Textos de Arquivo XVIII. Práticas de produção de textos na escola
Nota introdutória
Texto da conferência feita no III Encontro de Professores de Redação do Estado do Rio de Janeiro, ocorrido em novembro de 1985 na PUC/RJ. O texto então apresentado foi publicado nos Anais do evento, em 1986, e posteriormente foi aceito para publicação nos Trabalhos em Linguística Aplicada (número 7).
A redação foi reintroduzida nos vestibulares, a partir de 1975, como uma tentativa de se contrapor à tecnologia da educação que havia introduzido entre nós a preferência por questões fechadas, com as respostas já estabelecidas, e em que a única escrita exigida por um vestibular era saber traçar um X em uma das opções de respostas disponíveis. Ensinavam-se, então, técnicas para descartar as respostas obviamente falsas, ficando sempre a decisão entre apenas duas ou três. Não sabendo qual escolher, o chute era recomendado. Nada de deixar questões sem resposta! Poderia dar certo… Reintroduzida a prova de redação, muitas escolas de ensino médio (então 2º. Grau) introduziram em sua grade curricular uma nova disciplina: Redação. A área da linguagem vinha então sofrendo um contínuo esquartejamento: Gramática, Literatura, Redação e até mesmo em algumas escolas, Leitura.
É a presença do componente curricular Redação que está na base da realização deste Encontro no Estado do Rio de Janeiro. Sempre advoguei contra estas “especialidades”, defendendo a integração entre as diferentes facetas de um mesmo fenômeno: a linguagem. O tom do texto não perde suas características de militância e de certa presunção (por exemplo, usando verbos como “estabelecer”). Mais uma vez aparece, no conjunto de conceitos utilizados, um marxismo mais ou menos difuso: condições de produção, agentes (professores e alunos), produtos, etc.
A discussão que se travou com o público foi uma questão aparentemente superficial, mas que efetivamente correspondia ao problema aqui abordado: denominar as aulas de “Redação” ou de “Produção de Textos”? Numa prova, só pode haver redação, porque não se pretende mais do que saber se o concorrente sabe escrever. Ora, como as aulas estavam preparando para uma prova (o vestibular), o objetivo mais próximo era que aprendessem a escrever “redações”, função da escola. A expectativa era que depois viessem a produzir textos.
Prática de produção de textos na escola
O objetivo desta exposição é contrapor dois tipos de atividades relativas à escrita que pode ser expressos no binômio “escrever para a escola/escrever na escola”. Ao contrapor, deveria comparar diferentes textos, ainda que não fosse por razões empíricas, ao menos por razões metodológicas. Dispenso-me de ambas as razões em função de outra: os interlocutores deste texto, professores de língua portuguesa, convivem cotidianamente com ambas: com as redações de seus alunos, geralmente escritas para a escola, e com os textos – literários ou não – lidos todos os dias (embora algumas destas nossas leituras visem “didaticizar” os próprios textos).
Tomo esta distinção, talvez excessivamente intuitiva, como ponto de partida para poder refletir sobre os rituais que a produzem e para, num segundo momento, levantar algumas questões relativas aos problemas e soluções apontados pela prática pedagógica do ensino de escrever.
É preciso que eu confesse, de imediato, de onde vem a intuição, o lugar que me faz ver a existência do escrever para a escola e do escrever na escola: entendo a linguagem como uma atividade interacional, constitutiva dos sujeitos que a praticam mas também constituída por estes mesmos sujeitos e por esta mesma prática. Aceitar a interação como nuclear, exige:
…admitir que o discurso é “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados (Bakhtin); é admitir, como corolário, que todo o discurso é fundamentalmente dialógico. Para o linguista soviético, este caráter interacional, dialógico, do discurso se manifesta em todos os níveis: no nível, sobretudo, do diálogo, em que toda a réplica se articula com o que o interlocutor acaba de dizer e vai dizer; no nível também do discurso, aparentemente o mais monológico, o texto escrito, pois este, escreve Bakhtin, “responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura um suporte, etc.”; no nível dos atos linguísticos, cuja realização é modelada pelo confronto entre a fala e o extra-verbal e contra a fala do outro; no nível, enfim, da significação da palavra, “produto da interação do locutor e do interlocutor.” (Roulet, 1985, p. 41)
Se, na aquisição da linguagem oral, uma tal concepção pode mais facilmente explicar seu processo, na aquisição da língua escrita, cuja aprendizagem apresenta dificuldades de natureza distinta, os problemas enfrentados quer pelo locutor-aprendiz quer pelo interlocutor-professor acabam por produzir um ritual pedagógico destruidor das características fundamentais da linguagem: aprendendo a escrever na escola, mas escrevendo para ela, a escrita perde a mais central e mais evidente de suas atribuições, o estabelecimento da interlocução à distância (Cf. Osakabe, 1982).
