Textos de Arquivo XVIII. Práticas de produção de textos na escola

Nota introdutória

Texto da conferência feita no III Encontro de Professores de Redação do Estado do Rio de Janeiro, ocorrido em novembro de 1985 na PUC/RJ. O texto então apresentado foi publicado nos Anais do evento, em 1986, e posteriormente foi aceito para publicação nos Trabalhos em Linguística Aplicada (número 7).         

A redação foi reintroduzida nos vestibulares, a partir de 1975, como uma tentativa de se contrapor à tecnologia da educação que havia introduzido entre nós a preferência por questões fechadas, com as respostas já estabelecidas, e em que a única escrita exigida por um vestibular era saber traçar um X em uma das opções de respostas disponíveis. Ensinavam-se, então, técnicas para descartar as respostas obviamente falsas, ficando sempre a decisão entre apenas duas ou três. Não sabendo qual escolher, o chute era recomendado. Nada de deixar questões sem resposta! Poderia dar certo… Reintroduzida a prova de redação, muitas escolas de ensino médio (então 2º. Grau) introduziram em sua grade curricular uma nova disciplina: Redação. A área da linguagem vinha então sofrendo um contínuo esquartejamento: Gramática, Literatura, Redação e até mesmo em algumas escolas, Leitura.

É a presença do componente curricular Redação que está na base da realização deste Encontro no Estado do Rio de Janeiro. Sempre advoguei contra estas “especialidades”, defendendo a integração entre as diferentes facetas de um mesmo fenômeno: a linguagem. O tom do texto não perde suas características de militância e de certa presunção (por exemplo, usando verbos como “estabelecer”). Mais uma vez aparece, no conjunto de conceitos utilizados, um marxismo mais ou menos difuso: condições de produção, agentes (professores e alunos), produtos, etc.

A discussão que se travou com o público foi uma questão aparentemente superficial, mas que efetivamente correspondia ao problema aqui abordado: denominar as aulas de “Redação” ou de “Produção de Textos”? Numa prova, só pode haver redação, porque não se pretende mais do que saber se o concorrente sabe escrever. Ora, como as aulas estavam preparando para uma prova (o vestibular), o objetivo mais próximo era que aprendessem a escrever “redações”, função da escola. A expectativa era que depois viessem a produzir textos.

Prática de produção de textos na escola

O objetivo desta exposição é contrapor dois tipos de atividades relativas à escrita que pode ser expressos no binômio “escrever para a escola/escrever na escola”. Ao contrapor, deveria comparar diferentes textos, ainda que não fosse por razões empíricas, ao menos por razões metodológicas. Dispenso-me de ambas as razões em função de outra: os interlocutores deste texto, professores de língua portuguesa, convivem cotidianamente com ambas: com as redações de seus alunos, geralmente escritas para a escola, e com os textos – literários ou não – lidos todos os dias (embora algumas destas nossas leituras visem “didaticizar” os próprios textos).

Tomo esta distinção, talvez excessivamente intuitiva, como ponto de partida para poder refletir sobre os rituais que a produzem e para, num segundo momento, levantar algumas questões relativas aos problemas e soluções apontados pela prática pedagógica do ensino de escrever.  

É preciso que eu confesse, de imediato, de onde vem a intuição, o lugar que me faz ver a existência do escrever para a escola e do escrever na escola: entendo a linguagem como uma atividade interacional, constitutiva dos sujeitos que a praticam mas também constituída por estes mesmos sujeitos e por esta mesma prática. Aceitar a interação como nuclear, exige:

…admitir que o discurso é “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados (Bakhtin); é admitir, como corolário, que todo o discurso é  fundamentalmente dialógico. Para o linguista soviético, este caráter interacional, dialógico, do discurso se manifesta em todos os níveis: no nível, sobretudo, do diálogo, em que toda a réplica se articula com o que o interlocutor acaba de dizer e vai dizer; no nível também do discurso, aparentemente o mais monológico, o texto escrito, pois este, escreve Bakhtin, “responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura um suporte, etc.”; no nível dos atos linguísticos, cuja realização é modelada pelo confronto entre a fala e o extra-verbal e contra a fala do outro; no nível, enfim, da significação da palavra, “produto da interação do locutor e do interlocutor.” (Roulet, 1985, p. 41)

