Boa esperança de Emicida à Gambino.

A questão da invisibilidade dada a um povo requer incontáveis reflexões minhas, é preciso combater e, para tal, entender. Tenho insistido nisso: a invisibilidade programada, nesse caso, ao povo preto, tem ponto de contato americano, como bem mostrou o clipe, com a postura da sociedade brasileira, e pasmem aqui ainda é pior. É tão verdade que existe uma vasta produção artística que apresenta as diversas e perversas nuances do racismo, preconceito, eugenia, marginalização ou, como querem alguns, da democracia racial brasileira. O que não impede que tenhamos variados e reconhecidos artistas negros e negras – outro ponto de contato com o clipe de Gambino.

Poderia ficar aqui citando referências musicais com suas leituras e representações do mundo negro: Elza Soares, Gilberto Gil, Cartola,Tim Maia, Jorge Bem Jor, Martinho da Vila, Seu Jorge, Luiz Melodia, Paulinho da Viola, Jair Rodrigues, Sandra de Sá, Alcione, Péricles, Thiaguinho, Falcão, Ilê, Cidade Negra, Negra Lee, Djavan, Lecy, Ivone Lara, Tereza Cristina, Criolo, Iza, e os não queridos Racionais, Afro-X, Mv Bill, Facção Central, Rappin Hood, Sabotage,  Emicida, Rael da Rima, Carol Conka, Liniker  e segue o baile.   Essa pequena lista é injusta, antes de terminar o texto devo me lembrar de muitos outros nomes, com certeza ainda faltarão vozes, e a questão é que mesmo com tamanha lista ainda faltam narrativas negras, dores e vidas sem registros.

This is America é sobre apagamento cultural, e mais do que isso é sobre extermínio, afinal a mão preta que aperta o gatilho, muitas vezes tem a arma engatilhada sobre sua cabeça, e ainda é a mesma mão que precisa arrastar pelo chão seus próprios corpos caído nas ruas, enquanto as armas são cuidadosamente guardadas e tratadas como objetos de devoção. Não tem engano, é uma política planejada, executam a limpeza do ambiente, clareiam as ideias, iluminam a escuridão da ignorância. Preciso tomar cuidado com minhas palavras. Porque tanto ódio, não é mesmo? Posso denegrir a imagem de alguém, fazendo parecer que as armas compradas nos mercado negro matam como as demais – imagine!

A cena mais impactante do vídeo em questão talvez seja a que remete a chacina de Charleston em uma igreja da comunidade negra, na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, nesse episódio trágico em que um homem branco extremista resolveu matar 9 pessoas durante o culto, temos crimes de ódio como os que vemos todos os dias vamos imaginar um clipe igualmente impactante produzido no Brasil: Candelária ou Carandiru, mas tem os casos diários de extermínio de um povo que aqui é o culpado desde seu embarque nas navegações escravagistas da África até o momento presente.

Vou concordar aqui com o que disse o geógrafo Aiala Colares sobre a realidade local e atual, ele faz um apontamento fundamental para nossa compreensão da dimensão social das ações de eugenia vigentes “Existe toda uma relação preconceituosa, de estigmatizar o morador da periferia, o preto, pobre que no final são o principal alvo dos grupos de extermínio. É uma higienização social e isso é terrível. A característica deles enquanto moradores da periferia faz com que se tornem culpados por um crime que não cometeram. A morte nesse caso passa a ter um fator político de poder. Quanto mais você mata, mais poder você demonstra ter”, explica se referindo as cerca de 80 mortes em Belém desde que um policial militar fora morto.  (disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/15/politica/1526337257_927035.html?id_externo_promo=ep-ob&prm=ep-ob&ncid=ep-ob)

Outro destaque precisa ainda ser dado à obra de Childish Gambino em questão, que é o fato de colocar no centro do galpão/discussão a indiferença e banalização frente às mortes e a exposição às violências do povo negro, algo naturalizado desde a infância. A morte de jovens negros é uma realidade devassadora que acontece aqui e lá, e por isso mesmo é sabido que um movimento vem ganhando força: Vidas negras importam (Black Lives Matter), e se alguém tinha dúvida do porquê deste clamor seletivo, volte duas casas no jogo da vida. Para tal basta ver que mesmo diante de toda a repercussão que o assassinato da vereadora Marielle Franco causou, pouco se avançou na resolução do caso, e isso fica muito pior, podem acreditar, e nem sempre ganham os noticiários, muitas vezes apenas matam a gente por dentro, olhar por olhar, inquisição por inquisição, até secar tudo.

