Transcrevo aqui texto da conferência proferida em 28.01.2016, no V SIELP, na Universidade do Minho, Braga (Portugal)
ATIVIDADES EPILINGUÍSTICAS NO ENSINO DA LÍNGUA MATERNA[2]
Em busca da correção formal (estritamente gramatical), é esquecida a tarefa de educar a individualidade discursiva dos alunos. Os professores temem a audácia discursiva dos seus estudantes e às vezes simplesmente recomendam que não abandonem os lugares-comuns linguísticos ‘para não cometer erros’. (Mikhail M. Bakhtin)
Introdução
Nos já muitos anos de militância acadêmica e política, sempre com foco no ensino escolar de Língua Portuguesa para os falantes desta língua, que talvez seja somente metaforicamente nossa língua materna (porque nossa primeira língua, aquela do choro, dos gestos, dos olhares com singularidades próprias no entorno de nossos berços, nós a perdemos definitivamente), no chamado ensino da língua materna, tenho defendido desde os inícios dos anos 1980 que as concepções de linguagem é que embasam o trabalho pedagógico que fazemos no ensino de qualquer das facetas do uso ou da descrição de uma língua. Enquanto esta concepção não for assumida como própria, qualquer que ela seja – muito embora eu defenda uma concepção particular – as atividades de ensino não serão geridas pelo professor, mas repetidas por ele como uma rotina, sem construir uma prática verdadeira porque seu passado de ontem não ilumina o futuro, e este sempre ficará dependendo de orientações que lhe venham de fora, quer na forma de livros didáticos, quer na forma de exercícios e aulas disponíveis em portais a que acessa não para construir sua aula, mas para executar uma aula de forma automática e não autônoma. O que não provém de si, mas é dado de fora sem internalização dos princípios e concepções que orientam o fazer do professor, faz deste um eterno dependente de novas orientações, de novos exercícios, e novas aulas prontas a serem “executadas”, sem jamais ministrá-las com assinatura própria, com autoria.
Neste círculo vicioso, em que a dependência é continuamente alimentada, aumentando-a e ao mesmo tempo justificando a multiplicação dos produtos prontos para cada aula, sobre cada tema – desconhecendo os sujeitos que compõem a sala de aula – jamais se romperão os elos da produção e consumo, ruptura necessária para aqueles que não compactuam com a concepção da educação como mercado e os conhecimentos e competências como mercadorias que se compram e vendem no atacado dos beneficiados pelos programas ao estilo do Programa Nacional do Livro Didático, e no varejo das salas de aulas pouco atrativas porque não encarnadas por professores e alunos.
Obviamente, não é apenas a concepção de linguagem que está em jogo: uma concepção de educação e uma concepção de sociedade devem se articular de forma coerente com a concepção de linguagem. Não adianta fazer referências a Bakhtin, e ao mesmo tempo agir discricionariamente, com laivos de racismo, olhando a seus alunos como incapazes de aprender, como inferiores, não lhes descortinando qualquer horizonte de possibilidade que os inclua no mundo da escrita de forma ativa, como autores tanto de suas leituras quanto de seus textos. Hoje, que as condições de circulação de textos se modificaram graças à internet, ser autor publicado se tornou possível. Se na sociedade burguesa defendemos a liberdade de expressão, hoje podemos defender o direito à expressão já que os meios para fazer a expressão circular se alteraram e não são somente os proprietários dos meios de impressão que definem que textos vão circular[4]. Neste contexto começam a vir à luz inúmeras experiências realizadas em sala de aula, às vezes às escondidas, em silêncio. E também se expressam vontades de encontrar outros caminhos para a ação em sala de aula. Professores, insatisfeitos e inquietos com os resultados de seu trabalho, queriam propostas, respostas a suas indagações. Um diálogo frutífero estava em andamento e quando secretarias começam a elaborar suas propostas curriculares fazem-no contando com a participação não só de assessores universitários, mas, sobretudo, com a presença de professores que procediam do chão da escola como representantes de seus colegas. As elaborações, salvo exceções, se faziam num vai-e-vem entre a secretaria e as escolas que liam as primeiras versões e apresentavam sugestões e exigiam alterações. Práticas e perspectivas teóricas dialogavam tentando elaborar propostas que, não ficando na rotina da escola, apontavam caminhos possíveis para o ensino das diferentes disciplinas do currículo escolar.