Se, na aquisição da linguagem oral, uma tal concepção pode mais facilmente explicar seu processo, na aquisição da língua escrita, cuja aprendizagem apresenta dificuldades de natureza distinta, os problemas enfrentados quer pelo locutor-aprendiz quer pelo interlocutor-professor acabam por produzir um ritual pedagógico destruidor das características fundamentais da linguagem: aprendendo a escrever na escola, mas escrevendo para ela, a escrita perde a mais central e mais evidente de suas atribuições, o estabelecimento da interlocução à distância (Cf. Osakabe, 1982).

Explicito um pouco mais a questão: para quem o aluno escreve sua redação? Aliás, já na denominação traímos (ou explicitamos?) a diferença: ensinamos “redação” e esperamos que o aluno produza “textos”.

Talvez eu esteja agora em condições de estabelecer uma primeira diferença instituidora do ritual: na escola o aluno escreve redações, um exercício que, simulando a função da escrita, o prepara para produzir textos quando fora da escola. Conjugam-se, para tanto, dois aspectos de uma mesma representação: 1) a escola prepara para a vida; 2) a língua está aí, constituída, pronta, à disposição, e usá-la é simplesmente se apropriar do que já está pronto. O ritual escolar é a forma de melhor se preparar para a vida e o exercício redacional, o caminho para aprender como se faz para se apropriar da língua escrita. Ora, de um lado nega-se à escrita seu caráter interacional, de outro, nega-se o real em dois diferentes níveis: o tempo da escola deixa de ser tempo de vida para se tornar preparação para a vida, e nesta, os alunos, em sua grande maioria, convivem com adultos que raríssimamente escrevem. Desta contradição resulta a pergunta óbvia, para que aprender a escrever? A resposta: para ultrapassar os obstáculos construídos pela própria escola. Eis um saber de necessidade circular. Aprende-se a escrever na escola para a própria escola.

Esta primeira diferença, a simulação, pecado original, dominará todo o processo de produção e determinará seu resultado. Aponto alguns problemas desse processo e de suas condições de produção, respondendo o levantamento das perguntas formuladas por Osakabe (1979, p. 59), e cujas respostas forneceriam o jogo de imagens que sustentaria a produção do discurso.

  1. “Qual imagem faço do ouvinte para lhe falar dessa forma?”

Voltamos, aqui, à questão do “para quem” o aluno escreve. O destinatário mais evidente, mais próximo, é o professor, ainda que o exercício seja escrever para um amigo um bilhete convidando para uma festa que não ocorrerá. Note-se, no entanto, que o professor é um papel institucional: representa a escola, representa quem ensina, não se trata, pois, de um destinatário “real” que ouvirá/lerá o texto, mas de um papel que anula este destinatário. O aluno vive a contradição de escrever para quem lhe ensina a escrever, que lerá o texto não para saber o que o texto diz mas para ver se o aluno sabe ou está aprendendo a escrever. A presença deste interlocutor, com esta imagem, é tão forte que acaba destruindo o próprio locutor. Seu texto não representará o produto de uma reflexão ou uma tentativa de, usando a modalidade escrita, estabelecer uma interlocução com o leitor-professor. O professor sabe escrever, e o que o aluno deverá demonstrar em seu texto é que aprendeu a escrever na forma que lhe foi ensinado. Uma dupla destruição: a do locutor e a do interlocutor.

  1. “Qual imagem penso que o ouvinte faz de mim para que eu lhe fale dessa forma?”

O aluno é quem está aprendendo. Seu sucesso ou insucesso, na vivência escolar, determinará não só a imagem que a escola faz dele (afinal, é esta imagem que sustentará a existência de classes especiais) como a incorporação, pelo próprio aluno, desta imagem. Em geral, a imagem que o aluno faz de como o professor (e a escola) o imagina não é positiva. E o exercício redacional é, em alguns casos, momento em que o aluno tenta reverter esta imagem, incorporando “a incompetência” que lhe foi inculcada nos anos anteriores. Afinal, a própria necessidade de estar sempre a fazer exercícios não está a lhe dizer, a todo momento “você não sabe”?

