POBRES UNIVERSIDADES, POBRES

A primeira ordem: “é proibido falar de partidos políticos e ensinar política em escolas públicas”. Formação de consciência política nas escolas e universidades, jamais! Nem pensar na formação crítica de jovens em classes escolares e universitárias.

A segunda ordem: “caça aos reitores das universidades federais”. Estas duas ordens geniais são as grandes metas do governo puro, inocente e anticorrupto do Brasil de hoje para garantir a educação pura, inocente e de qualidade para os pobres. O presidente golpista Temer esnoba um excedente de orgulho jamais visto nas telas de televisão.

Pessoalmente, jamais imaginei que um dia eu teria o desprazer, a dor, a amargura de me defrontar com medidas e determinações políticas de sentido ideológico pré-mediavalesco como as medidas impostas à nação brasileira no momento atual. Sou professor de escolas públicas e  universidade estadual desde o ano de 1970. Nos tempos da ditadura civil-militar – era rigorosamente proibido falar mal do golpe e combater o regime – havia as disciplinas de “Educação Moral e Cívica” (no Ensino de 1º e 2º graus) e OSPB – Organização Social e Política do Brasil ou Estudos de Problemas Brasileiros (no ensino universitário). Nestas disciplinas ensinava-se a moral, a ética e a organização e formação política dos adolescentes e dos jovens nas escolas públicas. Formação orientada pela perspectiva da ditadura, mas como sempre tendo contrapontos de professores nas quatro paredes da sala de aula. Hoje, 40 anos depois e superado o regime ditatorial pelo regime democrático – embora uma democracia precária, corrupta e corrompida – são proibidas a educação e formação política nas escolas públicas. Pasmem! É inacreditável.

Para entender estas medidas hediondas é preciso examinar a questão na raiz da história – a sociedade de classes sociais – para entender os benefícios invertidos na educação brasileira. As crianças, os adolescentes e os jovens das famílias mais ricas estudam, desde as creches, jardins de infância, ensino fundamental, ensino médio e pré-vestibular, em escolas e colégios particulares, com mensalidades elevadíssimas, mas com ensino de boa qualidade, via de regra. Já as crianças das classes pobres, da periferia, das favelas, da zona rural estudam em escolas públicas – sem mensalidades – em condições precárias, insuficientes, com educação e ensino de baixa e má qualidade. Aí acontece a inversão no ensino superior. Os jovens ricos passam nos vestibulares das universidades públicas de boa qualidade – nos cursos “nobres” –  e não pagam mensalidades. Enquanto os jovens pobres ingressam no mercado de trabalho de dia e de noite estudam nas universidades e faculdades particulares, pagando mensalidades elevadíssimas. Alguns passam nas universidades públicas no período noturno nos cursos considerados “não nobres”.

Porém, tivemos políticas, no Brasil mais recente, que alteraram esse processo para melhor. Os governos Lula e Dilma criaram e instalaram dezenas de universidades federais, com campus e cursos pelo Brasil inteiro e criaram e implantaram as políticas de “cotas” – vagas garantidas para indígenas e afrodescendentes – e as vagas do ENEM. Assim, milhões de jovens pobres estão estudando nas Universidades Federais. Este fato vem assustando as elites brasileiras. A caça aos reitores é uma estratégia ideológica, um truque, uma trapaça junto à opinião pública que o governo usa e abusa para sucatear as universidades federais e estaduais, reduzindo em muito os seus orçamentos. Assim, policiais agem de maneira truculenta a mando de ordens judiciais e prendem reitores sem provas e sequer indícios de corrupção. Este é o argumento e a justificativa para privatizar as universidades federais e estaduais.

Agora, o que me incomoda, e muito, é a quietude, o silêncio das universidades. Onde estão os dirigentes, os professores, os estudantes e os servidores das universidades? O silêncio e a passividade são atitudes, atos de concordância. Ou melhor, atos irresponsivos.

                                                                         Cascavel, 12 de dezembro de 2017.

O golpe militar bate às portas do país

O general Mourão foi punido pelo comandante do Exército: a punição é uma transferência para a Secretaria Geral, como adido… Lá terá tempo integral para ajudar na articulação do golpe. Adido não arde, adido adiciona.

A imprensa prepara ansiosa e angustiadamente o desenlace: todas as questões de segurança se tornam manchetes; as compras explícitas de deputados no balcão de negócios que sempre foi o governo que construiu, agora se tornaram manchetes envergonhadas; o mercado sabe que há nacionalismos na região militar, e por isso exige pressa, urgência para a rapina dos recursos naturais. O capitalismo financeiro, que realiza outro tipo de extrativismo, chamado “renda” de um capital mil vezes já pago, tem sua pressa nas reformas que achatem a vida da população para que lhes sobre garantias de rendas eternas, eufemisticamente chamadas de “equilíbrio fiscal”.

