Textos sobre textos: Figura na Sombra

Este romance de Luiz Antonio de Assis Brasil é o quarto volume de um conjunto de romances históricos, Visitantes ao Sul. Este volume é dedicado ao botânico Aimé Bonpland: uma biografia ficcionalizada, mas alicerçada na história real vivida em parte com o companheiro de aventuras e estudos, Alexander von Humboldt. Somente a sabedoria de Assis Brasil poderia escrever este livro.

De forma extremamente criativa, o autor põe em diálogo o célebre botânico, já quase no final da vida,  com  seu visitante, o cientista Robert Avé-Lallemant, na modesta sede da Estância Santa Ana, em Corrientes, na Argentina, em 1858, precisamente o ano da morte de Aimé Bonpland.

Assim, a palavra fica com Aimé: ele narrava de seu ponto de vista toda sua vida, desde La Rochelle (lugar de nascimento, que pouco aparece no romance), passando pela vida em Paris enquanto cursava Medicina, mas efetivamente se apaixonava pela botânica, organizando seus inúmeros herbários, classificando as plantas segundo a ciência da época.

Encontra-se com Humboldt, nobre com recursos que dedicou a vida à ciência, com o qual faz a viagem para a América do Sul, chegando ao porto de Cumaná, na Venezuela. De lá parte a expedição, com seus instrumentos de pesquisa, em observação da natureza, colhendo exemplares de plantas desconhecidas, que Aimé vai classificando durante as longas viagens pelos rios. A descoberta maior dos aventureiros foi o canal Casiquiare, que liga as bacias do Orinoco com a bacia do Amazonas, através do rio Negro. A aventura de realizar este percurso em embarcações improvisadas, passando por todos os perigos possíveis, é uma das grandes páginas da história.

“Minha viagem com Humboldt foi errática, comanda pelas pestes, pela política, pela paixão, pela geografia, pela boa ou má disposição dos capitães de navios. O gênio de Humboldt deu sentido a uma aventura dirigida pelo acaso. A viagem, para ele, foi um meio para comprovar sua teoria. Ele buscou a totalidade em meio à confusão dos seres. Ele morrerá com a certeza de havê-la encontrado. Quanto a mim, encontrei a solidão, a malária e o amor. Depois disso, encontrei o pesar, o remorso e, por fim, a remissão e a sabedoria. E quanto mais vivo, mais constato que tudo é diverso, tudo é frágil, tudo é múltiplo e surpreendente.”  

Retornados à Europa, os cientistas começam a escrever Voyage aux Régions Équinoxiales (infelizmente são poucas as traduções de suas obras disponíveis no Brasil). Serão vários volumes, e as tarefas foram distribuídas entre eles. O sonho de Humboldt era encontrar na diversidade a unidade, tese que acabou defendendo em Kosmos, sua principal obra sobre as ciências da natureza.

“Um livro não substitui a vida. Qualquer livro sempre é um necrológio, um inventário. Depois de um livro publicado, cessa a busca que levou o autor à sua escrita. Nas estantes das lojas, o livro torna-se algo mesquinho. Enquanto o livro permanece na gaveta de quem escreve, estará salvo.”

Ambos, ainda em Paris, vão visitar a imperatriz Josefina (esposa de Napoleão) e sua estufa com plantas de todas as partes do mundo. Surge então a grande paixão de Aimé: ele não consegue se desligar de Josefina, que chamará de Rose e para a qual produz um tipo especial de rosa, a que dá o nome da imperatriz. Atendeu a seu convite e se torna o botânico do Império, passa a viver no palácio de Mailmaison, em que vivia Josefina. Ama-a com os olhos, com o coração. Sabe-se talvez correspondido, mas tudo permanecerá um amor platônico. A este período, Assis Brasil dará o nome de Prisão de Vidro.

Por causa de seus afazeres em Mailmaison e sobretudo por causa de sua paixão, Aimé Bonpland abandona o projeto conjunto com Humboldt, mas este continua sua obra e publicando-a sempre em nome dos dois.

“Eu estava apaixonado. Pessoas apaixonadas sempre traem alguém. Eu traía Humboldt, mas entre nós se interpunha a Natureza, essa entidade que entendíamos de maneira tão diversa.”

Com a morte da imperatriz, “a Europa ficara despovoada” e o botânico, para esquecer tudo, retorna à América do Sul, mas para uma região diferente daquela que explorara com Humboldt. Quer esquecer e por isso não pode voltar aos mesmos lugares que o lembrarão do companheiro e de seu abandono do projeto conjunto. Vem para o sul, vem para Buenos Aires, onde organizaria para o governo um Jardim Botânico e um Museu de História Natural.

