AvóDezanove e o segredo do Soviético, de Ondjaki

Nas duas cartas da correspondência entre Ondjaki e Ana Paula Tavares, com que se encerra a edição deste romance, o autor diz “como podes ler, convoco memórias distorcidas para inventar estórias”. Antes contara à amiga que tinha visitado a PraiaDoBispo (todos os nomes próprios serão escritos sem qualquer separação entre as palavras que o compõem, de modo a formar uma só palavra como uma só é a referência, nestes casos, mantida a ambiguidade dos sentidos), para olhar a casa que já não é mais da AvóAgnete, anota que nunca mais viu Paulinho ou a Charlita. A avó e Charlita serão personagens desta história. Não lista o grande amigo Pi (Pinduca) porque certamente esta é personagem inventada. Mas traz ao final da história um mapa traçado à mão de criança a dar concretude simbólica ao espaço em que ocorrem os fatos.

O narrador é o menino, e é sob este olhar infantil que os acontecimentos tomam sentido para o narrador. Este falar como menino, fuçando a memória e inventando é arte para poucos. O espaço por onde circulam todos é a PraiaDoBispo; o tempo é o da construção do Mausoléu em homenagem ao herói angolano Agostinho Neto. É o tempo do socialismo em Angola, e os soviéticos comandam a construção e estão junto ao poder. Não faltam os cubanos, nesta estória representados pelo médico RafaelTruzTruz e pelo angolano EspumaDoMar porque estudou em Cuba, volta meio aloucado de tanto estudar e será a voz que fará frequentes críticas ao comunismo, como nesta referência à música:

– Os meus conhecem a verdade que o meu coração sente quando meus ouvidos sorriem. A música é o milagre que os comunistas já autorizaram de acontecer, ahahah. A bailar, compañeros!

O espaço-tempo fica restrito e a complexidade não se constrói pelos deslocamentos, mas pela reflexão e pela ação em que duas crianças comandam o enredo.

Aparentemente um enredo simples: o governo de Angola decide construir um mausoléu em homenagem a Agostinho Neto na PraiaDoBispo. Os soviéticos serão os responsáveis pela engenharia e execução da obra e pela segurança do espaço em seu entorno. Angolanos são também mobilizados para os trabalhos, embora a presença destes na obra não passe de breve notícia quando são despedidos, a pouco tempo da inauguração.

O projeto implicaria, segundo desenho que é publicado no JornalDeAngola, na implosão de todas as casas da praia, com a transferência de todos para outras habitações construídas pelo governo. O espaço se tornaria um grande parque, com o monumento a atrair muitos visitantes. A explosão das casas será o ponto dramático do enredo. A apreensão dos adultos que falam à boca pequena sobre este futuro não deixa de ser percebida pelas crianças, o trio de heróis: o narrador, Pi e Charlita. Quando o EspumaDoMar anda pelas ruas com a edição do jornal contendo o projeto global, confirma-se o que corria entre os habitantes.

Já nos primeiros eventos, EspumaDoMar, que aprendeu matemáticas em Cuba, explica que PI é um número que equivale a 3,14. A partir de então, este será o novo apelido de Pinduca, nome que desaparecerá ao longo da narrativa. EspumaDoMar será uma espécie de arauto a circular pelo espaço, falando ora na língua de Angola, ora em espanhol, constantemente em contato com o narrador e com as crianças que com ele convivem de forma natural, enquanto os adultos mantêm a reserva em função da doença mental da personagem que vive em sua casa, onde supostamente manteria numa casota de cachorro um jacaré. Seu nome provém do fato de que tomava banho de mar somente no espaço em que o mar tinha a superfície coberta de espumas, para onde entrava sempre com as suas roupas esfarrapadas, em vez de banhar-se do “mar azul” como faziam as crianças.

