por Mara Emília Gomes Gonçalves | out 31, 2019 | Blog
Tem razão, não faço ideia do que fazem meus vizinhos, o que são e como vivem, do que se alimentam, para que time torcem, que igreja ou templo frequentam. O certo é que muito mal nos cumprimentamos, muitas vezes até fingimos que não nos vemos para exatamente não nos cumprimentar: exageros!
– me empresta uma xícara de açúcar? – Isso vale para quem vive em comunidades, porque ali somos irmanados na dor, na pobreza, na falta de privacidade que se confunde muito com a falta de propriedade, afinal, ninguém é dono de nada, nem das próprias vidas, infelizmente.
A vida em condomínio é diferente, as pessoas se sabem entre os seus, mas estão todos resguardados pela manutenção de um status, de uma cor, e principalmente a sensação de estar protegido de outros grupos. Ainda assim, não são todos iguais, sabemos bem.
Até que um dia o silêncio se rompe, e como diz o dito popular: Gambá cheira gambá, muito mais do que o me diga com quem andas que te direi quem és, reafirmo que primeiro vale mais: gambá cheira gambá.
Algumas pessoas entendem esse dito popular de maneira distinta, atribuem que a metáfora trataria do cheiro do animal, assim sendo o bonito animalzinho de cheiro forte, teria esse cheiro, e não outro. Então cada um tem um cheiro característico, impassível de mudança. Bobagem. O dinheiro tem cheiros interessantíssimos, e o poder outros tantos ainda. Cheiros que vão e vem… Como visitas.
O marsupial conhecido por todos por seu cheiro não tem sempre o odor insuportável, dizem. Ele usa seu cheiro para afastar predadores, fingindo-se de morto e exalando fétido odor. Então, não seria possível que a metáfora fizesse sentido assim, que fosse tomado pelo fedor como característica não de defesa, mas determinante e permanente. O que o dito popular quer mesmo dizer, e diz, é que os iguais se reconhecem sem precisar de palavras, se aproximam, se atraem e se suportam porque se sabem iguais.
É aí que entra o escritor francês Saint Exupéry: É preciso dizer que você se tornará responsável por aquilo que cativa, e convenhamos e venhamos: nada melhor para cativar uma amizade que conhecimento, e reconhecimento dos lícitos e ilícitos, morando perto, perto como o alcance de duas ou três quadras ainda melhor, porque sabe-se(excluindo-se a cegueira da paixão ou idiotice) de movimentações, festinhas, comemorações e o principal do que condiz ou não com o padrão social.
Não sendo um imbecil, tampouco querendo passar-se por um, torna-se facilmente perceptível que as movimentações de um pretenso amigo são incompatíveis com o salário, com as festas, com os frequentadores de sua casa. Assim, o odor do gambá não precisaria sequer recender para que o animalzinho seja identificado.
E o Chile? É nosso vizinho desconhecido, não tão vizinho quanto a Venezuela ou Cuba (tsic).
Bem, aqui também vale o dito. Gambá cheira gambá.
Todos os afoitos pelo crescimento neoliberal, apoiadores que são das flexibilizações trabalhistas, previdenciárias, tributárias sabem bem o que está acontecendo.
O próprio uso do termo flexibilização parece algo bem melhor do que extermínio. Lá atrás, é preciso que volte duas casas (58,66) e confira, neste mesmo texto eu falei sobre como o poder e dinheiro mudam os cheiros. Aliás, os ricos e poderosos não fedem, eles têm mal cheiro, mesmo quando o odor putrefato tomou todo o ar em volta. E agora que o defunto neoliberal está sendo exposto, Guedes e toda a escola de Chicago, se omitem da responsabilidade fedorenta, porque aplicam aqui o que deu errado lá, e que faz vitimas diárias sem sistema de saúde, sem previdência, sem empregos estáveis, sem passado, sem presente e com o futuro nas ruas… Para o bem e para o mal, é claro que o Chile, tampouco a Argentina, não é a Venezuela, contra essa última pesam ventos petrolíferos, que por aqui no Brasil – país que tem flertado com o fascismo e seguido à cartilha do mesmo Guedes antes do Chile, oportunamente chama de ditadura comunista.
por José Kuiava | out 30, 2019 | Blog
Assistimos – vivemos e sofremos sem poder dormir tranquilamente – o mundo em ebulição. É impossível, em sã consciência, não ter medo das tragédias naturais e humanas, frente ao real apocalipse planetário, por conta da degradação ecológica, das leis de polarização e desigualdade social, das crises econômicas e dos terrorismos ideológicos e fundamentalistas globalizantes.