E o ministro-fantasma, candidato de si mesmo para a presidência, Henrique Meirelles apressa-se em satisfazer o dragão, pouco preocupado se isso representar doenças e mortes dos “naturais”. Falta pouco para vir a público, imitando o ex-primeiro ministro japonês, pedindo que as pessoas de idade se suicidem para ajudar os bancos e os investidores.

O polícia e o judiciário já estão prontos, disponíveis para o que der e vier. Os primeiros para reprimir, os segundos para autorizarem o que for necessário à repressão.

Por fim, este povo que insiste em aplaudir Lula, a única liderança popular que esta e todas as precedentes gerações conheceram. Para a direita aquartelada, para a direita informatizada, para a direita encastelada na mídia, para a direita na redoma de vidro das “alpha-villes”, é insuportável perceber que “o povo não aprende” e quer votar em Lula!!!

Os sindicatos convocam e desconvocam greves gerais. Os trabalhadores perdem seus empregos e são recontratados pelos mesmos empregadores com salários bem mais baixos, e terceirizados. Reações organizadas não há! Só resmungos individuais.

O ambiente está, pois, pronto. A cama está feita. A mesa está posta. E agora o general Mourão, dedicado em tempo integral à articulação do golpe militar, na função de adido, poderá costurar com mais destreza, com os demais alfaiates do Alto Comando, o golpe que se avizinha.

A igreja católica antigamente dizia: estejam preparados e sem pecados, que o fim pode ser a qualquer momento.

Haverá resistência?

Essa palavra presa na garganta!

A cada dia, apesar de todas as adversidades, nas escolas, institutos e universidades públicas são realizadas inúmeras ações que constroem o desenvolvimento do país na ciência, na tecnologia, na inovação, na formação de pessoal, na inclusão social etc..

Entretanto, as universidades públicas têm sido palco de verdadeiros espetáculos em torno de operações policiais desproporcionais. E por que desproporcionais? Porque políticos do mais alto escalão têm sua cara e sua voz estampadas em vergonhosas filmagens que denunciam seus atos de corrupção e, mesmo assim, são absolvidos. Em outra proporção, as universidades são ocupadas por policiais, agentes fiscais e auditores que conduzem coercitivamente os servidores e armam o circo… e só depois a atribuição de responsabilidades é apurada. Algumas, tarde demais…

Por que a Torre de marfim quer tanto derrubar o equilibrista?!   

Em dias de muita dureza, é preciso procurar conforto na arte… Quando vejo a UFPR, UFSC, UFRGS, UFMG como alvo de truculências, me lembro também de Paulo Leminski, Dalton Trevisan, Érico Veríssimo, Mário Quintana, Nelson Gonçalves, Darcy Ribeiro, Paulinho Pedra Azul, Murilo Rubião, Milton Nascimento, Guimarães Rosa e tantos outros.

E é preciso lembrar que não se está sozinho….

“Há muito tempo que eu saí de casa
Há muito tempo que eu caí na estrada
Há muito tempo que eu estou na vida
Foi assim que eu quis, e assim eu sou feliz

Principalmente por poder voltar
A todos os lugares onde já cheguei
Pois lá deixei um prato de comida
Um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar

E aprendi que se depende sempre
De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas

E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar

É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração.”

(Gonzaguinha)

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Domingo: Canção dos caramujos, Jacques Prévert

Canção dos caramujos que vão ao enterro

Ao enterro de uma folha seca

Vão dois caramujos

Têm a concha negra

E véu negro em volta das antenas

Vão pela noite

Uma bela noite de outono

Quando chegam coitados!

Já chegou a primavera

E as folhas que jaziam pelo chão

Todas tinham ressuscitado

os dois caramujos

Ficam muito desapontados

Mas eis o sol

O sol que lhes diz

Façam o favor façam

O favor de sentar 

Tomem um copo de cerveja

Se vontade lhes dá

Tomem caso queiram

O ônibus para Paris

parte esta noite

Poderão admirar a paisagem

Mas não ponham luto

Sou eu quem lhes aconselha

Escurece o branco do olho

E também enfeia

Histórias de enterro

São tristes e nada belas

Ganhem as suas cores

As cores da vida

Então animais

Árvores plantas todos

Começaram a cantar

A cantar aos berros

A verdadeira canção viva

A canção do verão

E todo o mundo a saudar

É uma bela noite

Uma bela noite de verão

E os dois caramujos

Voltam muito comovidos

Muito felizes

Como beberam demais

Ziguezagueiam um pouco

Mas no céu lá no alto

A lua protetora. 