É no torno da casa da VóAgnete, abreviada para VóNhéte que circula a vida dos três amigos. Com suas regras, com suas etiquetas à mesa, com seus horários, a casa funciona a um estilo ainda antigo, mantendo uma empregada, Madalena, que será uma espécie de cúmplice nas combinações dos meninos quando precisavam algum instrumento, como um alicate, para cortar os fios que traziam da obra eletricidade para a casa da VóNhéte, quando todas as outras casas viviam no escuro, motivo por que os meninos acham necessário cortar o fio para manter a igualdade.

Aliás, esta eletricidade resulta da paixão de Brilhardov, o mestre da obra, pela VóNhéte a quem faz propostas frequentes para levá-la para as terras do tão-longe. Brilhardov visitava a casa da avó, que o recebia com respeito sem jamais corresponder a seu amor. Brilhardov ganha um apelido: como saudava a todos com “Bo Tard”, qualquer que fosse o horário, passou a ser conhecido como CamaradaBotardov. Pi também o chamava de Sovacov, por causa da catinga pela falta de banho, xingamento que faz a todos os “lagostas azuis”, apelido dos soviéticos por causa da roupa que usavam sempre igual.  VóNhéte mudará de apelido para AvóDezanove, porque teve um tumor num dedo do pé que foi amputado pelo médico cubano RafaelTrusTruz.

Pi será o “intelectual” do grupo de amigos. Ele planeja uma forma de reação à explosão das casas e à transferência da população. Um plano secreto, instruído pelos muitos filmes de caubói que veem no CineKinanga de como usar dinamite: eles explodiriam o mausoléu antes de sua inauguração, usando a dinamite que estava destinada a “desplodir” – como gostava de dizer o narrador – as casas do bairro. Muitas combinações, muita maquinação. “Visitaram” o galpão onde estava o material de construção, conseguem achar as caixas de dinamite, mas descobrem também um buá de pássaros e galinhas e jacós (papagaios) todos engaiolados…

Decisão importante foi onde colocar a dinamite, e Pi instrui:

– Já estive a pensar. Já dividi tudo. : ali na casa da tua avó é o Norte.

– E então?

– Vamos dividir em oito partes. Eu ponho Norte, Sul, Leste e Oeste.

– E eu fico com as outras porquê?

– Porque eu não lembro os nomes dos outros pontos.

– Acho que era … Nordeste…Noroeste… Suleste…

– Suleste ou Sudeste?

– Se calhar era Sudeste. E depois o outro não me lembro…

Charlita, filha do SenhorTuarles, dono de uma aká (metralhadora russa AK47) com que sempre está ameaçando usar sem jamais fazê-lo em função dos rogos da mulher, proíbe a filha de continuar brincando com a dupla de meninos ao descobrir o plano, mas não deixa de fornecer uma pista: a dinamite tinha que ser enterrada…

Restava o problema de como ligar os pontos de dinamite. Decidiu Pi que a solução era usar uma bebida quente. Charlita se comprometeu em arrumar uma do SenhorTuales, passando para eles pelo muro.

Quando iam com a bebida para ligar os pontos, encontram o Espuma que também se dirigia ao mausoléu, entrou no galpão, e eles pensando que o haviam despistado, ligaram os pontos com whisky, que foi insuficiente, mas o previdente Pi tinha um pouco de álcool. O narrador, quando colocava a dinamite nos pontos que lhe tocaram, descobre uma carreira do que considerou fosse sal e que entrava monumento adentro, onde havia pacotes que mal embrulhados… única dica na narrativa para se saber que outros, além dos meninos, pensava em explodir o mausoléu.

Com fósforo, já fora de perigo, acendem o rastilho. Ficam vendo a chama ao mesmo tempo em que correm para a praia. Mas de repente o fogo apaga: enxergam o vigia que da torre urinou precisamente no rastilho sem sequer ver o fogo.

