabe chorando
Esta listagem mostra, de um lado, o grande número de possibilidades df1e articulação de sentenças na constituição do texto (e no caso apenas da expressão da condicional1idade) e, por outro lado, ap0onta também para as diferenças entre uma e outra forma de expressão. Seria necessário não só complementar esta listagem mas também rastrear as análises existentes na gramática para verificar até que ponto se mantêm as distinções impressionistas apresentadas pelos gramáticos.
Nota
- O gráfico do autor, que não reproduzo aqui, se apresenta na forma de dois círculos com intersecção. A hipótese está num dos círculos, a causa em outro. Na intersecção está a condição.
Bibliografia
ABREU, a. s. (1983) “Articulação sintática e construção do texto (Um estudo da sintaxe de condição em português)”. Letras, 2, 1: 31-38 (Revista do Instituto de Letras da PUC-Campinas)
GERALDI, J. W. (1978) Se a semântica fosse também pragmática… ou para uma análise semântica d1os enunciados condicionais. Dissertação de mestrado, Unicamp.
DIAS, Epiphânio (1918). Syntaxe histórica portuguesa. Lisboa. Livr. Clássica Editora, 4ª. Ed. 1959.
RODRIGUES LAPA, (1970). Estilística da língua portuguesa. RJ, Acadêmica, 6ª. Ed.
SAID ALI, m. (1969) Gramática secundária da língua portuguesa. SP, Melhoramentos, 8ª. Ed.
VAZ LEÃO, A. (1961). O período hipotético iniciado por se. Belo Horizonte, Univ. de Minas Gerais, Tese de cátedra.
por João Wanderley Geraldi | out 26, 2017 | Blog
Entre os 251 votos a favor do arquivamento da segunda denúncia contra Temer, inúmeros deputados foram ao microfone dizer que votavam SIM ao relatório do PSDB! Ainda que um ou outro dos deputados deste partido tenha votado pela abertura da investigação (o voto NÂO de Carlos Sampaio merece atenção, pois foi da tropa de choque de Temer e Aécio!), nenhum malabarismo verbal salvará o PSDB num futuro próximo: ele estava, esteve, está e estará ao lado de corruptos declarados (Aécio e Temer) e, mesmo tendo barrado qualquer CPI nos últimos 20 anos em São Paulo, o boca a boca continua a espalhar: houve e há corrupção no Rodoanel, no tremsalão, na merenda escolar. A informação boca a boca continua e como tal vai minando a imagem daqueles que se dizem acima da terra, quase próximos à santidade.
A propósito, qualquer um percebe: em tempos de muita investigação policial, em tempos de vinganças acusatórias, em tempos de venalidade e acordos por baixo do pano, que tornam a polícia, a procuradoria e o judiciário as instituições mais poderosas do país – pois podem fazer crer a qualquer um que há alguma coisa a ser vazada – o Sr. José Serra anda quietinho, quietinho. Por que será?
Quem assistiu ontem a votação da Câmara pode perceber: os votos SIM foram rápidos, muitas vezes nem deu tempo do “camera man” da TV Senado mostrar a figura do votante, tão envergonhado foi o voto que o sujeito chegou correndo, disse SIM, e saiu correndo. Além disso, 25 ausentes, mais envergonhados ainda, ficaram longe da decisão. Temer perdeu apenas 12 votos em relação ao arquivamento da primeira denúncia. E os votos contra Temer aumentaram.
Mas a vitória levou entusiasmo a Rodrigo Maia: quer por em votação a Reforma da Previdência para encerrar, com o mesmo pagamento aos deputados, o saco de maldades preparado dentro da campanha eleitoral de Aécio Neves em 2014, rejeitado nas urnas, mas imposto pelo golpe. Nos panelões do bruxo Henrique Meirelles, em nome da “responsabilidade fiscal”, estão sendo preparados outros feitiços. Não há dinheiro, ele repete o refrão, mas agora terá que acrescentar: a não ser para a compra de deputados.
Junto com Temer se salvaram Eliseu Quadrilha e Moreira Mentiroso, antigamente franco. E todos os políticos corruptos, desde que não sejam filiados ao PT, estão a salvo de forças-tarefa há muito tempo! Venho insistindo aqui: eles já entregaram seu boi de piranha, Eduardo Cunha, e não entregarão mais ninguém. Mas com a condenação deste, o angélico Doutro Moro pode encher a boca e dizer que não persegue apenas políticos do PT!!! E continuará dizendo “isso não vem ao caso” quando aparece algum amigo do PSDB nas falas fora do script preparado para os delatores.
