MULHERES POLÍTICAS

Quando estou diante da televisão nos horários de notícias deparo cenas nos palcos exuberantes e nos salões nobres, de arquitetura espacial gigantesca, dos plenários do Senado e da Câmara e nos salões luxuosos das reuniões de ministros no Palácio do Planalto e vejo rostos e penteados de homens – poucos cabelos e via de regra brancos – rigorosamente engravatados e de ternos (fatiotas para os gaúchos) de corte e costura no estilo clássico, discursando, gesticulando, encenando atos de uma postura política quase exclusivamente de homens. Rarissimamente vejo rostos maquiados, embelezados, com cabelos bem penteados, com brincos exóticos nas orelhas, colares brilhantes nos pescoços, vestidos finos nos corpos elegantes de mulheres.

A ausência das mulheres na política e principalmente a não militância nos partidos políticos é um fato histórico tão antigo quanto o Estado. Desde o princípio da história, a política era papel e direito exclusivo dos homens até outro dia. Na realidade material de hoje, continua quase na totalidade somente de homens. Mudou na teoria por força da lei de direitos iguais de homens e mulheres. O poder de governar os destinos da humanidade e a política – inclusive perante Deus e em assuntos da Igreja – foram inventados pelos homens, só para os homens. Muito recentemente na história política, com os movimentos pela emancipação das mulheres após a Segunda Guerra Mundial, com a invenção e instalação de governos democráticos, algumas mulheres mais rebeldes e corajosas passam militar em partidos e participar da política, inclusive como candidatas a cargos eletivos. Além de discriminadas pelos homens, as mulheres tinham vergonha de serem políticas. Segundo um dístico, política é coisa suja, desonesta. Partidos políticos, nem pensar, são todos iguais: vales de esgoto. É o pensamento predominante, principalmente frente às maracutaias políticas que se articulam pelo alto na composição do poder. Porém, existem mulheres que não tem mais vergonha de serem políticas. Embora, ainda muito ausentes na militância de partidos políticos. Estes, os partidos políticos em quantidade absurda (mais de 30, isso só no Brasil), mais interessados nos benefícios políticos, nos privilégios e regalos financeiros dos seus “donos” poderosos, não são espaços e agentes de formação política e nem uma oportunidade para a renovação de políticos de novo tipo. Os partidos políticos que temos não cativam os jovens para a militância, até por ausência de compromissos ideológicos.

Neste tempo, no cenário mundial, um pouco mais de meio século da história contemporânea, houve avanços de participação de mulheres na política. Basta ver as primeiras ministras da Inglaterra e Alemanha e as presidentas do Chile, Argentina e do Brasil. É claro, a rainha Isabel da Inglaterra, rainha sem reino, não manda, não governa. Na escala local constatamos uma ausência quase total das mulheres na política. Nas Câmaras, poucas vereadoras. Nas prefeituras, quase nenhuma prefeita, nem vice. Poucas mulheres candidatas à prefeita. Poucas deputadas estaduais, federais e senadoras. E o quadro para as eleições de 2018, uma única pré-candidata. Já para a Assembleia, a Câmara e o Senado, a sensação é de total ausência das mulheres. Quantas senadoras temos? Quantas deputadas federais? E quantas deputadas nos estados? Quantas vereadoras? Assim, o cenário de candidatas é desolador.

Há caminhos para mudar este quadro? Ou, como as mulheres podem militar nos partidos políticos e participar como candidatas nas próximas eleições? Pelo engajamento político. Precisam participar e militar no partido político de sua preferência ideológica. A consciência política se forma pela participação no partido político. O partido político na   democracia é o “Moderno Príncipe” na acepção de Gramsci. A consciência não cai do céu, e nem virá de presente dos homens. Há um desejo nacional muito forte e vivo de construção de uma nova ética social e uma nova ética política. Este é um novo espaço para a inteligência e a sensibilidade política das mulheres.

Esta é a nova percepção que pode ser comandada por uma ética também nova da participação das mulheres na política. Quem sabe, pensar num Instituto de Formação Política de jovens, mulheres, trabalhadores, professores…

ENEM 2017: UM TRAÇO FORA DA CURVA?

