Textos sobre textos: Figura na Sombra

Este romance de Luiz Antonio de Assis Brasil é o quarto volume de um conjunto de romances históricos, Visitantes ao Sul. Este volume é dedicado ao botânico Aimé Bonpland: uma biografia ficcionalizada, mas alicerçada na história real vivida em parte com o companheiro de aventuras e estudos, Alexander von Humboldt. Somente a sabedoria de Assis Brasil poderia escrever este livro.

De forma extremamente criativa, o autor põe em diálogo o célebre botânico, já quase no final da vida,  com  seu visitante, o cientista Robert Avé-Lallemant, na modesta sede da Estância Santa Ana, em Corrientes, na Argentina, em 1858, precisamente o ano da morte de Aimé Bonpland.

Assim, a palavra fica com Aimé: ele narrava de seu ponto de vista toda sua vida, desde La Rochelle (lugar de nascimento, que pouco aparece no romance), passando pela vida em Paris enquanto cursava Medicina, mas efetivamente se apaixonava pela botânica, organizando seus inúmeros herbários, classificando as plantas segundo a ciência da época.

Encontra-se com Humboldt, nobre com recursos que dedicou a vida à ciência, com o qual faz a viagem para a América do Sul, chegando ao porto de Cumaná, na Venezuela. De lá parte a expedição, com seus instrumentos de pesquisa, em observação da natureza, colhendo exemplares de plantas desconhecidas, que Aimé vai classificando durante as longas viagens pelos rios. A descoberta maior dos aventureiros foi o canal Casiquiare, que liga as bacias do Orinoco com a bacia do Amazonas, através do rio Negro. A aventura de realizar este percurso em embarcações improvisadas, passando por todos os perigos possíveis, é uma das grandes páginas da história.

“Minha viagem com Humboldt foi errática, comanda pelas pestes, pela política, pela paixão, pela geografia, pela boa ou má disposição dos capitães de navios. O gênio de Humboldt deu sentido a uma aventura dirigida pelo acaso. A viagem, para ele, foi um meio para comprovar sua teoria. Ele buscou a totalidade em meio à confusão dos seres. Ele morrerá com a certeza de havê-la encontrado. Quanto a mim, encontrei a solidão, a malária e o amor. Depois disso, encontrei o pesar, o remorso e, por fim, a remissão e a sabedoria. E quanto mais vivo, mais constato que tudo é diverso, tudo é frágil, tudo é múltiplo e surpreendente.”  

Retornados à Europa, os cientistas começam a escrever Voyage aux Régions Équinoxiales (infelizmente são poucas as traduções de suas obras disponíveis no Brasil). Serão vários volumes, e as tarefas foram distribuídas entre eles. O sonho de Humboldt era encontrar na diversidade a unidade, tese que acabou defendendo em Kosmos, sua principal obra sobre as ciências da natureza.

“Um livro não substitui a vida. Qualquer livro sempre é um necrológio, um inventário. Depois de um livro publicado, cessa a busca que levou o autor à sua escrita. Nas estantes das lojas, o livro torna-se algo mesquinho. Enquanto o livro permanece na gaveta de quem escreve, estará salvo.”

Ambos, ainda em Paris, vão visitar a imperatriz Josefina (esposa de Napoleão) e sua estufa com plantas de todas as partes do mundo. Surge então a grande paixão de Aimé: ele não consegue se desligar de Josefina, que chamará de Rose e para a qual produz um tipo especial de rosa, a que dá o nome da imperatriz. Atendeu a seu convite e se torna o botânico do Império, passa a viver no palácio de Mailmaison, em que vivia Josefina. Ama-a com os olhos, com o coração. Sabe-se talvez correspondido, mas tudo permanecerá um amor platônico. A este período, Assis Brasil dará o nome de Prisão de Vidro.

Por causa de seus afazeres em Mailmaison e sobretudo por causa de sua paixão, Aimé Bonpland abandona o projeto conjunto com Humboldt, mas este continua sua obra e publicando-a sempre em nome dos dois.

“Eu estava apaixonado. Pessoas apaixonadas sempre traem alguém. Eu traía Humboldt, mas entre nós se interpunha a Natureza, essa entidade que entendíamos de maneira tão diversa.”