No entanto, as constantes mudanças políticas jamais lhe permitirão realizar esta obra. Desiludida, abandonará mulher e enteada para perseguir outro sonho. Encontrando homens tomando chimarrão, descobre a “erva-mate” e sai em busca desta erva que considerará milagrosa. Conhece a geografia, precisa chegar às terras em que a yerba era nativa. Segue para o norte, compra uma fazenda e começa sua plantação de erva-mate. Torna-se estancieiro.

Plantando erva-mate, encontra um inimigo: o Dr. Francia, El Supremo, Ditador Perpétuo do Paraguai. Embora as terras de Aimé não ficassem no Paraná, elas foram invadidas a mando do ditador que tudo destrói e o prende em Cerrito, onde tem a liberdade de formar nova plantação e viver em paz, mas prisioneiro. Não pode deixar o Paraguai. El Supremo o mantém prisioneiro, apesar dos inúmeros pedidos de autoridades e cientistas do mundo inteiro. Em Yo, El Supremo, Augusto Roa Bastos inclui este período de prisão do cientista, inclusive o da consulta que lhe faz o ditador quando estava sem esperanças com suas inúmeras doenças.

Como todo ditador, certa manhã El Supremo acorda decidido a libertar Aimé Bonpland, mas este tem que sair do Paraguai nele deixando sua mulher e filha!

“Nenhuma autoridade, entretanto, consegue disfarçar-se da vigilância da História.”

Mais uma vez Bonpland está na estrada. Com o dinheiro que acumulou com a venda do produto das plantações de erva-mate comprara terras no Brasil (na região de São Borja) onde chegará precisamente durante a Revolução Farroupilha. Acaba construindo um hospital de campanha para atender feridos das revoluções do Brasil e da Argentina. Mas não abandona sua plantação de erva-mate. Como tinha também outras terras, estas em Corrientes, acaba se transferindo para a Estância Santa Ana, às margens do rio, para recomeçar tudo.

“Nada que é novo nos pertence. É preciso que  o tempo, em seu curso, dê às coisas um sentido, exclusivo de seu possuidor. Só depois de um ano ele considera aquelas terras como suas.”

Será na Estância Santa Ana que Avé-Lallemant, portador da homenagem que lhe envia Humboldt, o encontrará e ouvirá sua história, contada duas vezes e sem mudanças. Quando termina de ouvir pela segunda vez a narrativa:

“- Mas doutor Bonpland – diz Avé-lallemant – penso ter escurtado a mesma história.

“Foi outra. O que eu lhe disse, quando me entregou a medalha mandada por Humboldt?”

– Peso que foi: “Só um homem generoso como Humboldt pode dar esses presentes do coração”.

“Mas eu dizia com a minha alma: ‘Nunca poderei retribuir esse gesto. Esse presente me sepulta mais no meu remorso.’ O que importa, doutor, é o sentimento com que as coisas são ditas.”

– Como é isso? – Avé-Lallemant alarma-se.

“Quando lhe contei os fatos da minha vida pela primeira vez, foi pensando no que o senhor diria para o mundo e para a minha Posteridade; na segunda vez, eu contei tudo debaixo do sentimento da vergonha e do perdão. Eu precisava ser perdoado.”

É para este mergulho na alma de um homem, de um cientista, que Assis Brasil nos conduz. Bonpland, reconhecido e homenageado pelo mundo, sempre carregou – neste romance que lhe mostra a face humana – o remorso por ter preferido a paixão à ciência; a vida ao livro.  Por isso confessa

“Minha vida é demasiada. Um homem vive apenas para arrepender-se das suas infidelidades e para experimentar seu próprio declínio. Meu caro doutor Avé-Lallemant: dá-me agora um imenso sono. Já conversamos tudo o que deveríamos.”

Resta recuperar, no próprio texto, a razão do título do livro: Figura na Sombra

“E quando na Europa souberem que eu morri, muitos dirão que me julgavam morto há muitos anos. Isso acontece a quem foi uma figura na sombra. Mas viver a sombra foi minha melhor absolvição. E n ão falo apenas à sombra de Humboldt, mas à sombra do que é bom e que é belo, à sombra do amor, à sombra da vida.”

Impossível não transcrever certos enunciados. Nos idos de 1958, meu professor de Língua Portuguesa ensinou a todos nós que organizássemos um “florilégio” com dizeres. Pois aí vai o que então anotaria no meu “florilégio”, para sempre perdido ainda em 1958:

Os suicidas, por não encontrarem respostas, legam-nos as perguntas.

