As coisas estão voltando aos seus lugares?

A discussão acerca do ensino de Língua Portuguesa (LP) tem, desde os anos 1970, apontado para o fato de que a educação brasileira carece de reformulações no modo de ensinar e na seleção dos conteúdos de ensino. Não precisamos ir muito longe para termos acesso a esse cenário, basta recorrermos ao que foi apresentado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1998. Ainda nas primeiras páginas do volume dedicado à área de LP para o terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, a crítica que se pontua é a de que o “ensino tradicional” desconsiderava a realidade e os interesses dos alunos, usava o texto como pretexto para o tratamento de aspectos gramaticais e ensinava a metalinguagem de forma descontextualizada, o que resultava em uma teoria gramatical inconsistente, voltada para o estudo de fragmentos linguísticos e para a resolução de exercícios. A preocupação em superar tais questões motivou, dentre outras coisas, a recolocação do estudo gramatical como principal objeto de ensino, já que durante muito tempo ensinar uma língua era sinônimo de ensino de gramática.

Ao ler os princípios de organização dos conteúdos e ensino de LP nos Parâmetros Curriculares Nacionais, encontramos o seguinte:

O ensino de Língua Portuguesa deve se dar num espaço em que as práticas de uso da linguagem sejam compreendidas em sua dimensão histórica e em que a necessidade de análise e sistematização teórica dos conhecimentos linguísticos decorra dessas mesmas práticas. (p. 34)

Por causa dessa perspectiva que define as práticas sociais fundamentadas na interação verbal, o texto (oral ou escrito) passa a ser tomado como unidade de sentido e de estudo, que precisa ser coerente dentro de uma dada situação discursiva. E quais os desdobramentos disso?

– A escola teria que abandonar o seu único método de ensino de gramática por ter que considerar os diferentes usos de linguagem apropriados às diferentes práticas sociais.

– Os conteúdos de ensino a serem desenvolvidos nas Práticas de Escuta, Práticas de Leitura e de Produção de textos orais e escritos precisariam ter como referência os gêneros, a partir dos quais é possível organizar, projetar o trabalho e conduzir para a Prática de análise linguística.

Resumindo, os conteúdos de Língua Portuguesa precisariam estar intimamente articulados aos usos de linguagem (gêneros) em torno de dois eixos básicos: o uso da língua oral e escrita, e a reflexão sobre a língua e a linguagem.

A proposta da Base Nacional Comum Curricular (2017) é de desdobramento dos dois eixos para cinco: oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e gramaticais e educação literária. O que ocorre é que, ao explicitar os enquadramentos de conteúdos, encontramos de forma nada discreta a recolocação do estudo gramatical como objeto de ensino e NÃO o texto. Mesmo o eixo renomeado como Conhecimentos linguísticos e gramaticais não é suficiente para marcar o lugar do estudo DA gramática na língua. Esse ‘deslizamento’ do objeto de ensino fica mais evidente quando o documento cria o paralelismo dos Objetos de Conhecimento: o lugar ocupado pelo gênero como articulador das práticas sociais e pelo uso da língua é o mesmo ocupado por tópicos como Flexões do substantivo, do adjetivo e dos verbos regulares, Modos verbais, Concordância nominal e verbal, Estrutura da frase, Oração e período e Pontuação.

Graficamente falando, a preocupação em se abordar os itens gramaticais é garantida em dois pontos do esquema da BNCC: como eixo organizador e como objeto de conhecimento.

 

Meu receio é o de que, sob a afirmação de que “é conteúdo que está na Base”, haja um retorno ao ensino de Língua Portuguesa orientado predominantemente pela perspectiva gramatical, visto que sequer conseguimos, ainda hoje, romper com a exclusividade dela.

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

 

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.