(Jacques Prévert. Poemas. Seleção de tradução de Silviano Santiago, Ed. Nova Fronteira)

 

 

 

 

Textos sobre textos: A educação sentimental

Este romance de Gustave Flaubert representa sua passagem do realismo de sua mais conhecida obra, Madame Bovary, para o romantismo. E aqui ao romance de formação (bildungsroman). Seu personagem, Frederico Moreau, aquele se “se educa sentimentalmente” passará por todos os percalços para chegar ao fim sozinho e apaixonado pela beleza que se esvaiu de uma mulher que conduziu seus passos ao longo da vida.

Procedente do interior (Nogent), é matriculado em Sens para estudar. Nesta escola conhece o amigo com que manterá várias rugas, mas para o qual sempre voltará, Deslauriers. Ambos saem da escola de Sens e vão para Paris, com o mesmo objetivo: a Faculdade de Direito. Mas ambos diferem em seus grandes objetivos reais: Frederico busca o amor e a beleza; Deslauriers busca o poder.

Entrando ambos para o ambiente intelectual e das artes (pintura, literatura), transitam entre escritores sem sucesso e pintores mais ou menos medíocres (Pelerin). É no “Artes Industriais” de Mr. Arnoux que se reúnem frequentemente. E é lá que Frederico conhece a mulher de Arnoux, por quem se apaixona e cuja figura e doçura buscará em Rosanette, de apelido Marechala, e depois em Mme. Lambreuse.

Frederico vive em Paris à custa das rendas de sua mãe, deixadas pelo pai. Seu ofício é não fazer nada e sonhar – tanto sonhos amorosos quanto sonhos de ascender socialmente tornando-se membro do Conselho (no período da monarquia) e depois sonhando com uma deputação que nunca acontece porque não toma as providências de se fazer indicado para uma vaga.

Foi o sonho de ser ‘par de França’ que o levou ao convívio com o banqueiro Mr. Lambreuse, dono de uma fortuna considerável e esposo de uma bela mulher e pai de Cecília, mas adotada em sua casa como “sobrinha”. Uma filha bastarda a que a esposa dedicava um ódio silencioso por baixo do tratamento social carinhoso para com a “sobrinha”. Recebido nos banquetes oferecidos, Frederico alarga seus relacionamentos e as portas se abrem para outros convites. Assim, passa a frequentar também o Visconde de Cisy, mas numa de suas festas falam mal de Mr. Arnoux e implicitamente da reputação de Mme. Arnoux. Frederico reage violentamente, quebrando pratos e travessas arremessadas contra o anfitrião. Seguir-se-á, obviamente, a descrição minuciosa da preparação, da cena e do duelo que não houve: Cisy desmaia e ao cair, machuca-se. Saindo sangue, estando ferido, está encerrado o duelo numa luta de espadas que não aconteceu. Sai Frederico como vencedor e Cisy desmoralizado por não ter conseguido se bater em duelo.

Face aos chamados insistentes da mãe, Frederico vai para Nogent onde fica sabendo que está arruinado: já não há mais rendas. A solução estava à mão: casar-se com a filha do tio Roque, Luísa, a quem ele começa a dedicar sua atenção. Mas o enfado do interior não o deixa permanecer em Nogent. Ao receber a informação de outro tio morrera “intestado”, e que se tornara herdeiro de uma renda anual de 34 mil francos, volta para Paris e para sua vida em sociedade… Este foi, digamos assim, o primeiro “passe de mágica” usado pelo narrador para fazer voltar à tona sua personagem.

Em Paris, seus amigos estão envolvidos com os movimentos republicanos. Participa deles sem querer. Com a queda do rei, Luís Felipe, e a declaração da república, dele se lembra Mr. Lambreuse esperando encontrar no jovem alguma proteção para mais uma vez deslocar-se de um regime para o outro sem perder efetivamente o poder, isto é, o poder econômico de um banqueiro. Ele já fora adepto do império; tornou-se monarquista, e agora há de ser republicano, sempre com lucros. Sugere que Frederico se inscreva para uma deputação à Assembleia. Até que Frederico tenta, mas desajeitado para a vida – afinal sua educação era para os sentimentos do amor, ao gosto do romantismo da época – acaba não conseguindo a indicação e quem efetivamente vai para a Assembleia é o próprio Mr. Lambreuse, pelo voto dos conservadores.

No entremeio disto tudo, os frequentes episódios dos encontros entre Frederico e o marido de sua paixão. Mr. Arnoux tinha seu caso com a Marechala… Foi Arnoux quem levou Frederico ao palacete de Rosanette, para um baile de fantasias! Assim, Frederico conheceu aquela que, substituindo Mme. Arnoux, se tornaria sua amante por longo tempo e com que, ao fim, terá um filho que não sobreviverá.