Mas do outro lado do monumento, Espuma corria com gaiolas e passados amarrados no corpo. Também seguia para o mar. E um estrondo acontece, depois outro, e céu se enche de claridade, como se fossem fogos de artifício. A população sai para ver um céu que jamais viu, um mar que refletia cores… o mausoléu foi ao chão.

O general aparece, desmedalhado: convoca a população para carregar água do mar para apagar o fogo, mas todos se dedicam a apagar o fogo que se aproximava da casa de DonaLibania.

Na correspondência, o autor dá conta: obviamente o bairro lá está e o monumento também. Entre as memórias distorcidas e a invenção, aqui aparece o mundo real depois de o leitor ter acompanhado com interesse a ação e reflexão dos meninos. Desta, algumas passagens extremamente bonitas e instigantes:

  1. Sentado na varanda, eu gostava de fazer essa brincadeira de primeiro olhar as nuvens brancas a dançarem no céu empurradas pelo vento, na escola sempre ensinaram que o vento é invisível, e até é, mas sem querer parecer maluco tipo o EspumaDoMar, às vezes eu acho que, pelo modo de as nuvens voarem, quase fica possível ver de onde vem o vento e sobretudo para onde ele quer ir. O vento não deve gostar de andar sozinho, se repararem bem, porque sempre quer levantar poeira, dobrar as árvores, soprar as folhas e arrastar as nuvens para longe. O vento deve ter uma casa no tão-longe e está sempre a tentar levar as nuvens para casa dele, mas isso é uma coisa que eu penso sozinho sem contar a ninguém, porque outras crianças podem me chamar de chanfru e os mais-velhos podem querer me dar remédios para ver se fico bom da cabeça.
  2. Os soviéticos da obra do Mausoléu nunca largam a aká47 e só se estiver mesmo muito quente é que tiram a parte de cima da farda. Aí vemos como estes “lagostas azuis” são mesmo estranhos: por baixo ainda têm aquela camisa justa, verde, que as tropas gostam de usar. Controlam as obras e a praia, mas, mesmo com calor, não devem ter autorização para mergulhar, acho eu, porque ficam perto da água, falam com os pescadores, às vezes, abusam o EspumaDoMar e riem dele, mas não mergulham. (…)

– Tenho o corpo sujo, es verdad, pero minha alma está limpa. Nem todos podem dizer isso, no es así, lagostins? – os soviéticos olhavam pra outro lado, para fugir com os olhos do sol e para não deixarem as crianças verem a cara deles encarnada. – Os mais-velhos dizem: uno deve partir cuando no es bien-venido…Ahahah!   

  1. Os jacós não diziam disparates antes das onze, contei isso numa redacção da escola e a camarada professora disse para eu não ser mentiroso que era feio, ainda me mandou fazer outra redacção. Como era tema livre escrevi sobre a amiga da VóNhê, a CarmenFernandez, com a gravidez de um saco de formigas e outra do bebê-pássaro e a professora ameaçou de me dar reguadas e perguntou se eu não sabia fazer redacções normais como os outros meninos faziam, talvez sobre uma viagem ou algum familiar.
  2. Acho que as lembranças são cócegas invisíveis que ficam dentro das pessoas. Eu quando me lembro dessas coisas começo a rir sozinho até o 3,14 me perguntar se eu sou maluco de rir tantas vezes sozinho.
  3. Fomos a correr mas entrámos de devagarinho pela lateral da varanda para a avó não nos chamar. O jacó NomeDele gritou para nos queixar “abaixo o imperialismo americano”. Fizemos força para não rir, aquilo era uma anúncio da televisão que não passava há muito tempo. O SóJacó completou: “ó Reagan, tira a mão de Angola”.
  4. O se afundou amarelado no azul-escuro do mar e inventou um pôr do sol bonito numa cor mulata sem palavras de uma pessoa poder falar. Olhámos só.

O tempo tinha decidido que já podia passar.

 

Referência. Ondjaki. AvóDezanove e o segredo do soviético. Mirandela : Editorial Caminho. 2008.   

  

   

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.