Sobre loucura e salvamento

Sobre loucura e salvamento

Muitas histórias devem ser contadas, preferencialmente bem contadas na verdade, e precisam de leitores, talvez não precisem de leitores, mas de experimentadores. Algumas coisas nos fisgam para contar e ler. Temas vários, posições, ideologias, convencimentos, distração, atração…Entre uma infinidade de possibilidades.

A questão é que ao escrever nos comprometemos, bem como ao ler. Não tem volta, uma vez lida ou escrita à história materializa-se em nós, poucas pessoas gostam de escrever, especulo que seja porque escrever é, em essência, comprometer-se em maior ou menor grau, e em tempos fluídos talvez não seja interessante firmar razões e posições.

Tenho escrito pouco, talvez por falta de vontade de me comprometer com causas várias, prefiro muitas vezes assumir uma postura de pouca ou nenhuma razão, mesmo sabendo do efeito  que escrever oferece um tanto maior de melhoramentos, muitos não sabem, mas já estive bem perto da loucura.

É sobre isso que quero dizer.

Sim, escrever me organiza, pois dialogo comigo mesma, sou minha própria interlocutora… Então faço concessões e rupturas a partir de cada escolha e exigências do que irá ou não para o texto, e me atrevo com o que escrevo para ser lido por possíveis interlocutores, sempre acredito que eles existem, sei que o tempo de imagens e vídeos atende a necessidade de urgência e textos pré-digeridos de modo que quando alguns deles comenta, curte, ou visualiza, confirmo ou não minhas expectativas e possíveis respostas.

Lembro-me da pergunta do poeta Drummond:

Trouxeste a chave?

Percebam que dou voltas para não falar do que é preciso, pois sim a loucura me visitava sempre. Até que um dia um cavaleiro destes nem tão cavaleiro assim, e pouco afeito às donzelas indefesas bateu-me a porta, e eu que não gosto de cavalgar, ou de contos de fadas me agarrei ao salvamento.  Dito assim pelo final parece ainda pouco a visitação da insanidade, e não quero que imaginem os arredores de tristeza e solidão, digo apenas que em suas vindas sempre traziam a dor e a vergonha, em geral eu sabia que aproximava-se ainda mais da loucura, não aquela boa, que se esbalda em liberdade e arte. Não. A que trato aqui é da outra: loucura que aprisiona, entristece e cala.

Exatamente assim, a loucura silencia nossos desejos, nossas revoltas, nossas paixões, nossas histórias, fantasias e sonhos. Devora-nos lentamente. Uns entorpecem-se, sem caminhos e capacidade de identificar a raiz do mal, e assim tomados pelo emudecer e pela paralisia tornam-se cada vez mais afundados em um terreno solitário de areia movediça que cava sob nossos pés. Estaremos mortos afinal?

Não escrever é como não responder a quem te diz bom dia em meio à multidão, vários rostos e silêncios correm contra o tempo, e tantos não dizem nada, e para tantos não ofereceremos salvamento, mas se um ainda, e aquele qualquer te sorrir,  então um vez ainda valerá dizer:

-Vem comigo?

Corra – Conversas e reflexões entre mundos possíveis

Corra – Conversas e reflexões entre mundos possíveis

Escrevo sempre, e me alimento de outros textos: cinema, poesia, música, romances, pinturas, teatro, danças e por aí vai… O que entendo que além de me enriquecer como ser humano, me permite acessar várias culturas e realidades. Essa é a fortuna da arte, nunca saímos os mesmos.

Da poltrona do cinema, olho para a tela esperando todos os caracteres subirem. Vejo todos os nomes. Mas vejo sem ver. Meu olhar está no infinito do mundo, existem mais dúvidas sobre o ser humano, sobre mim, sobre a vida… Do que respostas. Ainda sem entender o que desde sempre acredito já entender, pois existem coisas que talvez compreendamos sentindo, vou para meu quarto, pego meu celular e envio uma mensagem: “Você assistiu ‘Corra’?”

Em poucos minutos, vem à resposta, em áudio do aplicativo: “Como você sabe que eu assisti ‘Corra’? Que porra é essa?” Escrevi: “não sabia. É que terminei agora de assistir”. No minuto seguinte, outro áudio: “Cara, eu acabei de assistir este filme, velho… Você está doido… Não, Tayrone! Explique-me como você ficou sabendo? Nossa, Meu Deus do Céu”, conclui com espanto e risos a negramara (Negra, Amar, Mar, Mara).