Fazendo a corte a Mme. Arnoux, Frederico consegue marcar um encontro. Aluga um “estúdio”, compra móveis, enfeita para que se torne seu eterno lugar do amor. Acontece que a revolta republicana se dá precisamente no dia do encontro. Mme Arnoux não comparece ao encontro, não por causa da revolta que desconhecia, mas porque seu filho ficara doente. Frederico se desespera, e no dia seguinte encontra Rosanette, que rompera com Mr. Arnoux. Os dois “abandonados” se encontram e ela ocupará o lugar de Mme. Arnoux nas estripulias de amor e sexo de Frederico, que acabará por sustentá-la.

Obviamente, com todos os gastos que faz, as rendas se tornam insuficientes e ele vai vendendo suas propriedades para atender ora os negócios do próprio Arnoux, porque não haveria de deixar sua paixão viver na miséria, ora os negócios de sua amante cheia de dívidas.

Para encontrar alguma forma de outras rendas, volta a se aproximar do banqueiro. E como não poderia deixar de ser, acaba se tornando amante de sua mulher! Por um longo tempo do enredo, vive Frederico entre as duas mulheres? Mme. Lambreuse e a Marechala.

É na qualidade de amante da esposa que acompanha a morte do banqueiro, vela-o e promete casamento à viúva. Depois do enterro, esta descobre que o testamento que o banqueiro havia feito em seu benefício desaparecera e que toda a fortuna ficará para a filha “bastarda”. Mme. Lambreuse teme perder Frederico, mas este lhe responde, em galanteio, que sempre lhe restará a própria amante! Firmam compromisso de casamento…

Acontece que Mr. Arnoux está em perigo de ver seus móveis e tudo mais ir a leilão por dívidas. Frederico, não tendo o dinheiro necessário, pede-o emprestado à viúva. Esta lhe adianta o dinheiro que Frederico apressadamente corre a entregar em casa da família Arnoux, mas já não os encontra: haviam “fugido” das dívidas e da prisão. Acontece que Mme. Lambreuse descobre para quem era o dinheiro, e em crise de ciúmes resolver executar as dívidas da família Arnoux para com seu falecido marido. Chama o advogado Deslauriers para providenciar a cobrança que será feita em nome de terceiro. No momento do leilão, ela convida Frederico a comparecerem e nele compra uma guarda-joias que pertencera a Mme. Arnoux como uma espécie de vingança pelo amor que lhe dedica Frederico.

Este fato leva ao rompimento. O casamento não acontece. E como por causa deste Frederico já havia rompido com a outra amante, Rosanette, mais uma vez ele fica solitário: sem as amantes e sem sua paixão platônica. Resolve voltar a Nogent: talvez Luísa, esta que de fato o havia amado, poderia ser um consolo. Mas chega à cidade precisamente na hora do casamento de Deslauriers com sua prima!

No tradicional remédio para os males do amor, Frederico viaja! Volta a Paris já envelhecido. Certo dia bate-lhe à porta Mme. Arnoux: vem com um envelope pagar uma velha dívida! E então conta de sua vida no interior, da quase pobreza e das economias para irem saldando as dívidas. O amor retorna, a paixão de reacende, mas nada se concretiza mais uma vez. Mme. Arnoux parte, e Frederico fica sozinho.

É num dos diálogos deste encontro que aparece explicitamente a inspiração de A Educação Sentimental:

– Às vezes – dizia ela – as suas palavras vêm-me à lembrança como um eco longínquo, como o som de um sino trazido pelo vento; e parece-me vê-lo ao meu lado, quando leio nos livros, passagens de amor…

– Tudo o que neles censuram como exagerado, você me fez sentir – disse Frederico. – Compreendo os Werther a quem não repugnam as fatias de Carlota.

Eis aí Werther, eis aí o romance de formação. E este romance de Flaubert bem poderia ter o subtítulo de “o amante da mulher do outro”: Mme. Arnoux é mulher do outro; Rosanette, a Marechala de vida cortesã era mulher de Mr. Arnoux; Mme. Lambreuse, a mulher do banqueiro. Parece que a Frederico sempre interessavam as mulheres que lhe estavam interditas por outros compromissos, de modo que a posse seria sempre a posse do amante. Ou seria destino da “educação sentimental” masculina: a cada um só inspiram amor as mulheres que o inspiram também a outros? E a educação sentimental seria a educação para a sublimação jamais aceita? Afinal, na sequência do diálogo:

– Acabou-se! Foi imenso o nosso amor!

– E sem nos possuirmos!

– Foi talvez melhor assim – replicou ela.

– Não! não! Que felicidade teríamos tido!