O viajante não vê o conjunto, mas o pormenor imediato. E, ainda, ele tudo avalia segundo seu próprio interesse e suas paixões. A imparcialidade é a menor de suas virtudes.

As responsabilidades dos velhos são sempre tremendas, pois tudo o que fizerem é sob o olhar da Morte.

… na Natureza não há reis, apenas súditos abandonados a uma vontade confusa e, no entanto, esplêndida.

A inveja e o ciúme vigiam nossos passos.

O improvável também pode ser verdadeiro…

A mente humana é um poço de esquecimentos.

Os livros têm existência material para que as ideias não se percam.

Um homem ilustrado que dispensa os livros é um homem sábio. Um erudito precisa dos livros, os sábios os escrevem.

Minhas reais descobertas são aquelas que podem ajudar as pessoas a viverem melhor, tanto do espírito como do corpo. Essa é uma forma bela de viver.

Uma Posteridade só existe quando a vida é contada para alguém.

As estrelas ignoram os destinos dos homens. As estrelas lançam os homens no esquecimento.

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Apenas um adendo: já encomendei todos os outros três livros do conjunto “Visitantes ao Sul”.

Textos de Arquivo XVII: Aprende-se a escrever, escrevendo

Nota introdutória

Este é mais um artigo escrito para a revista Signo, de Santa Cruz do Sul. À época eu já estava na coordenação das publicações de revistas do IEL/Unicamp há mais de quatro anos e sabia que a maioria dos periódicos, naqueles tempos, acabava sucumbindo no quarto ou quinto ano. Ajudava meu ex-professor e amigo Ingo Voese a não deixar morrer a Signo! Naqueles tempos, o cotidiano do professor universitário não era povoado pelos controles de “produção acadêmica” e a carreira docente não se resumia a “correr atrás de papers”. Não existia o Qualis, as revistas iam sobrevivendo. Para fechar cada número, mesmo nas revistas da Unicamp, eu andava sempre à procura de artigos para publicar! Das quatro revistas então publicadas, a mais problemática era a revista EPA: Estudos Portugueses e Africanos. Para manter sua periodicidade, depois que a Profa. Maria Lucia Dal Farra se transferiu para Sergipe, percorri um calvário para mantê-la e com periodicidade. Hoje a revista não existe mais. Tudo “vem ao caso”, para usar uma expressão da moda, para justificar este curto texto que meu amigo Ingo incluiu no V.10. n. 16, outubro de 1985, na revista SIGNO. É coincidência que os textos dos alunos, aqui transcritos, tratem do desemprego nos idos de 1983… a história se repete, sempre como farsa.

Aprende-se a escrever, escrevendo

Neste texto não pretendo ir além de apontar para dois tipos de atividades que, executadas em aulas de português, são consideradas como suporte para a melhoria da expressão escrita: o ensino da gramática e a leitura. Creio que não há entre professores de português dois equívocos tão difundidos quanto a estes: o de que o conhecimento gramatical é indispensável à “boa expressão” e o de que lendo aprendo a escrever.

Em várias oportunidades apliquei um questionário em que solicitava a colegas professores que respondessem à questão “na vida prática, qual a utilidade dos conteúdos ensinados aos alunos?”. E como em resposta a outra questão anterior, haviam arrolado como conteúdos das aulas de português tópicos como “funções sintáticas”, “classes de palalvras”, “encontros vocálicos”, “leitura de textos” etc.,  com raríssimas exceções, a resposta a esta pergunta era de que tais conhecimentos “melhoram a capacidade de expressão oral e escrita dos alunos”. Tais respostas supõem que “o indivíduo que conhece gramática tem melhores condições para controlar sua expressão”.

Rodolfo Ilari (1978) resume com precisão os três objetivos que o ensino de gramática, assim concebido, deveria cumprir, sendo cada um deles condição para o seguinte:

  1. A assimilação de uma nomenclatura gramatical,
  2. a caracterização, mediante nomenclatura assimilada, do que sejam sentenças corretas,
  3. a efetiva prática de auto-controle, baseado nessa caracterização consciente da “correção”.

Teríamos, então, o que o autor chama de “a boa expressão como sub-produto da gramaticalização”, projeto que, evidentemente, discorda pois para ele “o objetivo específico da redação como exercício escolar não é a correção gramatical”.

O simples fato de um aluno dominar uma metalinguagem que o capacita a descrever sentenças não é garantia de que seja capaz de produzir, num texto, sentenças adequadas ao processo de interação em que está engajado ao produzir um texto. Este á um dos mais arraigados equívocos que tem norteado o ensino de português. É tão difícil superá-lo quanto superar outro equívoco, interno a este: o de que saber uma nomenclatura e com ela descrever sentenças dadas não é ainda uma prática de análise linguística, mas, tal como a gramática é ensinada na escola, apenas uma exemplificação de análises previamente existentes.