Acostumados a outros “escândalos” relativamente às provas do ENEM (acusações de vazamento, sumiço de provas, erros em questões e outras pequenas falhas que faziam o gosto da mídia interessada em produzir escândalos), desta vez tivemos outras instituições e os fatores interferindo neste Exame Nacional, porta de entrada para a Universidade para grande parte dos jovens brasileiros.

Comecemos pelas inscrições (6,1 milhões de inscritos). Apesar do número astronômico, ele representa 65% do número de inscritos no ano passado! Uma redução de 35% no número de candidatos ao ensino superior deveria ser motivo de grande preocupação e debate entre educadores, entre os elaboradores das políticas públicas de educação e entre os responsáveis pela condução da economia nacional. A sensibilidade para perceber o rombo nos sonhos dos jovens, no entanto, está embotada pela crise econômica, encoberta diariamente com o bombardeio midiático supostamente “contra a corrupção”.

Enquanto o público se enoja pelo que ouve, o projeto de sociedade vai sendo delineado e implantando: enquanto nos governos anteriores houve aumento significativo de oportunidades, com elevação do número de vagas e a criação de novas universidades públicas, além dos programas PROUNI e FIES, agora determina o MEC a redução de vagas nas universidades federais, por simples portarias… Mas isso não é notícia que valha a pena para a mídia brasileira. São poucas vagas, mas são vagas a menos! Junte-se a isso o fim do FIES, a redução de verbas para a educação, e está traçada a “nova” geografia de acesso ao ensino superior. Trata-se do “novo” que o retrocesso traz: o acesso ao ensino superior voltará a ser privilégio da elite e da classe média. Logo, muito logo, não haverá mais ensino superior gratuito, porque o estrangulamento orçamentário das universidades vai exigir alguma forma de financiamento para que não chegue ao patamar em que as universidades públicas foram deixadas pelo governo de FHC.

O segundo problema: o editorial do ENEM torna público um critério de correção das redações. Trata-se da exigência de respeito aos direitos humanos nas respostas dos estudantes. O discurso do ódio, do racismo, do nazi-fascismo que está no ambiente político e policial do país seria motivo de reprovação na prova de redação. O MBL ficou tiririca… e MBL braba põe medo, muito medo, no Judiciário brasileiro. Então um juiz, em primeira instância, suspende a proibição do desrespeito ao que é lei no país! E a Dona Carmen Lúcia o secunda apressada, num despacho que é um primor: o defeito era expor o critério de exclusão, se fosse um critério de correção, não explicitado, tudo bem… Ora, explicitar o motivo único que levaria à nota zero na redação, um exercício de democracia, coisa rara no Brasil de hoje, foi o crime do INEP!!! Um crime que imediatamente o Judiciário veio “corrigir” para salvaguardar o sagrado direito de ofender sem ser incomodado! O Judiciário está aí para garantir o discurso fascista que vem ele próprio proferindo sem qualquer respeito à sua própria jurisprudência, neste estado de exceção em que estamos vivendo: julga-se segundo a cara do freguês. E se o freguês é “bom”, ‘isto não vem ao caso’!

E aí veio a prova. E o tema da redação pôs milhões de jovens a descobrir que existe uma minoria, a ter que pensar sobre esta minoria, a ter que engolir que esta minoria tem direito à educação. Quando se pergunta pelos “desafios da educação de surdos”, pressupõe-se e afirma-se que eles têm direito à educação. Este o quadro de partida para o autor da redação, dado pela forma de expressão do tema. Não aceitar um pressuposto é recusar o ponto de partida do outro (no caso, o da prova). Certamente deve ter havido algum militante do MBL, daqueles mais afoitos, que recusou o pressuposto. Afinal, nos tempos do líder histórico máximo do movimento, Hitler determinou que na Alemanha não haveria surdos, não haveria deficientes físicos ou mentais. Mandou todos para sanatórios, e a mídia de então, como faria a mídia de hoje, apregoava a existência de um tratamento milagroso – todos seriam curados. Alguns meses mais tarde, os pais recebiam individualmente a cartinha do governo informando que o “paciente” não resistiu ao tratamento. Foi assassinado, mas ‘isso não vem ao caso’. Estes que recusaram o pressuposto estão garantidos pela lei: Dona Carmen Lúcia disse que podem dizer o que quiserem…