No último capítulo do romance, encontram-se os amigos Frederico e Deslauriers. E recordam. E entre estas recordações, a furtiva entrada para “o lugar que você sabe”; “uma certa rua”, onde ficava a casa da Turca, onde as raparigas recebiam os homens. A primeira visita de amor/sexo dos jovens amigos

o calor que fazia, a apreensão do desconhecido, uma espécie de remorso, e até o prazer de ver, duma só vez, tantas mulheres à sua disposição, embaraçaram-no por tal forma, que empalideceu, e ficou parado, sem nada dizer. Todas riam com aquela atrapalhação; julgando que estavam a troçar dele, fugiu; e como Frederico é que tinha o dinheiro, Deslauriers foi obrigado a segui-lo.

O sexo não realizado aqui o seguirá vida afora, repetindo-se com a frustração do sexo irrealizado com Mme. Arnoux! Parece que a educação sentimental nada enterra, e nela tudo perdura.

Referência: Flaubert, Gustave. A educação sentimental. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1947. 

Textos de Arquivo XIX: De como produzir milagres ou “O professor pega um boizinho, rifa e compra livros”.

Nota introdutória

Este texto foi escrito para a mesa-redonda “O professor como leitor e como incentivador da leitura”, do 5º. Congresso de Leitura do Brasil (COLE), realizado em 1985. Eu estava, neste tempo, envolvido até à medula com três grandes projetos de ensino de língua materna: um desenvolvido na cidade de Aracaju, desde 1981; outro iniciado no Oeste do Paraná em 1984. No primeiro, já éramos mais ou menos 80 professores da cidade que vinham aplicando a proposta de ensino que havia publicado em 1981 (Cadernos da Fidene, 18). O segundo começou já gigantesco: participaram dos cursos deflagradores do processo mais de 600 professores da região; destes, mais de 300 iniciaram um trabalho alternativo em 1985. Ao final do ano, constatamos que estávamos trabalhando com mais de 100 mil alunos e que tínhamos uma biblioteca de livros de literatura brasileira (juvenil, adulta) de mais de 100 mil volumes, todos nas mãos dos leitores! O terceiro projeto era numa das delegacias de educação da cidade de Campinas, em que estavam à frente da área as Professoras Norma Ferreira e Maria do Rosário Mortatti. Eram em torno de 100 professores com que nos reuníamos uma vez por mês!

A magnitude dos números nos assustava e ao mesmo tempo nos entusiasmava: era possível começar uma mudança da base, com os professores nas escolas. Enquanto as gestões estavam, a esta altura, trabalhando na elaboração de propostas curriculares (a primeira publicada foi a da cidade de São Paulo, na gestão de Guiomar Namo de Melo à frente da SME), nosso pequeno grupo, constituído por Lilian Lopes Silva, Raquel Salek Fiad e eu (ajudados, nos cursos iniciais de 1984 por colegas da Unicamp e da UFPR), vínhamos trabalhando pesado no acompanhamento dos professores destes projetos. Eu recebi cartas dos professores e dos alunos. As primeiras sobre os problemas que vinham enfrentando na prática docente; as cartas dos alunos eram curtas e falavam sobre o que estavam achando das “novas aulas de português” ou dos livros que estavam lendo ou de como os conseguiram. Sempre respondi a todas as cartas, datilografava-as com cópia carbono em papel amarelo, que guardava junto à carta recebida. Quando o número de pastas A-Z encheram meu armário, veio um grupo do Sistema de Arquivos da Universidade para verificar se havia algum interesse no material. Descartaram-no. Como guardava toda minha correspondência nas mesmas pastas, depois dos exames dos especialistas, joguei-as fora. Foram para o lixo algumas correspondências que não deveriam ter ido: com Magda Soares; um cartão e uma carta de Carlos Drummond de Andrade; cartas trocadas com Antônio Houaiss; e com inúmeros pós-graduandos do país, em algumas comentando dissertações e teses já defendidas.

A colega Lilian Lopes Silva, por acaso, passou por minha sala num dos dias em que eu “fazia a limpeza”. Recolheu o saco de lixo e levou consigo. Quando da comemoração dos 30 anos da publicação de O Texto na Sala de Aula fiquei agradavelmente surpreso ao ver algumas destas cartas em banners produzidos pelo evento!

Tudo isto vem ao caso para dizer que este texto está marcado por este entusiasmo quase juvenil, de uma aposta, de um trabalho que se perdeu ou de que sobraram alguns rastros. Relendo-o agora, relembro o Jornal do Livro, o Leia… também estes desapareceram e sobraram rastos em arquivos.  