Explicito um pouco mais a questão: para quem o aluno escreve sua redação? Aliás, já na denominação traímos (ou explicitamos?) a diferença: ensinamos “redação” e esperamos que o aluno produza “textos”.
Talvez eu esteja agora em condições de estabelecer uma primeira diferença instituidora do ritual: na escola o aluno escreve redações, um exercício que, simulando a função da escrita, o prepara para produzir textos quando fora da escola. Conjugam-se, para tanto, dois aspectos de uma mesma representação: 1) a escola prepara para a vida; 2) a língua está aí, constituída, pronta, à disposição, e usá-la é simplesmente se apropriar do que já está pronto. O ritual escolar é a forma de melhor se preparar para a vida e o exercício redacional, o caminho para aprender como se faz para se apropriar da língua escrita. Ora, de um lado nega-se à escrita seu caráter interacional, de outro, nega-se o real em dois diferentes níveis: o tempo da escola deixa de ser tempo de vida para se tornar preparação para a vida, e nesta, os alunos, em sua grande maioria, convivem com adultos que raríssimamente escrevem. Desta contradição resulta a pergunta óbvia, para que aprender a escrever? A resposta: para ultrapassar os obstáculos construídos pela própria escola. Eis um saber de necessidade circular. Aprende-se a escrever na escola para a própria escola.
Esta primeira diferença, a simulação, pecado original, dominará todo o processo de produção e determinará seu resultado. Aponto alguns problemas desse processo e de suas condições de produção, respondendo o levantamento das perguntas formuladas por Osakabe (1979, p. 59), e cujas respostas forneceriam o jogo de imagens que sustentaria a produção do discurso.
- “Qual imagem faço do ouvinte para lhe falar dessa forma?”
Voltamos, aqui, à questão do “para quem” o aluno escreve. O destinatário mais evidente, mais próximo, é o professor, ainda que o exercício seja escrever para um amigo um bilhete convidando para uma festa que não ocorrerá. Note-se, no entanto, que o professor é um papel institucional: representa a escola, representa quem ensina, não se trata, pois, de um destinatário “real” que ouvirá/lerá o texto, mas de um papel que anula este destinatário. O aluno vive a contradição de escrever para quem lhe ensina a escrever, que lerá o texto não para saber o que o texto diz mas para ver se o aluno sabe ou está aprendendo a escrever. A presença deste interlocutor, com esta imagem, é tão forte que acaba destruindo o próprio locutor. Seu texto não representará o produto de uma reflexão ou uma tentativa de, usando a modalidade escrita, estabelecer uma interlocução com o leitor-professor. O professor sabe escrever, e o que o aluno deverá demonstrar em seu texto é que aprendeu a escrever na forma que lhe foi ensinado. Uma dupla destruição: a do locutor e a do interlocutor.
- “Qual imagem penso que o ouvinte faz de mim para que eu lhe fale dessa forma?”
O aluno é quem está aprendendo. Seu sucesso ou insucesso, na vivência escolar, determinará não só a imagem que a escola faz dele (afinal, é esta imagem que sustentará a existência de classes especiais) como a incorporação, pelo próprio aluno, desta imagem. Em geral, a imagem que o aluno faz de como o professor (e a escola) o imagina não é positiva. E o exercício redacional é, em alguns casos, momento em que o aluno tenta reverter esta imagem, incorporando “a incompetência” que lhe foi inculcada nos anos anteriores. Afinal, a própria necessidade de estar sempre a fazer exercícios não está a lhe dizer, a todo momento “você não sabe”?