Com a morte da imperatriz, “a Europa ficara despovoada” e o botânico, para esquecer tudo, retorna à América do Sul, mas para uma região diferente daquela que explorara com Humboldt. Quer esquecer e por isso não pode voltar aos mesmos lugares que o lembrarão do companheiro e de seu abandono do projeto conjunto. Vem para o sul, vem para Buenos Aires, onde organizaria para o governo um Jardim Botânico e um Museu de História Natural.

No entanto, as constantes mudanças políticas jamais lhe permitirão realizar esta obra. Desiludida, abandonará mulher e enteada para perseguir outro sonho. Encontrando homens tomando chimarrão, descobre a “erva-mate” e sai em busca desta erva que considerará milagrosa. Conhece a geografia, precisa chegar às terras em que a yerba era nativa. Segue para o norte, compra uma fazenda e começa sua plantação de erva-mate. Torna-se estancieiro.

Plantando erva-mate, encontra um inimigo: o Dr. Francia, El Supremo, Ditador Perpétuo do Paraguai. Embora as terras de Aimé não ficassem no Paraná, elas foram invadidas a mando do ditador que tudo destrói e o prende em Cerrito, onde tem a liberdade de formar nova plantação e viver em paz, mas prisioneiro. Não pode deixar o Paraguai. El Supremo o mantém prisioneiro, apesar dos inúmeros pedidos de autoridades e cientistas do mundo inteiro. Em Yo, El Supremo, Augusto Roa Bastos inclui este período de prisão do cientista, inclusive o da consulta que lhe faz o ditador quando estava sem esperanças com suas inúmeras doenças.

Como todo ditador, certa manhã El Supremo acorda decidido a libertar Aimé Bonpland, mas este tem que sair do Paraguai nele deixando sua mulher e filha!

“Nenhuma autoridade, entretanto, consegue disfarçar-se da vigilância da História.”

Mais uma vez Bonpland está na estrada. Com o dinheiro que acumulou com a venda do produto das plantações de erva-mate comprara terras no Brasil (na região de São Borja) onde chegará precisamente durante a Revolução Farroupilha. Acaba construindo um hospital de campanha para atender feridos das revoluções do Brasil e da Argentina. Mas não abandona sua plantação de erva-mate. Como tinha também outras terras, estas em Corrientes, acaba se transferindo para a Estância Santa Ana, às margens do rio, para recomeçar tudo.

“Nada que é novo nos pertence. É preciso que  o tempo, em seu curso, dê às coisas um sentido, exclusivo de seu possuidor. Só depois de um ano ele considera aquelas terras como suas.”

Será na Estância Santa Ana que Avé-Lallemant, portador da homenagem que lhe envia Humboldt, o encontrará e ouvirá sua história, contada duas vezes e sem mudanças. Quando termina de ouvir pela segunda vez a narrativa:

“- Mas doutor Bonpland – diz Avé-lallemant – penso ter escurtado a mesma história.

“Foi outra. O que eu lhe disse, quando me entregou a medalha mandada por Humboldt?”

– Peso que foi: “Só um homem generoso como Humboldt pode dar esses presentes do coração”.

“Mas eu dizia com a minha alma: ‘Nunca poderei retribuir esse gesto. Esse presente me sepulta mais no meu remorso.’ O que importa, doutor, é o sentimento com que as coisas são ditas.”

– Como é isso? – Avé-Lallemant alarma-se.

“Quando lhe contei os fatos da minha vida pela primeira vez, foi pensando no que o senhor diria para o mundo e para a minha Posteridade; na segunda vez, eu contei tudo debaixo do sentimento da vergonha e do perdão. Eu precisava ser perdoado.”

É para este mergulho na alma de um homem, de um cientista, que Assis Brasil nos conduz. Bonpland, reconhecido e homenageado pelo mundo, sempre carregou – neste romance que lhe mostra a face humana – o remorso por ter preferido a paixão à ciência; a vida ao livro.  Por isso confessa

“Minha vida é demasiada. Um homem vive apenas para arrepender-se das suas infidelidades e para experimentar seu próprio declínio. Meu caro doutor Avé-Lallemant: dá-me agora um imenso sono. Já conversamos tudo o que deveríamos.”

Resta recuperar, no próprio texto, a razão do título do livro: Figura na Sombra

“E quando na Europa souberem que eu morri, muitos dirão que me julgavam morto há muitos anos. Isso acontece a quem foi uma figura na sombra. Mas viver a sombra foi minha melhor absolvição. E n ão falo apenas à sombra de Humboldt, mas à sombra do que é bom e que é belo, à sombra do amor, à sombra da vida.”