  1. “Que imagem faço do referente para lhe falar dessa forma? Que imagem penso que o ouvinte faz do referente para lhe falar dessa forma?”

Um discurso tem sua justificativa e sua medida na imagem que o locutor faz do referente, e esta imagem, em algum ponto, ele supõe que seja diferente daquela que o interlocutor faz do referente. É precisamente o fato de o locutor imaginar se situar de modo singular em relação às informações preexistentes à sua enunciação que legitima sua fala, seu discurso, num determinado contexto. Entretanto, na situação escolar, a exigência que lhe faz o exercício obriga-o a dizer algo sobre o que não se imagina possuir informações novas, quase que, fugindo à regra da informatividade do discurso, ter que dizer sem ter o que dizer. Na maioria dos casos, seu trabalho consiste em organizar as informações disponíveis, e que lhe foram dadas pela escola, para devolvê-las, na forma de redação, à própria escola. Ora, o aluno sabe que o professor já sabe o que ele está dizendo. Isso talvez possa explicar certos “saltos de informações” no texto, já que redundantes para a interlocução e, paradoxalmente, explicar também a redundância, a repetição e, às vezes, a incoerência de textos escolares: o aluno não está escrevendo para dizer algo sobre o referente, mas para mostrar ao professor que sabe algumas coisas sobre o referente, assunto da redação, e, aproveitando o ensejo, mostrar também que sabe algo sobre outras coisas. Enfim, é preciso preencher o espaço, preferencialmente num arcabouço recomendável…

  1. “Que pretendo do ouvinte para lhe falar dessa forma?”

Condição fundamental da tomada da palavra, objetivos possíveis de discursos (convencer/persuadir o interlocutor, divertir, informar, perguntar, etc.) desaparecem na redação. Aqui, na escola, o aluno “fala dessa forma” com o objetivo de mostrar que sabe escrever. Não é o que diz que orienta seu trabalho. A preocupação maior do locutor é aproximar-se de uma forma modelar, ensinada pela escola, de como dizer o que zi, pois este é, fundamentalmente, o saber que será avaliado. E “para a redação ficar mais bonita; para mostrar ao professor que a gente sabe; para a redação ficar menos vulgar, mais rica, diferente do que a gente fala” (Brio, 1984, p. 114), o aluno mistura num mesmo texto formas da linguagem oral a formas eruditas ou que imagina mais “nobres”, isto é, mais escolares. Em suma, este objetivo de “mostrar que sabe” acaba anulando até as possibilidades do jogo lúdico com as formas linguísticas.

Os remédios que a prática pedagógica tem ministrado aos pacientes alunos não me parecem apontar para a reversão do quadro de condições de produção. Procurando “salvar o doente”, cujo mal, previamente diagnosticado, se revela nos problemas presentes nas redações dos alunos, conforme apontaram professores de português em seminário realizado em Teresina (Cf. Apêndice), a pedagogia da escrita tem receitado, para sanar os problemas (ou matar o doente):

  1. Leitura, a partir de uma crença que não se explicita, mas se desvela em afirmações como “os alunos não escrevem porque não leem”. A leitura é entendida como forma de aprender a escrever, crença que não parece ser verdadeira já que o simples fato de termos lido romances não nos autoriza dizer que saberíamos produzir romances. Não nego o valor da leitura, nego a interpretação mecânica de que ler ensina a escrever. São duas atividades distintas, complementares, mas de natureza diversa. É desta crença, no entanto, que retiramos “modelos absolutizados” de como escrever, como se todo o texto tivesse que ter uma introdução, um desenvolvimento, uma conclusão, nesta ordem canônica e precisa;
  2. Gramática, acreditando que da gramaticalização resulta um bom desempenho. Ensina-se uma metalinguagem, exercita-se a análise de fatos da língua, e espera-se que sabe distinguir sujeito e predicado de uma oração não mais escreve, em suas redações, orações incompletas…
  3. Treinamento, acreditando que o emprego artificial da linguagem nos exercícios que seguem modelos ou naqueles em que o aluno é obrigado a “inventar” uma frase só para usar um vocábulo novo deixará o aluno em condições de usar tais estruturas (ou tais vocábulos) quando vier a escrever;
  4. Psico-tóxicos, acreditando que o aluno escreve como escreve porque não estava motivado para escrever. É preciso, então, ministrar-lhe “motivações”, externas ao próprio ato de escrever, e externas à própria natureza interlocutiva da linguagem. Há receitas abundantes que passam desde o “como ser criativo” até descambar em receitas quase que psico-terapêuticas.