O segundo equívoco é o de que ler ensina a escrever: aqui se atribui à leitura uma função distinta daquela que ela realmente preenche. Este equívoco é responsável por ‘outras regras’ que funcionam na escola: só se deve ler “bons autores”, “boa literatura” (e eu até acrescentaria uma regra nunca explicitada: “só se devem ler autores de 100 anos atrás”). Escrever não é imitar o que os outros escreveram! No entanto, quanta coleção de “frases bonitas” os alunos destes brasis têm anotado em seus “florilégios”. Depois, não muito depois, os professores se veem às voltas com “o astro rei raiou brilhante”, “os pintos pipilavam alegres” e outras menos votadas e nem por isso menos frequentes.

Não estou, aqui, querendo negar valor à leitura. Estou querendo negar-lhe esta função, embora tenha defendido e continue a defender que a leitura de um texto pode ser pretexto para a produção de novos textos. E é precisamente a produção de novos textos que ensina a escrever. É o corolário do princípio de que se aprende a fazer fazendo, o de que se aprende a escrever escrevendo.

À esta breve reflexão sobre estes dois equívocos, gostaria de juntar dois textos produzidos por alunos de 6ª. série do 1º. grau . São textos produzidos em abril de 1983 (transcrevo as versões originais), e ambos têm como temática o desemprego. Na época, a questão do desemprego chamou atenção do país graças aos saques ocorridos em São Paulo, fatos amplamente noticiados pela imprensa. Os dois autores têm experiências escolares diferenciadas. O autor do primeiro texto, na série anterior, participava do projeto de ensino de português que se desenvolve em Aracaju; o autor do segundo texto, na série anterior, seguiu o ensino tradicional de português. Nenhum dos textos foi escolhido entre os ‘melhores’ dos dois grupos de alunos. Vamos aos textos:

Texto 1

O desemprego no Brasil

O desemprego no Brasil está insuportável, em São Paulo houve uma revolta dos desempregados, quebraram vidros de ônibus, arrombaram as lojas, foi uma coisa horrível.

No Rio de Janeiro, foi a mesma coisa, a Polícia Militar e Civil tiveram que jogar bombam e outras coisas.

Aqui em Sergipe o desemprego também está crescendo, o Ministério do Trabalho não sabe mais o que fazer. O governador João Alves já foi à Brasília, expor o problema ao presidente da República.

Ele está muito preocupado porque em São Cristóvão já tem mais de 6 mil desempregados.

Em Minas Gerais mais de 10 mil homens forma despedidos.

Em Pernambuco tem uma cidade que não tem desempregados, é a cidade de Nossa Senhora do Capibaribi.

Mais não é só no Brasil que esta havendo esta crise, os Estados Unidos, a Inglaterra e outros país também estão em crise.

Texto 2

Em São Paulo, o desemprego e o fato que todas as jentes comentão.

O desemprego estar pasando do limites, muitas pessõas, estão pasando fome. O povoado de São Paulo, e Rio, estão fazendo greve para o governador de São Paulo em Sergipe. O desemprego já esta também como o mesmo problema do desemprego, em São Cristóvão, o povo, já está proveniciano ão governador, o governador, esta muito do preocupado, com isso mais até aqui ele aida não fez nada, que tem o seu próprio emprego, esta na boa.

Não pretendo desenvolver qualquer análise mais profunda dos dois textos: sua transcrição tem o objetivo de permitir ao leitor uma comparação de resultados obtidos na estruturação textual, consequência de uma opção de ensino que, radicalizando posições, estabelece objetivos diferenciados e, consequentemente, altera as atividades desenvolvidas em aula. E duas das mudanças de atitude dos professores são precisamente a de não crer que “a boa expressão seja produto da gramaticalização” e a outra é de que para aprender a escrever é preciso escrever. Como os dois autores leram o mesmo texto (um noticiário de jornal) e participaram do mesmo debate em sala de aula, não se pode atribuir a diferença no manuseio da modalidade escrita à leitura, e sim à prática, ao convívio com o ato de escrever.

É óbvio que ninguém escreve se não tem o que dizer, pois o uso da modalidade escrita não foge à regra geral da interação verbal: o discurso é sempre o discurso de alguém sobre algo para alguém. Se o primeiro texto é melhor estruturado, é, por outro lado, excessivamente descritivo. Falta-lhe algo a mais para dizer sobre o desemprego, embora tenhamos que considerar, nesta crítica, quem fala: um aluno de 6ª. série, de escola de periferia de Aracaju. O autor do segundo texto, revelando boa percepção de nossa sociedade: “quem tem o seu próprio emprego está na voa”, frase que pode revelar uma crítica ao “salve-se quem puder” de nossas apatias sociais, não conseguiu estrutura seu texto para dizer sua palavra e, por não conseguir estruturá-lo, produziu um texto de difícil compreensão.