Os governos autocráticos, em expansão global desmedida e sempre em sacrossanta harmonia conjugal com o judiciário, são o prenúncio de tragédias e calamidades jamais vistas.
Um falso deus, inventado por intelectuais ávidos por propina, mascarado de populismo democrático – o ultra-neoliberalismo – vem se impondo, produzindo e determinando calamidades e crises globais, naturais e humanas, insuportáveis.
Aí, as perguntas.
Como entender este mundo da fase planetária eletrônica, em processo de globalização sem fronteiras e, ao mesmo tempo, em construção de novas fronteiras intransponíveis materiais, raciais e ideológicas?
Como evitar e impedir as degradações ambientais do planeta?
Como extinguir os abismos das desigualdades sociais, em galopante expansão nos últimos anos? Ou, como diminuir as desigualdades sociais em níveis e ao ponto de que todos os seres humanos usufruam de plenas e saudáveis condições de vida, individual e social, de bem estar?
Como e porque não eleger mais governos autocráticos e ditatoriais fascistas daqui pra frente?
Quais são as forças sigilosas, escondidas estratégica e intencionalmente por trás dos bastidores do palco global, e que vem determinando as condições materiais para a produção, reprodução e constituição do mundo que temos e do qual fazemos parte?
É muito complexo e difícil entender e explicar este mundo. Porém, é possível apontar alguns elementos – forças sociais, políticas, jurídicas – determinantes, embora camuflados, ou protegidos pelo sacrossanto poder do dinheiro.
O dinheiro e o capital das corporações rentistas, das corporações do petróleo e das corporações do agronegócio são as grandes forças que promovem e determinam os acontecimentos na sociedade ultraneoliberal no início do séc. XXI. Virou moda global os governos autocráticos populistas se camuflar e fantasmagorizar de democracia para legalizar e legitimar o poder autoritário, ditatorial, corporativista das elites do capital.
Os políticos conservadores de direita se elegem com os votos do povo por força da nova tecnologia midiática – o “príncipe eletrônico” da fase planetária – manipulando e alienando a opinião pública e escondendo as reais intenções e os verdadeiros interesses em jogo. É a força da `velha´ lei do positivismo: falar e dizer uma coisa na teoria para poder fazer seu contrário na prática. Prometer o combate e a extinção da corrupção para se eleger e continuar a roubar, sem ser preso pela polícia e nem condenado pela justiça.
E quando uma grande parte do povo é seduzida e induzida a votar em políticos e candidatos – quando eleitos viram governo – que dilapidam direitos sociais já conquistados; que reduzem e asfixiam investimentos públicos para a educação, a ciência, a cultura, a saúde, os transportes, a aposentadoria(!); que aumentam o abismo das desigualdades sociais; que estimulam e incentivam a degradação do meio ambiente; e que dizem asneiras aqui em casa e pelo mundo inteiro, o que resta a fazer?
Bem, ao longo da história, as praças, as avenidas, as ruas, os logradouros das cidades se constituíram e ainda se constituem em espaços públicos – campos de batalhas e de lutas de classes sociais – para mobilizações e concentrações de protestos e manifestações do povo. É o campo de batalha das massas populares, portanto, dos pobres – empregados, desempregados, viventes e sobreviventes das ruas, vendedores autônomos de rua – irem à luta.
No Brasil, nos últimos dois anos, o abismo da desigualdade vem crescendo assustadoramente. O 1% dos mais ricos ganha mais do que os 60% dos mais pobres. Nos últimos dois anos a renda dos 10% mais pobres diminuiu 7,2%, ou seja, R$153,00, enquanto a renda de 1% dos mais ricos cresceu 8,4%, ou seja, R$27.774,00. Assim, o 1% dos mais ricos recebe 33 vezes mais que os 50% dos brasileiros mais pobres. É a desigualdade mais trágica da nossa história.
Em protesto ao mundo trágico e contra os governos autoritários das elites políticas e financeiras, as ruas, as praças, as avenidas estão em chamas. Milhões de manifestantes em diversos países em redor do planeta – Chile, Equador, Honduras, Reino Unido, Catalunha, Líbano e outros – ocupam os espaços públicos em movimentos do “quebra tudo”. As lições de luta vem de fora do Brasil.