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A sensação ao terminar de ver o vídeo de Gambino é que se precisará ver ainda outras vezes para entender tudo e todos os símbolos e informações constituintes dele, mas uma coisa fica muito evidente: existe uma realidade negra cruel e universal. Vi ainda algumas leituras das referências utilizadas que me impressionaram bastante: calça dos confederados, dança do Michael Jackson, balé inspirado nas danças da África, reprodução de expressões faciais que denunciam o racismo de personagens clássicas, um trabalho de denúncia, plástica e arte, tudo muito bem realizado.

Ainda assim a gente fica pensando: – e daí? Está falando de outra realidade, de outro povo e de outras construções sociohistóricas.

-Eparrêi, meu santo! Vamos repensando, vamos somando, porque com tantos pontos de contatos é preciso colocar nas nossas discussões o caráter global do tratamento que o mundo destina aos povos de descendência africana. Não é coincidência!

Nessa semana que se iniciou com o 130º aniversário da abolição da escravatura qualquer pessoa afrodescendente gostaria de falar sobre as nossas vitórias, a famigerada democracia (se bem que nem democracia está tendo, não é?) racial brasileira, ou sobre os avanços das políticas de reparação social, sobre ações afirmativas, sobre promoção da igualdade racial, sobre descolonização e sobre valorização das nossas tradições e resgates culturais. Não sendo possível, ainda é preciso falar que mesmo depois de todo esse tempo estamos no intervalo de pós-escravidão, com todas as suas práticas nocivas, discriminatórias e gerativas de uma estratificação social bastante radicalizada, na qual o objeto de consumo (é horrível pensar em seres humanos como objetos, mas enfim foi o que aconteceu) passou a partir do dia 14 de maio de 1888 ao status de consumidor, embora sem acesso a consumo:

– Não consome porque não quer trabalhar, é vagabundo!

– Este é o Brasil! Racismo à brasileira.

Um clipe que não “causou”, mas deveria, é Boa Esperança (2015), de Emicida, música e clipe irretocáveis, tom de denúncia mesclado com desejo, sonho e uma pitada amarga de muito ódio contido: imagens, símbolos, uma das referências é  dos atores que protagonizam o clipe serem filhos do Brown (Maldito, vagabundo, mente criminal, o quê toma uma taça de champagne  e também curte desbaratinar no tubaína tutti-frutti, fanático, melodramático, bon-vivant, depósito de mágoa, quem tá certo é Saddam), e as mensagens não param por aí, o próprio Leandro, Emicida, surge na telinha como porteiro vigilante e observa satisfeito o contra-ataque a uma parte da verdadeira democracia racial brasileira: servidão e humilhação.

Yes! Por aqui temos genialidade, e o texto é maravilhoso, poesia dos guetos que ecoam como um canto ancestral e evoluem para o funk inteligente, voltado para a cultura e integralidade do hip hop que usa a dor e a resistência como inspiração, tá lá nas gírias… (gíria não! Dialeto!…). Todo o sentimento guardado e curtido em vinagre e sal, desde o navio negreiro. Em tempos atuais, de retrocessos e aprisionamento de sonhos e ideias, é preciso sempre assumir uma postura propositiva:enfrentar e deixar que não durmam em paz os que roubam nossos sonhos.

De Emicida à Gambino, voltados para a África, chega uma mensagem de esperança e que ela seja boa.

Parece que sim.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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