De como fazer milagres

ou “O professor pega um boizinho, rifa e compra livros”

  1. Introdução

Para começar uma discussão sobre “o professor como leitor e como incentivador da leitura”, gostaria as frases-título desta fala nos conduzissem a pensar na correlação entre a leitura e as condições de trabalho do professor, especificamente do professor de língua portuguesa. Vou me preocupar mais com as condições, porque continuo convencido de que o ato de ler, o debruçar-se sobre um texto, é sempre um diálogo entre um sujeito-leitor e um textos-autor, diálogo que produz diferentes significações pois pode se dar com diferentes orientações.

Ainda que ato solitário, ele é sempre dialógico: do leitor com o texto; do leitor informado por suas outras leituras já que a leitura que se faz agora não lhes é indiferente; do texto com outros textos – mesmo aqueles desconhecidos pelo leitor – pois nenhum texto existe fora do mundo discursivo com o qual o texto que estou lendo dialoga e neste diálogo se propõe significados. Assim, como leitor, atribuo-lhe significados que (re)fazem não só o texto que estou lendo, mas também minhas outras leituras (“do mundo”, “das gentes”, e de textos).

Inquietante e sedutor, este jogo que a leitura proporciona tem sido regulado, para manter a ORDEM (da maioria) e o PROGRESSO (de alguns). Este “regular” se constrói pelos caminhos não sutis da exclusão (dos analfabetos, por exemplo) e por caminhos sutis que atingem aqueles a que aparentemente se possibilitou “o acesso ao mundo da escrita”. Lembro alguns destes caminhos sutis, para me fixar num deles:

  1. O caminho da fixação de uma leitura, de um significado do texto, na história de suas leituras possíveis, para interromper a inquietante produção de sentidos que se faz nas ilimitadas situações possíveis de leitura. O exemplo histórico, talvez mais comovente e trágico, da luta pela fixação de um só significado, é a do Evangelho. Tomo este exemplo para lembrar que a fixação não se faz-produz sem lutas. Fixado o sentido, a leitura deixa de ser produção (de sentidos) para se tornar decifração (de um sentido).
  2. O caminho do apagamento do jogo e, portanto, do prazer, é uma consequência da fixação. A leitura se torna tarefa de decifrar, penosa para o leitor porque ele não mais pode contar com suas leituras anteriores para construir significados. Cada texto, com seu significado fixado, é um novo texto a apreender: exclui-se a história para invisibilizar seu movimento; exclui-se o jogo (e o prazer) para ordenar uma teleologia cujo ponto de chegada está previamente determinado no ponto de partida. O jogo, que persiste sob a aparente ORDEM, é acidente de percurso a ser evitado. Como não pode ser simplesmente excluído, que seja jogado por parceiros para que a ORDEM de decifrar se mantenha para a maioria.
  3. O caminho da sacralização, criador de exegetas (ou mais modernamente, de especialistas). Rouba-se do ato de ler suas características mais simples, para torná-lo ‘coisa séria’, ‘difícil’, permitida aos iniciados cuja parceria com a ORDEM abre o caminho ao sacrário para de lá retirar os textos (de preferência, os clássicos)  mistificados pela significação única que se lhes atribui e mitificados pelas dificuldades que impõem para a eles ascendermos e sobre eles falarmos (Michel Foucault, 1970). Nem por isso desaparecem os ‘bons conselhos’. Tomo um, de longa data:

“Na mocidade, nos dias que vêm perto, apercebei-vos de bons livros: lede clássicos”. (“A nossa linguagem”, in. Júlio Lopes de Almeida. Histórias da nossa terra. RJ, Francisco Alves, 7ª. ed, 1911).

conselho que se repete hoje, sob formas diferenciadas (científicas?) de critérios para a seleção de livros de leitura, classificação obras como literárias ou não, valorosas ou não, esquecendo que a literatura se define diferentemente em diferentes épocas e diferentes grupos (Marisa Lajolo, O que é literatura).

  1. O caminho da construção de modelos, desdobramento necessário da fixação e da sacralização, fornece fórmulas de como ler, processando o significado desejado e limitando o texto e o leitor. Do ponto de vista da escrita e do acesso a ela, Haquira Osakabe mostra como uma forma de escrever se torna modelar. Do ponto de vista da leitura, nossos livros didáticos est]ao repletos de exemplos de como, através de perguntas de interpretação, vai-se constituindo um modelo de como ler, afastando possíveis inquietudes. Análise exemplar, pelo contraponto, pode ser encontrada em  “Poesias: uma frágil vítima de manuais didáticos”, de Marisa Lajolo, em que a autora retoma o texto “O Vestiduo de Laura”, de Cecília Meireles, contrapondo duas leituras à leitura que propõe um livro didático. Ou ainda em “A teoria da literatura e a literatura na escola” (também de Marisa Lajolo) se pode buscar como não esquecer protocolos de leitura sem, no entanto, torná-los “modelos” de leitura.