Bibliografia

Ilari, Rodolfo. “Uma nota sobre a redação escolar”, Estudos Linguísticos 2, GEL/fafil, p. 82-101, 1978.  

Carro forte, fuzis, tiros, morte e a bolsa família

Na terça voltamos para casa, de Campinas para Barequeçaba. Viagem sempre tranquila. Saímos tarde, e por isso resolvemos fazer um lanche no restaurante Vaca Preta, já na Rodovia dos Tamoios. O restaurante fica quase no encontro com a Rodovia Carvalho Pinto. Entramos na pista sem qualquer problema e chegando ao restaurante. Quando estacionamos o carro, ouvimos os tiros, rajadas e gritaria conosco para que corrêssemos para dentro do restaurante! Víamos os clarões dos tiros, ouvíamos os estalidos e não entendíamos nada! Foram muitos tiros.

Dentro do restaurante, as pessoas assustadas. Fomos então informados que o carro-forte acabara de sair dali, feito o recolhimento tanto do restaurante quanto do posto de gasolina, e logo adiante, como sempre, fizera o retorno e voltava pela pista no sentido de São José dos Campos (sentido contrário ao nosso).

Dois carros-fortes fazem este serviço diariamente: um segue de Caraguatatuba, subindo a serra e recolhendo a féria do dia em restaurantes e postos de gasolina; outro faz o caminho em sentido inverso, mas ambos se encontram na altura deste restaurante e voltam juntos para São José dos Campos. As horas deste serviço são incertas, nada rotineiras.

Pois não é que neste dia, especificamente, mudando nossos hábitos, fizemos o lanche no Vaca Preta e não no Ranchinho. Para nossa sorte. Do contrário teríamos passado pelo meio do tiroteio.

A quadrilha bem armada – com fuzis – esperava os carros-fortes na pista. Quando o primeiro motorista percebeu que seria assaltado, fez uma manobra arriscada e retornou pela estrada na contramão. E os bandidos os seguiram atirando com fuzil!

Um caminhoneiro, em seu trabalho, vinha pela pista e foi a vítima: dois tiros de fuzis no peito e outro no braço. Não sobreviveu. Na gabine do caminhão estavam outros dois: um correu para o mato, o outro saltou – não consigo imaginar como – a separação entre as duas pistas e veio ao restaurante pedir que chamassem uma ambulância! O socorro chegou para constatar o que os corajosos que foram ao caminhão já haviam constatado: a morte do motorista.

O corpo de bombeiros nos pediu que não seguíssemos viagem antes de meia ou uma hora. Desceu tanto carro da polícia por ambas as pistas que ficamos todos assustados.

E como costuma acontecer nestes momentos, todo mundo fala: desconhecidos se tornam conhecidos. E imediatamente aparecem como cada qual reagiu. Um casal com dois filhos, que acabara de sair do restaurante e estava voltando para a pista, ao ouvir e ver o tiroteio, o pai pede que todos se abaixem, engata uma ré e volta para o restaurante! Pego ao colo a menina Clara e ela me narra a aventura em sua linguagem infantil de 4 anos.

No meio da conversa, um senhor distinto abre seu discurso, afirmando, mais ou menos nestes termos: a gente sai para a estrada mas não sabe se volta. E esta insegurança toda é porque estes petistas ficam afagando a cabeça de vagabundos. Isso tudo é culpa do bolsa família! Tem que parar com isso de alisar vagabundo e ladrão! Não simpatizo muito com o Bolsonaro, mas este país está precisando de um louco como ele para por ordem nesta bagunça de direitos humanos, de criminosos valerem mais que os cidadãos honestos!

Saímos da roda de conversa, fomos calmamente comer doces… é sempre um bom remédio: encher a boca para não falar. Afinal, este discurso de que tudo é culpa de petistas e de que a bolsa família produz vagabundos e criminosos é um discurso tão conhecido que não precisávamos mais ouvir. Mas ficamos encantados: a bolsa família deve estar em patamares muitíssimo elevados, porque permitem a compra de fuzis para a prática de assaltos! Quem diria que o MiShell Temer elevaria tanto assim o valor da bolsa família!!! Deve ser para que esqueçamos da Shell.  