O mais importante do tema desta redação foi obrigar a pensar! E pensar num problema que não frequenta as escolas. Não está no currículo. Não é previsto pela BNCC. Aliás, as perguntas de cultura geral que apareceram na prova de Humanidades estão totalmente em desacordo com a BNCC em tramitação… Tudo para mostrar que o básico é insuficiente para ser aprovado para ingresso no ensino superior!

Esta prova está fora da curva: fez o MBL engolir um tema que envolve direitos humanos de uma minoria; fez Dona Carmen Lúcia engolir seu despacho (uma boa ideia era encomendar um despacho para vários ministros do STF); fez os ‘examinandos’ pelo ENEM terem que pensar e escrever sobre o que a maioria não quer ver – a existência de diferenças num sociedade. E traz para os professores inúmeros ensinamentos, o pior deles, infelizmente, é que a Justiça não gosta de direitos humanos!!! 

A uniformização da escola

O processo educativo é permeado por diferentes interesses e intimamente ligado às finalidades institucionais, e a elaboração de um currículo não pode ser vista apenas como um conjunto de conhecimentos. Ela é parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção e da visão que um grupo tenha sobre o que seja conhecimento legítimo.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz à tona, no campo da educação, práticas nada novas: por um lado, solidificar a ideia de que a existência de parâmetros comuns nos diferentes modos de ensino e nas múltiplas realidades escolares possa garantir a qualidade de ensino ou a construção de uma sociedade justa; por outro lado, minimizar a compreensão de que os currículos são produzidos por diferentes articulações que englobam demandas de comunidades disciplinares, de equipes técnicas de governo, do empresariado, de partidos políticos, de associações, etc. etc.. Há ainda a estratégia de criação de um suposto consenso, quando o MEC abre à consulta o documento preliminar da BNCC. Esse ato parece querer legitimar e encerrar o debate em torno da política de currículo. Aliás, política remete muito mais a produção de sentidos e de interpretação do que a definição de universalismos e de aprendizagens essenciais, conjuntas e progressivas, que todos os alunos devem desenvolver.

Não se produz debates onde se abre espaço apenas para comentários ou complementos ao que está sendo proposto. É preciso propor outras perguntas, outros processos, outras formas de pensar a política de currículo.

A que serve a uniformização curricular? Então, o conhecimento é um objeto que pode ser transmitido e distribuído indiferentemente? O que fazer de sujeitos diferentes, em contextos diferentes, (re)interpretando e (re)significando os saberes de formas diferentes, em função de existências diferentes?

A que serve a testagem em larga escala como avaliação do que se aprende? Então, uma vez feita a seleção dos conhecimentos a serem ensinados, é possível verificar, em uma única avaliação, o que efetivamente foi ensinado e aprendido? Tais processos de avaliação não estariam transformando o direito de aprender em dever de produzir resultados? O trabalho empreendido para criação de um currículo comum e consumível não poderia ser revertido para a criação de propostas curriculares locais que evidenciassem a diversidade e a produção na diferença?

Se há problemas na educação brasileira, não é porque as professoras e professores careçam de um manual detalhado do que ensinar.  Se “os alunos de hoje não aprendem o que precisam a cada ano”, não se pode atribuir levianamente ao discurso do fracasso que leva à naturalização da constante falta e da impotência. Os profissionais da educação são responsabilizados mesmo quando as dificuldades de realização das atividades escolares passam por questões fora do âmbito pedagógico, por violências impetradas em diferentes esferas, e por falta de condições de vida da população de uma maneira geral.