Este modus operandi não se restringiu apenas à elaboração dos planos curriculares estaduais e de algumas grandes cidades. Foi assim, por exemplo, a grande discussão da proposta da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação elaborada com a participação de inúmeras entidades da sociedade civil, depois engavetada e substituída pelo então ministro Paulo Renato Souza por uma proposta de gabinete aparentemente elaborada por Darcy Ribeiro e enviada como projeto de lei como se fosse uma homenagem a este educador brasileiro.
A nossa pouca experiência democrática associada à urgência dos problemas a serem resolvidos e à pretensão de condensar o processo histórico de mudança social em passos de curta duração (como passes de mágica ou como milagres de magos) encerram este tempo vivido sob o signo da participação popular, reemergindo no cenário brasileiro um novo conjunto de políticos “competentes, eficientes, capazes e sábios” que poderiam concretizar as mudanças com a rapidez com que tinham tido sucesso no plano econômico (com a implantação da nova moeda, o real, ‘esquecendo’ por completo que a estabilização da moeda que ocorre então em vários países era uma necessidade do processo galopante da globalização). Encerra-se o período da participação, que exige ‘desperdício de tempo’ e por isso não é eficiente. Os técnicos, os especialistas, os consultores competentes trazem as respostas: basta agrupá-los. E em lugar da participação, poderia haver a consulta àqueles especialistas que não estavam no grupo de assessores[6] definindo metas, objetivos, modos de gestão, índices desejados etc. etc. Inicia-se a implantação verticalizada do novo como exigência e não como opção abraçada pelos verdadeiros agentes educativos. As avaliações de larga escala, obrigatórias e já agora com consequências até mesmo na renda de professores e gestores[8]. Treinar para responder eleva os índices e dão aparente sucesso às inúmeras consultorias prestadas aos diferentes sistemas de ensino. Surgem as empresas de consultorias, mas também os centros e grupos universitários que se caracterizam como pesquisadores-consultores. No entanto, a manutenção destes índices de sucesso e seu crescimento não se mantêm no longo prazo, o que exige novas consultorias num círculo vicioso (de consultores bem remunerados)[10] desvela este deslocamento ocorrido e até hoje são frequentes as questões formuladas pelos professores: “como ensinar a gramática através dos textos?”. Os chamados exercícios de leitura e interpretação, apresentados nos livros didáticos na forma de um conjunto de perguntas, independentemente da análise que se possa fazer destas perguntas, mostram que a compreensão de um texto já não era dada como evidente, natural, mas que resultava de um trabalho e como tal demandava a intervenção didática. Em outras palavras, era necessário ensinar a interpretar um texto. Certamente as perguntas formuladas dirigiam as leituras, superficiais ou não, mas a entrada do texto para dentro da sala de aula, não mais como uma mera superfície textual em que localizar exemplos, mas como objeto de reflexão se constituiu num considerável avanço na didática da língua materna.
Momentos posteriores, agora sob a inspiração da linguística da enunciação e dos estudos do discurso, radicalizaram um pouco mais esta perspectiva, tornando o texto ainda mais central no processo de ensino e aprendizagem, com um deslocamento considerável: tratava-se agora de visar muito mais a aprendizagem da língua do que o ensino da língua. Por isso o uso da língua[12].
Considerando que o texto não é produto mecânico de aplicação de regras; que sua produção demanda muito mais do que o conhecimento da própria língua e não requer absolutamente o conhecimento das descrições da língua para sua elaboração, o processo de ensino se viu corroído em suas seguranças: para haver o que ensinar há que ter o que ensinar definido, fixado e distribuído em diferentes graus (em geral homeopáticos, mas isso pouco importa).
A questão óbvia que emerge do deslocamento para o texto é relativa ao capital escolar: os objetos de ensino definidos e buscados nos produtos da atividade objetivante do analista são substituídos por um capital outro, o capital cultural, valorizando os tateios do aprender e não as certezas do ensinar, e, sobretudo, tornando ainda mais complexo este processo pelo reconhecimento das variedades de capitais culturais disponíveis numa sociedade, expressos também por variedades linguísticas que a escola não valoriza.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais tornam oficial esta perspectiva que centra o processo de ensino/aprendizagem no texto/discurso, mas produz um deslocamento metodológico essencial: em lugar de práticas de leitura, produção e reflexão sobre os recursos linguísticos mobilizados e mobilizáveis nestes processos de uso da língua (leitura e escrita), passa-se a dar ênfase aos gêneros do discurso e às esferas de comunicação social em que estes gêneros circulam. De um ensino fundado em práticas, passa-se a ter um objeto de ensino – o gênero, suas características, seu estilo, seus temas, sua esfera de circulação. Leem-se textos no gênero em estudo e pede-se a produção do aluno dentro deste gênero, independemente de um projeto de produção que tinha como horizonte a autoria. Volta-se a produzir textos como um exercício, e não como uma prática mais ou menos equivalente aos modos de funcionamento da linguagem fora dos bancos escolares.