Impossível não transcrever certos enunciados. Nos idos de 1958, meu professor de Língua Portuguesa ensinou a todos nós que organizássemos um “florilégio” com dizeres. Pois aí vai o que então anotaria no meu “florilégio”, para sempre perdido ainda em 1958:

Os suicidas, por não encontrarem respostas, legam-nos as perguntas.

O viajante não vê o conjunto, mas o pormenor imediato. E, ainda, ele tudo avalia segundo seu próprio interesse e suas paixões. A imparcialidade é a menor de suas virtudes.

As responsabilidades dos velhos são sempre tremendas, pois tudo o que fizerem é sob o olhar da Morte.

… na Natureza não há reis, apenas súditos abandonados a uma vontade confusa e, no entanto, esplêndida.

A inveja e o ciúme vigiam nossos passos.

O improvável também pode ser verdadeiro…

A mente humana é um poço de esquecimentos.

Os livros têm existência material para que as ideias não se percam.

Um homem ilustrado que dispensa os livros é um homem sábio. Um erudito precisa dos livros, os sábios os escrevem.

Minhas reais descobertas são aquelas que podem ajudar as pessoas a viverem melhor, tanto do espírito como do corpo. Essa é uma forma bela de viver.

Uma Posteridade só existe quando a vida é contada para alguém.

As estrelas ignoram os destinos dos homens. As estrelas lançam os homens no esquecimento.

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Apenas um adendo: já encomendei todos os outros três livros do conjunto “Visitantes ao Sul”.

Na indústria, antes das delações, a narrativa está pronta

O jornalGGN (Nassif) e o DCM estão prestando um serviço público inestimável com a sua série de reportagens sobre a “indústria da delação premiada”, apresentando sequencialmente um conjunto de fatos que demonstram que as negociações com os delatores e as narrativas a serem por estes apresentadas não têm nada a ver com a busca da verdade, mas com a confirmação de uma narrativa previamente estabelecida pelos supostos investigadores (delegados, procuradores e juízes).

Nas salas dos procuradores, onde a costura se tece, há uma clareza meridiana: eles já sabem a verdade, já que messiânicos, e como eles têm que dar um colorido de legalidade para a cruzada da fé que os move, precisam de testemunhas (porque havendo testemunha, isto é, delator, não precisa mais nada, porque se pode condenar com base em “atos inespecíficos” em “tempos indeterminados” como mostra a sentença condenatória de Lula assinada pelo angélico Dr. Moro).

Precisa testemunhas? Vamos atrás delas… e pedem prisões preventivas para fortalecer psicologicamente as testemunhas desejadas. Se este reforço não for suficiente, ameaçam-se os familiares. Se ainda assim não surtir efeito, deixa-se o futuro delator apodrecer na prisão preventiva até que “ganhe juízo”.

Quando uma destas testemunhas resolveu se arrancar, indo para a Espanha, começou a aparecer a ponta da “indústria” desenvolvida nas salas e salões da República de Curitiba. Tacla Duran acusou explicitamente que rolava dinheiro na indústria (afinal, em que indústria não rola dinheiro?): o amigo e padrinho de casamento de Moro, o advogado Carlos Zucolotto Jr se prontificou a negociar mais vantagens pela delação de Tacla Duran, mas precisaria de um pouco de incentivo: a multa antes fixada em US$ 15 milhões seria reduzida para US$ 5 milhões, e mais um terço disto como honorários, “Mas por fora que tenho que resolver o pessoal que vai ajudar nisso”. Foi-se a primeira merda para o ventilador…