Sim, Mara, você foi a primeira pessoa que me veio à mente após o filme. Não que seja a pessoa negra mais próxima de mim. Aliás, quiçá seja uma das mais distantes na atualidade, pelo menos geograficamente. Mas, além de mulher negra, e pobre, como você mesma diz, é uma das pessoas com quem mais me identifico na luta diária contra as injustiças e preconceitos.

Será que realmente assistimos ‘Corra’, mesmo sem combinar, no mesmo tempo? No mesmo minuto? No mesmo segundo? Talvez sim, se realmente tivéssemos assistido um filme de terror, de nível sobrenatural. Mas ‘Corra’ não é terror? Claro que é! No entanto, mais real do que o próprio filme sugere ser, e por isso precisava saber de sua opinião.

Duas cenas continuam a martelar minha cabeça:

Cena A

O carro da polícia se aproxima nos momentos finais com sirene ligada, o negro mocinho, será?, interpretado por Daniel Kaluuya, levanta as mãos para se render à polícia, quando, ao mesmo tempo, a personagem branquinha não tão mocinha, será?, interpretada por Allison Williams, expõe um leve sorriso nos lábios.

Essa é a cena mais impactante para mim. A certeza por parte dos personagens de como seriam pré-julgados. Isso é cinema ou é realidade? Na verdade, não restam dúvidas de que, infelizmente, o mundo, ao logo de sua história, escolheu seu lado e construiu seu muro invisível e, por isso, é tão difícil transpô-lo.

Cena B

No outro espaço da película da minha mente, ainda vejo o leilão.

Quantos leilões o povo negro já sofreu ao longo do tempo? Quantos sofrem e quantos sofrerão? É… Este terror não é sobrenatural. Por isso, querida Mara, me recorri a você. Não tenho pele preta. Mas me orgulho do sangue preto que corre em mim. Por isso, sem hipnose, quero entrar na sua mente e entender, de quem sente na pele, as angústias que o filme de Jordan Peele provocam em mim. Corra, venha me ajudar.

Tayrone Di Martino – É jornalista e advogado

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Tayrone,

Passado o susto da coincidência, penso que ajudar não é a questão, mas me proponho a ler junto o que pensei sobre o filme Corra. Antes de tudo penso que, por mais assustador que o roteiro possa parecer, é preciso tentar elucidar os caminhos que o filme utiliza para tratar o real.

Filmes de terror/suspense não são meus preferidos, talvez por isso mesmo eu tenha demorado tanto a assistir Corra (Get Out) de Jordan Peele, mesmo sabendo da temática racial, resisti, até que vencida e confiante, entreguei-me, e qual não é a minha sorte recebo sua mensagem nos minutos que seguiram.

No inicio do filme a cena de sequestro de um rapaz negro totalmente fora de contexto constituiu uma ponta que precisaria de amarração ao longo da obra, o que por si já garante a expectadores mais efêmeros – como eu prosseguir até o fim. Sim, muitas vezes abandono filmes que não me prendem, tampouco ganham instantaneamente meu apreço. Confesso que para “militantes” é difícil ver as cenas iniciais sem um embrulhinho no estômago: a namorada branca de olhos azuis e rica com o discurso bem raso de que  racismo não existe: – meu pai votaria no Obama!(WTF?) e vamos lá conhecer minha família.

E o tempo todo eu pensando, porque diabos sequestraram o rapaz?

Depois tem uma cena quase fofa da blitz em que a mocinha não permite que o policial seja preconceituoso com o seu namorado, e é ela quem vai dizer do alto da sua branquitude (e por isso razão): eu conheço as leis! Então é isso, é claro! Negros sofrem racismo por não conhecer a leis, e eu que imaginasse que a gente não tivesse sequer acesso a elas pelo simples fato de sermos negros, ou que a gente nem pudesse responder um policial ou outros do gênero.