Não é meu objetivo aprofundar os quatro caminhos sutis apontados. Apenas queria lembrá-los para me fixar num quinto caminho: o das condições de trabalho do professor. Isto porque o considero também comouma forma sutil, mas cuja violência todos nós sentimos, de manter a ORDEM para afastar a sedução e a inquietude da leitura, inviabilizando-a para que se mantenha a tranquilidade do percurso traçado.

   

  1. A leitura e as condições de trabalho do professor

Inicio esta reflexão com uma analogia, assumindo os riscos que as analogias podem conter. Para fazer alguma coisa, há smepre condições (não sei se não é forte demais chamá-las de condições de produção). Assim, para exemplificar, o fazer tricô depende no mínimo de: a) existência de condições materiais (linhas, agulhas, etc); um objetivo do agente (fazer um blusão, uma camisa, etc para alguém); c) tempo (disponibilidade de um espaço de tempo da ação de fazer tricô) e d) saber-fazer tricô (isto é, domínio de uma certa técnica).

Ora, o ato de ler também tem condições: as condições materiais de acesso aos textos, livros, etc.; um objetivo: para que ler o que se lê; tempo para ler e, por fim, um saber ler. Vou me deter um pouco em cada destes tópicos.

  1. 1. Condições materiais de acesso a livros. Temos aqui um dos primeiros problemas enfrentados pelo “professor como leitor e incentivador de leitura”. Poucas são as escolas que dispõem de bibliotecas, e quando dispõem, seu acervo não acompanha a dinamicidade da produção de textos. Assim, o professor, explorado em seus salários, ainda é submetido a tarefas extras (festas, pedágios, rifas, etc.) para angariar fundos que lhe permitam colocar à disposição de seus alunos livros. A profissão vira missão: e o primeiro milagre a produzir é dispor de recursos que possibilitem o acesso material ao livro. “O professor pega um boizinho, rifa e compra livros” descreve e narra o quotidiano do professor que quer ultrapassar este obstáculo e desenvolver leituras com seus alunos. Em estudo exploratório sobre a prática da leitura extensiva em escolas de 1º. grau de Minas Gerais, os pesquisadores constatam, em respostas a mais de mil questionários, que
  2. .. a maioria dos motivos alegados para a não adoção da L.E. [leitura extensiva] se acha relacionado à clientela. Em seguida, vêm os fatores relacionados com a comunidade. Temos então:

– Fatores restritivos da clientela: quando certas características inerentes aos alunos constituem obstáculo da prática de L.E., citando-se, entre elas, a situação socioeconômica, variáveis relativas às habilidades de leitura, à movimentação específica e a predisposição individual para a atividade.

– Fatores restritivos da escola: gerados pela sua incapacidade financeira para superar o problema ou por sua má organização funcional.

– Fatores restritivos como bibliotecas, o que não estimula a prática. (Butaka, I. e outros, 1981, p. 72).

O professor, sobrevivendo com (ou aos?) salários, pode ainda assim, naquela base missionária da boa vontade, ultrapassar este obstáculo numa operação de “junta gravetos”, professor e alunos conseguem recursos. E daí?

“Que livros indicar para meus alunos da série X ou Y?” é uma das mais frequentes perguntas que “especialistas em leitura” ouvem em cursos, palestras, congressos. Não estou interessado em pensar e analisar as respostas que se dão ou podem ser dadas à pergunta. Interessa-me discutir o porquê da existência da pergunta. E novamente aqui voltamos às condições de acesso a livros do próprio professor. Seus salários os levam a assumir tantas aulas (além de  um terceiro turno na vida doméstica) que até mesmo os esforços de marketing(1) das empresas editoriais não atingem a todos os professores. Muito menos ainda publicações como LEIA, JORNAL DO LIVRO, críticas literárias em jornais e revistas não especializadas, etc. Esforços dignos de nota são aqueles da FNLIJ. Mas não estou com isso querendo dizer que é apenas porque o professor não lê que ele pergunta que livros indicar. Embora esta análise possa ser verdadeira, ela é insuficiente. Creio que é fundamentalmente devido à sacralização a que me referi antes que a pergunta tem sua razão de ser. O professor de boa vontade já introjetou, por ações e razões outras, a ideologia imobilizadora de que “todo mundo é incompetente, inclusive você”; daí sua necessidade de referendar, na voz do “especialista”, suas indicações de leitura.

