Cabanos!, de Carlos Arruda

Esta novela histórica retoma a revolta ocorrida no Pará, entre os anos de 1835, com duração até 1840 quando, definitivamente, os revoltosos foram eliminados pelos governos indicados pela Corte do Rio de Janeiro.

Pela narrativa, o estopim que leva à rebelião foi o massacre na colônia agrícola do Acará, quando o presidente da província – Lobo de Souza e seu comandante James ‘Inglis’ invadiram casas, queimaram lavouras e sedes das fazendas. Um dia, ao voltarem da caça, os dois irmãos José e Antônio encontram tudo dizimado, todos mortos – homens, mulheres e crianças.

Aturdidos, retornaram ao mato e andaram ao léu, sem saber o que faziam, sem nada sentir, somente com aquele dantesco espetáculo nos olhos, gravado nas retinas.

Assim estonteados tinham vagado pela floresta até encontrarem outro grupo de lavradores, que tendo sofrido o mesmo, fugiam sem destino também. A força imperial do inglês Inglis tudo tinha destruído no Acará, na fúria de castigar e destruir um povo que lutava somente para ter o direito de trabalhar e viver com dignidade e justiça.

Inominável crime era ter família, trabalho e uma casa no Acará: terra de rebeldes e anarquistas, na opinião do governo.

Os injustiçados e rebelados reúnem-se na casa de Francisco Pedro Vinagre: tinham que tomar uma decisão, já que o antigo governador e líder, Pe. Batista Campos havia proposto depor as armas e negociar com o governo despótico de Lobo de Souza. Na reunião, decidem que continuarão a luta e, por proposta de Eduardo Nogueira, de alcunha Eduardo Angelim, definem a estratégia de tomada de Belém, não numa guerra frontal que seria suicídio, mas localizando suas forças em diferentes pontos para um ataque simultâneo. O ataque se daria terminados os festejos de Reis.

O narrador faz, neste episódio, três contrapontos: a vida da aristocracia que vai ao Teatro do Largo das Mercês; o povo festeja nos arraiais, e os cabanos tensamente se preparam para o ataque em seus esconderijos. Esta sobreposição de narrativas dá ao leitor uma espécie de imagem fílmica de uma Belém em pé de guerra que insiste em viver como se o clima irrespirável de uma guerra tivesse, por encanto, desaparecido por milagre.

Iniciadas as escaramuças de janeiro de 1835, em plena luta, faleceu o velho Pe. Batista Campos, o que levou a uma trégua entre as partes para as cerimônias do enterro do antigo governador da província. Solenidades e homenagens terminadas, recomeça a guerra, vencida pelos cabanos, com a morte de Lobo se Souza que se recusara se entregar, mesmo os cabanos lhe tendo garantido a vida. Angelim reúne os companheiros:

Meus patrícios e irmãos de luta. Vencemos e portanto doravante cabe-nos a responsabilidade de governar a província. E para governar, e governar bem, precisamos de ordem e prudência. Nossa primeira providência deve ser a de escolher entre os companheiros de luta um governador, para que ele, em nome da liberdade e da justiça, possa restabelecer a paz e a ordem na cidade no interior.

Os revoltosos empossam seu primeiro presidente, aclamado pelos companheiros e pelo povo: o coronel de milícias Felix Antônio Clemente Malcher.  No entanto, como vai dizer o Pe. Casemiro, um dos revolucionários

O coronel Malcher sempre foi homem da classe abastada e dominante. Ferido em seus interesses pessoais pelo arbítrio de Lobo de Souza, juntou-se ao povo, para usá-lo como instrumento e meio de alcançar o poder. Ele nunca deixará de ser um aristocrata rural, e politicamente está com a regência. As promessas que arrancamos dele no dia oito, ele as pôs no tinteiro. Tão violento e arbitrário quanto Lobo, ele vai continuar a prender, espancar e atemorizar a todos, para garantir a sua nomeação no cargo pela Corte.

Novamente, a revolta. Na batalha, liderados por Vinagre, pois Angelim e Lavor estavam presos, mais uma vez saem vitoriosos. Malcher foge para o brigue “Cacique” das forças imperiais, que a estas alturas já estavam negociando com os revoltosos uma saída para a crise. Na verdade, os cabanos, contrariamente as guerras no sul, que aspiravam a independência, não desejavam desligar-se do Império num novo país ou numa república. Apenas queriam um governo de um paraense, que conhecesse as necessidades locais e que governasse sem arbítrios.

Francisco Pedro Vinagre torna-se o segundo presidente cabano. E nas negociações, ficaria no cargo até que a Corte definisse o novo presidente. Durante seu curto mandato, enfrentará forças fieis, lideradas pelo Pe. Prudêncio, em Camatá, que se rebelam contra os cabanos. Nova escaramuça, mas o presidente Vinagre não autoriza um ataque direto. Já estamos em junho de 1835, e traindo as negociações, foi nomeado para o cargo novamente um português: o marechal Manuel Jorge Rodrigues, que tomará posse em cerimônia na Câmara Municipal e depois no Palácio.

Inicialmente, o marechal se mostra magnânimo no governo, conversando amigavelmente com os cabanos. Antônio Vinagre e Geraldo Gavião não confiam. Este diz a certa altura em reunião das lideranças dos cabanos:

– Bem, meus amigos, eu sou mais simplório. Jurei que português não me governava mais, e vou cumprir a promessa.