Ao apontar para estes quatro remédios, ainda que em tom jocoso, não tive e não tenho a pretensão de análise rigorosa. Meu objetivo é mais simples: provocar um debate de professores sobre a prática pedagógica e, para tanto, escolhi o caminho da radicalização pois não creio que o consenso seja construtivo.

Agora, e só agora, talvez eu possa caracterizar um pouco mais concretamente o que entendo por “escrever na escola”. Se

  1. a escola e sala de aula puderem ser entendidos apenas como o espaço físico onde sujeitos se encontram,
  2. a aula de redação abandonar o objetivo de querer ensinar a escrever,
  3. aceitarmos que aprendemos a escrever escrevendo e que, a cada vez que escrevemos, estamos aprendendo a escrever pois estaremos concretamente frente a condições de produção diferentes,

ENTÃO PODEREMOS COMPREENDER QUE

  1. a sala de aula é um espaço físico como qualquer outro (o escritório, a casa, etc) e nela é possível escrever,
  2. a aula de redação não é mais do que o espaço temporal, aproveitável ou não, para iniciar um processo de interlocução à distância, os textos aí produzidos saindo em busca de leitores efetivos,
  3. só se aprende a escrever escrevendo e não simulando situações de escrita.

Talvez as três condições, e suas consequências, apontem para a utopia, ou porque exigem que se desloque o artificial ou porque redefine a própria escola sem modificar a sociedade que a sustenta. Utopia ou não, o que se propõe é a ação no intervalo da contradição escola/sociedade, instaurando aí a possibilidade de escrita pela instauração da possibilidade de interlocuções reais entre sujeitos reais.

Nota

  1. Esta “simulação” a que estou me referindo nada tem a ver com a ficção literária ou outras formas artísticas (representação teatral, etc.).

Bibliografia

BENVENISTE, é. “Da subjetividade na linguagem”. Problemas de linguística geral. São Paulo : Nacional, 1976.

BRITO, P. L. “Em terra de surdos-mudos: um estudo sobre as condições de produção de textos escolares”. In. Geraldi, J. W. (org) O texto na sala de aula. Cascavel : Assoeste, 1984, p. 109-119.

OSAKABE, H. Argumentação e discurso político. São Paulo : Kairós, 1979.

__________  “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita”. In. Zilberman, Regina (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1982.

ROULET, e. “Pragmatique et pédagogie: apprendre à comuniquer c’est apprendre à négocier”. Langues et languistique, 11, a985, p. 39-57.

APÊNDICE

A indicação dos problemas aqui listados foi feita

s por professores durante o Seminário “Leitura, produção e Análise Linguística”, em Teresina, de 27 a 29 de maio de 1985.

4ª. série

Ideias contraditórias; falta de fluência; dificuldade de expressão; dificuldade de expressão do pensamento; vocabulário restrito; ortografia; pontuação; acentuação; concordância.

5ª. série

Desconexão de ideias; desestruturação dos parágrafos; ortografia; concordância; pontuação; acentuação.

6ª. série

Falta de criatividade; pobreza de expressão; organização do pensamento; ortografia; pontuação; acentuação; concordância; emprego de letras maiúsculas e minúsculas; medo de escrever: insegurança e timidez.

7ª. série

Dificuldade de organização de ideias; criatividade; pontuação; concordância; ortografia.

8ª. série

Ortografia; pontuação; concordância; regência; estruturação do texto; sequência e carência lógica; sintaxe de colocação.

