As muitas cores da humanidade

Tenho somente uma sobrinha-tataraneta, uma menina sapeca que gosta muito de “cocó”, e tem sua cocó preferida que não pode sequer ser lavada, pois quando a lavam, ela a esfrega no chão para que volte a ter o mesmo cheiro…

Pois minha sobrinha-tataraneta é fruto da mistura de cores. E ela definiu com clareza meridiana sua divisão de cores: o avô e a mãe são marrons; ela, a tia e a vó são brancas e o pai é cor-de-rosa!

Vejam vocês: um pai cor-de-rosa na pele, não na roupa. E é do sexo masculino, foi menino, hoje é homem feito.

As distinções coloridas de Loreta revelam percepções mais das cores: não só o preto e branco, mas também o cor-de-rosa. E o cor-de-rosa, já havia definido outra criança nos idos dos fins dos anos 1970, é “um vermelho devagarinho”.

Ao associar as duas lembranças, temo ter tocado num limite: o cor-de-rosa das meninas se aproximando vagarosamente do vermelho… que desgraça, uma desgraça total! Avermelhar o cor-de-rosa é um desatino. Logo o rosa feminino, e logo o feminino que é mãe do azul.

Foram estas duas crianças que me levaram a lembranças de leitor. Uma passagem do argentino Ernesto Sábato (Sobre tumbas e heróis) em que se fala do começo da investigação da personagem sobre o mundo dos cegos, estes que por razões físicas não percebem o colorido da humanidade (e às vezes quando cegos não físicos, reduzem as cores a uma dicotomia de preconceitos). Para aqueles que viveram e viram e viverão e verão, a metáfora é mais-que-perfeita:

Eu caminhava, enquanto ouvia a campainha que tentava penetrar nos estratos mais profundos de minha consciência: ouvia-a, mas não a escutava. Até que, de repente, aquele som, tênue mas penetrante e obsessivo, pareceu tocar alguma zona sensível do meu eu, algum desses lugares  em que a pele do eu é finíssima e de sensibilidade anormal: e despertei sobressaltado, como ante um perigo repentino e perverso, como se na obscuridade tivesse tocado com minhas mãos a pele gelada de um réptil. Diante de mim, enigmática e dura, observando-me com todo o seu rosto, vi a cega que ali vendia bugigangas. Havia parado de tocar sua campainha; como se a tivesse movido unicamente para mim, para despertar-me de meu insensato sono, para advertir que minha existência anterior havia acabado, como uma estúpida etapa preparatória, e que agora deveria enfrentar a realidade. […]

Vigiava e estudava os cegos, no entanto.

Sempre me haviam preocupado e em várias ocasiões tive discussões sobre sua origem, hierarquia, maneira de viver e condição zoológica. Apenas começava então a esboçar a hipótese da pele fria e já havia sido insultado por cartas e de viva voz por membros das sociedades vinculadas ao mundo dos cegos. E com essa eficácia, rapidez e misteriosa informação que sempre têm as lojas e seitas secretas; essas lojas e seitas que estão invisivelmente difundidas entre os homens e que, sem que saibamos ou sem que cheguemos a suspeitar, nos vigiam permanentemente, nos perseguem, decidem nosso destino, nosso fracasso e até nossa morte. Coisa que acontece em sumo grau com a seita dos cegos, que, para maior desgraça dos incautos, tem a seu serviço homens e mulheres normais: em parte enganados pela Organização; em parte, como consequência de uma propaganda sentimentaloide e demagógica, e, por fim, em boa medida, por temos aos castigos físicos e metafísicos que recebem, segundo se murmura, os que se atrevem a indagar seus segredos.   

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.