O mundo acadêmico tem seus ritos. Muitos deles extremamente adequados às circunstâncias da produção de conhecimento. Outros um pouco menos. Por exemplo, sempre achei que a ‘meritocracia’ não deveria ser a base para as decisões das instâncias acadêmicas. Sabemos em que resultam estas ‘meritocracias’: os programas de pós-graduação melhor avaliados conseguem maior número de bolsas para seus estudantes, e por isso mesmo têm melhores condições para continuar a serem os melhores avaliados e assim sucessivamente, estrangulando-se toda a ação que tente ultrapassar as barreiras impostas pela ‘meritocracia’, cujos critérios são escritos precisamente porque aqueles que estando no topo das avaliações, voltarão a ser por ela beneficiados.
É preciso achar um modo de romper a cadeia de elos assim formada, para poder abrir espaço para a emergência do novo. E o pior é que esta sistemática se espraia por todas as formas de financiamentos dos chamados ‘órgãos de fomento’ que agem como se os recursos que gerem não fossem públicos, mas de sua propriedade. A CAPES quer assim, o CNPq quer assado, a FAPESP quer mal passado, o FAPERGS quer bem passado, e assim se vão os recursos em geral para os mesmos candidatos.
Aliás, sei de uma história nos tempos em que ainda militava na academia. Certa professora foi indicada e assumiu no comitê de avaliação de um destes órgãos. Na primeira reunião do “novo” comitê de que participou, entrou em pauta um pedido de seu grupo de um financiamento que só para este grupo levaria 50% da verba destinada pelo CNPq à área! E a conselheira (sei lá como se chama quem é membro de um Comitê) nem se deu por achada – permaneceria na reunião que decidiria seu pleito, se não fosse um dos membros, e desafeto seu, ter pedido que ela se retirasse para que os demais membros decidissem a questão. Note-se, era um desafeto. Pois se retirou, mas o espírito de corpo dos ‘eleitos’ não se viu eticamente chateado e aprovou o emprego de 25% do orçamento da área num único projeto!
Do meu ponto de vista, simplesmente um membro de um comitê de avaliação não deve, eticamente, sequer encaminhar pleitos enquanto estiver no comitê. Mas acho que sou aquilo que antes chamavam de ‘normalista’, para não chamarem de moralista.
Pois há outro rito: aquele da avaliação cega! Ainda que eu seja membro de inúmeros Conselhos Editoriais de revistas, não vejo nenhuma razão para o anonimato de pareceristas. Afinal, ler um texto para avaliá-lo é um trabalho que abre possibilidades de diálogo com xs autorxs. Mas o rito acadêmico não permite isso, exige anonimato do parecerista.
Que o texto venha sem indicação para evitar que a leitura do parecerista seja conduzida por posições assumidas no interior da academia, acho correto, embora seja praticamente inútil, já que os interlocutores do autor do texto o mostram e ao mostrarem indicam as pistas das correlações e afiliações não só teóricas, mas também de correlações na academia.
Mas uma vez feito o parecer, o diálogo (ainda que polêmico) deveria ser da vida do mundo acadêmico. Quando elogioso, dá a quem se submeteu uma resposta positiva que lhe permite continuar seu trabalho (elogios no mundo acadêmico são raros, afinal “Deus criou o acadêmico e o Diabo criou o colega”). Quando apresenta sugestões, críticas ou opiniões desfavoráveis, estaria aberto o caminho para o diálogo, e este permitiria o avanço do conhecimento na área e no foco específico de um trabalho. O diálogo polêmico deveria ser o cotidiano da academia. Mas não é assim. O parecerista escreve, seu texto é enviado ao(s) autorx(s) e encerrou-se o assunto.
Acabo de receber de uma colega – ressalto imediatamente, esta colega não foi minha aluna e muito menos minha orientanda – dois pareceres sobre um artigo que ela e um orientando submeteram a uma revista. Não conheço o artigo, e devo deduzir dos pareceres que li, que o artigo tem problemas bastante significativos e que um diálogo sério com os pareceristas poderia fazer os autores melhorarem seu trabalho – isto se na academia prevalecesse o espírito de cooperação e não o espírito de concorrência.
Não estou entrando no mérito do artigo submetido e nem dos pareceres. Mas devo entrar no mérito de um argumento que aparece num dos pareceres, porque ele demonstra o quanto há acadêmicos pretensiosos que abraçando uma teoria dialógica, adonam-se de autores e das compreensões de seus escritos, fechando-lhes os sentidos possíveis e tornando sua obra um cadáver a ser minuciosamente autopsiado.