E aqui, onde estão os partidos de esquerda e de oposição? os múltiplos e diversos sindicatos dos trabalhadores, dos funcionários públicos, as associações de professores, os diretórios de estudantes, enfim, o povo que está sendo lesado mortalmente por reformas absurdas do atual governo? Vamos continuar assistindo a destruição do Brasil prostrados de joelhos? Até quando?
por João Wanderley Geraldi | out 29, 2019 | Blog
Por onde se esconde a conveniência
Na mais alta aparência da toga
Um quadrante que abole a dormência
Do pesado sessenta e quatro de complacência
Germina o ovo trivial de uma nova serpente
O que afugenta mais um golpe cordial
Vindouro da mais alta corte afável
É carregada pela curva da displicência
Que susta quarenta por centro de real
Investigação assegura avalanche da sangria
Desconfiada pela Lava afortunada
Que se ajusta por um poder parcial
Por baixo da toga preta
É bem maior a sua escuridão
Que faz ranger a nossa Constituição
Sem nenhuma serventia
As leis não são acasos do destino
Regulamento do capital num poder habitual
Seres “honrados” do poder constitucional
Onde a população paga seus formidáveis salários
Pra lavrar leis otárias de um livro ficcional
São seres daquela toga preta
Zona moralmente abalada pelos preceitos
Entoando uma espetaculosa moral esdrúxula
Tratam sempre humildes como otários
Com seus duzentos milhões de sol a sol
Que depositam anopluro de seus salários.
por João Wanderley Geraldi | out 28, 2019 | Blog
Não são pacíficos os ventos que vêm do outro lado da América Latina, que vem do Pacífico. O governo do Equador experimenta implantar as políticas neoliberais desde que assumiu, traindo Rafael Garcia. A população se revoltou, foi para as ruas. E as prisões se encheram e a perseguição continuará.
Laboratório do neoliberalismo, desde a ditadura de Pinochet, o Chile amarga uma desigualdade social que desconhecia. Vê seus idosos sem renda. Vê seus jovens sem futuro. Enquanto que a concentração de renda continua firme e forte, e parece ser tão vergonhosa que a primeira dama acabou pedindo às amigas que é preciso abrir mãos de “alguns privilégios” para poder manter a mesmíssima exploração.
E também no Chile o povo foi para as ruas. O presidente Piñera voltou atrás no aumento dos bilhetes de metrô, imaginando que retirado o estopim, o resto voltaria a ficar submerso. Acontece que estopim é apenas estopim: traz a revolta latente para a superfície.
Na Bolívia, a oposição perde as eleições mas não aceita os resultados – aqui no Brasil já vimos este filme com Aécio Neves e deu no neofascista que nos governa. Ora, parece que o sistema global neoliberal não aceita mais qualquer tergiversação: quer a Bolívia a todo custo.
Sei. O povo nas ruas: eis a novidade que saudamos. Estes seriam realmente os ventos que viriam do Pacífico: ensinar a tomar as ruas?
A maioria dos comentaristas diz que não há clima global para a existência de ditaduras na América Latina. Que as ditaduras estão afastadas. E que o povo equatoriano e o povo chileno podem ser nosso estopim na revolta contra as políticas neoliberais… Os argentinos mostram nas urnas e expulsam do poder o presidente neoliberal. E daí?
O vento que vem do Pacífico também pode ser outro: o do endurecimento do regime. Ditadura militar? E precisa ser militar para ser ditadura? Um governo civil que põe polícia e militares a atirarem contra o povo. Um governo civil que prende. Um judiciário que dá a bênção a tudo para garantir privilégios e a manutenção geral da ordem do capitalismo financeiro e improdutivo, que eleva a índices nunca vistos as desigualdades sociais, que retira direitos sociais, que reduz verbas para tudo o que possa ter ‘cheiro’ de social, é afinal de contas o quê? Só porque é civil não é ditatorial?
