Carvoeiros de Pedro Tierra

Carvoeiros
I.
O cerrado prefigura o carvão?
O capim agreste quando não se acende pelas coivaras do sol,
guarda estoques de queimadas para empregar nas secas futuras.
A secreta ciência dos bichos adverte: ali ema não bota ovo.

– O Cerrado sabe seus atalhos…

A promessa de vida que no ovo lateja,
o trabalho de vida que no ovo lateja,
o disparo de vida interrompido no ovo
adia a vida que pulsa nos seus guardados:
a vida sabe,
a vida se esquiva para prosseguir.
Asa astúcias da vida inventam umidades para derrotar os ministérios do fogo?

Quem saberá? O cerrado é celeiro de águas: nascentes.

O cerrado prepara o deserto?
Será o caminho entre o areal e a floresta?
Ou, ao contrário, é passagem entre a floresta e o pó?

O cerrado é a multiplicação,
as infinitas diferenças:
o labor paciente do mel e das frutas e seus ácidos.

O cerrado incorpora o trabalho dos ventos,
das águas exiladas,
sacudidas do lombo
pelas forças primitivas da terra.

O cerrado é assim: desigual.
O trabalho dos homens organiza o cerrado.
Organiza desertos transgênicos de soja.
Desertos verdes de soja,
desertos secos de soja,
desertos…

II.
O carvão dos cerrados
desorganiza o alento dos homens.
A respiração sob a fuligem,
envenena a infância dos homens: sangra.
Sufoca.
Aterra na cinza a promessa do voo.

Os olhos desses meninos libertam,
sob a fuligem, fagulhas
de arrastar entre os fornos
os ossos da infância.

As linhas das mãos humanas prefiguram
o deserto?
Contemplo as mãos do carvoeiro.
Ásperas. Negras. Anoitecidas pela jornada.
Empunharam durante o dia as sementes do sol
presas nas tochas, nas bocas dos fornos.

Agora que se vai o sol, sitiado pela extensa escuridão dos cerrados,
as tochas são sementes de um sol extinto
trabalhando celeiros de noite e de carvão.
Conhecerão algum dia,
essas mãos pesadas sobre a mesa
o surdo poder que carregam: a possibilidade do deserto?

III.
O forno figura um ovo.
Um ovo de terra úmida:
barro arredondado
pelas mãos do carvoeiro.

Um ovo que arde na fumaça.
Um ovo grávido de morte:
devora a lenha dos homens,
a vida dos homens,
os sonhos dos homens,
os homens…

O carvoeiro faz o forno.
O forno refaz o carvoeiro.
Assalta sua pele, os olhos, a medula:
o carvoeiro sonha sonhos de carvão.

O carvoeiro faz o forno.
O forno refaz o carvoeiro.
Multiplica-o em cada forno novo:
ovo onde a morte lateja.

O carvoeiro quando mira o gato contratador,
seus olhos padecem de desterros.
Recriam os primitivos territórios da vida avulsa,
de onde veio e atinam por um instante:
a distância é a mãe dos submissos.
As mãos estendidas para recolher o vale
que prolonga sua servidão
sabem de êxodos e algemas:
os braços adquirem a feição escura dos machados.

IV.
O lingote de aço
contem no seu fogo
a paisagem que devorou?

O lingote não oferece,
antes esconde dos meus olhos,
a paisagem devastada.

A usina se nutre
dos ossos dos cerrados
e dos sonhos escassos dos homens.

A usina converte em aço,
a paisagem e em cinzas,
o coração dos homens.

O lingote é o filho aceso
da usina que oculta no seu fogo
a lógica do deserto.

 

 Pedro Tierra, no livro “O Porto Submerso”. Brasília: Edição do Autor, 2005.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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