E assim vai o Brasil atravessando a ponte para o futuro! Haverá o outro lado? Ou ficaremos para sempre na pinguela?
por João Wanderley Geraldi | out 25, 2017 | Blog
Como podemos olhar o mundo em que vivemos – o mundo do qual fazemos parte? Como podemos compartilhar o ângulo de visão com os outros? Começamos pelo ponto de vista local – o posto, a torre de observação é o horizonte da planície extensa ou o pico da montanha mais alta do nosso horizonte – e projetamos o olhar para além do nosso horizonte? E que imagens do mundo vemos em nossas mentes? Imagens de nós mesmos quando nos vemos refletidos no espelho? Imagens quebradas? Imagens líquidas? Ou imagens de outros? E o mundo que vemos é real, ou mitológico, ou utópico ou ficcional? Somos indivíduos monológicos ou sujeitos dialógicos? E quando olhamos o futuro, é o futuro “desejado” ou o “assustador”?
Certo dia, ao visitar uma exposição de arte na cidade de Pato Branco, estado do Paraná, me deparei diante de três obras do mesmo artista. As obras não chamavam atenção pela plasticidade artística. Porém, me excitaram a curiosidade e logo me intrigaram profundamente pelo seu significado. Iniciei a observá-las aleatoriamente de traz para frente. No último quadro havia a inscrição como título: “Como eu me vejo”. O quadro era uma superfície branca e quase vazia, apenas no centro encontrava-se uma composição quadrada de cacos de espelho de vários tamanhos e formas, colados assimetricamente. O espectador via na composição o seu rosto fraturado. Uma imagem quebrada, deformada, descontínua, refletida nos fragmentos de espelho. No segundo quadro, nos mesmos moldes do anterior, estava escrito: “Como você me vê”. No centro do quadro, a composição era em formato de uma câmera de filmagem/fotografia, de tamanho igual à composição do quadro anterior. Dentro da câmera – como se fosse a lente – uma colagem de cacos de espelho, bem minúsculos, refletindo a imagem do rosto do espectador totalmente ofuscada, suja. A diferença estava no formato da câmera e no tamanho dos cacos de espelho, que refletia uma imagem irreconhecível. Monstruosa. O último quadro, na ordem do artista o primeiro, trazia a seguinte inscrição: “Como o mundo TV”. Na tela, uma composição bem maior do que as anteriores, várias colunas de espelhos, empilhados com extrema regularidade simétrica, pois todos de um único tamanho e padrão. Desta maneira, a imagem do espectador era rigorosamente a mesma em cada espelho e em cada pilha de espelhos. Embora, pelo tamanho do espelho, não era possível ver o rosto refletido por inteiro no mesmo espelho.
Das três obras de arte, a que mais me intrigou e perturba até hoje é a composição do “mundo TV”. E aqui me vem à memória uma outra imagem, a do “Príncipe Eletrônico”, na acepção de Octavio Ianni, que simultaneamente subordina, recria e absorve ou simplesmente ultrapassa o Príncipe de Maquiavel – o líder político, o condottiero – e o Moderno Príncipe de Gramsci – um organismo de vontade coletiva, o partido político – o Moderno Príncipe. No palco da história dos nossos dias quem monta os cenários, escreve os roteiros, as cenas e os enredos, projeta os protagonistas, atores e personagens, compõe os bastidores e idealiza o comportamento das massas de telespectadores dos espetáculos é o “mundo TV”. Assim, lemos e vemos o mundo sob a luz dos holofotes, um mundo produzido pelas câmeras e revelado e montado em laboratórios sofisticados de imagens e sons. É o nosso mundo real encenado nas telas do “mundo TV”. O Príncipe Eletrônico não é nem condottiero nem partido político. “É entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua…” O príncipe eletrônico é a nova versão da ideologia dominante exercer seu poder mágico – a virtù fetichizando e fantasmagorizando a fortuna – feito o “intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em escala nacional, regional e mundial, sempre em conformidade com os diferentes contextos sócio-culturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo” (Octávio Ianni, O Príncipe Eletrônico). É a civilização das tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas a exercerem o fascínio, o encanto sedutor, o assédio irresistível, com imagens, sons, movimentos e uma “estranha novilíngua” – “ nova vulgata planetária” – nominada por Pierre Bourdieu e Loïc Wasquant, em nova bíblia do Tio Sam.