Penso que os ventos que vêm do Pacífico são de endurecimento, de mortes e de prisões. E por aqui nosso fascista de plantão declarou:
Nos preparamos. Conversei com o ministro de Defesa sobre a possibilidade de ter movimentos como tivemos no passado, parecidos com o que está acontecendo no Chile, e logicamente essa conversa ele leva a seus comandantes, e a gente se prepara para usar o artigo 142 [da Constituição], que é pela manutenção da lei e da ordem, caso eles venham a ser convocados por um dos três poderes”, disse Bolsonaro nesta quarta-feira pela manhã (hora local) em Tóquio ao conversar com alguns jornalistas depois do café da manhã. (disponível em https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-teme-efeito-chile-e-manda-forcas-armadas-se-prepararem-para-possiveis-confrontos )
Art. 142 da Constituição:
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Será que ao pensarmos a impossibilidade de uma ditadura por aqui estamos imaginando que estamos fora dela? Que o formalismo de fachada da existência de três poderes funcionando é garantia de que não estamos já numa ditadura e que tudo pende para o recrudescimento da repressão?
Vivi na ditadura militar (agora chamada pelo presidente de um dos poderes de “movimento de 1964”). E penso que estou vivendo na ditadura em sua nova face, a ditadura neoliberal de imposição da miséria em benefício de uma minoria cada vez mais minoria! As fórmulas políticas mudam… mas a essência do sistema de desigualdade é sempre a mesma, em qualquer das facetas do capitalismo. E os ventos não são de mudança!
por Mara Emília Gomes Gonçalves | out 27, 2019 | Blog
Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.
Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
por João Wanderley Geraldi | out 26, 2019 | Blog
Que espetáculo é esta nigeriana! Já estou com todos os seus livros publicados no Brasil, até mesmo Para educar crianças feministas, e olha que sou gaúcho!!! Mas luto contra, sempre, no entanto não deixo de cair no que há lá no fundo. Notem este “até mesmo”…
Este volume é composto por 12 contos. E a gente lê cada um deles como quem escuta alguém contando uma história de um amigo, de uma amiga, de um parente: acontecimentos que poderiam ser reais ainda sem que os matizes de invenção da autora façam imaginar tudo o que conta como inverossímil. Ao contrário, tudo é possível, tudo acontece quando você passa a conviver com a colonização, com a invasão cultural, com a imigração forçada, com as condições de existência do imigrante que vai conviver com outra cultura e nela ocupa lugares com movimentos que devem ser invisíveis.
Os contos trazem também a cultura profunda dos grupos, particularmente os igbo. E tem uma característica muito interessante, quando a autora interrompe o presente e traz o futuro de sua personagem para depois retroceder e o leitor reencontrá-la onde a tinha deixado, num fio da meada cronológica. Outra caraterística constante dos contos a presença feminina: são as mulheres que observam, que percebem, que sentem, e é sobre elas que se narra.
A linguagem é simples, corre livre, sem rebusques “literários”, e por isso mesmo uma prosa profundamente literária. Também não há uma preocupação típica do gênero: uma espécie de colocação da cena e personagens, um clímax e um desfecho.
Resumir cada conto é quase um crime. Porque se perde o tom, se perde a naturalidade de se sentar e ouvir alguém contando uma história. De qualquer forma, como estes registros são mnemônicos, faço uma breve apresentação de cada conto.
Em A Cela Um conta-se a história de Nnamabia, o irmão da narradora. Era a família de um professor da universidade, no campus de Nsukka. O conto começa com um furto na casa do professor: o primeiro, feito pelo vizinho Osita; o segundo, feito pelo próprio filho Nnamabia… eram tempos de “surto de roubos” em Nsukka. O tempo passa, o roubo do filho não é comentado em casa, mas o irmão foi preso: ele participava dos “cultos” – grupos de jovens que lutavam entre si. Houve mortes e prisões. Nnamabia foi levado para a prisão de Enugu, cidade grande. Na cela, havia um chefe que recolhia todo o dinheiro e dividia as rações de alimentos. Nenhum preso poderia ter algo de seu sem entrega ao chefe. No entanto, os pais e a irmã o visitam, levam-lhe comida e subornam a guarda para que ele saísse da cela e viesse comer junto com a família. Houve a prisão de um idoso, e o ‘chefe da cela’ exigiu que ele desfilasse nu entre seus companheiros. Nnamabia se revoltou. Um comportamento inadmissível: foi transferido para a Cela Um… Mas acontece que a justiça decretou sua soltura, e como ele estava na “cela dos que vão morrer”, ele já havia sido levado para o lugar de execução quando os pais chegaram para buscá-lo. Chegaram a tempo: encontraram o filho com hematomas, mas ainda vivo… Aparentemente, a “mulher” estaria ausente, face a esse resumo. No entanto, ela é a narradora, é sob o ponto de vista da irmã que os acontecimentos são filtrados: é o modo feminino de ver e sentir que você acompanha a cada passo, a cada episódio, a cada revelação e a cada silêncio. E isto faz a diferença.
