O cotidiano é permeado pelas mais diversas formas de interação social que, por ser considerado corriqueiro, muitas vezes é desprezado como fonte de pesquisa e dificilmente se pensa na riqueza e nas peculiaridades que possam estar presentes nessa esfera. Conversar é uma das maneiras por meio das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações estabelecidas no cotidiano e, por isso, são práticas discursivas, compreendidas como linguagem em ação. Se considerarmos a informalidade das situações em que ocorrem, as conversas representam modalidades privilegiadas para o estudo da produção de sentidos.
Se tomarmos o conceito de parole numa perspectiva de produção coletiva, veremos as conversas como algo extremamente rico e importante na arena da comunicação na vida cotidiana, que articula processos de produção em geral e esferas ideológicas. Bakhtin (1995) lista algumas situações típicas de conversas, enfatizando sua importância como prática social:
a psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espécie, e é neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criação ideológica ininterrupta: as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro e, no concerto, nas diferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência auto-referente, a regulamentação social, etc. A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da “enunciação” sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores. (BAKHTIN, 1995, p. 42)
Para Bakhtin, a forma e os estilos da enunciação ocasional são determinados pela situação e pelos integrantes mais imediatos, já “os estratos mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor” (BAKHTIN, 1995, p. 114). Assim, o trabalho com conversas pressupõe que se leve em consideração o conceito de enunciado, a tipicidade da situação e a inter-relação estabelecida entre o tempo curto da situação relacional e o contexto mais amplo de circulação das idéias.
O conceito de enunciado está inerentemente ligado ao conceito de voz (polifonia) e tem na enunciação o produto da interação entre falantes, portanto, não pode ser considerada como um ato individual estrito senso, mas de natureza social, expressa por meio de palavras e sentenças que se articulam em ações situadas. Então, a voz é entendida como ponto de vista resultante da significação e/ou ressignificação de muitas outras vozes, e o enunciado constitui-se em um dos elos de uma corrente de outros enunciados, complexamente organizados.
E se “não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 113), o sujeito, ao formular um enunciado, certamente expressará seu horizonte conceitual e sua visão de mundo resultantes de suas relações constitutivas. Não porque ele seja o princípio causador de tais relações, tampouco porque sua intenção significativa possa determinar o que ele quis dizer, mas porque há um lugar nessa enunciação que pode ser ocupado por diferentes indivíduos e que faz da significação algo multiforme.
Ainda que se considere que a enunciação tenha um autor – mesmo que seu enunciado esteja povoado de múltiplas vozes – e um interlocutor, a quem esteja sendo direcionada, haverá que considerar um duplo caminho que faz das conversas um ato dialógico. Por outro lado, também será preciso compreender qual a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito. Em qualquer uma dessas instâncias, o foco de estudo voltar-se-á para as especificidades que compõem uma conversa tanto em relação ao local de sua ocorrência, integrantes e contexto imediato da situação, quanto em relação à sua dimensão histórica que constitui não só o sujeito, mas também o acúmulo e a exterioridade do discurso.
A meu ver, utilizar conversas do cotidiano escolar como fonte de investigação significa estar em pesquisa durante todo o tempo, e quando surgem temas de interesse é necessário redobrar a atenção. Algumas situações presenciadas acabam se perdendo devido à dificuldade de registro (não registrar durante a conversa ou logo em seguida, por exemplo). Em algumas das situações, o registro é feito de memória; em outros momentos até mesmo os participantes da conversa auxiliam nas anotações; e ainda é possível registrar quando essa conversa está inserida nas aulas observadas. De todo modo, é impossível padronizar a forma de registro, já que ela acompanha o inesperado das situações do dia-a-dia.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. (Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira). São Paulo: Hucitec, 1995.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. (Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.
Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.
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