Certamente encontramos neste documento um avanço em relação ao ensino, então chamado de tradicional. Mas há um retrocesso em relação à mudança das práticas aos objetos de estudos. E a necessidade deste objeto não variado, mais ou menos delimitado segundo os anos escolares, foi uma necessidade do processo de avaliação de larga escala.
Desta forma, encontrando um objeto de ensino, o espírito normativo reencontra sua tranquilidade, ampliando sua extensão para além do sistema linguístico a que se reduziu a língua no ensino do passado, para incluir também as enunciações nas fórmulas da composição, pré-definidos os temas e os estilos. Nada poderia ser mais útil ao encarceramento das práticas. Nada poderia ser mais útil ao ensino descompromissado como o futuro, com o devir, para fazer repetir o já sabido e fixado pela atividade objetivante do analista, agora aquele que incorpora enunciação e discurso. Nada poderia ser menos bakhtiniano do que esta redução do conceito de gênero sem gênesis, já que as esferas de atividades ‘didaticamente transpostas’ passam a ser apenas ‘práticas sociais de referência’, já que nelas não estão incluídos os alunos, a não ser como sujeitos ficcionais de uma seqüência didática![14].
2. Atividades epilinguísticas no ensino
Quando se propunha uma “prática de análise linguística”, visava-se referir a um conjunto de atividades que tomam uma das características da linguagem como seu objeto: o fato de ela pode remeter a si própria, ou seja, com a linguagem não só falamos sobre o mundo ou sobre nossa relação com ele e com os outros, mas também falamos sobre como falamos.
Estas atividades estão presentes nos processo interlocutivos e são neles detectáveis: uma paráfrase, uma repetição, uma explicação sobre o que se disse, os processos de negociação de sentidos são fenômenos que exemplificam o funcionamento do epilinguismo. Este tipo de atividades aparece bastante cedo entre os falantes: mais ou menos entre os 4 e 5 anos, as crianças fazem muito mais do que perceber a relação dos signos com as coisas; elas brincam com o sistema da língua, elaborando rimas e explorando a sonoridade das palavras, dizendo a mesma coisa de outro modo, as autocorreções, as reelaborações, perguntando e explicando para si mesmas o que ouvem. Podemos caracterizar as atividades epilinguisticas como atividades que tomando as próprias expressões como objeto, suspendem o tratamento do tema da conversação ou do texto para refletir sobre os recursos expressivos postos em funcionamento.
A passagem de Bakhtin (2013) que serve de entrada para este texto, retirada de nota dos editores russos do artigo “Questões de estilística no ensino da língua”[16]. Tratava-se de examinar resultados de uma destas provas de avaliação promovidas pelos sistemas de ensino. No caso, uma prova aplicada aos alunos pernambucanos, cujos escores haviam sido muito baixos. A prova era extensa para o nível de escolaridade a que se destinava: duas dezenas de perguntas, e ao final um excerto da obra de Érico Veríssimo – Clarice – em que a personagem contava uma de suas travessuras de infância: comer doces das compotas da avó. Após o texto vinha a demanda dos examinadores: como toda criança, você também fez suas travessuras, narre uma delas.
Destaco aqui algumas das respostas que mais chamaram nossa atenção, mas que foram avaliadas com nota zero porque não atendiam ao que foi demandado pela pergunta:
- Eu sou evangélica e evangélico não faz travessuras.
- Eu fiz muitas travessuras, mas não sou bobo, não vou contar nenhuma.
- Eu estava na calçada e tinha muito movimento de carros. Não pude fazer a travessura da rua.