Na Fazenda não há técnicos, há vira-latas, com o perdão dos cães

É sabido que, depois da Constituição de 1988, não temos apenas uma política de aposentadorias, mas um sistema geral de seguridade social que incluíu, com direitos à aposentadoria, trabalhadores rurais e pessoas com necessidades especiais que jamais contribuíram com o INSS. E o custo desta seguridade social foi previsto constitucionalmente com várias arrecadações que não incluem somente a contribuição sobre a folha de pagamentos ou as contribuições de trabalhadores autônomos.

No entanto, as arrecadações foram desviadas para outros fins, como desviados são os recursos que foram obtidos pelas inúmeras privatarias cujos recursos ninguém viu, ninguém sabe onde está e continuamos agora, neste governo ilegítimo, a não aparecer!

Mas não faltam as “informações técnicas” do atual Ministério da Fazenda assustando os brasileiros, para justificarem o que a população não quer engolir. A mais recente: o aviso de que se não houver modificação no sistema previdenciário, cada brasileiro terá em poucos anos uma dívida de R$ 110 mil.

Por que será que os técnicos do ministério não começam a pensar a sério sobre a notícia de ontem de que a renda média de quase 50% dos brasileiros é inferior ao salário mínimo? Por que não começam, de uma vez e somente uma vez na vida, a pensar no Brasil e se imaginarem brasileiros e não lacaios do sistema financeiro?

Certamente não podem fazer isso: sua função específica, enquanto intelectuais do sistema, é construir legitimações para a manutenção da mais vergonhosa e explícita corrupção brasileira: a espoliação de tudo o que é nosso (recursos naturais como minérios, petróleo e água, incluindo a propriedade da terra), e sorvendo para si o produto do esforço de cada brasileiro na forma de “rendas” sobre uma dívida mil vezes já paga.

Acontece que estes “técnicos”, como de resto muitos outros intelectuais (particularmente economistas) associados ao sistema midiático, que espalha suas “tecnicidades” como verdades, fizeram votos de proferir sempre o “discurso da servidão voluntária” legitimando toda exploração, desde que a elite permaneça a mesma e eles ganhem algumas migalhas do que lhe sobra, porque seus salários são migalhas perto do que açambarca, sem ninguém lembrar que é crime, a elite do verdadeiro poder!

Estes mesmos técnicos foram os que elaboraram, no mesmo setor, a vergonhosa medida provisória de renúncia fiscal a favor das grandes petroleiras do mundo: uma recusa de apenas um trilhão de reais!!! A renúncia é de tal monta, que somente no primeiro ano as petroleiras receberão de volta todo o valor que dispenderam para comprar, a preços de banana, os campos leiloados do nosso pré-sal!

Foram eles também que alertaram os novos trabalhadores intermitentes: terão que complementar seus pagamentos ao INSS se receberem menos do que o salário mínimo! Se isso tudo não fosse trágico, era de dar boas risadas pela absoluta cegueira dos “especialistas”.

Dão sorridentes tudo, legitimam com seus estudos supostamente “científicos” toda a exploração, e depois cobram dos brasileiros de baixa renda o custo a esbórnia fiscal que provém efetivamente das “renúncias”. Se há renúncia de arrecadação em benefício dos ricos, por que sanha de arrecadar dos mais pobres o que lhes falta para viverem? Que país, além do Brasil, destrói a si mesmo para se vangloriar que estão no mercado internacional, esta palavra que esconde a pilhagem do capitalismo financeiro no mundo inteiro? Vai ver se a Alemanha faz isso! Vai ver se a Noruega, que tem petróleo, dá de presente às petroleiras internacionais suas reservas e ainda financia a juros subsidiados suas atividades e acrescenta um presentinho de um trilhão de reais na forma de renúncia fiscal. Os “técnicos” e “especialistas” noruegueses não têm complexo de inferioridade por serem noruegueses. Os nossos gostam de ser vira-latas a serviço do capital, preferencialmente externo. Desde que sobre bastante para a manutenção da mesma elite composta pelas mesmas famílias desde que o Brasil é brasil. 