ZIRALDO, CONTINUE ZIRALDO ADOLESCENTE

Aos 85 anos de idade, Ziraldo continua em plena e vigorosa atividade artística e estética como se estivesse em plena adolescência longeva. Numa linguagem alegre, divertida, leve, ridente, exata e sincera ele fala em entrevista, publicada na Folha de S. Paulo de 7 de novembro de 2017 – C1. Quando a gente lê as palavras dele a sensação é que ele está brincando com as palavras, gozando a vida e rindo da velhice. E ele faz isso trabalhando horas intensas, dias sem fim e madrugadas silenciosas sem cansar. Escreve livros – literatura infantil – desenha, faz charges, organiza exposições das suas obras artísticas desde os tempos do “Pasquim”, da revista “Bundas”, do livro “O Pipoqueiro da Esquina” de Carlos Drummond de Andrade, do Jornal do Brasil e todos os livros de sua autoria.

A leitura da entrevista é divertidíssima, igual à leitura dos livros dele e dos desenhos e das charges. A gente fica escutando o riso. Ziraldo continua cativando os leitores dos seus escritos e os olhadores dos seus desenhos. Ele me fez relembrar a admoestação gentil da raposa ao principezinho: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (Antoine de Saint-Exupéry). Eu gostaria muito de fazer uma pergunta sincera e sem maldade nenhuma: Ziraldo, você já imaginou e pensou nos milhões de crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos que você cativou com sua arte? Se a admoestação da raposa ao principezinho continua verdadeira, você precisa continuar a cativar outros milhões de crianças…

E tem um fato alentador: os seus escritos e desenhos já se constituíram em verdadeiros clássicos – aquelas obras artísticas em que a estética e a verdade não tem data de vencimento. Do jeito que Ítalo Calvino percebeu e escreveu: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. A cada nova leitura das suas histórias e a cada novo olhar aos seus desenhos, o sentido é outro.

Na entrevista, Ziraldo debocha da velhice, embora inconformado com a tirania e impiedade do tempo que passa. Diz ele: “Eu fiquei velho tem uma semana”, quando comemorou os 85 anos de vida. Isso nos faz lembrar e pensar que cada ano a mais que vivemos é um ano a menos para viver. A matemática da “soma zero” é danada, impiedosa.  “A velhice é uma coisa que te acontece de surpresa. Demorou 85 anos para chegar, fiquei irremediavelmente velho”. Porém, a genialidade do Ziraldo continua em nível cada vez mais elevado. “Continuo com o mesmo regime de trabalho [de quando era jovem]. Estou na prancheta até de madrugada, é vital para mim. Se eu parar, morro”. Isso é emblemático. São lições de vida de quem junta e mistura inteligência, sentimento, estética e experiência. Um compromisso e comprometimento com a vida. Aqui, o Ziraldo me faz lembrar o que disse o também genial arquiteto Oscar Niemeyer, quando comemorou 100 anos de vida: “Continuo construindo projetos arquitetônicos. Pena que um dia vou precisar parar para morrer”.

Frente à crise do Brasil de hoje, Ziraldo atesta uma consciência política lúcida, embevecida de princípios éticos e morais que servem de exemplo real e material para todos.

Assim, meu desejo profundo, sincero e íntimo é que o Ziraldo continue Ziraldo. Cativando e seduzindo crianças, adolescentes, jovens e adultos à paixão da leitura e à emoção da arte do desenho. Tem coisa mais bela e prazerosa na vida das pessoas do que sentir e vivenciar a emoção das histórias que o Ziraldo inventou e escreveu e a emoção da alegria das histórias das charges que ele desenhou? Ziraldo, continue Ziraldo.

Perplexidades à parte, os fatos não são ordinários

Há autoridades perplexas. Porque fatos extraordinários estão acontecendo na república declarada  em fins do Século XIX, incrementada no Século XX, circunstancialmente abatida por golpes de estado e rotineiramente inexistente pelo patrimonialismo típico da cultura dominante brasileira desde as capitanias hereditárias: o público é dos privilegiados. Com alguma concessão à classe média, que age em público com a coisa pública como se fosse propriedade sua – quanto mais fazem isso, mais seus membros se julgam de elite, partícipes do poder.

Enquanto nós ficamos boquiabertos, as autoridades ficam perplexas. E às vezes chegam a manifestações frementes de indignação. Acontece que há vozes falando, falando e o véu está se rasgando. Afinal, boquiabertos, mas não mentecaptos. Antes imbecilizados pela mídia tradicional, agora reagem como não imbecis proferindo discursos desconexos e atrevidos. Foi assim que se foi construindo a perplexidade dos de cima.