Já na casa dos pais da mocinha, Chris, nosso protagonista observa e entende outros negros subalternizados trabalhando “como se fossem da família” essa é a máxima mais utilizada por aqui, é que o quase é um advérbio de modo que serve para mudar a condição de ser da família, não tem essa de quase, ou é da família e tem direito a tudo, incluindo sentar e colocar o pé no sofá – se for da sua vontade, ou não é, e aí tem que limpar a sujeira dos pés no sofá dos outros, com uniforme ou sem, sempre ao gosto dos patrões.

Aí vemos uma situação bem interessante, em geral, negros quando ascendem (???) socialmente perdem um pouco da percepção sobre outros negros, muitas vezes eles até deixam de ser negros, como se fosse possível a partir de sua vontade e conquistas voltar algumas escalas na paleta de cores, e a sociedade também aceitasse com naturalidade esse branqueamento.

A festa na casa acontece e aí começa o show de horrores, mas sem terror ou suspense algum, a não ser o inconveniente das várias exposições de situações racistas a que o jovem é submetido, mas para mim que sou negra posso dizer que é algo bem comum. Eu fiquei imaginando quantas pessoas já falaram para mim: acho linda sua cor! (Oint que fofo!) Dá vontade de perguntar: você fala isso para todo mundo ou só quando quer disfarçar o racismo internalizado? Afinal, vocês já viram alguém dizer pra uma pessoa branca que acha linda a cor branca dela? Sabe o que é, é que na verdade, as pessoas não acham, mas como em meio a tantos brancos somos exóticos (adoro esse termo também) as pessoas querem nos acolher com sua apreciação momentânea aí tem que ser efusivos.

Tem de tudo: genética, estética, objetificação dos corpos, e tudo mais que o racismo comporta. Poupem-me! Onde raios está o moço sequestrado? Cadê a amarra dessa história, poxa? Enfim, lá está ele: diferente, vestido de outra forma. Tinha algo estranho, perdido o viço, a identidade. Ao cumprimentar Chris ele marca com um aperto de mão quando o natural seria um punho com punho. Coisa de manos. É interessante isso, essa metáfora das pessoas serem hipnotizadas, lobotomizadas para então adentrarem o universo dos brancos. Segue o baile.

Então, a gente descobre que o nosso protagonista é uma revelação da fotografia, é sensível e maravilhoso, mas não captou a mensagem de socorro do ser irmão negro quando desperto do transe pelo flash da fotografia, toda a sua sensibilidade não percebeu o quão a situação estava errada, e, imerso no pertencimento do mundo branco, afundou-se ainda mais no lugar profundo.

Reveladas as intenções do filme, a pergunta posta é: porque escolhem negros? Essa pergunta sai da boca do nosso jovem fotógrafo, mas a resposta é um arremedo, contem verdade, mas não é toda ela. Em geral não somos notados, ou porque estamos hipnotizados por pertencer ao grupo dos nossos algozes, e nos tornando parecidos com eles, escondendo bem no fundo nossas raízes, cultura e dores. E tem ainda outras possibilidades.

Poucas pessoas sequer ficam escandalizadas com o sequestro do jovem negro, é a naturalização da barbárie com os jovens negros: vide Marielle Franco.

Nossos corpos e existência não merecem atenção: violentam-nos, estupram, encarceram, culpam, excluem, oprimem, escravizam, ocultam, silenciam, marginalizam, caluniam, discriminam, criminalizam, sequestram, enlouquecem, adoecem, nos matam todos os dias e ninguém faz nada. O absurdo e o terror parecem naturais quando aplicados a nós: vejamos os índices de mortalidade da nossa juventude, o número de filhos sem pais, a expectativa de vida, os salários, a falta de oportunidades e vagas, a violência, a cor da pobreza e da miséria. Somos invisíveis.

*Agradecimento especial ao amigo Tayrone Di Martino, que contribuiu com esse texto, dando o pontapé inicial e fazendo a provocação para construção do mesmo.

A mudança de Zila Mamede

A mudança de Zila Mamede

A meu pai

O caminhão: na boleia

a mulher e o cão

 A vitrola

O vaso de gerâneos

O par de botas

Sobre a capota

A mó a concertina

Os matoloes os faróis

(a querosene) juntos na mesma vida

Num berço de vime

O terço (que redime)

A espingarda (que mata)

Refletidos no armário de espelho

A chibata

 O pássaro de gaiola

O relho

Tange a mudança o homem com seu rosto:

Engenho que o desgosto

Desgasta de uma rua a outra

O atraso

O atraso

Existem assuntos que são desconfortáveis, uma ferida, e nestes casos o melhor e cuidar antes de estourar.

