Talvez um dia as pessoas não saibam mais o que quer dizer a expressão cobrador de ônibus. É verdade, juro!
Talvez já agora, os mais novos por certo não reconheçam que antes, coisa de 20 anos ou mais, existia uma pessoa encarregada por receber o dinheiro e liberar a catraca, depois trocar por bilhetes, e logo fiscalizar os cartões dos usuários até que ficaram apenas as catracas e os usuários vigiados por um sistema desumanizado.
Sem o seu Zé, seu Joaquim, a dona Helena, a dona Rosa, umas figuras que cumpriam suas funções entre risos e caras bravas, e que contavam suas histórias, e misturavam-se com seus passageiros, e muitas vezes ajudavam buscando para os motoristas, impossibilitados de deixar a direção e o posto, um cafezinho no bar em frente ao ponto. São memórias afetivas que a gana capitalista, ou ganância, arrancou das próximas gerações. Para tal feito, antes potencializou os perigos e os desgastes emocionais dessas profissões, não acredito em fábricas de monstros(será???), divulgou-se como nunca que existia o perigo dos assaltos aos cobradores, e que era um caminho sem volta a tecnologia, a necessidade de modernização e maior segurança para todos, e a promessa de que todos os cobradores teriam a oportunidade para ser readaptados para outras funções, e o bônus é que diminuiria os custos para os usuários. Pronto calou-se uma massa de iguais que vivem com tão pouco, ninguém falou dos lucros das empresas, tampouco da ausência humana.
Humano é outro termo em desuso por outros motivos. Cobradores de ônibus era humanos. Muitas pessoas sem instrução sobre as rotas, alinhavavam seus roteiros com os cobradores, em geral eles eram sabidos e bons de ouvido. Outras tantas pessoas melhoravam o dia com uma brincadeira ou outra do cobrador, outros ainda eram cupidos de histórias de amor de encontros fortuitos. Certo dia esqueci o dinheiro e o cobrador postergou para o outro dia o pagamento. Confiança nas pessoas não é uma moeda de troca, mas trocamos isso. Escolhemos as verdades que cabem nos nossos gostos, e confortos.
E como se fôssemos gado rodamos a catraca, em um transporte público (privado) que leva às pessoas em péssimas condições para o abatedouro diário, no giro mecânico morre a dignidade, morre a pontualidade, morre a energia. Quem acompanha meus textos nesse ponto deve estar me achando repetitiva, falando de saudade de novo, uns devem atribuir a culpa, apressadamente, sobre os meus fios brancos salteados entre os cabelos já há muito tempo pintados.
– A pressa amigos é inimiga da perfeição!
Não é saudosismo o que tenho no texto de hoje, não se apressem porque, a pressa, essa jovem nos envereda por caminhos tortuosos. O tema hoje é outro. Abandonamos os cobradores de ônibus, e agora vejo com muita velocidade e até urgência, abandonarmos os porteiros.
É a nova CLT, a crise, uma economiazinha aqui, um confortozinho ali e voilá! Arremessados no processo de desumanização das relações. Os porteiros foram engabinetados, depois precarizados, e aí viraram os reclamões, faltosos, oneradores que são das folhas de pagamentos dos serviços condominiais, e sedentos pelos cartões de entrada e saída ou mesmo acesso biométricos que vemos nas novelas, olhamos de lado e franzimos as testas para cada cochilo inoportuno depois do almoço, cada radinho de futebol ligado no jogo do time que não é o nosso e ainda que fosse: – Oras, veja!
O texto é sobre como somos permissivos com os desmontes de profissões. Como não podemos ver que famílias precisam desses empregos? e muitas vezes é subemprego mesmo. Mesmo assim, eu prefiro eles lá, até com seus olhares indiscretos pra saia curta da mocinha, para o menino que é afeminado, ou para a tia riponga que aos 40 ainda fuma seu baseado de maconha gerando reclamações dos vizinhos. Tem ainda olhar assustado sobre aquele vizinho que insiste em fazer a mulher cair todo dia e rouxear os olhos e ter olhos deprimidos. Ele conhece bem, são sabidos também. Seu condomínio não vai ficar mais chique, só vai ficar desumanizado, não há economia… alguém ou algum setor lucra com isso.
E não vou mais ter que dizer bom dia, não vou mais ter confiança em deixar a chave pra um amigo que chegaria quando eu não estou. Eu fiz a troca. A gente sempre tem escolha, poderia ser desligar o elevador em alguns horários, quem sabe instalar aquecimento solar… enfim preocupações com o futuro dos humanos.
Eu sei que muita gente esperava um texto sobre copa, sobre quem sabe outro tema mais importante, mas resolvi falar do nosso silêncio que abandona pessoas e todo um futuro.
O texto é curto, porque a paciência também é.
E a pressa é mesmo inimiga da perfeição, e estou apressada para a vida.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
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