Réplica: Nkem, mulher de Obiora. O casal mora na Filadélfia: quando chegaram, Nkem estava grávida. No entanto, o marido mantém a casa na Nigéria, para onde sempre viaja e onde começa a ficar cada vez mais tempo, enquanto Nkem cuida dos filhos e da sua educação, já que o pai queria que os filhos fossem como os filhos de seus vizinhos norte-americanos. O conto começa com Nkem recebendo um telefone de uma amiga nigeriana, Ijemamaka, contando-lhe que seu marido tinha outra mulher na Nigéria. Todo o conto refaz a história da relação de Nkem, desde quando se conheceram. E termina quando Obiora retorna da Nigéria. E então vem o produto deste tempo de reflexão feminina:
No chuveiro, ao ensaboar as costas de Obiora, Nkem diz: “Nós temos que encontrar uma escola para Adanna e Okey em Lagos”. Não tinha planejado dizer isso, mas lhe parece ser a coisa certa, é o que ela sempre quis dizer.
Obiora se vira para encará-la. “O quê?”
“Vamos voltar para lá quando acabar o ano escolar. Vamos voltar a morar em Lagos. Vamos voltar.” Nkem fala devagar, para convencê-lo e para convencer a si mesma. Obiora continua a olhá-la e ela sabe que ele nunca a ouviu erguer a voz, nunca a ouviu tomar uma decisão. Nkem sente uma vaga dúvida, perguntando-se se foi isso que o atraiu antes de tudo, o fato de ela adiar-se tanto, de deixar que ele falasse pelos dois.
“Nós podemos passar as férias aqui, juntos”, diz Nkem, com ênfase na palavra nós.
“Mas … por quê?”, pergunta Obiora.
“Eu quero saber quando chega um empregado novo na minha casa”, diz ela. “E as crianças precisam de você.”
“Se é isso que você quer”, diz Obiora, após alguma hesitação. “Nós podemos conversar”.
Ela o vira de costas gentilmente e continua a ensaboá-lo. Não é preciso conversar sobre mais nada, Nkem sabe. Está decidido.
O tema de Uma experiência privada é o da luta étnica e religiosa… Por acaso, um católico ao estacionar o carro passa por cima de um exemplar do Corão que estava no acostamento. A reação dos homens que estavam por ali foi imediata: arrancaram-no da picape e cortaram sua cabeça com um golpe de machadinha. Depois correram para o mercado, e começou a violência. Chika, do povo igbo e católica, estava passando férias na casa da tia, uma alta funcionária e naquele momento estava com a irmã fazendo compras: ela comprava laranjas, a irmã tinha ido adiante para comprar amendoim. No corre-corre, uma mulher a leva para lugar seguro, uma velha loja abandonada. E a mulher, Nnedi, é husa e muçulmana. E claramente muito pobre. É feirante. Vende cebolas. Está posta a diferença social… Chika é estudante universitária, sua salvadora é uma feirante. Então o leitor acompanhará não só os resultados da violência, mas também as mazelas típicas de uma sociedade de desigualdade social. No entanto, fechadas em seu esconderijo por uma noite, as duas mulheres mostram que outra história seria possível.
Fantasmas remete à história de escravização de Ikenna Okoro, considerado morto por seu amigo James Nwoye. O reencontro de ambos é rápido e acontece quando James mais uma vez vai à tesouraria da Faculdade para ver se os proventos de sua aposentadoria tinham sido liberados (alguns dos aposentados não recebem há três anos). O Prof. James vive dos dólares que lhe manda o filho dos EEUU. O grande crime em que se envolveu Ikenna foi a luta pela independência de Biafra. A história que se conta aqui tem a ver precisamente com esta luta. Este é um dos únicos contos em que a mulher não é personagem principal.