Na semana anterior não foi possível escrever, mas outros veículos produziram textos, palestras, audiências, matérias jornalísticas sobre a o dia da consciência negra e, por conseguinte, trataram do racismo nosso de cada dia.

“- Pai, afasta de mim esse cálice.”

Na maioria dos casos, a voz que ecoava o discurso de luta antirracista produz, consolida e reproduz ao longo dos outros dias do ano práticas que consolidam preconceitos contra a população negra, tudo feito com discrição e muito conhecimento.

De tal forma que confesso a minha pouca ou nenhuma vontade de escrever naqueles dias mais próximos, porque não queria minha voz sobrevivente e minúscula perto da Casa Grande.

“- Afasta de mim esse cálice”

Escrever sobre racismo é um texto que se inicia, e não se conclui, que escrevemos três linhas, e apagamos trezentas, porque na ânsia de denunciar tais atos queremos encontrar uma fórmula de destruir tais memórias, e seguir.

Cada ato que trouxesse para o texto ocultaria pelo menos outros cem, diários, que é como se comporta o racismo, vai ampliando em efeito onda, e cada explicação e contorno do sofrimento causado que ganhe divulgação ao tempo em que denunciam escondem tantos outros, e o pior é a naturalização de tais atos.

Poderia falar de interseccionalidade, de racismo estrutural, de opressão, de genocídio, de silenciamento, de solidão, ainda assim faltariam muitos outros termos para explicar a dor. A dor de ser marginalizado, a dor de ser preterido, a dor de ser invisível na dor.

Até que um dia essa dor que você consegue nominar em um destes termos, ou mesmo em outros de uma lista que não acaba, e parece ser renovada a cada escala, alcança seu coração… É então que pensamos nem ser capazes de suportar tanta dor.

” – De vinho tinto e de sangue”… negro

Resilientemente suporta-se, sabendo que no outro dia tudo será como antes. Até aqui falei sobre o nó, mas os tempos pedem que eu fale de desejos tal qual filme de Tarantino ou de Spike Lee.

Sim, eu imagino, e tenho tanto ódio dentro de mim, engana-se quem acredita que a paz é amor, a paz é escolha dos medíocres, assim como eu, que fingem que tudo está posto no devido lugar: Um vídeo bonitinho sobre o criado-mudo, ora veja só.

Como se Machado de Assis não tivesse sido embranquecido, e ensurdecido na negritude. Entendem? Outros tempos!

O negro é mudo, surdo e cego, antes de tudo é criado para entender seu lugar sem reclamar, sem chorar, sem adoecer, sem esmorecer, sem rebelar, sem matar…  Embora a qualquer momento se possa morrer.

E então ouço desde sempre que ódio não leva ninguém a nada. Errado! Leva-nos para o desemprego, para a reprovação, para o trabalho infantil, para a prostituição, para subempregos, para as famílias desestruturadas, para a pobreza, para as cenas de crime, para a cadeia, para a bala perdida, para os assassinatos sem solução, para as chacinas…

Existem os outros casos, mas esses hoje devem ficar calados, e entender que são exceções construídas para justificar a regra que permite o racismo. O ódio nos leva todos os dias até a morte, e quando estivermos exaustos de visitá-la e enganá-la, ela se aproximará,… e enfim alguém vai nos tirar para dançar.

Amargos como os frutos de Ana Paula Tavares

Amargos como os frutos de Ana Paula Tavares

                                                     “Dizes-me coisas tão amargas / como os frutos…” – Kwanyama



“Amado, por que voltas

com a morte nos olhos

e sem sandálias

como se um outro te habitasse

num tempo

para além

do tempo todo


Amado, onde perdeste tua língua de metal

a dos sinais e do provérbio

com o meu nome inscrito


Onde deixaste a tua voz

macia de capim e veludo

semeada de estradas



Amado, meu amado,

o que regressou de ti

é a tua sombra

dividida ao meio

é um antes de ti

as falas amargas

como os frutos”