Os enunciados proferidos pelos alunos dialogavam seriamente com a ordem dada, quando se esperava apenas que executassem a ordem e mostrassem que dominavam um gênero de discurso – o narrativo. Das respostas dadas não se pode deduzir que estas crianças não saibam construir uma narrativa com personagens, espaços, tempos, ações etc. Nem que não dominam este gênero na forma escrita (porque oralmente é mais ou menos óbvio que narram). A nota atribuída, no entanto, é zero e as conclusões apressadas são aquelas que atribuem desconhecimento ao aluno, como faz a imprensa toda vez que temos divulgação de dados de provas deste estilo: atribui-se uma falta (um não saber) sem considerar absolutamente nada das condições discursivas das respostas dadas.
Nestes três exemplos os enunciadores respondem discursivamente ao demandado, não obedecendo à demanda feita. O primeiro transmite uma informação que justifica não ter o que contar; o segundo desconfia da honestidade da demanda – afinal, se toda travessura pode levar a um castigo, quem lhe garante que ao contar uma das suas (e portanto confessar uma falta) não será dedurado pelo leitor desconhecido?; o terceiro, por fim, faz uma curta narrativa, mas mostra que o termo “travessura” não faz parte de seu vocabulário, e por isso constroi-lhe um sentido, aliás um sentido construído com base numa análise morfológica que toma o radical da palavra em consideração – através, atravessar, travessura têm o mesmo radical. Que é uma “travessura” se não atravessar limites dados?
Nada destas considerações de ordem dialógico-discursivas são levadas em conta quando simplesmente não se lê o que o estudante escreve, mas se busca no que escreve aquilo que se quer ler. E então as respostas ficam incompreensíveis porque o próprio avaliador não tem qualquer autonomia para perceber sentidos, e lê como autômato, como máquina, que não quer ler/ouvir o que não espera. E muitos zeros são assim distribuídos…
Consideremos agora um exemplo didático, que usei várias vezes em sala de aula. Trata-se de narrativa curta, de fato dos tempos de minha infância.
Éramos muitos em casa. As tarefas eram distribuídas. Um lavava a louça; outro secava; outro retirava e mesa e guardava a louça limpa e seca; outro levava os restos de comida para o cachorro, e outro levava os restos de saladas para as galinhas, O galinheiro tinha cerca alta e um portão. Coube-me levar os restos ao galinheiro. Tinha duas opções: abrir o portão e jogar tudo lá dentro (com o risco de alguma galinha escapar) ou subir numa caixa e jogar por cima da cerca. Fz isto, mas o prato me escapou das mãos e caiu no chão. Quando retornei, a mãe perguntou pelo prato, e respondi:
– O prato quebrou.
Queria aqui explicar que um enunciado faz um recorte de uma cena no mundo para apresentá-lo ao outro, mas esta apresentação não se faz sem que nela interfiram os fenômenos típicos da enunciação, incluídos aí os objetivos do falante. Neste caso, “o prato quebrou” orienta-se pelo interesse do locutor em não se incriminar. Seria totalmente diverso se dissesse:
– Eu quebrei o prato.
– Eu derrubei o prato e ele quebrou.
A escolha de uma ou outra expressão tem efeitos discursivos distintos, daí não ser possível simplesmente tratá-las como sinônimas. Uma análise apenas sintática, com base numa gramática de casos, em que o complemento do verbo (em “Eu quebrei o prato”) se torna sujeito do verbo (em “O prato quebrou”), esconderia que os processos enunciativos se deixam dirigir por aquilo que não é enunciado, até mesmo numa estrutura sintática simples. Reconstruir a cena, como ouvinte/leitor, é sempre um modo de descobrir que elementos podem ter sido deixados de lado, ou na escrita literária, verificar que pormenores geralmente desconsiderados tornam-se fundamentais para mostrar até mesmo o estado de espírito de uma personagem, a angústia ou alegria que vive. A título de exemplo, tomo pequena passagem de um romance de Erich Maria Remarque (1941):
Kern dirigia-se vagarosamente ao Correio Central. Sentia-se cansado. Não dormira quase, durante as últimas três noites. Ruth já deveria estar aí, há três dias. Durante todo esse tempo não conseguira notícias dela, nem uma carta. Procurava se tranquilizar resolutamente, atribuindo isso a alguma causa trivial, e imaginava mil explicações. Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca. Sentia-se estranhamente entorpecido. O barulho da rua penetrava atavés de seu pesar, como vindo de uma grande distância, e ele andava tal como um autômato, pondo maquinalmente um pé depois do outro.