Na altura das discussões, questionar a Base Nacional Curricular Comum pode soar em vão, já que sua homologação parece inevitável. Mas, insisto em dizer que garantir uma educação democrática não significa uniformizar o que todos devem aprender, e que as singularidades e imprevisibilidades, quando articuladas, são capazes de produzir conhecimento na diferença.

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Domingo: um poema de Jacques Prévert

Café Pingado

É terrível 

o barulhinho do ovo cozido quebrado contra o balcão de zinco

terrível esta barulho

quando ele se agita na memória do homem faminto

terrível também a cabeça do homem

quando se vê às seis da manhã

no espelho da grande loja

uma cabeça cor de poeira

mas não é a sua a cabeça que ele vê

na vitrine da casa Fauchon

pouco lhe importa essa sua cabeça de homem

não pensa nela

sonha

imagina uma outra cabeça

cabeça de vitela por exemplo

com molho de vinagre

ou cabeça de qualquer coisa que se come

e mexe lentamente o maxilar

lentamente

e trinca os dentes lentamente

pois o mundo se diverte à custa da sua cabeça

e ele nada pode contra o mundo

e conta com os dedos um dois três

um dois três

três dias que não come

e já está cansado de repetir por três dias

As coisas não podem continuar assim

mas continuam

três dias

três noites

sem comer

e por detrás do vidro

patês garrafas conservas

peixes mortos protegidos pelas latas

latas protegidas pelo vidro

vidro protegido pelos tiras

tiras protegidos pelo medo

quantas barricadas por seis sardinhas infelizes…

Mais adiante o bar e restaurante

café com leite e pãezinhos quentes

o homem titubeia

e lá dentro da sua cabeça

um nevoeiro de palavras

um nevoeiro de palavras

sardinhas para comer

ovo cozido café com leite

café pingado rum

café com leite

café com leite

café com crime npingado de sangue”…

Um homem muito estimado no bairro

cortaram a gargante dele em pleno dia

o assassino o vagabundo lhe roubou

dois francos

ou seja um café pingado

zero franco setenta centavos

dois pãezinhos com manteiga

e vinte e cinco centavos de troco a gorjeto do garçom

É terrível

o barulhinho do ovo cozido quabrado contra o balcão de zinco

terrível este barulho

quando se agita na memória do homem faminto.

Textos sobre textos: Número Zero

Este romance de Umberto Eco tem a estrutura de um livro dentro de outra narrativa, não pra produzir o efeito de que uma é verdadeira e a outra ficção, mas para separar dois momentos (que materialmente aparecem inclusive na composição com diferentes letras). A narrativa que contém o enredo maior funciona como introdução e como conclusão da história da criação de um jornal – Amanhã – que jamais teve um número em circulação, ainda que organizadas as pautas para os números 0/1 e 0/2 e os redatores tenham se debruçado para compor suas matérias.

Colonna é um escritor frustrado que vive de traduções do alemão para o italiano. O romance, sempre adiado. Considera-se um erudito fracassado: Os perdedores, assim como os autodidatas, sempre têm conhecimentos mais vastos do que os vencedores, e quem quiser vencer deverá saber uma única coisa e não perder tempo sabendo todas, o prazer da erudição é reservado aos perdedores. Quanto mais coisas uma pessoa sabe, menos coisas deram certa para ela.

Ele recebe um estranho convite: participar do cotidiano da feitura de um jornal que jamais circulará e cujo objetivo, do editor e financiador, é dispor do título para fazer chegar a quem lhe interessava a possibilidade de que um escândalo escabroso qualquer estava para ir à prensa e circular. Um jornal que serviria, pois, para uma ameaça. A função de Colonna seria de revisor das matérias como disfarce, mas de fato deveria escrever um livro sobre a elaboração do próprio jornal, durante um ano. Este livro seria publicado pelo chefe de redação, Simei, depois do fechamento do Amanhã. Este o plano. Este o contrato de trabalho.