O conto seguinte focaliza uma irrealizada relação homossexual. Em Na segunda-feira da semana passada temos uma babá, Kamara, que cuida do filho de uma pintora: Josh. Quem efetivamente comanda a vida cotidiana é o marido, Neil, pois a mulher Tracy estava trabalhando numa encomenda e encerrou-se no porão. O pai vive preocupado com a alimentação natural de seu filho, exigindo que Kamara faça pratos que o patrão descobre pesquisando em livros de receitas de alimentação e bebida naturais. Esta obsessão de Neil é motivo de algumas reflexões de Kamara e muito da tristeza de Josh, a quem a babá ensina a jogar fora sucos insuportáveis. Numa tarde, Tracy sai do porão e encontra Kamara. Esta se apaixona pela mulher do patrão desde que esta pergunta se ela já havia pousado para algum artista. Kamara passa a imaginar o tempo todo um encontro que jamais acontece. A narrativa se encerrará a visita de outra mulher, Mauren, a quem novamente Tracy olha fixamente e lhe pergunta se algum dia pouso para algum artista.
Jumping Monkey Hill tecnicamente é construído no diálogo entre uma narrativa que uma autora vai escrevendo e a narrativa do encontro de escritores africanos na Cidade do Cabo realizado no luxuoso resort que dá título ao conto. O workshop previa que durante a primeira semana todos discutiriam livremente e cada um teria a responsabilidade de apresentar, na segunda semana, um conto produzido neste período, para compor uma coletânea de contos de escritores africanos selecionados. A narradora é a escritora nigeriana Ujunwa. E conto que escreve é sobre a vida de Chioma, formada em Economia pela Universidade de Nsukka, que procura emprego e sempre sofre assédio sexual. Sendo contratada para trabalhar num banco para contatar clientes, na primeira visita acompanha uma colega mais experiente e percebe que a conquista de clientes para o banco passava por serviços sexuais que a “funcionária” deveria oferecer. Quando da leitura de seu conto, as críticas vieram fortes particularmente de um escritor queniano (homem!) para quem o final do conto era inverossímil porque a personagem não teria aberto mão do emprego, pois não lhe restava outra opção. Na narrativa, no entanto, Chioma se recusa a manter relação sexual com um possível cliente e sai de sua casa para pegar suas coisas no banco e abandonar o emprego. Para o organizador do workshop, “o conto inteiro não é plausível. Isso é literatura ideológica, não é uma história real sobre gente de verdade.” Então Ujunwa responde: na história de Chioma, somente não é verdade que foi para o banco com o jipe dos patrões, mas exigiu que o motorista a levasse para casa porque sabia que era a última vez que andaria nele. A história de Chioma aparece assim como a história de Ujunwa, que por sua vez é uma ecritora-personagem do conto. Genial.
No seu pescoço foca a imigração de africanos – nigerianos – para os EEUU. A técnica de escrita é muito interessante: a narradora trata a personagem como “você”, como se estivesse falando com ela enquanto conta sua história. Desde o início o leitor se depara com esta técnica:
Você pensava que todo mundo nos Estados Unidos tinha um carro e uma arma; seus tios, tias e primos pensavam o mesmo. Logo depois de você ganhar a loteria do visto americano, eles lhe disseram: daqui a um mês você vai ter um carro grande. Logo, uma casa grande. Mas não compre uma arma como aqueles americanos.
De fato, “você” vai direto para a casa do tio, que já vivia nos EEUU e que lhe ensinou como conseguir o emprego de operadora de caixa num posto de gasolina. “Você” se sentia bem lá, mas uma noite o tio invade seu minúsculo quarto forçando uma relação sexual. Você consegue fugir e encerrar-se no banheiro. Na manhã seguinte sai da casa, vai para Connecticut onde arruma o emprego de garçonete num bar em que o gerente é o nigeriano Juan. Um dos clientes, branco, começa a paquerar “você”. A paquera se torna namoro. Você conhece os pais dele. Vocês viviam bem. Então você escreveu uma carta para sua casa e na resposta ficou sabendo que seu pai havia falecido há cinco meses. A mãe dizia que lhe deram um bonito funeral com o dinheiro que ela havia mandado. E você chorou. E o conto termina em aberto:
Ele abraçou-a enquanto você chorava, fez carinho no seu cabelo e se ofereceu para pagar sua passagem, para ir com você ver sua família. Você disse que não, que precisava ir sozinha. Ele perguntou se você ia voltar, e você lembrou a ele que tinha um green card e que ia perde-lo se não voltasse em menos de um ano. Ele disse que você sabia o que ele queria dizer, você ia voltar, voltar mesmo?
