Certa vez me disse o amigo Jorge Larrosa que Saramago conhecia o ofício de escritor como nenhum outro em sua época. Este Caim o mostra com folga: somente um artista consegue contar uma história conhecida de forma desconhecida, tornando o enredo que constrói um modo de enredar o leitor que acaba ficando curioso para saber qual o novo episódio que se seguirá ao que acaba de ler.
O Caim de Saramago é sim o assassino do irmão abel –aquele que ao nascer surpreende os vizinhos por ser loiro e branquinho, sub-repticiamente dando a entender que entre o querubim azael, que cuidava da porta do Paraíso depois da expulsão, e Eva, que foi lhe pedir frutas porque estavam com fome, houve mais do que simples trocas de olhares. Como sabemos, caim recebe como castigo não só a marca na testa, mas a maldição de viver errante pelo mundo. É desta errância que retira o escritor o perambular de seu personagem. caim vive ‘presentes’ – cada presente é um episódio bíblico, e o percurso de Caim o faz cair no presente de cada episódio, do Paraíso ao Dilúvio.
Saramago inova em alguns episódios. Por exemplo, quando abraão está com seu punhal erguido para sacrificar o filho isaac como lhe mandara o Senhor para comprovar sua devoção a seu deus: como aqui os anjos se atrasam com a mensagem e a tarefa de suspender o ato – por problema mecânico nas asas – é caim quem segura o braço de abraão não permitindo o crime. Com isso, ganha a proteção dos dois anjos em suas errâncias. Notável o diálogo entre abraão e isaac, quando voltam para casa:
Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou o moço, se não tivesse aparecido aquele homem para segurar-te o braço, que o senhor o cubra de bênçãos, estarias agora a levar um cadáver para casa, A ideia foi do senhor que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência, E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor de nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é capaz de tudo, do bom, do mau e do pior.
Neste episódio se aprofunda o tema efetivo deste romance: a disputa de caim, o homem caído, com as injustiças cometidas pelo deus do Velho Testamento, que vive a cobrar sacrifícios, que mata inocentes em função de pecadores – por exemplo, não retira as crianças de sodoma antes de queimar a todos vivos porque por lá homens gostavam de deitar com outros homens.. A Sodoma, caim chega acompanhado de abraão e seguem para a casa de lot, para saberem o que está acontecendo.
Então viram o grande ajuntamento de homens em frente à casa de lot, os quais gritavam, Queremos esses que tens aí, manda-os cá para fora porque queremos dormir com eles, e davam golpes na porta, ameaçando deitá-la abaixo. Disse abraão, Vem comigo, damos a volta à casa e chamamos ao portão das traseiras. Assim fizeram. Entraram quando log, por trás da porta da frente, estava a dizer, Por favor, meus amigos, não cometam um crime desses, tenho duas filhas solteiras, podem fazer o que quiserem com elas, mas a estes homens não façam mal porque eles procuraram proteção na minha casa.
E como sabemos pela história sagrada, safa-se a família de lot, mas sua mulher foi castigada pelo crime da curiosidade: virou estátua de sal… Os episódios não seguem uma cronologia: caim “tanto poderia avançar como voltar atrás no tempo, e não por vontade própria, pois, para falar francamente, sentia-se como alguém quemais ou menos, só mais ou menos, sabe onde está, mas não aonde se dirige”.
O episódio de job narrado como se tudo não passara de uma aposta entre lúcifer e deus… a vida sexual de caim, deitando com lilith de quem nasceu enoch… e depois a atividade sexual contínua na barca de noé, com suas noras e mulher, para repovoar o mundo como mandara o senhor a seu fiel noé.
No entanto, durante o dilúvio, caim faz morrer toda a família de noé e quanto a barca ‘aporta’, e o senhor chama noé, somente sai caim dizendo que matara todos e assim desfazia os planos do senhor de refundar a humanidade.
Nesta versão, caim, o homem, vence os planos do senhor, o deus. Mas se mantém para sempre o que a história registra nesta disputa entre caim e o senhor:
A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.
Referência. José Saramago. Caim. São Paulo : Cia. das Letras, 2009.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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