O corpo de redatores foi composto por seis jornalistas, quase todos eles de experiência fracassada. Entre eles um espião (Lucidi). O enredo se compõe das reuniões de pauta, da elaboração das matérias. Mas o que emerge na narrativa é uma crítica contundente à prática jornalística feita precisamente por quem a executa: jornalista. As personagens acabam apresentando um “código de ética” às avessas (e descrevendo na ficção o modo de funcionamento da mídia e, sem querer, praticamente definindo a mídia brasileira contemporânea!).

Neste jogo é possível perceber um duplo: Umberto Eco é especialista em semiologia, em comunicação! E seus personagens são praticantes do jornalismo… As vozes desses contém a voz do crítico da comunicação: impossível não associar o romance ao trabalho acadêmico do autor.

Consideremos algumas destas acerbas críticas ao jornalismo que, nas vozes do chefe de redação, do revisor ou de algum jornalista, instruem os leitores do romance para efetivamente entenderem o que faz um jornal:

  1. Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias. E saber por juntas quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia. Este aqui é um diário de anteontem, na mesma página: Milão, joga o filho recém-nascido no vaso sanitário: Pescana, o irmão de Davide não está envolvido na sua morte; Amalfi, acusa de fraude a psicóloga que cuidou de sua filha anoréxica; Buscate, sai do reformatório depois de quatorze anos o gatoro que aos 15 matou um menino de 8. As quatro notícias aparecem na mesma página, e o título da página é “Sociedade Criança Violência”. Certamente se fala de atos de violência em que algum menor está envolvido, mas se trata de fenômenos bem diferentes. Só em um caso (o infanticídio) há violência de pais contra filhos, o caso da psicóloga não me parece dizer respeito a crianças porque não se diz a idade desta filha anoréxica, a história do garoto de Pescana prova, eventualmente, que não houve violência, que a morte do garoto foi acidental e por fim o caso de Buscate, lendo-se bem, se refere a um marmanjão de quase trinta anos, e a notícia verdadeira é de quatorze anos atrás. O que os jornais queriam nos dizer com esta página? Talvez nada intencional, um redator preguiçoso se viu com quatro despachos de agências nas mãos e achou útil juntar todos, porque produziria mais efeito. Mas de fato o jornal transmite uma ideia, um alarme, um aviso, sei lá… Em todo caso, pensem no leitor lendo cada uma dessas quatro notícias individualmente, ele teria ficado indiferente, mas todas juntas o obrigam a permanecer mais tempo nesta página. […] Atenção: fazer notícia é uma boa expressão, notícia quem faz somos nós, e é preciso saber fazer a notícia brotar das entrelinhas. (destaque meu)
  2. A insinuação eficaz é a que relata fatos sem valor em si, mas que não podem ser desmentidos porque são verdadeiros.
  3. Se por acaso se espalhasse a ideia de que a poluição no mundo compromete não só as baleias mas também (desculpem o tecnicismo) os perus, acho que teríamos súbitas conversões ao ecologismo. [No contexto: perus = pênis]
  4. 4.      … o leitor acha que a norma é fazer serviço porco e é preciso destacar os casos de profissionalismo, é um modo mais técnico de dizer que tudo correu bem. A polícia capturou o ladrão de galinhas? Agiu com profissionalismo.
  5. 5.      Os jornais ensinam como se deve pensar.
  6. 6.      … para contra-atacar uma acusação não é necessário provar o contrário, basta desqualificar o acusador.
  7. 7.      … ninguém nunca é cem por centro íntegro, mesmo que não seja pedófilo, não tenha matado a avó, nem embolsado propinas, terá feito alguma coisa estranha. Ou então, se me permitem a expressão, estranhifica-se aquilo que ele faz todos os dias.
  8. 8.      De uma não-notícia, cavamos uma notícia. E sem mentir.
  9. 9.      O que a senhora sentiu com a morte o seu filho? Os olhos das pessoas se enchem de lágrimas e elas ficam satisfeitas. Existe uma ótima palavra alemã, Schadenfreude, satisfação pessoal com a infelicidade alheia. É esse sentimento que o jornal deve respeitar e alimentar. 
  10. 10.   … por enquanto o nosso leitor é sensível ao assunto. Lucidi, o senhor, que tem tantas fontes interessantes, o que poderia dizer sobre os bichas na política; mas, atenção, sem dar nomes, aqui ninguém quer acabar na Justiça, trata-se só de agitar a ideia, o fantasma, provocar calafrios, sensação de desconforto.