Realmente, a novissimalíngua do WatsApp – é kkkkkkk, eeeeeebaaaa, xxiii, vixi, e outras sonoridades. Ler mensagens mais longas e bem estruturadas em E-mail, já era.
por João Wanderley Geraldi | out 24, 2017 | Blog
A violência simbólica e o arbitrário cultural são da essência da escola e nela persistem. Tudo indica, no entanto, que já não podem ser exercidas com a tranquilidade de alguns anos atrás. E as reações estão aflorando de forma material, quer pela agressão verbal, quer pela agressão física.
Os professores do ensino básico, e particularmente aqueles que ministram aulas no ensino médio, estão habituados a uma violência nada sutil: a chamada indisciplina dos estudantes que praticamente tornam impossível o trabalho com os arbitrários pedagógicos próprias das práticas do professor.
Há alguns dias, eu esperava para ser atendido nos Correios, com uma daquelas senhas de “atendimento prioritário” que fazem a gente esperar mais ou menos 45 minutos para ser atendido. A meu lado, naqueles bancos reservados a idosos, senta-se uma senhora com uma senha alguns números depois da minha. Avisei que já estava esperando há 35 minutos e que a espera dela seria longa.
– Nossa! Não posso esperar. Eu tenho aulas para dar no começo da noite!
Perguntei-lhe que disciplina ministrava, e ela me respondeu que tentava dar aulas de Biologia no Ensino Médio e que era impossível dar aulas, que alunos transavam descaradamente dentro da sala de aula. E foi por aí…
Há menos de 15 dias estava eu a serviço do Sindicato dos professores do Estado de Sergipe, fazendo palestras em seus pré-congressos em cidades do interior. Tratava-se de um encontro de professores, aberto a todos, com o temário do Congresso já que deste somente participariam os delegados. Numa destas cidades, no turno da manhã, tentava ouvir a palestra de dois colegas da Universidade Federal de Sergipe. Impossível. A conversa, em voz alta, dos professores não permitia sequer que os escutasse estando nas primeiras filas do auditório… Em certo momento, não me contive e falei ao palestrante – Pare de falar! O colega demorou a entender, mas ficou quieto e o coordenador da mesa, por cinco vezes, até ser ouvido, pedia que os professores fizessem silêncio para que a atividade continuasse…
Durante o almoço fiquei pensando na estratégia que deveria usar no período da tarde: estaria sozinho das 14 às 17,30 com estes professores! Ao retornamos para o auditório – o Sindicato havia organizado um almoço para todos os professores – novamente a concentração do público foi nos fundos do auditório, como ocorrera pela manhã. Chamado para a mesa, situada no palco, dele desci com uma cadeira e fui até o meio do auditório, convidando aqueles que estavam sentados na parte da frente que viessem para os fundos. Eu falaria no meio do auditório. E disse “Como Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé”. Foi difícil conseguir atenção, mesmo tendo pedido que aqueles que não estivessem interessados, que aproveitassem a tarde passeando pela cidade. Por diversas vezes interrompi minha fala para que a conversa baixasse o tom.
Acabei a sessão me despedindo: “Até nunca mais porque, para cá, não volto. Depois dos 70 anos, prefiro falar para pessoas educadas!” A mesma violência simbólica que os professores sofrem, devolvem na primeira oportunidade em que estão na posição de escuta, mesmo que a ela cheguem voluntariamente. E aqui há uma diferença essencial: enquanto os alunos são “público obrigatório”, os professores, em eventos como este, não são “público obrigatório”. Mas a forma de violência é a mesma. A minha agressão no final da sessão, depois de responder minguadas perguntas, respondia a uma agressão que me deixou o dia todo encurralado, imaginando formas de chegar até eles e tratar dos desafios postos para a classe trabalhadora diante do desmonte das políticas públicas e dos direitos sociais.
Participei de pré-congressos em oito cidades do interior. Todos os professores receberam em suas pastas o texto que eu havia escrito – e que obviamente não li na exposição. No final do texto, deixei endereço eletrônico e oralmente me coloquei à disposição de quem quisesse discutir o texto, depois de lê-lo: poderiam me escrever e a conversa poderia continuar. Obviamente não recebi nenhuma mensagem, de ninguém. Com certeza, o papel gasto na impressão, apostando numa possível leitura dos professores, foi dinheiro jogado fora ou o estabelecimento de diálogos no estudo não faz parte da prática dos professores. Fiquemos com a segunda hipótese, uma forma de consolo para continuarmos escrevendo, neste faz-de-conta que tomou o lugar do estudo tanto de professores quanto de alunos, uns reclamando dos outros, quando o não estudar se tornou a prática de todos!