Assumem que é precisos definir o sentido “como ele de fato foi” elaborado no contexto da escrita, desconhecendo a história das leituras e os muitos textos que dialogam com a fala do autor, que não sendo Adão, nunca estará proferindo a primeira palavra, porque só há adãos no mito ou na consciência estúpida de acadêmicos pretensiosos. Que não há o fechamento dos sentidos aprende-se na própria teoria de que falam o artigo e os pareceristas. Mas é o argumento de um deles que me interessa ressaltar. Consideremos o argumento em questão:
“Um dos defeitos principais do artigo é que as referências à obra de Bakhtin são vagas demais. Em dez páginas, A apresenta só uma única citação original e verbatim de Bakhtin. Outro defeito é que A tira o seu conhecimento da obra de Bakhtin principalmente de segundas fontes e de autores que nem sabem ler Bakhtin no original. A publicação do artigo tem que ser rejeitada.” (grifos meus).
Bom, não trazer para o interior de um artigo a voz precisamente do autor principal é um defeito que merece correção imediata. Tem o parecerista toda razão em espinafrar o texto que lhe foi submetido. Mas a segunda parte do argumento é simplesmente produto de uma grandiosa pretensão, principalmente em se tratando da teoria bakhtiniana das compreensões e interpretações de textos.
“… autores que nem sabem ler Bakhtin no original” parecem não merecer qualquer respeito. Realmente, há entre os bakhtinianos brasileiros uns três ou quatro estudiosos que leem Bakhtin em russo. Um deles já não dá mais pareceres para revista alguma, ainda que tenha sido o primeiro a trazer Bakhtin para o Brasil, especificamente para os estudos literários. Dois destes leitores de Bakhtin no original são seus tradutores. Um deles reconhecido como tal. Outra, menos conhecida como tradutora, pois apresentou publicamente – em obra publicada em livro – uma tradução de um artigo, tradução em co-autoria.
Como a reclamação do parecerista é contra a citação de autores que não sabem ler Bakhtin em russo, isto significa que o parecerista sabe ler, o que reduz o tal parecer cego… Isto é incrível. Se for parecerista tradutor, ele mesmo está dizendo que ler seu trabalho de tradução é uma bobagem porque não compreenderá Bakhtin! Ou seja, seu trabalho de tradutor é inútil, já que autores que leem Bakhtin em traduções não são confiáveis. Ou não seriam confiáveis os tradutores?
O que mais faz pensar é que na teoria bakhtiniana, o texto tem sua vida nas compreensões que dele fazem seus leitores… O autor não é dono das palavras, porque a palavra é uma ponte que liga locutor a interlocutor. Ora, se a leitura do tradutor não tem valor algum, e se a leitura que se faz da tradução tem menos valor ainda, então a palavra bakhtiniana tem um valor fundado, fixo, determinado, desde sempre estabelecido. Ou seja, não há processos de compreensão, não há processos de interpretação. E a palavra, ao contrário da tese defendida pelo Círculo de Bakhtin, não é uma ponte que liga locutor e interlocutor! Só existem sinais, não signos.
Assim, tudo o que resta é reconhecimento (no sentido que dá a este termo Bakthin(Volochínov) – cito como foi editado o livro no Brasil – em Marxismo e Filosofia da Linguagem). Ressalte-se aqui mais uma vez o perigo apontado: o conceito de reconhecimento tal como aparece no texto traduzido pode ser o da compreensão dos tradutores (o que mostraria a vitalidade do texto original segundo a teoria bakhtiniana), e não a ‘compreensão correta, definitiva, já dada e para sempre estabelecida pelo locutor Bakhtin’, apreensível somente por aqueles que o leem no original, como quer dar a entender este parecerista pouco bakhtiniano, ou superficialmente bakhtiniano.
O mais cômico deste argumento é que ele jamais seria usado para avaliar artigos de outros autores que pertencessem ao mesmo grupo em que circulam tais pareceristas (mantida a ideia de parecer cego) pois são autores que também não leem em russo! Mas estes, que são do ‘nosso grupo’, sabem das coisas e fazem as leituras corretas! Fazem as leituras autorizadas – por quem, cara pálida?
Volto a insistir, não estou defendendo que o artigo submetido deveria ser aprovado, porque sequer o conheço. Já no segundo parecer que recebo por desabafo dxs autorxs avaliados, há inúmeras críticas que se correspondem à verdade, merecem integral apoio. O artigo precisa ser reescrito se justas as críticas.
Mas há algo de fechamento de diálogo, de definição, de causa finita: a reflexão feita não merece sequer continuar a ser feita, ao que tudo indica pelo ethos dos dois pareceres. Ou merece ser feita, mas não por estes sujeitos da enunciação, porque estes circulam por lugares pouco recomendáveis e pouco ‘acadêmicos’ porque a definição do que seja acadêmico e do que seja recomendável já foi dada pela relação de forças e de acesso às benesses da meritocracia dos meios universitários e de seus financiamentos.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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