- “Que imagem faço do referente para lhe falar dessa forma? Que imagem penso que o ouvinte faz do referente para lhe falar dessa forma?”
Um discurso tem sua justificativa e sua medida na imagem que o locutor faz do referente, e esta imagem, em algum ponto, ele supõe que seja diferente daquela que o interlocutor faz do referente. É precisamente o fato de o locutor imaginar se situar de modo singular em relação às informações preexistentes à sua enunciação que legitima sua fala, seu discurso, num determinado contexto. Entretanto, na situação escolar, a exigência que lhe faz o exercício obriga-o a dizer algo sobre o que não se imagina possuir informações novas, quase que, fugindo à regra da informatividade do discurso, ter que dizer sem ter o que dizer. Na maioria dos casos, seu trabalho consiste em organizar as informações disponíveis, e que lhe foram dadas pela escola, para devolvê-las, na forma de redação, à própria escola. Ora, o aluno sabe que o professor já sabe o que ele está dizendo. Isso talvez possa explicar certos “saltos de informações” no texto, já que redundantes para a interlocução e, paradoxalmente, explicar também a redundância, a repetição e, às vezes, a incoerência de textos escolares: o aluno não está escrevendo para dizer algo sobre o referente, mas para mostrar ao professor que sabe algumas coisas sobre o referente, assunto da redação, e, aproveitando o ensejo, mostrar também que sabe algo sobre outras coisas. Enfim, é preciso preencher o espaço, preferencialmente num arcabouço recomendável…
- “Que pretendo do ouvinte para lhe falar dessa forma?”
Condição fundamental da tomada da palavra, objetivos possíveis de discursos (convencer/persuadir o interlocutor, divertir, informar, perguntar, etc.) desaparecem na redação. Aqui, na escola, o aluno “fala dessa forma” com o objetivo de mostrar que sabe escrever. Não é o que diz que orienta seu trabalho. A preocupação maior do locutor é aproximar-se de uma forma modelar, ensinada pela escola, de como dizer o que zi, pois este é, fundamentalmente, o saber que será avaliado. E “para a redação ficar mais bonita; para mostrar ao professor que a gente sabe; para a redação ficar menos vulgar, mais rica, diferente do que a gente fala” (Brio, 1984, p. 114), o aluno mistura num mesmo texto formas da linguagem oral a formas eruditas ou que imagina mais “nobres”, isto é, mais escolares. Em suma, este objetivo de “mostrar que sabe” acaba anulando até as possibilidades do jogo lúdico com as formas linguísticas.
Os remédios que a prática pedagógica tem ministrado aos pacientes alunos não me parecem apontar para a reversão do quadro de condições de produção. Procurando “salvar o doente”, cujo mal, previamente diagnosticado, se revela nos problemas presentes nas redações dos alunos, conforme apontaram professores de português em seminário realizado em Teresina (Cf. Apêndice), a pedagogia da escrita tem receitado, para sanar os problemas (ou matar o doente):
- Leitura, a partir de uma crença que não se explicita, mas se desvela em afirmações como “os alunos não escrevem porque não leem”. A leitura é entendida como forma de aprender a escrever, crença que não parece ser verdadeira já que o simples fato de termos lido romances não nos autoriza dizer que saberíamos produzir romances. Não nego o valor da leitura, nego a interpretação mecânica de que ler ensina a escrever. São duas atividades distintas, complementares, mas de natureza diversa. É desta crença, no entanto, que retiramos “modelos absolutizados” de como escrever, como se todo o texto tivesse que ter uma introdução, um desenvolvimento, uma conclusão, nesta ordem canônica e precisa;
- Gramática, acreditando que da gramaticalização resulta um bom desempenho. Ensina-se uma metalinguagem, exercita-se a análise de fatos da língua, e espera-se que sabe distinguir sujeito e predicado de uma oração não mais escreve, em suas redações, orações incompletas…
- Treinamento, acreditando que o emprego artificial da linguagem nos exercícios que seguem modelos ou naqueles em que o aluno é obrigado a “inventar” uma frase só para usar um vocábulo novo deixará o aluno em condições de usar tais estruturas (ou tais vocábulos) quando vier a escrever;
- Psico-tóxicos, acreditando que o aluno escreve como escreve porque não estava motivado para escrever. É preciso, então, ministrar-lhe “motivações”, externas ao próprio ato de escrever, e externas à própria natureza interlocutiva da linguagem. Há receitas abundantes que passam desde o “como ser criativo” até descambar em receitas quase que psico-terapêuticas.