Na última reportagem GGN/DCM, focam-se as mudanças de narrativa da testemunha Glaucos da Costa Marques. Acontece que os procuradores já haviam decidido: o apartamento em São Bernardo, em frente àquele em que reside Lula, é de propriedade de Lula! Ponto. A verdade já estava estabelecida e a narrativa tinha que seguir esta verdade. Este apartamento foi alugado pela União no período em que Lula era presidente e se deslocava com frequência para São Bernardo. Era usado pelos seguranças do presidente e para reuniões. Depois que Lula deixou de ser presidente, o apartamento acabou sendo comprado por Glaucos da Costa Marques, que o alugou para a família de Lula (contrato em nome de Dona Marisa Letícia). Então lá foi Glaucos declarar: o apartamento não é meu, é de Lula conforme o script elaborado previamente, a verdade estabelecida por decreto divino. Pois não é que Lula apresentou os recibos de aluguel, mostrou que o Sr. Glaucos declarava para a Receita Federal o recebimento dos alugueis, tudo dentro da lei… Então foi preciso dizer que “os recibos eram falsos” e que teriam sido todos assinados quando Glaucos estava hospitalizado no Sírio-Libanês em São Paulo. O advogado de Lula forçara os recibos… Mas aí o Hospital declarou que o advogado jamais tinha visitado o paciente!!! Caiu a nova narrativa!!! Então exigiu o Sr. Moro os recibos originais: pois não é que eles existem e foram entregues e apensados ao processo!!! Porra, assim não dá. A verdade não pode ser descartada uma vez tenha sido afirmada pelos profetas da cruzada! De alguma forma seria necessário alterar a narrativa. Então veio o angélico determinar não uma perícia técnica nos recibos originais, mas que Glaucos fosse ouvido novamente… quer dizer, há outro script sendo preparado para, de alguma forma, salvar a “verdade” de que Lula é dono do apartamento, mas que pagava aluguel por bondade!!! Acontece que há movimentações financeiras inexplicáveis nas contas de Glaucos, pai de diretores do famoso departamento de propinas de uma das empreiteiras!!! E os depósitos eram “empréstimos” milionários que lhe faziam estes bons filhos, estes ex-diretores!!! Então Glaucos está sendo convidado a optar na nova narrativa: ou diz a verdade e implica seus filhos em “maus feitos”, ou diz que estes dinheiros todos eram de Lula. Alguém duvida de qual será a versão???

E tudo vai correndo bem na indústria, incluindo as gravações de Temer e Aécio, gerenciadas pelo MPF! Uma indústria rendosa em holofotes e mais penduricalhos…

Mas aí, finalmente, apareceu um ministro do STF, Ricardo Lewandowski, para afirmar que não cabia aos procuradores em seus gabinetes decidirem o que é da ordem e do poder judicante dos senhores juízes: somente eles podem definir penas e multas em suas sentenças…

E agora, será que o STF pretende mesmo uma pálida retomada do estado de direito? Vai sustentar a posição, ou o angélico Dr. Moro determinará que os ministros do STF se recolham a sua insignificância? 

Professor horista: o novo modelo

No próximo sábado entra em vigor o retrocesso nas relações de trabalho, a chamada Reforma Trabalhista, a temerosa. Tal como seu patrocinador, que entrará para a história como aquele que revogou a Lei Áurea, a reforma não tem apoio popular. Pesquisa encomendada pela CUT, e realizada pela Vox Populi mostra que para 67% dos entrevistados, a reforma é boa para os patrões; e para 15% deles, não é boa para ninguém!

Dentre as pérolas introduzidas pelo que alguns parlamentares e analistas da grande imprensa chamaram de “atualização” da CLT, está o trabalho intermitente. Esta possibilidade é uma das piores inovações. Só perde mesmo para o princípio de que “o acordado vale mais do que o legislado”, princípio que dispensa a existência do próprio Legislativo, que ao assinar a reforma trabalhista se desincumbiu de elaborar e aprovar leis que remetam à relação patrão/empregado. Ou seja, não precisará mais se preocupar com estas “coisas menores” para se dedicar exclusivamente às causas maiores, quer dizer, à venda de seus votos, negociada a cada novo projeto do Executivo. Isto os ocupa em tempo integral. Vai daí que é bom para eles introduzirem no direito esta excrescência de que a lei não vale se houver acordo em contrário.

A pérola do “trabalho intermitente” é bem conhecida por nossa categoria. Professores têm contratos, no serviço público, que preveem 40, 20 ou 12 horas de trabalho em suas disciplinas, e nem todas estas horas são em sala de aula, conquista demorada da categoria para ver reconhecido o trabalho que ocupa o professor fora da sala de aula.

Mas os professores das escolas particulares são contratados por hora-aula (é rara a escola que contrata por turno ou em tempo integral). E isto vai do ensino fundamental, do médio até chegar ao ensino superior. Trabalham-se tantas horas em sala de aula; recebe-se por estas tantas aulas. O contrato do próximo ano dependerá do número de matrículas, da permanência das condições econômicas, etc. Como se sabe, a classe média baixa, quando se aperta, a primeira coisa que faz é transferir seus filhos para a escola pública… e isto reduz o número de turmas, reduzido o número de turma, reduzidas serão as horas-aula, e reduzidas estas, reduzido será o salário do professor.