Há, pois, violência de ambas as partes: de alunos sobre professores, de professores sobre alunos. O que chamamos de indisciplina pode ser, na verdade, o modo que os estudantes encontraram para tentarem ser ouvidos. O diálogo transcrito por Cristina de Araújo na sua crônica de ontem, neste blog, mostra que “a aula preparada” tem que “ser dada” custe o que custar… No caso, a professora foi incapaz de rearticular sua aula, passando para o debate sobre as diferenças entre “ficção” e “realidade” e os atravessamentos que se dão nos textos: a realidade está na literatura, a literatura está na realidade. A violência simbólica que se perpetra na sala de aula (ou em eventos como o narrado acima) está no cotidiano da escola.
Mas agora, depois do tiroteio em Realengo; do assassinato de estudante dentro de uma sala de aula no interior de Sergipe; do assassinato de uma professora no estacionamento da escola; do tiroteio em Goiânia, a violência deixou de ser simbólica para se tornar física.
A questão de fundo que leva à violência física ultrapassa as quatro paredes da sala de aula, vai além dos muros das escolas e põe em xeque a própria estrutura social que cada vez mais condena a maioria à mera sobrevivência enquanto concentra todos os bens e benesses nas mãos de uma minoria. A violência do todo torna cada um violento, mesmo quando sujeito de espírito calmo!
E o tiroteio e as mortes de Goiânia, com pistola militar carregada por estudante para dentro da escola, reacendem a discussão da violência no ambiente escolar. Até o tiroteio do Realengo, reprisado agora em Goiânia, estes atos bárbaros pareciam distantes da nossa realidade: era coisa de norte-americanos, estes sim habituadas a matar e a carregar livremente armas e munições.
No entanto, mesmo nos EEUU, um sujeito entrar numa escola, descarregar sua arma e matar estudantes, e depois se suicidar, ainda merece manchetes na mídia, de modo que a violência arbitrária, quase inexplicável, não se tornou rotina nem lá, lugar de uma sociedade armada e favorável a guerras, abraçando todos, de republicanos a democratas, a doutrina Bush de que o mundo é um palco de guerra. Ora, a escola está no mundo, logo faz parte do mesmo palco.
Existem outras violências nas escolas, em que se unem a violência simbólica com a violência física auto-infligida. Todos sabemos o assustador número de estudantes japoneses ou coreanos que se suicidam! Estes suicídios devem ficar também na conta geral da violência na escola. Os suicídios de estudantes denunciam, mas ninguém ouve, a estrutura seletiva do sistema escolar, a condenação de sujeitos, através das avaliações, a profissões não desejadas, a menores salários, ao fracasso pessoal. Infelizmente, aos suicídios, responde-se como se fossem atos individuais e não consequências de uma sociedade doentia.
À violência que atinge proporções alarmantes, como os tiroteios, as reações clamam por segurança: querem a polícia na escola (aliás, o estado de Goiás tinha chamado policiais para dentro das escolas e assim mesmo houve este bárbaro tiroteio), querem detector de metais nas portas das escolas, etc. No entanto, para discutir a violência física perpetrada em ambiente escolar é preciso discutir também a violência simbólica que perpassa as relações professores/direção/alunos (ops! estou acostumado a falar em direção, mas parece que agora temos “gestores” e brevemente teremos “gerentes” nas escolas) e a violência incrustrada na forma de nossa organização social que beneficia poucos para relegar a maioria aos becos das sobrevivências escassas.
por Cristina Batista de Araújo | out 23, 2017 | Blog
NOTA DO EDITOR: Antes de falar sobre o horror que novamante aparece em uma escola de Goiânia, cujos fatos são ainda obscuros, posto o texto de Cristina de Araújo sobre o que sequer se tem pensado nas escolas e está na base do problema. Seguiremos abordando o tema sem a exploração sensacionalista da imprensa e sem os conselhos banais de especialistas que sempre surgem de forma fútil e vaga para não abordar o que poderia ser relevante.
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“A forma e os estilos da enunciação ocasional são determinados pela situação e pelos integrantes mais imediatos, já os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor”. (M. Bakhtin)
Cada vez mais, tenho me convencido de que quando alguém formula um enunciado, ele expressa seu horizonte conceitual e sua visão de mundo que resultam das relações que o constituem. Não porque ele seja o princípio causador de tais relações, tampouco porque sua intenção significativa possa determinar ou limitar o que ele quis dizer, mas porque há um lugar nessa enunciação que pode ser ocupado por diferentes enunciadores. Entretanto, é necessário que se compreenda o que se espera dele ao assumir uma posição no ato enunciativo de que faz parte.