Admitido, por portaria presidencial, que o trabalho escravo já não é mais escravo, houve gritaria. Aí veio à público um ministro do STF, o militante do PSDB, Gilmar Mentes a estranhar. Dizia o ministro que seu trabalho era intensivo, estafante, mas nem por isso ele o considerava um trabalho escravo. Mesmo que uma colega sua tenha, monocraticamente, suspendido a portaria do trabalho escravo, o ministro Gilmar Mentes apoia seus termos e mostra que exploração intensiva, estafante, quem sofre é o ministro, não seus empregados na fazenda. Não há trabalho escravo, exceto no STF!

Depois vem a Ministra dos Direitos Humanos, Dra. Luislinda Valois, exigir seus salários ministeriais. Acontece que ela é desembargadora aposentada, e somando os dois salários chegaria a mais de R$ 61 mil… E na reclamação, dizia estar sendo submetida a trabalho escravo como ministra. Justo ela, que sendo dos Direitos Humanos, deve estar na linha de frente ao combate ao abuso dos direitos! Escravatura de uma ministra! É perplexidade para ninguém botar defeito. Depois, desistiu do feito. Uma injustiça que agora pode ser reparada: o STF acaba de garantir que não há mais teto quando se tratam de dois empregos, permitidos pela Constituição! Teve até voto (Ricardo Lewandowski) dizendo que o não pagamento integral dos duplos salários configuraria trabalho escravo…  Agora, Luislinda, faça valer a decisão dos ministros, passe a exigir seus salários de ministra de estado. Quer mais? Sempre  há!

Na ordem dos fatos ordinários, veio a decretação de prisão dos parlamentares Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos  da ALERJ, envolvidos ao que tudo indica, numa longa e tradicional roubalheira– por isso mesmo, já “jurisprudência” firmada em que ninguém deveria mexer. Pois não é que tudo é encaminhado para a própria ALERJ decidir o destino dos deputados, seguindo decisão e modelo referendado pelo STF. E seguindo a prática usual, desde os engavetamentos do Senado no caso Aécio e dos arquivamentos na Câmara nos casos Temer, os ínclitos deputados salvaram os colegas e Picciani sentou-se novamente na cadeira de presidente de Assembleia. Mas não é que o senhor ministro Marco Aurélio de Melo ficou perplexo! O mesmo ministro que salvou Aécio Neves, que lhe devolveu o mandato, que votou pelo encaminhamento da questão aos senadores, este mesmo ministro fica perplexo porque lhe seguem o exemplo! Dá para entender? Não sei desenhar perplexidade tão complexa!

E secundando a perplexidade, seguiu-lhe o ministro Luiz Fux (aquele mesmo que o deputado surtado Paulo Ramos chamou de “Luiz Foda-se”) para dizer, em entrevista na BBC, que a decisão dos deputados estaduais foi “lamentável”, “vulgar” e “promíscua”. E que será revista no STF… é que dependendo do freguês, não é só o Gilmar Mentes que rasga as regras, é todo o STF que age segundo interesses políticos do momento. O senador de PSDB pode ficar no Senado; os deputados estaduais devem se submeter ao Judiciário! Afinal, onde estamos? Numa ditadura do Judiciário, não é? Então, que vergonha é essa!!!

Requentando perplexidades, o Blog do Fucs (Estadão) republica afirmações de um lídimo representante dos altos poderes, no ano de 2013, o Dr. Ives Gandra: “Não Sou: – Nem Negro, Nem Homossexual, Nem Índio, Nem Assaltante, Nem Guerrilheiro, Nem Invasor De Terras. Como faço para viver no Brasil nos dias atuais? Na …verdade eu sou branco, honesto, professor, advogado, contribuinte, eleitor, hétero… E tudo isso para quê?” (disponível em http://blog.opovo.com.br/portugalsempassaporte/nao-sou-nem-negro-nem-homossexual-nem-indio-nem-assaltante-nem-guerrilheiro-nem-invasor-de-terras-como-faco-para-viver-no-brasil-nos-dias-atuais/ ). Corria então o ano de 2013, e o golpe do impeachment já estava bem tecido… A republicação deste texto, em novembro de 2017, responderá a que desígnios? Será para lembrar que estão falando muito contra o Reforma Trabalhista? Contra a portaria do trabalho escravo? Tudo sem dar atenção à minoria privilegiada? Talvez isso venha à memória do Estadão por uma razão: estão querendo mexer com as propinas da mídia tradicional, esta minoria que comanda e que está sendo desrespeitada pelos tribunais da Espanha, da Suíça e dos EEUU! Seria isso?  