Este decálogo, retirado folhando o livro, mostra que ao narrar esta história o que se vai fazendo é uma crítica contundente à prática jornalística. O leitor também se divertirá com os bastidores da redação, especialmente com a jornalista Maia – que acabará se tornando amante de Colonna, com quem ele ficará no final do romance. O primeiro exemplo retiro da discussão provocada pela necessidade de “substituição” de expressões em matérias jornalísticas. Maia sugere um “Manual de Substituições” e sugere:

Quero dizer, seria legal sugerir que , em vez de dizer caralho, toda vez que alguém quisesse exprimir surpresa ou decepção, deveria dizer: “Oh, órgão externo do sistema geniturinário masculino em forma de apêndice cilíndrico inserido na parte anterior do períneo, bateram minha carteira!

Maia, por brincadeira, propõe a publicação de anúncios de “encontros pessoais”, mas com a interpretação! Tomemos dois exemplos destes anúncios com suas interpretações:

Patrizia, 42 anos, solteira, comerciante, morena, alta e magra, meiga e sensível, deseja conhecer um homem leal, bom e sincero, não importa seu estado civil, desde que tenha entusiasmo. Interpretação: Putz, com quarenta e dois anos (e não digam que, se me chamo Patrizia devo ter quase cinquenta como todas que têm esse nome) ainda não consegui arranjar um marido e vou levando a vida com a mercearia que herdei da minha pobre mãe, sou um pouco anoréxica e fundamentalmente neurótica; será que existe algum homem que me leve para a cama, não importa se é casado, desde que tenha as devidas vontades.

Ainda tenho esperança de encontrar uma mulher capaz de amar realmente, sou solteiro, bancário, 29 anos, acredito ter boa aparência e um caráter impetuoso, procuro moça bonita, séria e culta que saiba me envolver numa esplêndida história de amor. Interpretação: Não consigo pegar mulher nenhuma, e as poucas que achei eram burras e só queriam casamento, imaginem se com a miséria que ganho vou conseguir sustentar mulher; depois dizem que tenho um caráter impetuoso porque as mando tomar naquele lugar; pois bem, não sou de jogar fora, será que existe algum pau de virar tripa que pelo menos não fale “nós vai” e tope dar umas boas trepadas sem exigir demais?

Há, no entanto, uma história contida nestas histórias todas: Braggadocio, um dos jornalistas, corre atrás de documentos com uma hipótese fantástica – Mussolini não morreu, mas um sósia e ele foi salvo pelo Vaticano e pelos serviços secretos existentes em toda a Europa, financiados pela CIA. Trata-se de um conjunto de conspirações, todas para evitar que a Europa se tornasse comunista, seguindo a União Soviética. Muitos golpes, muitos atentados da direita, tudo reunido numa teoria da conspiração mirabolante…

Braggadocio conta suas investigações a Colonna e, no final, para Simei, o chefe de redação que fica entusiasmado com a ideia de uma longa reportagem, mas pede-lhe que confirme algo duvidoso. Mas Braggadocio aparece morto na manhã seguinte… E o medo se instala entre seus confidentes. O editor/financiador resolve fechar o jornal. E todos recebem dois salários e os agradecimentos de praxe. O Amanhã sem ter tido um único número, desparece.

