BALZAC LÊ STENDHAL

Nestes acasos da vida, veio parar em minhas mãos uma edição de 1948 de A Cartuxa de Parma (tradução de Vidal de Oliveira, Editora Globo), de Stendhal, pseudônimo de Henry Beyle. A edição abre com um estudo de Honoré de Balzac e contém ainda uma carta de Stendhal a Balzac respondendo aos comentários do grande escritor francês. Suponho que as edições posteriores da obra contenham estes mesmos textos.

É muito instrutivo ler este “Estudo sobre Henry Beyle”, que foi publicado na França em revista de estudos literários da época. Provavelmente o texto de Balzac (no livro não há data de sua publicação) é de 1838 ou 1839, já que a resposta de Stendhal é de 30 de outubro de 1840.

O estudo, extremamente elogioso, inicia-se com uma tipologia das obras literárias. Segundo Balzac, naqueles tempos, havia três correntes literárias, que ele denomina de Literatura das Imagens, Literatura das Ideias e Ecletismo literário. Obviamente não ele não quer dizer que os romances mais líricos não tenham ideias, nem que os romances mais que caracterizam a segunda corrente, “a rapidez, o movimento, a concisão, os choques, a ação, o drama, que fogem à discussão, que pouco apreciam os devaneios e que gostam dos resultados” também não contenha imagens. À terceira corrente o autor dá pouca atenção e apenas nos diz que Walter Scott satisfaria “completamente essas naturezas ecléticas”, ainda que no decorrer do estudo, o nome de Scott volte a aparecer com frequência. Diz Balzac: “Entretanto, seja qual for o gênero de onde proceda uma obra, ela não perdura na Memória Humana senão obedecendo às leis do ideal e às da Forma”.

É à literatura de ideias que ele filia Stendhal. Estaria na esteira de um Votaire. Para ele “a ideia exige um trablaho de desenvolvimento que não condiz com todos os espíritos”. No lado oposto, representado por Vitor Hugo, estariam os romances de imagens, de gosto popular.

A primeira grande comparação entre o romance A Cartuxa de Parma é com O Príncipe, de Maquiavel. Para Balzac, Stendhal “escreveu o Príncipe moderno, o romance que Maquiavel escreveria se vivesse banido da Itália no Século XIX”.

À medida que o estudo vai apresentando a obra, retomando seu enredo na corte de Parma, vão aparecendo os episódios principais de todo o romance, ambientado na corte de Ranuccio Ernesto IV (e de seu sucessor, Ranuccio Ernesto V), no pequeno reino de Parma.

A personagem forte do romance é Angelina (Gina) del Dongo, que se casa contra a vontade de seu irmão Marquês de Valserra, com um conde Pietranera, pobre e sem vintém, em Milão. Viúva, Angelina se tornará mais tarde esposa de outro conde, o Conde Sanseverina-Taxis da corte de Parma, num arranjo organizado por seu amante o Conde Mosca, uma espécie de primeiro ministro de Ernesto IV e depois de seu sucessor. Assim, Gina transfere-se de Milão para Parma onde imperará na corte. Mas Gina e seus amores não constituiriam o romance se não houvesse Fabrício, o sobrinho bem-amado da Condessa Sanseverina. Ela tudo faz por este sobrinho perseguido pela Áustria porque pertencia ao partido francês (Napoleão) e se apresentara para lutar em seu favor na batalha de Waterloo…

Por Fabrício, a condesse nutria mais do que o simples amor de tia, amor não correspondido pelo jovem que depois de muitas peripécias, enamora-se de Clélia, um general das hostes de Ernesto IV, guardião da Fortaleza em cujo presídio acabou sendo enclausurado.

Não interessa aqui tomar todo o enredo do romance – isto fica para um registro posterior. O que é preciso salientar é o estudo de Balzac, que vai retomando este enredo e seus personagens, tecendo comentários elogiosos à sua construção por Stendhal, o “autor que tudo inventou, tudo desenredou”, obviamente com lastros na história do reino de Parma. A escolha desse ambiente, de uma pequena corte, para o desenrolar dos amores de Gina, do amante Conde Mosca (posteriormente seu marido quando enviuvou) e de Fabrício, passando pelos próprios príncipes que também se enamoram por Gina, esta escolha foi proposital como diz na carta a Balzac o próprio Stendhal: “a Chartreuse (Cartuxa) não se podia referir a um grande Estado como a França, a Espanha, Viena, por causa dos detalhes da administração”. E como o autor diz, “procuro narrar com verdade e clareza o que se passa em meu coração. Só vejo uma regra: ser claro”, seria necessário para uma Literatura de Ideias tem inteiro domínio do modo de funcionamento da corte e da administração do reino.

A opinião de Balzac sobre o romance pode ser sintetizada neste longo parágrafo:

Essa grande obra não pôde ser concebida e executada senão por um homem de cinquenta anos, em pleno vigor dos anos e na maturidade de todos os seus talentos. Percebe-se a perfeição em tudo. O papel do príncipe está traçado com mão de mestre, e é, como já lhes disse, o Príncipe. Concebemo-lo admiravelmente como homem e como soberano. Se esse homem estivesse à frente do império russo, seria capaz de conduzi-lo, seria grande; o homem, porém, esse permaneceria o que é, suscetível de vaidade, de ciúme, de paixão. No século XVII, em Versalhes, ele seria Luiz XIV e se vingaria da duquesa, como Luiz XIV de Fouquet. A crítica nada pode censurar tanto ao maior como aomenor dos personagens; todos são o que deviam ser. Aí está a vida e sobretudo a vida das cortes, não caricaturada como Hoffmann tentou fazê-lo, mas descrita séria e maliciosamente. Enfim, este livro explica admiravelmente tudo o que a camarilha de Luiz XIII fazia Richelieu sofrer.