E agora vem outra perplexidade nada lamentável. Eis que o Sr. Dr. Fernando Segóvia, novo diretor geral da PF, vem dizer que a mala de dinheiro entregue ao portador Ricardo Rocha Loures, indicado como tal por Michel Temer, a viva voz gravada, não é prova de nada!!! Mesmo tendo devolvido o valor – faltando um pouquinho que afinal ninguém é de ferro – agora se descobre que na mala não havia provas nenhumas… Tudo enganação do Rodrigo Janot!!! Afinal, Segóvia foi nomeado e remodelará e apressará as investigações, e nestas novas investigações, malas de dinheiro não são provas de nada. Seguramente, Geddel Vieira Lima está ofegante de tanta esperança que lhe abre o novo Diretor Geral da Polícia Federal: aquelas malas e caixas de dinheiros naquele apartamento também não provarão nada! Afinal, todo mundo pode guardar dinheiro em malas, e isso não é crime! Está tudo desenhadíssimo na lei.

Manda o bom jornalismo que se ouça o outro lado. Embora não seja jornalista, e este blog não tem pretensão de dar notícias, vamos ouvir o outro lado, o lado dos que não são autoridades perplexas com seu povo. E o outro lado fica por conta da pior notícia da semana que passou:

…um menino de 8 anos desmaiou de fome em uma escola pública na vizinhança dos palácios de Brasília. O agente de saúde do Samu que atendeu ao chamado de uma professora constatou a doença: falta de comida.

Valei-me São Josué de Castro (Recife,1908-1974), rogo ao médico e cientista pernambucano pioneiro na denúncia da fome como questão real da política, ainda nos tristes trópicos de 1946, depois de examinar operários que desmaiavam no chão de uma fábrica de tecidos no bairro da Torre, Recife. Sob a agulha da vitrola, o Chico Science & Nação Zumbi, free jazz sampleado das tripas do subdesenvolvimento, dá a letra: “Ô Josué eu nunca vi tamanha desgraça/ Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.

Morador de um conjunto do Minha Casa, Minha Vida, no Paranoá Parque, o menino faminto estuda a 30 km da residência, no Cruzeiro, Distrito Federal. O caso foi noticiado pelo DF TV. Os governantes, como sempre, em suas notas frias e oficiais, lamentam o ocorrido.

Espero que a primeira-dama Marcela e a equipe do seu programa “Criança Feliz” atentem para a gravidade. Faço votos que a bancada do Congresso que tanto se escandaliza com a nudez artística, entre outras manifestações, se comova com a mais triste das notícias da semana. Ah se fosse apenas o menino da escola do Cruzeiro. Na mesma sala, palavra de professora, existem outros. A conta de somar é sem fim no Brasil devolvido à geografia da fome. (disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/17/opinion/1510950046_724120.html?id_externo_rsoc=TW_CC )

Dia Nacional da Consciência Negra (Por Corinta Geraldi)

Neste 20/11,presto minha homenagem a todas e todos que lutam pela causa. Há sempre os que acham que o racismo é só  um ‘deslize’ (sic!); outros, que foi sem intenção; outros ainda, que você vê ‘pelo em ovo’. 

Mas quem diz isso não são os que o sofrem, mas os que o praticam.

Eu confesso que já aprendi muito sobre o tema, (não é, minhas Professoras Rosa Maria Barros Ribeiro e Luci Crispin Michaela?), mas muito tenho ainda que aprender, porque nasci num ambiente que “naturalizou” a harmonia étnica, de classes, que acha que chamar de “negrinho” é carinhoso, que sentir pena é um sentimento bom.

Rasgar estas falsas noções pela de alteridade, significa você se rever, a si, aos colegas, aos amigos, aos transeuntes, aos moradores de rua…

Significa superar os preconceitos que estão inculcados em nossa consciência e na nossa cultura. Significa abrir-se para o outro, a outra, ao que considera que é bonito, normal, padrão, certo, porque é diferente de mim. Porque pensa diferente, tem valores diferentes, atitudes e modos de vida diferentes dos meus, mas não ruins ou perigosos. Simplesmente diferentes.

Aqui a consciência negra me ajuda a me abrir para outras diferenças que preciso também encarar: de outras religiosidades, outras culturas, outros partidos, outros gêneros, outros países, gostos musicais, padrões de beleza e de moda, diferenças etárias… E por aí vai. 

E isto vale para a arte que vai tentar ‘ler’ esse real e suas confusões! Acham que censurando a arte resolvem o problema! A arte ajuda-nos a entender o que vivemos!!!

A democracia significa a convivência com as diferenças!!! E estamos em um momento que o que mais há é o ódio !!! 

Que esse dia nos ajude a sonhar com um outro mundo possível em que as diferenças façam uma soma para melhorar a humanidade e não pra dividir ou subtrair!!!