Durante os primeiros tempos do governo, nada de novo acontece, mas no final do mês chegam a Belém “dois regimentos de mercenários estrangeiros. São ingleses e alemães, recrutados a ouro, para servir o império. O efetivo da força foi aumentado para 1.500 homens. O marechal se preparava para anular de vez todo e  qualquer foco de rebeldia.

Um grupo, liderado por Geraldo Gavião e Antônio Vinagre, abandona Belém. São emboscados em Vigia, mas conseguem tomar a cidade. Com isso se inicia a segunda guerra dos cabanos, que será mais uma vez vitoriosa, com o Marechal saindo de Belém e refugiando-se numa ilha onde fica aguardando reforços e instruções da Corte, que designará um novo presidente para a província, novamente um português, o general Soares Andréa.

Enquanto isso, em Belém o governo cabano se instalava, agora sob a presidência de Eduardo Angelim: “Aclamado presidente da província do Grão-Pará, aos 21 anos, Angelim é o mais novo governante democrático do Brasil e do Novo Mundo”.

Em seu governo tenta fazer a vida voltar ao normal, com uma função difícil: controlar o exército cabano, heterogêneo e sem a rígida disciplina militar. Terá que acabar com os excessos criminosos praticados sob o mando cabano! Fará isso, inclusive prendendo ex-companheiros de luta.

Os imperiais acabam fazendo cerco marítimo à cidade. Começa a faltar víveres. Muitos habitantes começam a abandonar a cidade dirigindo-se para o interior. A luta com os imperiais seria uma questão de dias. E ela acontece, não tendo as forças cabanas condições de resistir ao cerco e ao bombardeio pesado sob o comando de Soares Andréa, que desembarga em Belém e assume o governo enquanto os últimos cabanos, sob a liderança de Angelim, abandonam a cidade, furam o cerco e sobem pelo rio Acará.

A repressão e a perseguição aos cabanos se iniciam, com a morte dos líderes. Sobraram apenas aqueles que subiram o Acará. Estes conseguem fugir, embrenham-se na floresta e sobrevivem graças a ajuda de alguns indígenas. Mas serão depois de seis meses capturados e levados a Belém. Encerra-se a revolta dos canudos! Numa conversa, diz Angelim:

… Nós fomos vencidos pela força das armas. Não somente nós os paraenses. Do Pará ao Rio Grande do Sul todos os movimentos nativistas libertadores serão aniquilados, sem dúvida, mas os ideais expostos com tanta coragem e determinação, defendidos com tanto sangue e tantas mortes, não poderão ser aniquilados pela força! Todas essas lutas nacionalistas, de Norte a Sul, são a explosão da brasilidade. Estão consolidando a nacionalidade e farão do Grito do Ipiranga um verdadeiro grito de independência e soberania do povo brasileiro.

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Para um país que emerge como independente na primeira metade do século XIX, sob um grito do herdeiro do trono da metrópole, que funda um Império em que reinam os colonizadores, em que o governo é entregue sempre às mãos de portugueses, em que o primeiro imperador renuncia a seu trono para disputar com o irmão, em Portugal, a coroa para passa-la para sua filha, em que uma regência comanda com a força mercenária e com a perspectiva de que não há nação, mas sempre uma colônia a ser explorada e cuja riqueza, agora, não mais precisa ir para os cofres de Portugal, mas pode ficar aqui enriquecendo a elite que se constitui em torno do palácio e nas “novas” nobrezas e títulos concedidos pelos sucessivos regentes e pelo segundo imperador; em que o governo imperial, usando a força, chacina e apaga qualquer veleidade de liberdade efetiva e de independência e soberania popular, nada melhor do que ler romances históricos como este. Tabajara Ruas romanceou as revoltas do sul (Os varões assinalados). A revolta de Canudos (romanceada por Mário Vargas Llosa, A guerra do fim do mundo), a revolta do Contestado (romanceada por Guido Almeida Sassi, Geração do deserto). Há tantas outras e foram tantas as revoltas brasileiras que buscaram a construção de uma cidadania, que o mito de povo pacífico e apático, quando nos debruçamos sobre estas histórias, começa a ruir.

É preciso, no entanto, sublinhar: as palavras atribuídas a Angelim permanecem atuais. A elite brasileira que se formou à sombra da “independência” do grito do Ipiranga que manteve o governo na mão dos colonizadores, que vicejou à sombra dos palácios, que impôs a duração da escravidão fazendo-nos os últimos do mundo a aboli-la, que sempre teve seus privilégios resguardados como “membros de uma corte” protegida agora não por imperadores e suas forças, mas pela força militar; que sempre chamou o exército e as ditaduras toda vez que alguma rebeldia se concretizasse na vontade de haver uma cidadania, que se modernizou tanto em seus modos de opressão que não têm qualquer drama de consciência em se aliar com o estrangeiro para continuar sua exploração, entregando nossas riquezas, esta elite ainda está aí: é escravocrata e exploradora do trabalho e do povo que por ela deve ser sempre mantido à míngua. Do contrário, mostra sua força em golpes de estado, militares ou civis, pouco importa. Vivemos isso ainda hoje. E ainda hoje alguns dos ideais dos cabanos, dos farroupilhas, permanecem como ideais.

E, como disse o último dos perseguidos, Luiz Inácio Lula da Silva, ideias e ideais não são presos, não morrem. Persistem. Persistem. Persistem. Quando se concretizará a profecia de D. Hélder Câmara, de que os miseráveis um dia fariam de seus ossos armas? Enquanto esse dia não vem: mantenhamos acesa a luz que nos forneceram tantos mortos em tantas revoltas.

Referência. Carlos Arruda. Cabanos! Novela histórica. Belém : Cejup, 1997.

 

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.