Balzac também apresenta duas críticas à obra de Stendhal: inicialmente à estrutura da própria obra. Fabrício é o herói; e sendo a história dele a ser contada – afinal o próprio título do romance remete ao fim de Fabrício, que abandona o arcebispado de Parma e recolhe-se à Cartuxa, pesaroso pela perda da amante, diz o crítico que o personagem deveria ser melhor construído, revendo todo o esquema geral do romance dando  a Fabrício realmente o papel preponderante; em segundo lugar, critica o estilo, que toma como o arranjo das palavras na frase, mas o reduz de fato à crítica de erros gramaticais de Stendhal.

A segunda crítica perde por completo o sentido para quem lê Stendhal na tradução e por isso não posso comentar; quando à primeira, relativamente a Fabrício, parece-me que as primeiras 150 páginas vão apontando para um “romance de formação”, passando Fabrício pelas “provas” desta formação. Se a emergência forte da Condessa, sua tia e sua protetora, aparece suplantando o próprio herói, não dá para esquecer que esta age em função dele e para ele. Um herói fraco, às vezes infantil, com que Stendhal talvez quisesse retratar um pouco a juventude “aristocrática” sem herança, abriu espaço para uma personagem mais forte que passa dominar a narrativa. Na carta-resposta, Stendhal confessa que abomina um plano totalmente pré-dado e revela que ao narrar a narrativa vai se fazendo, vai se impondo e todo o projeto prévio sofre deste modo de elaborar seus romances.

Por fim, chamaram minha atenção alguns elementos deste estudo (e da carta resposta de Stendhal):

  1. Ao falar sobre A Cartuxa de Parma, Balzac remete a tantas obras, a tantos personagens, a tantos autores que me lembra o que me disse um dia uma militante da crítica literária: a esta cabe o papel de situar cada obra no contexto das demais obras literárias. A título de curiosidade, fiz um levantamento ligeiro dos romances referidos: Notre-Dame, Manon de Lescaut, A profissão de fé do vigário saboiardo, Cândido, O diálogo de Sila e de Eucrate, A grandeza e a decadência dos romanos, As provinciais, Gil Blas, Corsário, Puritanos, O príncipe, Atala, Le lépreux de la vallée d’Aoste… O número de autores citados é muito maior.
  2. Como grande analista da burguesia (e defensor da aristocracia), Balzac não esconde certa misoginia, compartilhada por Stendhal, que se desvelam em passagens como

“O escritor e o pintor serão sempre fieis a seu gênio, mesmo em presença do cadafalso. Isso não existe na mulher. O universo é o estribo de sua paixão. Por isso a mulher é maior e mais bela do que o homem, nesse particular. A Mulher é a Paixão, o Homem é a Ação. Se assim não fosse, o Homem não adoraria a Mulher.”

“Uma mulher de quarenta anos não é mais alguma coisa senão para os homens que a amaram na sua mocidade”(reflexão da personagem Duquesa Sanseverina).

“As mulheres não têm senão um pensamento: o de achar um meio de serem presentadas com um chapéu de França pelo marido.” (carta de Stendhal a Balzac referindo-se ao ambiente vivido em Civita-Vecchia, onde escreveu A Cartuxa de Parma).

  1. Outras passagens que merecem destaque:
  2. 1.Sobre a monofonia dos diálogos de Vitor HJugo: “O diálogo de M. Hugo é por demais sua própria palavra, não se transforma suficientemente, mete-se no seu personagem, ao invés de tornar-se o personagem.”
  3. 2.“Os grandes políticos afinal de contas não são mais do que equilibristas que, por falta de atenção, veem esboroarem-se seus mais belos edifícios.!
  4. 3.“Em todos os misteres, os artistas têm um amor-próprio invencível, um sentimento da arte, uma consciência das coisas que é indelével no homem. Não se corrompe, não se compra nunca essa consciência. O ator que mais mal deseje a seu teatro e a um autor, jamais representará mal o seu papel por isso.”
  5. 4.“O amante pensa com mais frequência em chegar junto à amante que o marido em guardar a esposa; o prisioneiro pensa mais vezes em fugir do que o carcereiro em fechar suas portas; portanto, apesar dos obstáculos, amante e prisioneiro devem alcançar seus fins.”(reflexão do personagem Fábio Conti, governador e guardião da Fortaleza)
  6. 5.“O ancião apaixonado é sublime!”
  7. 6.“O Sentimento é igual ao Talento. Sentir é o rival de Compreender, como Agir é o antagonismo de Pensar.”

Para mim, o interessante deste estudo de Balzac ao ler Stendhal, é a demonstração de que um escritor, para sê-lo, é um leitor. Não o fosse, não haveria tantas referências a autores, obras e personagens (ficcionais ou históricos). Ao mesmo tempo, nesta corrente que Balzac chamou de Literatura das Ideias, parece haver um compromisso também com a verdade, com o pensamento, “um amor exagerado pela lógica” (diz Stendhal), o desejo de ser claro e conciso (Stendhal diz que “Enquanto compunha a Chartreuse, para por-me no tom eu lia todas as manhãs duas ou três páginas do Código Civil, a fim de ser sempre natural; não quero, por meios artificiais, fascinar a alma do leitor.”).

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