  1. 2. Objetivos da leitura. Para refletir sobre este tópico me parece necessário fazer uma distinção: de um lado a prática efetiva de leitura fora da escola e seus objetivos, de outro lado a prática escolar de leitura e seus objetivos, porque estas práticas diferem. Enquanto o cotidiano, ainda que que com suas poucas leituras, nos mostra que um leitor não lê sem objetivos (ele sempre tem um para que ler o texto que está lendo (Geraldi, 1984), o aluno tem sua leitura (des)orientada por objetivos pedagógicos, alguns deles não ultrapassando o mero nível de controle exercido pela escola sobre sua leitura. Controle necessário? Para a avaliação?  Ou controle necessário para a fixação de significados e de modelos de como ler? Até onde há, de fato, objetivos na leitura? Até onde, na escola, estes objetivos são esquecidos em função do “aprender agora para ler depois”?
  2. 3. Tempo: “Os professores se queixam que os programas extensos não deixam tempo livre para a leitura; há excessiva valorização da gramática  e do cumprimento do programa; as aulas especiais ocupam o tempo livre, etc.”   (Butaka, op. cit., p.75) O tempo da escola é tempo medido.: 40 ou 50 minutos, uma aula; um bimestre corresponde a uma nota; um ano, a repetência, promoção ou evasão. E tempo sempre ocupado: para produzir o quê? Deixo de lado a perspectiva do aluno: penso no professor. Também ele é compartimentalizado em minutos de aula (10 aulas no dia X, 5 aulas no dia Y, etc.). Depois, preparar as aulas do dia seguinte. E o seu tempo de leitura desaparece no tempo que dedica para “preparar a formação de futuros leitores”.
  3. 4. Saber ler. Aqui estamos frente a um aparente paradoxo: o saber-ler é condição para ler e, no entanto, lê-se para aprender a ler! O paradoxo é, na verdade, aparente porque aprende-se a ler lendo. A ORDEM gostaria de que assim não fosse, e raros são os que conseguem escapar da ORDEM: desde pequenos fomos habituados a sermos ensinados a… Para tanto se conjugam forças: as da fixação do sentido; as do apagamento do jogo; as da sacralização dos textos; a da construção de modelos e, por fim, as das condições de leitura (do professor, do aluno, do cidadão). Estas sim, “forças terríveis” que conseguem nos levar ao paradoxo de um novo conceito de analfabetismo que engloba analfabetos e alfabetizados, porque estes ao aprender a ler, mais do que decifração aprenderam para o bem da ORDEM que não sabem ler. Exorciza-se a inquietude que a leitura-diálogo poderia produzir para gerar a tranquilidade que de tão tranquila acaba fazendo desaparecer a leitura.

Para pensarmos “o professor como leitor e como incentivador da leitura”, dadas as formas de como se tem enxergado a leitura e acrescentando-se a este enxergar as condições de trabalho do professor, é preciso que aprendamos com alguns professores dois milagres que realizam no seu dia-a-dia: o milagre de construir o acesso material a livros e o milagre de incentivarem leitores sem poderem ser leitores”

Mas que esta apreensão não nos iluda. Se são dois milagres, eles denunciam duplamente: as péssimas condições de trabalho do professor que o obrigam a produzir milagres e o nível de degradação a que chegou a educação para que a ORDEM se estabeleça para a maioria em benefício do PROGRESSO da minoria.

 

Nota

  1. Embora não se possa deixar de pesar o “marketing” empresarial: !a grande maioria dos títulos mais lidos são editados pela Editora Ática ou pela Tecnoprint. Da relação dos títulos mais lidos […] total de 1449 citações do quadro de títulos mais lidos, 1008 pertencem à Editora Ática, 342 à Tecnoprint (quatro títulos são comuns às duas editoras) e 271 a seis outras editoras” (Butaka, op. cit. P.73).

Bibliografia

Bibliografia

Almeida, J. L. (1911). “A nossa língua” in. Histórias da nossa terra. RJ, Francisco Alves, 7ª. ed.

Butaka, I e outros (1981). “Práticas de leitura extensiva em escolas estaduais de 1º. Grau – Minas Gerais – Estudo exploratório”. Resumos do 3º. Congresso de Leitura do Brasil, p. 71-76.

Foucault, M. (1970). A ordem do discurso. Mimeo. Tradução de Sírio Possenti, Dinarte Belatto e José Crippa. FIDENE, Ijuí.

Geraldi, J. W. (1984). “Prática da leitura de textos na escola” in. O texto na sala de aula – Leitura e Produção. Cascavel, Assoeste, p. 77-92.

Lajolo, M. (1982) O que é literatura. SP, Brasiliense

________ (1984) “Poesia: uma frágil vítima dos manuais escolares”. Leitura: Teoria e Prática, ano 3, n. 4, p. 19-25.

________ (1985) “A teoria da literatura e a leitura na escola”. Conferência proferida no Seminário “As ciências da linguagem e a formação do leitor”. P. Alegre, 22 a 26 de agosto de 1985.

Osakabe, H. (1982). “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita!. In. Regina Zilberman (org). Leitura em crise na escola.: as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto.