Ontem anunciaram, para minha surpresa e alegria, que o álbum Sobrevivendo no Inferno dos Racionais Mc’s será exigido no exame de seleção da Unicamp. Unicamp, mano! Pá, pá, pá! Clap, clap, clap! É tiro e palma!
O assunto do texto de hoje era outro, já tinha até iniciado, três ou quatro parágrafos, que forçando um pouco poderia até chegar à escrita de Carolina de Jesus, outra obra que denuncia a realidade excludente e que também esta na lista para o vestibular de 2020 da instituição, mas não dá para desconsiderar esse acontecimento. Caetaneando: alguma coisa tá fora da ordem, fora da nova ordem nacional… Fã é fã, e o texto vai falar de rap sim. E isso tem muito a ver com a política de cotas e uma maior democratização/justiça no acesso à universidade, sobretudo às públicas.
Boa parte da galera que caiu nesse texto de paraquedas já vazou, então vamos trocar uma ideia mais suave na nave. Imaginar os vestibulando ouvindo que o neguinho que engatilha a pistola na boca dos playboys é um “efeito colateral que o seu sistema fez, Racionais capítulo 4 versículo 3”, é muito foda. E quem vai se preparar para a seleção já sabe que não basta ouvir as músicas, uma duas ou três vezes sem reflexão, tem que entender: “não adianta querer ser, tem que ter para trocar, o mundo é diferente da ponte pra cá” (Da ponte para cá), sejam muito benvindos a todo universo dos Racionais, que baita imersão!
Acerta a Unicamp ao se posicionar contra o fascismo, porque é isso que significa pessoas entendendo a realidade do outro, não é tudo que precisamos, mas é um grande passo, mais do que solicitar um texto bem escrito por parte dos candidatos a calouros, ao exigir essas leituras revela-se uma postura de compreensão acadêmica da profunda da diversidade cultural e social brasileira.
Se você está lendo e sentindo-se confuso, achando até… si pá: injusto? Que pena! Tem coisas que não dá para entender, né não? Linguagem suja, cheia de gírias… Gíria não, irmão! Dialeto. Aproveita e pensa aí nas questões que se colocam diariamente para os negros, desde a bonequinha branca de olhos claros com a qual se presenteia meninas negras, pense aí também na inferiorização que se impõe sobre as religiões de matriz africana quando brincando você diz que as coisas estão dando errado porque fizeram macumba para você, pense aí sobre os personagens negros e suas representações ou mesmo inexistência em novelas, cinema e música. Pense em quantos autores negros você já leu ou ao menos ouviu falar, não vale dizer que é porque os negros são importantes no esporte. Quer saber o que mais? Sobrevivendo no Inferno tem 21 anos.
É assim nas quebradas, nas favelas, nos guetos, nos beco, você que não quis ver, o menino de farol que faz você subir o vidro do carro, como se fosse apenas pra não sair o ar (e preconceito) condicionado. Sabe a turminha da escola pública que tira zero na redação, então, veja bem, veja bem… Ela não leu Dom Casmurro, não leu também Carolina de Jesus, não encontrou personagens negros durante toda uma trajetória escolar, e quando ousou trazer para a sala de aula o seu Negro Drama tomou um cale-se, muito parecido com Cálice de Chico, será?
– Não é isso, é que Negro Drama tem muito ódio, e todo mundo sabe que vivemos numa democracia racial, aqui todo mundo se respeita, temos até lei contra o racismo. – Tem que saber curtir, tem que saber lidar, em qual mentira vou acreditar?(Em qual mentira vou acreditar?)
A galera negra, ops, gangue! Não leu Kant, com sua citação sobre o homem ser aquilo que a educação faz dele, mas ele sabe que a sua cultura não está no plano de aula, a literatura que lhe apetece é chamada de marginal, a exclusão usa conteúdos selecionados a dedos brancos, ou mesmo alvejados, que falam sobre escravidão num espaço /tempo pretérito, como se e navio negreiro de Castro Alves não falasse de sua história, seus antepassados e seu presente, mas sim de outro mundo, e o camburão é oque? Porque ninguém transversaliza as senzalas nas atuais favelas: Uma bala vale por uma vida do meu povo, quantos manos iguais a mim se foram? Preto, preto, pobre, cuidado, socorro!(Rapaz comum)
Esse texto hoje está muito ruim, eu sei, e talvez a metade tenha parado no segundo parágrafo, quando eu disse que fã é fã. Felizmente chegou o dia para mim, e para os meus “eu tenho uma missão e não vou parar, meu estilo é pesado e faz tremer o chão, minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição, na queda ou na ascensão, minha atitude vai além, e tenho disposição pro mal e pro bem” não dá para não comemorar imaginando a cara de surpresa e medo, um branco pálido, até consigo visualizar é o mesmo ar de aflição de quem esconde a bolsa discretamente quando cruza na rua com os pretinhos famintos, né não? Acontece que essa discrição não é discreta, sabe o filho da empregada que não conviveu muito com a mãe e teve que crescer na marra, aquele que o patrão não chama para o aniversário do seu filho, mas depois manda um bolinho para ele se alegrar… Veja bem… Aquela blitz que só averigua os pretos, o baculejo que joga todo mundo de mão na cabeça no muro ou no chão, na escola aquela merenda ruim que não ajuda ninguém a desenvolver, a ausência fenotípica nas escolas de elite ou nos cursinhos de inglês, ou a intervenção militar que tem toque de recolher e examinam a lancheira das crianças. Veja bem, veja bem…
Todas essas coisas que aparecem normalmente nos noticiários tipo proibição de rolezinho de juventude negra e periférica, as minas que não são para casar, os corpos expostos no carnaval, os cabelos para alisar, o justiçamento com direito a amarrar no poste e espancamento, uma tatuagem na testa de jovem que rouba, a gente sente: “Minha vida não tem tanto valor, quanto seu celular, seu computador, hoje, tá difícil, não saiu o sol, hoje não tem visita, não tem futebol. (Diário de um detento). A gente preta sente: “Preciso ir até o fim, será que Deus ainda olha pra mim?… No mundão você vale o que tem, eu não podia contar com ninguém” (Estou ouvindo alguém me chamar).
A Unicamp entra numa seara perigosa, assume um novo front no enfrentamento do fascismo que ganha cada dia mais terreno, e se o odor de enxofre já ocupa parlamento, noticiários e começa a sair dos armários na academia, nada melhor do lançar mão de sobreviventes do inferno: Brown, KL Jay, Ice Rock e Blue são veteranos neste enfrentamento, e se renovam com Criolo, Emicida, Sapiência, Liniker, Iza, Ferrez, Mv Bill, Afro –X e vários outros.
O estranhamento da ocupação do hip hop nestes espaços dedicados a alta literatura é natural, porque o rap tem sido executado com muita riqueza: arranjos, letras, ritmos, rimas, conhecimento e verdade, mas até então eram mero objeto de investigação exótica do (sub)mundo negro, e parecia tudo certo que fosse assim: – até aí, mas só até aí! E agora o som dos racionais transforma-se me uma espécie de catraca invertida, será ela capaz de inverter a lógica, será? Muitas pessoas nunca foram barradas em uma porta giratória, os neguinhos já! ”A minha liberdade foi roubada, minha dignidade violentada, que nada dos manos se ligar, parar de se matar.“ (Mágico de Oz)
E em respeito aos muitos sobreviventes do inferno é preciso que eu finalize esse texto com um Salve, e palavras em tiro, apropriado ou não, ouso inverter a ordem de Brown: “Eu vou mandar um salve pra comunidade do outro lado do muro, as grades nunca vão prender nosso pensamento mano…”(Salve) e meu salve vai para o presidente Lula, ele que hoje tá aprisionado, sempre foi um sobrevivente, e essas grades nunca vão prender nosso pensamento, mano: A Unicamp é só o começo.
Salve! Lula livre!
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Amei!
Ocupa Unicamp…
Ocupemos, Unicamp, Uerj, Ufg, IF’s, USP, UNB, … Todos os lugares, é preciso resgatar a democracia, é preciso igualdade, dignidade… e muita rebeldia!
Já gostei do título! Precisávamos ler isso! A Gloria continuou o tom com o ‘Ocupa Unicamp”! O que eu preciso dizer? Esse Blog precisava disso! Parabéns Mara Emília!
Corinta,
como já disse, um elogia seu me enche a alma de afeição e me fortalece para novos textos e novos embates.
Obrigada,
Amei! O texto ta delicioso e amo todo mundo que ela citou ai, a Carolina, Liniker, Ferrez e tantos. Salve para o Sabotage! Lula Livre! Aki é Kassange é a negrada que não sabe o lugar dela, por isso ocupa todos os lugares e batendo palmas para todos que ocupam a universidade pública e vamo que vamo mano Brown!
Obrigada, que bom que você amou, o amor envolve e aquece os corações mais frios… vamos com Mano Brown, nossos anscestrais, e muitos mais e vamos juntos …