E então começa a “conclusão” do romance: Colonna esconde-se numa casa de Maia nos Alpes. Lá ouve uma reportagem da BBC, na televisão, em que toda a história de Braggadocio, que consideravam apenas elocubrações, vem a público! A BBC, assim, liberta Colonna de seu medo, e ele não precisará fugir da Itália, como lhe propusera Maia, e poderá ficar por lá mesmo, pois muito brevemente a Itália se tornaria uma republiqueta sul-americana, onde tudo é às claras. Eis a proposta que Maia lhe fizera:

… vamos procurar um país onde não haja segredos e tudo ocorra à luz do dia. Entre a América Central e a do Sul existe um monte. Nada escondido, todos sabem quem pertence ao cartel das drogas, quem dirige as organizações revolucionárias, você se senta no restaurante, passa um grupo de amigos e eles apresentam um sujeito como o chefão do contrabando de armas, todo bonito, barbeado e cheiroso, com aquele tipo de camisa branca engomada que se usa por fora das calças, os garçons o reverenciam señor daqui, señor dali, e o comandante da Guarda Civil vai homenageá-lo. São países sem mistérios, tudo ocorre à luz do dia, a polícia afirma ser corrupta por regulamento, governo e delinquência coincidem por ditame constitucional, os bancos vivem de lavagem de dinheiro e ai de você se não levar mais dinheiro de proveniência duvidosa, tiram-lhe a licença de permanência, matam-se, mas só entre eles e deixam os turistas em paz.

Resta dizer: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência!  

Por quem os sinos dobram?

Dia de Finados. Feriado. Bom perguntar por quem, hoje, dobram os sinos. Porque há os que se foram, finados. E há os que definham, finados vivos, por quem os sinos já podem dobrar. Se os que se foram são as almas, os que aqui estão são corpos vivos, individuais e coletivos. Se a dor se sofre individualmente, é no coletivo que ela se elabora, se articula, se gesta até dar nascimento em cada um na forma de dor.  

E é da dor de ver morrer o futuro da educação e da saúde brasileiras que gostaria de falar neste Dia de Finados. No sistema de exploração do pré-sal, antes da lei José Serra em benefício das grandes petroleiras, havia destinação dos lucros de exploração no sistema de partilha: tratava-se de financiar a educação e a saúde brasileiras. Mas José Serra se interpôs com seu projeto de lei no Senado, virado lei a ser cumprida: nada de sistema de partilhas…

Pois não é que na semana que passou, a ANP veio a público, de boca cheia, para saudar e louvar os 6 bilhões obtidos nos leilões ocorridos dia 27.10.2017, data do falecimento do futura da educação e saúde!

São 6 bilhões que desaparecerão como desapareceram todos os bilhões obtidos nas privatizações tucanas. Alguém sabe onde foi parar o produto da venda dos bens nacionais? Alguém é capaz de citar uma grande obra feita durante os oito anos dos processos de privatização, os maiores deles comandados pelo então Ministro do Planejamento, José Serra?

No passado, surgiram Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Aumentou a dívida pública, mas as obras estão aí até hoje; no passado mais recente, incluindo lucros obtidos com a Petrobrás, temos outros saldos: o aumento de 18 novas universidades federais e o Brasil saiu do mapa da fome, para o qual voltou neste ano!

Enfim, a boca cheia diz: 6 bilhões com a venda. Somente esquecem de dizer ao distinto público: o BNDES destinará mais do que isso para financiar as atividades das petroleiras explorarem nossos recursos (cada barril de petróleo vendido no leilão teve o irrisório preço R$ 1,00.

E a Medida Provisória 795, que está valendo e será aprovada pela Câmara e Senado brevemente, prevê redução de impostos para as petroleiras, equivalerá a uma doação às petroleiras que compraram nosso futuro na ordem de 30 bilhões, para outros 40 bilhões, em apenas 3 anos!!! E não contente com isso, o relator da Medida Provisória, Dep. Júlio Lopes (PP-RJ) estendeu o prazo de isenções e de regalias para as mesmas petroleiras: em lugar do prazo se encerrar em 2022, como previsto originalmente, a isenção valerá até 2040!!! Se em três anos, fiquemos com a previsão mais baixa, deixaria o governo de arrecadar 30 bilhões, quanto deixará de arrecadar até 2040 ???

Por isso os sinos dobram: não pelos finados no passado, mas pelo futuro que o tucanato que comanda a economia nacional está assassinando. E assassinando com experiência longa de destruição de futuros, desde que a bolada grande caia nas contas das pessoas indicadas, aquelas que “a gente mata antes de delatar”.