Você virou de costas e não disse nada e, quando ele a levou de carro ao aeroporto, você abraçou-o apertado por um longo, longo momento, e depois soltou.
No A embaixada americana narra-se o suplício das pessoas em fila esperando obter um visto de entrada, uma saída possível. A personagem aqui é a esposa de um jornalista do The New Nigeria que tendo escrito um texto que a BBC de Londres repercutiu, com críticas à ditadura, precisou fugir do país. Combinaram marido e mulher que se encontrariam nos EEUU. Acontece que na mesma noite da fuga, invadem sua casa à noite em busca do marido, e como ela não sabia para onde ele tinha ido, um dos “milicianos” mata o pequeno filho, Ugonna, que chorava desesperadamente. É depois do enterro do filho que ela vai pedir asilo político na embaixada. É recebida por uma funcionária fria, que quer provas de que ela era perseguida política. Age de forma tipicamente burocrática. Esta conversa com a burocracia lhe fez ver que preferiria voltar para sua terra, para seus ancestrais. E encerra a entrevista, virando as costas para a mulher de cabelo castanho-avermelhado, e saindo da embaixada. No conto, o mais interessante são as observações enquanto as pessoas estão na fila, incluindo uma cena em que os soldados da ditadura batem em um homem indefeso.
O Tremor tem por personagens migrantes nigerianos nos EEUU. A tragédia da queda de um avião dá início à narrativa. Ukamaka vê as notícias pela internet e escuta baterem à porta de seu apartamento. É Chimedu, também nigeriano, quem chega e a convida para orar. Uma oração conduzida ao estilo neopentecostal, com as contínuas invocações “Senhor meu pai”, “Em nome de Jesus” e muito “Amém” sem que a reza chegue ao fim. Ukamaka sente um tremor durante a oração: daí o título do conto. Seu receio era que seu namorado (ou ex-namorado), Udenna, estivesse no voo, até que um telefonema afasta as suspeitas: Udenna tinha perdido o voo. Mas Chimedu não sai do apartamento e começam a conversar, inicialmente sobre o acidente, depois sobre Deus e sua vontade de matar alguns e salvar a outros
“Se, como você [Chimedu] diz, Deus foi responsável por ter cuidado de Udenna, então Ele foi responsável pelas pessoas que morreram, pois podia ter cuidado delas também. Isso quer dizer que Deus gosta mais de algumas pessoas do que de outras?”
Depois vem a história do namoro Udenna/Ukamaka. A certa altura, ele lhe dissera que o namoro estava estagnado e por isso deveria acabar. Então ela recorda tudo o que fizera para adaptar seu ritmo de vida ao ritmo exigido pelo namorado e seu trabalho. Depois vem a história de Chimedu, que também já tivera um namorado e o amor havia acabado. Para, no final, Ukamaka, que imaginava o vizinho estar, como ela, fazendo pós-graduação na Universidade, fica sabendo que ele está no apartamento de um amigo que viajara e que ele está clandestino nos EEUU, esperando a deportação.
Em Os casamenteiros conta-se a história de uma jovem nigeriana que se casa com um nigeriano que vive nos EEUU, num acerto entre as famílias de ambos. Lá, a noiva o conheceu como Ofodile Emeka Udenwa. Chegados de Lagos e instalados na novo apartamento, ela fica sabendo que não pode chama-lo mais de Ofodile, mas sim de Dave Bell, nome que o “novo marido” adotara nos EEUU. Então aparece outra pessoa, que quer estar integrada no novo país, que quer ter sucesso, que proíbe o uso da língua igbo, que a todo momento corrige a mulher, que passará a se referir a ele como “o novo marido”. Ela espera sua autorização para poder trabalhar, e como não recebe o cartão, pergunta-lhe o que está acontecendo e soube então que a ex-mulher do “novo marido” estava complicando porque quando ele se casou em Lagos ainda não havia sido encerrado o processo da separação. Ele explica que o casamento era de fachada, apenas para ele obter seu green card, mas ela não aceita que ele não tenha dito que fora casado antes. Tenta sair de casa, vai para o apartamento de uma amiga no prédio, e esta lhe faz ver que deveria continuar com o “novo marido” até ter seu cartão e recomeçar a vida. Ela volta e o “novo marido” lhe abre a porta de casa. Tudo isso, no entanto, os “casamenteiros” não contam…
Amanhã é tarde demais é uma história trágica. Aqui mais uma vez a técnica narrativa é do emprego de “você”, como se a narradora se dirigisse à sua personagem. São dois irmãos – você e Monso – que vem em férias para a Nigéria, para a casa da avó. Para lá também vai um primo Dozie, pelo qual “você” tem uma paixão juvenil. Acontece que sendo Monso o único neto que manterá o sobrenome de família, a avó não esconde sua preferência por este neto, e tudo é feito para ele, os outros dois ficando de lado. E “você” não suportará isso, armando para o irmão um acidente: desafia o irmão para ver quem sobre mais alto num abacateiro. Quando Monso está bem no alto, em galhos já menos fortes, ela grita que há uma cobra – echi eteka. Monso de desequilibra, cai e morre no acidente. Mais tarde “você” mentirá à mãe que Monso não havia morrido de imediato, mas que a avó em vez que buscar socorro ficou aos gritos em torno do menino, reclamando que ele não daria continuidade ao nome. 18 anos depois, com a morte da avó, “você” retorna e encontra o primo Dozie, e pela primeira vez este lhe fala do acidente que presenciou e que sabia desde sempre que o desafio era uma armadilha de “você” para se ver livre do irmão preferido pela avó e que fazia dela uma “preterida” na família.