Demorou algum tempo para identificar um casaco azul. Parou. “É algum casaco azul qualquer, pensou. É algum dos cem casacos azuis que me têm andando enlouquecendo, esta semana”. Desviou o olhar, depois fitou novamente. Alguns carteiros, e uma mulher gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista. Susteve a respiração e notou que estava tremendo. O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras vermelhas, chapéus, bicicletas, embrulhos e gente que constantemtne lhe atravancava o caminho. Pôs-se a andar cautelo, como se estivesse sobre um fio de arame, com medo de cair a qualquer momento. E mesmo quando Ruth se voltou e ele lhe pôde ver o rosto, supôs ainda que estava sendo vítima de um truque diabólico da sua imaginação. Só depois que o rosto dela se iluminou foi que correu para a frente, para abraçá-la. (Remarque, 1941, p.268-269)
Duas passagens chamam atenção pelos detalhes:
- Alguns carteiros, e uma mulher gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista.
- O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras vermelhas, chapéus, bicicletas, embrulhos e gente que constantemtne lhe atravancava o caminho.
Note-se a diferença entre (1) e (1*), e entre (2) e (2*):
(1*) Alguns carteiros e uma mulher lhe boqueavam a vista.
(2*) O casaco azul movimentou-se por entre as pessoas e as bicicletas que atravancavam o caminho.
Estes detalhes mobilizam recursos linguísticos que chamam o leitor para o pormenor, ao mesmo tempo que demonstram um personagem angustiado que procura alguém, que já se decepcionou por não ter encontrado e que agora renova, na angústia, as esperanças de um encontro que por fim acontece.
Há outro enunciado, na mesma passagem, que chama a atenção face à sintaxe de colocação posta a funcionar para produzir efeitos de sentido como se uma voz dissesse algo, e logo depois esta mesma voz, como se fosse uma segunda voz, acrescenta um desespero ainda maior. Veja-se a diferença entre o que escreve o romancista (ou a tradutora, neste caso) e o uso mais comum da colocação dos dois advérbios no enunciado:
- Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca.
(3*) Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria nunca mais.
No primeiro enunciado, há que fazer uma pausa, um gesto, depois de “viria mais” para em outro tom dizer “nunca”, enquanto que em (3*) esta pausa não existe e perde-se o efeito de jogo de tons, de vozes.
Análises que partem da concepção dialógica da linguagem e que a tomam como uma atividade constitutiva das línguas em seu sentido sociolinguístico, das consciências dos sujeitos falantes (“a palavra concebe o seu objeto”), permitem que se compreendam mais amplamente os recursos linguísticos mobilizados na construção de qualquer enunciado, de modo que se pode assim “revisar as formas da língua em sua compreensão linguística comum” mesmo que estas compreensões sejam feitas de forma inicialmente intuitiva.
Bakhtin (2013), nas indicações metodológicas para o ensino do período composto por subordinação sem conjunção, apresenta análises estilísticas partindo da intuição de seus alunos sobre o uso de uma ou outra forma disponível no sistema, defendendo o ponto de vista de que
… no estudo das formas sintáticas paralelas e comutativas, isto é, quando o falante ou o escrito tem a possibilidade de esclher entre duas ou mais formas sintáticas igualmente corretas do ponto de vista gramatical. Nesses casos, a escolha é determinada não pela gramática, mas or considerações puramente estilísticas, isto é, pela eficácia representacional e expressiva dessas formas. (Bakhtinm 2013, p. 25)
Penso que uma proposta de ensino da língua lastreada nas possibilidades que o sistema da língua oferece, cuja exploração pelo professor depende crucialmente de seus conhecimentos sobre a língua mas também de seu amor à língua, de sua capacidade de explorar o sistema de forma mais aberta do que seguir um roteiro de conteúdos a serem transmitidos (sejam estes de conhecimentos descritivos da língua ou dos gêneros discursivos), apoiando-se nas atividades epilinguísticas, estatui uma diferença entre saber uma língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados, percebendo as diferenças entre uma forma de expressão e outra. Outra coisa é saber analisar uma língua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se apresentam suas características estruturais e de uso (Geraldi, 1984:, p.47).