PARA ENTENDER O BRASIL E O MUNDO

Está dolorosamente difícil de compreender e entender o momento histórico do Brasil atual, se não se examinar no conjunto e na totalidade dos vieses político, econômico, social, judicial, cultural e ideológico. A sociedade atual em que vivemos e que constituímos – conformados ou inconformados – merece, ou requer, exames e análises em profundidade para além das superfícies e das aparências dos fatos e das circunstâncias em que ocorrem os fatos definidores e determinantes desta conjuntura do Brasil atual. Aliás, do mundo inteiro atual. É preciso examinar as relações das forças políticas, econômicas, sociais, culturais e ideológicas que constituem este momento histórico, e sempre em sua totalidade e em suas relações. Trata-se de uma análise em profundidade das relações infinitas e das forças em jogo, em confronto, principalmente quando o bloco histórico no poder camufla, fetichiza, fantasmagoriza a realidade de “ordem e progresso”, “harmonia constitucional dos 3 poderes”, com palavras e imagens falsas, mentirosas sob a tecnologia, o mando e o comando das elites do capital nacional e internacional, mediante estratégias de inculcação e reprodução da ideologia conservadora dominante, pelo uso  e abuso exclusivos da mídia planetária.

Para quem examina, analisa e pretende compreender a situação do momento da nossa história, precisa “deixar-se envolver na rede das relações”. Precisa ser ator real – cognoscente e cognoscível, sujeito e objeto – e examinar o mundo no grande horizonte para entender o local e o imediato numa visão pluralista e multifacetada de mundo, impreterivelmente na multiplicidade das relações. Pois, trata-se de uma situação de um “sistema de infinitas relações de tudo com tudo”, do jeito que Ítalo Calvino já percebeu na história do seu tempo. Assim, ele nos deixa uma advertência inteligente e sutil, segundo a qual não é possível compreender a nossa vida pessoal e individual, a existência própria, nem compreender a sociedade da qual fazemos parte se não for na totalidade das relações. Gostando ou não gostando, conformados ou inconformados. É uma questão de método de análise. E por tratar-se de método, diante da multiplicidade de métodos de análise, de interpretações, de compreensões e de explicações dos sentidos dos fatos da história, o método de análise das contradições da realidade concreta é o método mais eficaz e eficiente. O método dialético nos permite compreender a “realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação”, na acepção de Leandro Konder. É assunto para muitas e inacabadas controvérsias.

Na essência, as contradições emanam da estrutura da sociedade de classes sociais desiguais. Por conta e determinação deste modelo, desta arquitetura de sociedade, vivemos sob o reinado, sob o império, sob a ditadura, sob o totalitarismo globalizado do consumo. Tudo das nossas vidas e para as nossas vidas virou mercadoria. E cada ser humano vivo vale pelo que e o quanto produz e consome. Fomos infectados, contaminados pelo vírus do verbo comprar. Conjugamos o verbo comprar a todo momento das nossas vidas, nos orgulhamos dos nossos atos de existir e falamos: “eu comprei”, no passado; “eu compro”, “eu estou comprando”, no presente; “eu comprarei”, “eu vou comprar”, no futuro. Vivemos o mito da felicidade pelo prazer e pelo conforto do consumo de mercadorias e serviços sem limites.

Por acaso, não seria a hora, o tempo de encararmos a realidade das nossas vidas coletivamente? É possível, e como, propor transformações desta sociedade? Não seriam o conhecimento e a consciência coletiva os embriões e as armas do povo para os movimentos sociais transformadores? Questões para pensar. E agir.

Os novos empregos, cantados em verso e prosa

Dificilmente me imbecilizo e assisto noticiário de TV. Mas às vezes colocamos na BandNews ou na GlobNews para ver o que a direita anda mentindo descaradamente. E eis que nos dois canais há um esforço hercúleo de elogios à retomada do crescimento econômico, aos novos empregos, à nova vida feliz que viverá o brasileiro com a reforma trabalhista. Obviamente também alertam: a felicidade para ser permanente depende crucialmente da reforma da previdência. Se isso se der, tudo fluirá como desejado.