Ao apontar para estes quatro remédios, ainda que em tom jocoso, não tive e não tenho a pretensão de análise rigorosa. Meu objetivo é mais simples: provocar um debate de professores sobre a prática pedagógica e, para tanto, escolhi o caminho da radicalização pois não creio que o consenso seja construtivo.
Agora, e só agora, talvez eu possa caracterizar um pouco mais concretamente o que entendo por “escrever na escola”. Se
- a escola e sala de aula puderem ser entendidos apenas como o espaço físico onde sujeitos se encontram,
- a aula de redação abandonar o objetivo de querer ensinar a escrever,
- aceitarmos que aprendemos a escrever escrevendo e que, a cada vez que escrevemos, estamos aprendendo a escrever pois estaremos concretamente frente a condições de produção diferentes,
ENTÃO PODEREMOS COMPREENDER QUE
- a sala de aula é um espaço físico como qualquer outro (o escritório, a casa, etc) e nela é possível escrever,
- a aula de redação não é mais do que o espaço temporal, aproveitável ou não, para iniciar um processo de interlocução à distância, os textos aí produzidos saindo em busca de leitores efetivos,
- só se aprende a escrever escrevendo e não simulando situações de escrita.
Talvez as três condições, e suas consequências, apontem para a utopia, ou porque exigem que se desloque o artificial ou porque redefine a própria escola sem modificar a sociedade que a sustenta. Utopia ou não, o que se propõe é a ação no intervalo da contradição escola/sociedade, instaurando aí a possibilidade de escrita pela instauração da possibilidade de interlocuções reais entre sujeitos reais.
Nota
- Esta “simulação” a que estou me referindo nada tem a ver com a ficção literária ou outras formas artísticas (representação teatral, etc.).
Bibliografia
BENVENISTE, é. “Da subjetividade na linguagem”. Problemas de linguística geral. São Paulo : Nacional, 1976.
BRITO, P. L. “Em terra de surdos-mudos: um estudo sobre as condições de produção de textos escolares”. In. Geraldi, J. W. (org) O texto na sala de aula. Cascavel : Assoeste, 1984, p. 109-119.
OSAKABE, H. Argumentação e discurso político. São Paulo : Kairós, 1979.
__________ “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita”. In. Zilberman, Regina (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1982.
ROULET, e. “Pragmatique et pédagogie: apprendre à comuniquer c’est apprendre à négocier”. Langues et languistique, 11, a985, p. 39-57.
APÊNDICE
A indicação dos problemas aqui listados foi feita
s por professores durante o Seminário “Leitura, produção e Análise Linguística”, em Teresina, de 27 a 29 de maio de 1985.
4ª. série
Ideias contraditórias; falta de fluência; dificuldade de expressão; dificuldade de expressão do pensamento; vocabulário restrito; ortografia; pontuação; acentuação; concordância.
5ª. série
Desconexão de ideias; desestruturação dos parágrafos; ortografia; concordância; pontuação; acentuação.
6ª. série
Falta de criatividade; pobreza de expressão; organização do pensamento; ortografia; pontuação; acentuação; concordância; emprego de letras maiúsculas e minúsculas; medo de escrever: insegurança e timidez.
7ª. série
Dificuldade de organização de ideias; criatividade; pontuação; concordância; ortografia.
8ª. série
Ortografia; pontuação; concordância; regência; estruturação do texto; sequência e carência lógica; sintaxe de colocação.
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