A percepção do cotidiano como fonte de investigação, em toda sua complexidade e implicações teóricas, conduz o olhar para as especificidades das conversas tanto em relação ao local de sua ocorrência e integrantes quanto em relação à dimensão histórica responsável pelo acúmulo e pela exterioridade do discurso.
Tenho aqui um registro de conversa que, em primeira análise, possibilita enfocar como a atribuição de papéis a sujeitos da esfera escolar podem exercer influência na mobilização do enunciado e/ou no reconhecimento de subjetividades:
* Contexto da conversa: Início de uma aula de português.
* Registro da conversa
Professora: Gente, peguem aí a folha da aula passada, pra gente ler…
Aluno 1: Eu não gosto de ler livro de terror… nem de suspense
Aluno 2: Prefiro um livro de fatos, de coisas reais.
Professora: Ler isso também é importante e tem outra função. E pra que serve a literatura? Primeiro que eu acho que nem todo mundo leu…
((Nesse momento alguns alunos começam a falar quase ao mesmo tempo e só dá pra entender algumas intervenções da professora))
Aluno 3: Essa aula é muito chata!
Professora: Vocês estão muito no mundo real… a literatura não tem que ser real. Vocês estão pensando só na verdade.
Aluno 1: Mas um filme não cansa, ler isso cansa.
Aluno 2: É, cansa mesmo, um texto desse tamanho!
Aluno 4: Ah, professora, e esse final é muito chato, nada a ver…
Professora: Vamos fazer assim, já que vocês estão achando o final sem graça, vamos escrever um final pra ele!
Alguns alunos: Não, não! Ah, professora, tem graça não!
Você quer é um livro de 60 páginas?!!
A culpa é da que reclamou do fim do conto!
Professora: Não, gente! Não é culpa de ninguém. Eu ia pedir pra vocês fazerem mesmo, eu só aproveitei que vocês já reclamaram.
Aluno 4: Não sei que que vocês tinham que reclamar!
Essa conversa, além de demonstrar um conflito referente aos objetos de ensino na aula de português (a leitura e a leitura de ficção), também destaca a relação que os alunos fazem do gostar/ não gostar do texto com a responsabilidade que a professora tem de promover uma aula. É como se eles tomassem a aula como uma proposta que pudesse ser aceita ou recusada, manifestando tais sentimentos em suas reclamações. A primeira tensão gira em torno do tipo de leitura a ser feita, e distinguem fatos e coisas reais de algo que eles chamam de terror e de suspense, e que a professora nomeia literatura. Em seguida, polemizam com o texto em questão caracterizando-o como cansativo e chato. Observe-se o percurso: Essa aula é muito chata. Ler isso cansa. Esse final é muito chato. Sob a alegação de que não estariam gostando apenas do final, a professora propõe outra atividade: – Já que vocês estão achando o final sem graça, vamos escrever um final pra ele! Mas a reação é o tumulto, pois a nova proposta soa como punição por terem reclamado: – A culpa é da Fulana que reclamou do fim do conto.
Algumas regularidades discursivas aparecem, apesar de não serem tratadas explicitamente. Uma delas é a de que não basta reclamar, é preciso que cada um faça sua parte: “Primeiro que eu acho que nem todo mundo leu”. Outra, é que mesmo tendo do que reclamar, em algumas circunstâncias, é melhor não fazê-lo: “Não sei que que vocês tinham que reclamar!”. Por fim, como já mencionado, há uma revisitação à caracterização do texto literário como algo descolado da vida cotidiana, com pouca utilidade e distante das experiências de leitura dos alunos.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
por João Wanderley Geraldi | out 22, 2017 | Blog
Deslocamento
Poesia desloca a retina
e não 1tem cura.
Escultura
Esculpi a palavra
retirei os excessos
incl1uí as exceções
aporei as sobras
ampliei
os getos
e o bejijei!
com um novo
sotaque
o que ficou da fotografia
uma fotografia
duas vidas duas faces duas esperanças
duas formas de nascer juntos
entre as pedras do mesmo rio
onde pescavam o futuro
renovação
ruazinha estreita
casas geminadas
quem passa
sente que o tempo
coroeu o relógio
na parede
em dias de rezas
a vizinhança
celebra o inverno
para regar o jardim
plantado
com as flores de plástico
do altar
(Socorro Nunes. O que ficou da fotografia. Recife : Linguaraz Editor, 2016)
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