Inegavelmente nenhuma liderança se faz por decreto ou por herança. Ela se constrói na prática em qualquer área da atividade humana. Um cientista se torna líder e faz escola precisamente porque é pesquisador e trouxe alguma inovação. Um escritor jamais será referência para outros escritores se não tiver escrito livros. Suas inovações podem ou não construir escolas, mas se sua criação não tiver vínculos com um passado esquecido e não tiver renunciado à continuidade do existente no presente, ela não se constituirá como referência. Até mesmo num pelotão militar, no momento do ataque ou da defesa numa guerra, emergem lideranças que concretamente, ali durante a ação, superam as hierarquias militares. Assim é também nos movimentos sociais. Uma liderança não se impõe de fora para dentro, mas emerge dentro da ação.
Nas ocupações das escolas estão emergindo lideranças. A jovem estudante paranaense Ana Júlia enfrentou senadores e raposas da política precisamente porque se faz líder antes de se tornar uma imagem em vídeo fazendo sucesso nas redes sociais.
Obviamente, apareceram os detratores de sempre. Batedores de panelas não admitem o surgimento de lideranças que pensem o contrário do que pregam MBL, Vem-para-rua e outros menos aquinhoados com financiamentos dos Irmãos Cohen e do PSDB. E surgem duas acusações contra Ana Júlia: ser filha de militante petista e a de ter decorado o discurso que proferiu.
Qualquer um que conhece um pouco das diferenças entre a oralização do escrito e a oralidade percebe, pelas dúvidas, pelas pausas, pela busca da expressão que suspende a fala até que emerja a palavra buscada, que o discurso proferido por Ana Júlia não foi decorado a partir de um texto escrito. Mas certamente qualquer um sabe que ninguém de sã consciência, representando um movimento como o das Ocupações de Escolas iria para uma tribuna sem ter anotações, sem ter conversado com colegas, sem ter pensado o que diria. Nenhum orador fala a partir de um improviso absoluto, até porque se fora assim, não falaria. Ao levantar-se para falar, se chamado sem esperar, já elabora mentalmente um esquema de fala.
A outra crítica, de ser filha de um militante petista nem mereceria resposta! Todo mundo é filho de alguém! E muito orgulhoso deve ficar o pai de Ana Júlia ainda que discordem em alguns pontos de vista. Mostra o fato apenas a existência de diálogo dentro de uma família, o que deveria e poderia ser uma constante em todas as famílias não tivéssemos nós duas restrições que impedem este diálogo: a extrema desigualdade de condições de vida que faz muitos pais e mães encontrarem seus filhos por poucas horas durante o dia e sempre com afazeres domésticos de permeio; e na elite e classe média que a aplaude, esta figura austera e autoritária do chefe do clã, do pai que diz a verdade e o credo a ser seguido. O patriarcado e seu sucedâneo, o patrimonialismo.
Certamente esta acusação, ser filha de…, encontrou terreno fértil nas redes sociais face ao ódio indiscriminado a toda e qualquer militância social. Mas ela mereceu também críticas. Tomo emprestado um post do Facebook de Walter Caldana, a que se seguiu um debate bastante acirrado. Eis o post:
Num país onde aécio é neto de tancredo, onde eduardo é neto de arraes, onde bruno covas é neto e zuzinha é filho, onde mais da metade dos parlamentares federais são parentes de primeiro ou segundo grau de outros parlamentares ou de políticos com mandato, onde acm neto é neto, onde sarney filho é filho, onde zeca é do dirceu, onde o beto é richa, o marchezam é marchezam e onde o joão dória é júnior … recebo um post dizendo que a menina de curitiba é industriada e manipulada por que seu pai é petista! (Walter Caldana)
Tem toda razão Walter Caldana em mostrar a hereditariedade presente na política brasileira. Por que ela é possível? Porque o espírito da Casa Grande permanece como força motriz da estrutura de nossa sociedade. Os “netos” e “filhos” que se tornam deputados, senadores ou seja lá o que for – e graças ao voto – não são lideranças que emergem da prática política. São herdeiros dos cargos no patrimonialismo que nos caracteriza. Não foram forjados na luta. Foram descendentes somente. A estes se aplica um dito absolutamente falso: “quem é bom já nasce pronto”. O herdeiro nasce herdeiro. Nasce feito pelo sobrenome. Não lutará nem se fará. Ele é, não será. Um líder e um pensador se fazem na prática. Um herdeiro nasce herdeiro, ponto. E pronto.
A pergunta que se poderia fazer é sobre as razões que levam o povo a eleger estes “sobrenomes” eternos de nossa política. Há inúmeras, e uma delas provém precisamente das formas de relações entre a elite e “seus” subalternos. Em nossa sociedade jamais houve cidadania efetiva. Há subalternidade e dependência. E subalterno não tem voto independente. Elege os nomes badalados. A expressão “sorry periferia!” é talvez a fórmula síntese mais apropriada para estas relações. A periferia roda em torno do centro. A periferia está no em torno, como as mariposas rodam em torno da lâmpada. Ela se queima, mas retorna. Até morrer. E morre sempre desejando que seu filho não mais seja da periferia… Por isso, estando nela, procura a proteção dos herdeiros para produzir um herdeiro que penetre no mundo cujas portas sempre estiveram fechadas para ele. Este o sonho que vendem os herdeiros “Neto”, “Filho” ou “Junior” de nossa política.
Um líder se forja na luta. Pode fazer um nome. Terá necessariamente sucessores, não herdeiros. Somente a elite tem herdeiros. Ana Júlia não é herdeira de seu pai. É uma esperança que nasce e como esperanças de futuro é tudo que o pensamento dos herdeiros e seus sequazes não desejam, então é preciso destruir no nascedouro a víbora que poderá envenenar sua eterna arrogância.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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