Um ensino assim concebido, em que a uniformidade não é a regra, em que a imaginação pode orientar mais do que a prescrição, em que a centralidade do texto não produza a fixidez de seus sentidos, mas que mantenha seus perigos porque abre portas às compreensões, seria um ensino de língua materna que ultrapassaria o estado prosaico para permitir a chegado ao cotidiano da sala de aula do estado poético.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas – com lascívia de hera.
Sobre no tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.
(Manoel de Barros. Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho. 11. O guardador de Águas)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALSAMO, L. M. A avaliação da escola: um estudo sobre os sentidos produzidos nos sujeitos protagonistas de uma realidade escolar. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba, Sorocaba, 2014.
Bakhtin, Mikhail M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução, posfácio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo : Editora 34, 2013.
Barros, Manoel de. O guardador de Águas. São Paulo : Art Editora, 1989.
Geraldi, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.
Geraldi, João Wanderley (org) O texto na sala de aula. Cascavel : Assoeste, 1984.
Remarque, Erich Maria. Náufragos. Tradução de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro : José Olympio Editora, s/data (original de 1941).
[2] Professor Titular aposentado da Unicamp. Texto elaborado para exposição no V SIELP – Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa. Universidade do Minho, 27-29 de janeiro de 2016. jwgeraldi@yahoo.com.br
[4] Pessoalmente, participei de eventos com mais de 4.000 participantes, em Belo Horizonte (promovido pela UTE), em São Paulo (promovido pela Secretaria Estadual de Educação), em Porto Alegre (promovido pela Secretaria Municipal de Educação). Eventos, cursos, conferências (de que as Conferências Brasileiras de Educação – CBE são exemplares), simpósios eram frequentes e os espaços ficavam lotados.
[6] Ainda que neste texto faça referência somente aos PCNs, listemos alguns dos programas que inundaram as escolas: PCNs em ação, Programa do Livro Didático, Portal do MEC com aulas disponíveis, portais com as provas aplicadas nas avaliações de larga escala, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), também ela produto de consultorias universitárias, de comitês de especialistas, de técnicos competentes. Seguindo o mesmo diapasão: implantação vertical, referência para os sistemas de avaliação. Imposição, enfim. Como ocorreram com os Parâmetros Curriculares Nacionais, assim que aprovada a BNCC, surgirão os programas “BNCC em ação” para tentar chegar ao chão da escola, copiando o programa “PCNs em ação”. Provavelmente os assessores e consultores, dos centros universitários e das ONGs e OSs, já estão com os projetos elaborados para apresentarem assim que saírem os novos editais que serão sugeridos por eles mesmos.
[8] Damasceno (2014) estuda uma escola de cidade do interior de São Paulo, que obteve os melhores índices e por isso se tornou modelo de gestão a ser seguido pelas demais escolas. É impressionante o quanto de treinamento ocorre na escola nos meses que antecedem a aplicação dos testes de avaliação, com simulados constantes com base nas provas anteriores. Ensina-se a responder a testes, sem qualquer preocupação com a educação. Até Diane Ravitch, a toda poderosa ex-diretor de avaliação dos EEUU já reconheceu que os testes e as avaliações (e as consequentes ‘complementações’ salariais a professores e gestores das escolas bem sucedidas) é uma aposta inadequada em que embarcou durante quase toda sua vida.
[10] Este é o título de uma coleção de livros didáticos de autoria de Magda Soares e a autora chama atenção para o fato de que a correlação entre ‘português’ e ‘textos’ se faz como se o próprio texto já não fosse em si português, ou em outros termos, como se o português fosse algo a ser ‘encontrado’ nos textos porque pairava acima deles.
[12] Entendida esta como uma reflexão sobre os recursos lingüísticos mobilizados tanto na produção quanto na leitura de textos. Isto não excluiria, por princípio, um estudo da gramática, mas o importante deixou de ser conhecer a descrição gramatical, para se dar mais ênfase à atividade do falante de refletir sobre a linguagem. O trabalho com a intuição do aluno se sobrepunha ou deveria se sobrepor ao trabalho descritivo, produto da reflexão teórica do analista.
[14] Saramago, em História do Cerco de Lisboa, aponta para esta característica da linguagem, em seu personagem revisor que ao acrescentar um “não” em um enunciado, desencadeia todo o enredo da história narrada no romance.
[16] Narro aqui uma sessão com minha ex-orientanda Profa. Lívia Suassuna, nos primeiros encontros de orientação de sua tese de doutoramento. Obviamente nada aqui é textual, pois narro de memória.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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