A historiadora obstinada se inicia com um casamento: Nwamgba conheceu Obierika e por ele se apaixonou. Ambos pertenciam a clãs diferentes, e a família de Obierika teria uma maldição: todas as mulheres perdiam seus filhos durante a gravidez, em constantes abortos. No entanto, Nwamgba diz aos pais que quer casar com ele assim mesmo, e que se a obrigarem a se casar com outro homem, ela sempre fugirá da casa do marido. Assim, o casamento se realiza e como predizia a maldição, ela perde sucessivamente três vezes, com abortos naturais. Então ela e Obierika consultam o oráculo e depois disso ela consegue ter um filho, Anikwenwa. Como o marido morre, dois de seus primos Okafo e Okoye buscam na casa as honrarias de Obierka e lhe roubam grande parte de suas terras. Como os colonizadores estavam criando tribunais nos quais se resolviam as questões de terra, notícia que lhe traz a amiga Ayaju dizendo que no entanto somente vencia no tribunal quem falasse a língua dos brancos. Assim, decide a mãe colocar o filho Anikwenwa na missão para aprender inglês. Acontece que ele também aprende a religião dos brancos, muda de nome e se torna catequista… Começa então uma narrativa agora da segunda geração, pois o filho se casa, mas trata a mulher de forma absolutamente colonialista. A nora, Mgbeke, visitava a sogra muitas vezes aos prantos por não saber como se conduzir diante do fanatismo religioso do marido, e a obrigação de falar em inglês, de cozinhar como os brancos, de rezar como os brancos, de crer como os brancos. Ainda assim, o casal deu à Nwamgba dois netos, um menino e uma menina. Será esta menina que resistirá ao pai e que estudando história, percebe que esta somente é contada sob o ponto de vista do branco. Assim, contrariando o destino que lhe traçara a família, ela se tornará uma grande historiadora, falando dos povos nigerianos e denunciando a colonização, escrevendo um livro cujo título é “A pacificação com balas: uma história recuperada do sul da Nigéria.
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Como se pode notar, os enredos destes 12 contos trazem histórias de nigerianos, de suas vidas nos clãs, da interferência na vida dos povos pela colonização branca, da miséria em que vivem os negros, do sonho do eldorado, os EEUU, da miséria e logro que é a vida efetiva do imigrante neste eldorado, da contraposição entre as religiões tradicionais e o cristianismo (católico ou evangélico). Vidas tristes, vidas de luta, vidas de resistências, como a de Grace (a neta historiadora que a avó chamou sempre de Afamefuna, nome que ela adotará no final do conto). Como disse antes, os resumos são crimes porque perdem toda a construção literária, que aqui se faz pela simplicidade do estilo, pelo narrar que parece escorrer por entre os dedos da narradora e que obriga uma escuta encantada e ao mesmo tempo consciente do que significa ser africano num mundo que reduziu a África a território de posse de estrangeiros que estrangularam culturas e vidas.
Referência. Chimamanda Ngozi Adichie. No seu pescoço. Tradução de Júlia Romeu. São Paulo : Cia. das Letras, 2017.
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