Este princípio do “só uso quando preciso” que nós, professores, conhecemos bem, agora se tornou modelo para contratações: a partir de sábado ou de segunda (porque os estudos dos executivos das empresas já estão prontos para serem postos em prática assim que a lei entra em vigor), muitos trabalhadores serão chamados individualmente para negociarem seus novos contratos! O pior deles será o “trabalho intermitente”. Se reunirmos a esta pérola o princípio do “acordado”, poderão ser fechados “acordos”, isto é, em situação de desemprego, o empregado “será convencido” a assinar o que não quer, acordos de trabalho intermitente por duas horas, quatro horas, ou seja lá o que for, a serem cumpridas quando o patrão chamar porque estará precisando.

Isto poderá criar situações tão absurdas quanto um trabalhador ter que estar à disposição do empregador, por contrato, no horário em que este quiser, no dia em que quiser, na semana em que quiser (se o acordo for por horas mensais). E estar à disposição significa não ter outra ocupação que não possa ser imediatamente abandonada quando soar o chamado de ‘deus’… isto é, a necessidade do empregador. Tudo por força do acordo!

O modelo do professor-horista foi, portanto, extremamente aperfeiçoado! O que já é ruim sempre pode ser piorado quando se reúnem, em nome de uma ciência que eles consideram exata, mas que nem pode ser reduzida ao positivismo da modernidade, como reconheceu Kant, porque é uma ciência política, os bruxos fazem magias e pioram, pioram, pioram. Os sustos dos professores eram relativos ao próximo ano letivo (às vezes, também há reduções de turmas no fim de um semestre). Com o aperfeiçoamento dos bruxos, o susto será constante porque a qualquer momento você poderá ser chamado para um “novo acordo”.

Considerando que também os empregadores andam com a corda no pescoço, explorados pelo capitalismo financeiro, e que tudo isso é uma transferência da conta para os mais pobres – afinal, sempre coube a eles pagar a conta, resta a pergunta:

Quem de fato sai ganhando? 

Lula, o rei Agag em Amalec, condenado pelo Senhor Juiz de todos

Já que o novo Neemias, o Sr. Dallagnol, prega em sermões assumindo que cabe a ele o papel que coube ao profeta na história sagrada, nada melhor do que uma citação bíblica para compreender o comportamento da chamada República de Curitiba:

Samuel disse a Saul: “O Senhor enviou-me para que te consagrasse rei de seu povo de Israel. Ouve agora o que diz o Senhor. Assim fala o Senhor dos exércitos: Vou pedir contas a Amalec do que ele fez a Israel, opondo-se-lhe no caminho, quando saiu do Egito. Vai, pois, fere Amalec e vota ao interdito tudo o que lhe pertence, sem nada poupar: matarás homens e mulheres, crianças e meninos de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos. (I Samuel, 15, 1-3)

Pois não é que Moro & Cia decidiram que Lula e todo o petista são o povo de Amalec! Lula deve ser Agag, o rei de Amalec… e por isso é a “joia da coroa” da Lava Jato.  

A batalha de Amalec corria bem, tudo dando certo. Bastava um ou outro delator dizer que Lula é dono disso, dono daquilo; que Lula sabe de tudo; que Lula é o “general” da quadrilha, como didaticamente ensinou aquele power point de envergonhar qualquer estudante de direito para que a verdade já estivesse estabelecida. Mesmo que a acusação de “ser proprietário do tríplex” feita por Leo Pinheiro somente viesse acontecer depois de vários depoimentos seus, e em momento oportuno: o da negociação do prêmio por delatar Lula.

Até então, nenhuma prova material era necessária à condenação pública por vazamentos seletivos enviados à mídia tradicional. O Estadão, comandante de uma das falanges da batalha contra Amalec, aplaudia e incensava Saul, o novo rei do “povo escolhido”, bem empenado e bico vistoso.

Mas eis que… noutra República, esta comandada por Rodrigo Janot, resolve gravar, através de um delator premiadíssimo, o atual ocupante dos palácios de Brasília. Embora qualquer analista de discurso ou analista de conversação saiba que o “pode tratar tudo com ele” depois dos pedidos de nomeações em órgãos de controle ou financiamento, de interesse nacional, mas também de interesse pessoal do delator, nomeado pelo Presidente o agente para lidar com o assunto, signifique endosso aos pedidos feitos pelo delator e financiador de Michel Temer; embora o “tem que manter isso aí” seria apontando por qualquer linguista – menos Ricardo Molina, naturalmente – como uma injunção, já que vinda do Presidente, para que se mantivesse a forma explícita de manter a boca de Eduardo Cunha fechada… eis que vem o Estadão, em editorial de hoje, criticar o uso de palavras de delatores como prova!!!

Claro, não valem como prova as gravações sequer as palavras que nem são do delator, mas do próprio delatado! Quem confessou crimes, quem prevaricou, quem revelou que as nomeações são trocas por moeda corrente, foi o próprio Michel Temer. Mas isso não vale como “prova material” segundo o agora democrático defensor da justiça, o Estadão. E o grande jornal entra no caminho recém descoberto pela VEJA. Nem originais conseguem ser.

Mas continuam, para Mesquitas e adjacências, valendo todas as palavras de delatores que se refiram ao povo de Amalec, isto é, aos líderes e militantes do PT! Quaisquer que sejam as palavras, sem gravação direta da voz dos delatados. Ou seja, trata-se de “fazer justiça” a alguns; trata-se de condenar sem provas a outros.

É que os Mesquitas seguem religiosamente o que diz a voz do Senhor pela boca de Samuel. Seguem religiosamente a orientação do novo Neemias, o Sr. Dallagnol; seguem religiosamente seus interesses pelas reformas que destruam qualquer pretensão do povo brasileiro de chegar, em seu país, a um estado nem sequer de Bem Estar Social, mas de alguma distribuição da renda que sempre aqueles que os Mesquitas representam abocanharam. Para conseguir isso, não importa se o presidente é um criminoso confesso segundo as gravações. Importa que ele entregue o serviço das Reformas. Depois, depois disso somente, talvez os Mesquitas comecem a apontar o caminho da cadeia para seu “líder” da estabilidade política necessária para as reformas…   

BALZAC LÊ STENDHAL

Nestes acasos da vida, veio parar em minhas mãos uma edição de 1948 de A Cartuxa de Parma (tradução de Vidal de Oliveira, Editora Globo), de Stendhal, pseudônimo de Henry Beyle. A edição abre com um estudo de Honoré de Balzac e contém ainda uma carta de Stendhal a Balzac respondendo aos comentários do grande escritor francês. Suponho que as edições posteriores da obra contenham estes mesmos textos.

É muito instrutivo ler este “Estudo sobre Henry Beyle”, que foi publicado na França em revista de estudos literários da época. Provavelmente o texto de Balzac (no livro não há data de sua publicação) é de 1838 ou 1839, já que a resposta de Stendhal é de 30 de outubro de 1840.

O estudo, extremamente elogioso, inicia-se com uma tipologia das obras literárias. Segundo Balzac, naqueles tempos, havia três correntes literárias, que ele denomina de Literatura das Imagens, Literatura das Ideias e Ecletismo literário. Obviamente não ele não quer dizer que os romances mais líricos não tenham ideias, nem que os romances mais que caracterizam a segunda corrente, “a rapidez, o movimento, a concisão, os choques, a ação, o drama, que fogem à discussão, que pouco apreciam os devaneios e que gostam dos resultados” também não contenha imagens. À terceira corrente o autor dá pouca atenção e apenas nos diz que Walter Scott satisfaria “completamente essas naturezas ecléticas”, ainda que no decorrer do estudo, o nome de Scott volte a aparecer com frequência. Diz Balzac: “Entretanto, seja qual for o gênero de onde proceda uma obra, ela não perdura na Memória Humana senão obedecendo às leis do ideal e às da Forma”.

É à literatura de ideias que ele filia Stendhal. Estaria na esteira de um Votaire. Para ele “a ideia exige um trablaho de desenvolvimento que não condiz com todos os espíritos”. No lado oposto, representado por Vitor Hugo, estariam os romances de imagens, de gosto popular.

A primeira grande comparação entre o romance A Cartuxa de Parma é com O Príncipe, de Maquiavel. Para Balzac, Stendhal “escreveu o Príncipe moderno, o romance que Maquiavel escreveria se vivesse banido da Itália no Século XIX”.

À medida que o estudo vai apresentando a obra, retomando seu enredo na corte de Parma, vão aparecendo os episódios principais de todo o romance, ambientado na corte de Ranuccio Ernesto IV (e de seu sucessor, Ranuccio Ernesto V), no pequeno reino de Parma.

A personagem forte do romance é Angelina (Gina) del Dongo, que se casa contra a vontade de seu irmão Marquês de Valserra, com um conde Pietranera, pobre e sem vintém, em Milão. Viúva, Angelina se tornará mais tarde esposa de outro conde, o Conde Sanseverina-Taxis da corte de Parma, num arranjo organizado por seu amante o Conde Mosca, uma espécie de primeiro ministro de Ernesto IV e depois de seu sucessor. Assim, Gina transfere-se de Milão para Parma onde imperará na corte. Mas Gina e seus amores não constituiriam o romance se não houvesse Fabrício, o sobrinho bem-amado da Condessa Sanseverina. Ela tudo faz por este sobrinho perseguido pela Áustria porque pertencia ao partido francês (Napoleão) e se apresentara para lutar em seu favor na batalha de Waterloo…

Por Fabrício, a condesse nutria mais do que o simples amor de tia, amor não correspondido pelo jovem que depois de muitas peripécias, enamora-se de Clélia, um general das hostes de Ernesto IV, guardião da Fortaleza em cujo presídio acabou sendo enclausurado.

Não interessa aqui tomar todo o enredo do romance – isto fica para um registro posterior. O que é preciso salientar é o estudo de Balzac, que vai retomando este enredo e seus personagens, tecendo comentários elogiosos à sua construção por Stendhal, o “autor que tudo inventou, tudo desenredou”, obviamente com lastros na história do reino de Parma. A escolha desse ambiente, de uma pequena corte, para o desenrolar dos amores de Gina, do amante Conde Mosca (posteriormente seu marido quando enviuvou) e de Fabrício, passando pelos próprios príncipes que também se enamoram por Gina, esta escolha foi proposital como diz na carta a Balzac o próprio Stendhal: “a Chartreuse (Cartuxa) não se podia referir a um grande Estado como a França, a Espanha, Viena, por causa dos detalhes da administração”. E como o autor diz, “procuro narrar com verdade e clareza o que se passa em meu coração. Só vejo uma regra: ser claro”, seria necessário para uma Literatura de Ideias tem inteiro domínio do modo de funcionamento da corte e da administração do reino.

A opinião de Balzac sobre o romance pode ser sintetizada neste longo parágrafo:

Essa grande obra não pôde ser concebida e executada senão por um homem de cinquenta anos, em pleno vigor dos anos e na maturidade de todos os seus talentos. Percebe-se a perfeição em tudo. O papel do príncipe está traçado com mão de mestre, e é, como já lhes disse, o Príncipe. Concebemo-lo admiravelmente como homem e como soberano. Se esse homem estivesse à frente do império russo, seria capaz de conduzi-lo, seria grande; o homem, porém, esse permaneceria o que é, suscetível de vaidade, de ciúme, de paixão. No século XVII, em Versalhes, ele seria Luiz XIV e se vingaria da duquesa, como Luiz XIV de Fouquet. A crítica nada pode censurar tanto ao maior como aomenor dos personagens; todos são o que deviam ser. Aí está a vida e sobretudo a vida das cortes, não caricaturada como Hoffmann tentou fazê-lo, mas descrita séria e maliciosamente. Enfim, este livro explica admiravelmente tudo o que a camarilha de Luiz XIII fazia Richelieu sofrer.

Balzac também apresenta duas críticas à obra de Stendhal: inicialmente à estrutura da própria obra. Fabrício é o herói; e sendo a história dele a ser contada – afinal o próprio título do romance remete ao fim de Fabrício, que abandona o arcebispado de Parma e recolhe-se à Cartuxa, pesaroso pela perda da amante, diz o crítico que o personagem deveria ser melhor construído, revendo todo o esquema geral do romance dando  a Fabrício realmente o papel preponderante; em segundo lugar, critica o estilo, que toma como o arranjo das palavras na frase, mas o reduz de fato à crítica de erros gramaticais de Stendhal.

A segunda crítica perde por completo o sentido para quem lê Stendhal na tradução e por isso não posso comentar; quando à primeira, relativamente a Fabrício, parece-me que as primeiras 150 páginas vão apontando para um “romance de formação”, passando Fabrício pelas “provas” desta formação. Se a emergência forte da Condessa, sua tia e sua protetora, aparece suplantando o próprio herói, não dá para esquecer que esta age em função dele e para ele. Um herói fraco, às vezes infantil, com que Stendhal talvez quisesse retratar um pouco a juventude “aristocrática” sem herança, abriu espaço para uma personagem mais forte que passa dominar a narrativa. Na carta-resposta, Stendhal confessa que abomina um plano totalmente pré-dado e revela que ao narrar a narrativa vai se fazendo, vai se impondo e todo o projeto prévio sofre deste modo de elaborar seus romances.

Por fim, chamaram minha atenção alguns elementos deste estudo (e da carta resposta de Stendhal):

  1. Ao falar sobre A Cartuxa de Parma, Balzac remete a tantas obras, a tantos personagens, a tantos autores que me lembra o que me disse um dia uma militante da crítica literária: a esta cabe o papel de situar cada obra no contexto das demais obras literárias. A título de curiosidade, fiz um levantamento ligeiro dos romances referidos: Notre-Dame, Manon de Lescaut, A profissão de fé do vigário saboiardo, Cândido, O diálogo de Sila e de Eucrate, A grandeza e a decadência dos romanos, As provinciais, Gil Blas, Corsário, Puritanos, O príncipe, Atala, Le lépreux de la vallée d’Aoste… O número de autores citados é muito maior.
  2. Como grande analista da burguesia (e defensor da aristocracia), Balzac não esconde certa misoginia, compartilhada por Stendhal, que se desvelam em passagens como

“O escritor e o pintor serão sempre fieis a seu gênio, mesmo em presença do cadafalso. Isso não existe na mulher. O universo é o estribo de sua paixão. Por isso a mulher é maior e mais bela do que o homem, nesse particular. A Mulher é a Paixão, o Homem é a Ação. Se assim não fosse, o Homem não adoraria a Mulher.”

“Uma mulher de quarenta anos não é mais alguma coisa senão para os homens que a amaram na sua mocidade”(reflexão da personagem Duquesa Sanseverina).

“As mulheres não têm senão um pensamento: o de achar um meio de serem presentadas com um chapéu de França pelo marido.” (carta de Stendhal a Balzac referindo-se ao ambiente vivido em Civita-Vecchia, onde escreveu A Cartuxa de Parma).

  1. Outras passagens que merecem destaque:
  2. 1.Sobre a monofonia dos diálogos de Vitor HJugo: “O diálogo de M. Hugo é por demais sua própria palavra, não se transforma suficientemente, mete-se no seu personagem, ao invés de tornar-se o personagem.”
  3. 2.“Os grandes políticos afinal de contas não são mais do que equilibristas que, por falta de atenção, veem esboroarem-se seus mais belos edifícios.!
  4. 3.“Em todos os misteres, os artistas têm um amor-próprio invencível, um sentimento da arte, uma consciência das coisas que é indelével no homem. Não se corrompe, não se compra nunca essa consciência. O ator que mais mal deseje a seu teatro e a um autor, jamais representará mal o seu papel por isso.”
  5. 4.“O amante pensa com mais frequência em chegar junto à amante que o marido em guardar a esposa; o prisioneiro pensa mais vezes em fugir do que o carcereiro em fechar suas portas; portanto, apesar dos obstáculos, amante e prisioneiro devem alcançar seus fins.”(reflexão do personagem Fábio Conti, governador e guardião da Fortaleza)
  6. 5.“O ancião apaixonado é sublime!”
  7. 6.“O Sentimento é igual ao Talento. Sentir é o rival de Compreender, como Agir é o antagonismo de Pensar.”

Para mim, o interessante deste estudo de Balzac ao ler Stendhal, é a demonstração de que um escritor, para sê-lo, é um leitor. Não o fosse, não haveria tantas referências a autores, obras e personagens (ficcionais ou históricos). Ao mesmo tempo, nesta corrente que Balzac chamou de Literatura das Ideias, parece haver um compromisso também com a verdade, com o pensamento, “um amor exagerado pela lógica” (diz Stendhal), o desejo de ser claro e conciso (Stendhal diz que “Enquanto compunha a Chartreuse, para por-me no tom eu lia todas as manhãs duas ou três páginas do Código Civil, a fim de ser sempre natural; não quero, por meios artificiais, fascinar a alma do leitor.”).