E em fluindo como desejado, o país nem precisará dos 40 bi que está dando de presente, na forma de isenções e juros subsidiados, para a Shell e a outras companhias de petróleo, além de ter vendido reservas do pré-sal ao preço ridículo de um dólar o barril. MiShell Temer sairá do governo ovacionado pelo povo feliz!

Para comprovar esta felicidade inaudita, em jornal de Vitória, restaurante oferece empregos de garçom, para o famoso trabalho intermitente: 5 horas de trabalho nos sábados e nos domingos. Um seja, um emprego de 10 horas semanais. Valor oferecido por hora de trabalho: R$ 4,25. Se o sujeito não encontrar trabalho em outro lugar, durante a semana (não de garçom, obviamente), ficará devendo: digamos que trabalhe 5 fins-de-semana, ou seja, 50 horas ao mês. Receberá por isso R$ 212,50 no mês. Desconte-se 8% de contribuição previdenciária, sobrará R$ 195,50. Como esta contribuição não terá qualquer valor para uma futura aposentadoria ou para ser um segurado do Sistema, ele deverá complementar a contribuição até atingir o salário mínimo nacional que é de R$ 963,00. Sobre a diferença, R$ 750,50 contribuirá com 8% para a previdência, ou seja, R$ 60,04… Fazendo a dedução, eis o salário mensal líquido do garçom: R$ 135,50!

Isto tudo seguindo as instruções do Ministério da Fazenda (que inclui a Previdência Social como um dos seus ramos): “Não será computado como tempo de contribuição para fins previdenciários, inclusive para manutenção da condição de segurado do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e cumprimento de prazo de carência para concessão de benefícios previdenciários, o mês em que a remuneração recebida pelo segurado tenha sido inferior ao salário mínimo mensal e não tenha sido efetuado o recolhimento da contribuição previdenciária complementar”, acrescentou a Receita Federal em comunicado. https://falandoverdades.com.br/governo-legaliza-salario-menor-que-o-minimo-para-o-trabalhador/

E todos estamos aprendendo o que é a nova economia e seu crescimento tão aplaudido pelos comentaristas de TV e de grandes jornais. Mas o melhor exemplo vem mesmo do economista Ricardo Amorim (@ricamconsult) que escreveu: “Como a reforma trabalhista ajuda o país a ter mais empregos e salários maiores? Assim. Com menos ações trabalhistas, as empresas gastam menos. Aí, contratam mais. Com mais contratações, o desemprego cai e os salários caem. Resultado? Ganham as empresas e ganham os trabalhadores.”

Um primor de raciocínio lógico. Inclui na pergunta inicial “salários maiores”, responde depois que “o desemprego cai e os salários caem”… E como os salários caem, “ganham os trabalhadores”!!!! Todos os economistas reconhecem, mesmo quando dizem o contrário, como faz o Ricardo Amorim na sua propaganda, que a massa salarial, com a reforma trabalhista, vai diminuir mesmo “aumentando” o número de empregados, porque estes novos empregados ganharão misérias como o garçom de Vitória, e os atualmente empregados terão redução de seus salários pois isso pode ser acordado entre patrão e trabalhador, tudo dentro da lei. Como sabemos, o acordo será uma informação escrita pela empresa e exposta no saguão de entrada dos trabalhadores.

 

As coisas estão voltando aos seus lugares?

As coisas estão voltando aos seus lugares?

A discussão acerca do ensino de Língua Portuguesa (LP) tem, desde os anos 1970, apontado para o fato de que a educação brasileira carece de reformulações no modo de ensinar e na seleção dos conteúdos de ensino. Não precisamos ir muito longe para termos acesso a esse cenário, basta recorrermos ao que foi apresentado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1998. Ainda nas primeiras páginas do volume dedicado à área de LP para o terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, a crítica que se pontua é a de que o “ensino tradicional” desconsiderava a realidade e os interesses dos alunos, usava o texto como pretexto para o tratamento de aspectos gramaticais e ensinava a metalinguagem de forma descontextualizada, o que resultava em uma teoria gramatical inconsistente, voltada para o estudo de fragmentos linguísticos e para a resolução de exercícios. A preocupação em superar tais questões motivou, dentre outras coisas, a recolocação do estudo gramatical como principal objeto de ensino, já que durante muito tempo ensinar uma língua era sinônimo de ensino de gramática.

Ao ler os princípios de organização dos conteúdos e ensino de LP nos Parâmetros Curriculares Nacionais, encontramos o seguinte:

O ensino de Língua Portuguesa deve se dar num espaço em que as práticas de uso da linguagem sejam compreendidas em sua dimensão histórica e em que a necessidade de análise e sistematização teórica dos conhecimentos linguísticos decorra dessas mesmas práticas. (p. 34)

Por causa dessa perspectiva que define as práticas sociais fundamentadas na interação verbal, o texto (oral ou escrito) passa a ser tomado como unidade de sentido e de estudo, que precisa ser coerente dentro de uma dada situação discursiva. E quais os desdobramentos disso?

– A escola teria que abandonar o seu único método de ensino de gramática por ter que considerar os diferentes usos de linguagem apropriados às diferentes práticas sociais.

– Os conteúdos de ensino a serem desenvolvidos nas Práticas de Escuta, Práticas de Leitura e de Produção de textos orais e escritos precisariam ter como referência os gêneros, a partir dos quais é possível organizar, projetar o trabalho e conduzir para a Prática de análise linguística.

Resumindo, os conteúdos de Língua Portuguesa precisariam estar intimamente articulados aos usos de linguagem (gêneros) em torno de dois eixos básicos: o uso da língua oral e escrita, e a reflexão sobre a língua e a linguagem.

A proposta da Base Nacional Comum Curricular (2017) é de desdobramento dos dois eixos para cinco: oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e gramaticais e educação literária. O que ocorre é que, ao explicitar os enquadramentos de conteúdos, encontramos de forma nada discreta a recolocação do estudo gramatical como objeto de ensino e NÃO o texto. Mesmo o eixo renomeado como Conhecimentos linguísticos e gramaticais não é suficiente para marcar o lugar do estudo DA gramática na língua. Esse ‘deslizamento’ do objeto de ensino fica mais evidente quando o documento cria o paralelismo dos Objetos de Conhecimento: o lugar ocupado pelo gênero como articulador das práticas sociais e pelo uso da língua é o mesmo ocupado por tópicos como Flexões do substantivo, do adjetivo e dos verbos regulares, Modos verbais, Concordância nominal e verbal, Estrutura da frase, Oração e período e Pontuação.

Graficamente falando, a preocupação em se abordar os itens gramaticais é garantida em dois pontos do esquema da BNCC: como eixo organizador e como objeto de conhecimento.

 

Meu receio é o de que, sob a afirmação de que “é conteúdo que está na Base”, haja um retorno ao ensino de Língua Portuguesa orientado predominantemente pela perspectiva gramatical, visto que sequer conseguimos, ainda hoje, romper com a exclusividade dela.

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

 

Domingo: poetas argentinos II

A janela

Eis o inventário se olharmos 

da janela do quarto andar:

um pássaro numa gaiola, uma mulher que lava, 

rebocos, conversas, o cheiro da peixaria.

Alguém canta por aí

e a manhã se encarrega do resto.

À noite chegam luzes,

detalhes, pedaços de cena instável.

 

Nada contradiz uma ordem facilmente 

perfeita: a manhã é dispersa, a noite seletiva.

Até se poderia pensar na harmonia do mundo exterior

se não fosse por um miado sub-reptício

difícil de situar entre as coisas que se mexem.

(Santiago Sylvester )

 

Infância

Há vozes.

Não é a memória.

É o olvido que cresce em nós e canta.

(Guillermo Boido)

 

Considerações sobre a chuva

O céu está preto

como o sol dos mortos.

Logo virá chuva

e seu som apagará outros sons

que fazem mal à alma

e nos deixaremos levar por esta paz alheia,

por essa confiança daágua nas janelas. 

(Néstor Mux)

 

Santiago Kovodloff. A palavra nômade. Poesia argentina dos anos 70. São Paulo : Iluminuras, 1990