Ao revés do avesso. Leitura e formação, de Luiz Percival Leme Britto

Neste livro o autor reúne textos de um longo período de reflexão sobre a leitura: o mais antigo deles datado de 1988, e o mais recente de 2015 (ano da publicação deste livro). São quase trinta anos de dedicação ao tema da leitura e da formação de leitores. Para compor o livro, o autor revisa, reescreve e amplia os textos, dando-nos notícia de suas publicações e também de sua militância, já que muitos destes textos forma escritos para participação em eventos no Brasil e no exterior.

Não cabe aqui tentar um resumo de cada texto, o que seria inócuo. Na verdade, somente lendo cada um deles, no seu conjunto ou separadamente, debruçando-se na atitude de escuta responsiva, atenta, estudiosa e curiosa o leitor terá, efetivamente, as vantagens de compreender toda uma teoria da leitura e de uma posição pedagógica.

Prefiro aqui salientar algumas permanências em todos estes estudos:

  1. A defesa da leitura como um processo de produção de sentidos na relação entre texto/leitor, condicionado o processo às condições que fornece o próprio texto (“… o texto guarda o leque de significações possíveis – ilimitadas e definidas. Em qualquer época ou lugar, dentro das relações discursivas específicas, ninguém poderá ver elefantes invadindo uma aldeia quando de fala de baratas ocupando um apartamento.”).
  2. A defesa de que todo processo de formação não só demanda um formador, mas também uma atividade interferente deste, através do ensino, para que a formação se dê (“…Essa educação tem de ter atitude, fazendo-se propositiva sem ser autoritária, reconhecendo em cada participante suas potencialidades e limitações, fugindo dos discursos fáceis e cativantes do relativismo cultural e da adesão tranquilizante ao já conhecido”).
  3. A defesa de que é função precípua da escola o trabalho com conteúdos – o conhecimento acumulado, nossa herança cultural (“… a escola tem de ser percebida e realizada como um espaço privilegiado de reflexão e organização de conhecimentos e aprendizagens, de aprofundamento e sistematizações do conhecimento e tem de ser o lugar do pensamento desimpedido, descontextualizado, livre das determinações e demandas imediatas da vida comezinha; o lugar, enfim, em que a pessoa, reconhecendo-se no mundo e olhando para o que a cerca, imagine o que está para além do aqui e agora.”).
  4. A recusa constante da submissão ao pragmatismo, à adequação ao existente, ao imediatismo tanto da educação como um todo quanto da leitura especificamente (“E se te interpelarem, quando te virem com um livro na mão, que isso não serve para nada, responde: É, eu leio por isso mesmo… e seria bom que todo mundo também pudesse fazer assim.”).

Estas teses, entre outras, e suas implicações, constituindo um conjunto aberto de “princípios” e ao mesmo tempo de indicações de interferência formativa, são apresentadas e sustentadas em argumentos extraídos tanto dos estudos linguísticos e literários quanto dos estudos sobre a educação. Frequentemente aparece um locutor outro, a que se atribui a defesa de pontos de vista contrários, e a que toda a argumentação responde, reduzindo a fala atribuída a este locutor ora a um pragmatismo de adequação dos sujeitos ao regime, tornando-os consumidores entretidos com livros nas mãos sem qualquer vislumbre de superação do vivido [e aqui ganham relevância os programas de promoção da leitura, ainda que bem intencionados]; ora a um desleixo pedagógico com os conhecimentos científicos em benefício do sabido na vida, os saberes não sistematizados; ora a um fazer pedagógico sem ensino, lastreado apenas na ‘aprendizagem’ livre e espontânea. Teses atribuídas nem sempre correspondem às pedagogias implicitamente referidas pelo emprego de certas expressões-chaves presentes nestas posições pedagógicas. Tomemos disso um exemplo: diz o autor, refenciado em Saviani, “…a educação escolar verdadeiramente popular, emancipadora, formativa, terá como eixo conteúdos e métodos”. Aqui o modificador adverbial “verdadeiramente” [a outra voz não é voz da “verdade”] seguido de duas expressões típicas da pedagogia paulofreirena dá a entender que esta, porque leva em conta os “saberes”, deixa de lado os conhecimentos sistematizados pela ciência. Nada mais falso. Aliás, se assim fora, para que alfabetizar quem já porta saberes, se é para ficar neles? Para abrir que portas vem a alfabetização? A escolaridade?

A propósito vale retomar parte de uma epígrafe de Ítalo Calvino em Sob o sol-jaguar, em que o autor cita o Dizionario dei sinonimi, de Niccolò Tommaseo: “… sapio, para os latinos tinha o valor de sentir retamente, e portanto o sentido do italiano sapere (saber), que equivale a doutrina reta, e a predominância da sapiência sobre a ciência”.

Walter Benjamin disse que a sabedoria [sapiência] é o lado épico da verdade. E ela vem, ela advém somente quando os conhecimentos sistematizados são articulados com a percepção do contexto e com a imaginação de outros contextos sociais possíveis, entre os quais se inclui o respeito à natureza, por exemplo.

A correta crítica ao não diretivismo em educação, que no campo da leitura implicaria a escolha ‘livre’ do que ler – escolha que qualquer um sabe limitada e condicionada inclusive pelo que é acessível a grande parte dos leitores – faz imaginar que o professor, neste processo, é mera testemunha muda, surda e cega. Não conheço proposta pedagógica assim tão desleixada, para dizer o mínimo.  Até a escola de Summerhill continha delimitações de acessos que produzem uma diretividade imposta aos seus alunos. A pedagogia Freinet, também acusada de não-diretiva, em função de sua organização por ambientes de aprendizagem e suas oficinas, é tão diretiva que em cada espaço os alunos devem elaborar um projeto e cumpri-lo, sob o olhar atento e perquiridos do professor freinetiano.

Uma direção na formação do leitor como aquela defendida aqui por Luiz Percival Leme Britto aponta precisamente para a formação do “sábio”, não do repetidor da herança cultural. Esta somente faz sentido, no conjunto dos textos que formam esta coletânea, como alavanca para ir além, para o ainda não posto, para o ainda não existente. E isto somente se conquista no tempo, na necessária descontextualização do vivido prático e pragmático. Pensar a escola como este espaço é recuperar um sentido de “pedagogo” a que temos dado pouca atenção: o “pedagogo” grego conduzia a criança ao ginásio, à ágora, aos espaços onde se aprende porque nele estão formadores que sabem e ensinam. Em geral demos atenção ao “conduzir”, esquecendo que o pedagogo sai para fora do ambiente familiar, para fora da casa, que leva para além do vivido cotidiano, do comezinho da vida familiar. Na palavra “pedagogo” estão condução + ‘libertação’ do já dado, da casa, do conforto doméstico. O pedagogo leva para fora.

Ainda uma palavra sobre a radicalidade assumida particularmente no texto Máximas Impertinentes. Na luta contra uma pedagogia da facilitação, de uma pedagogia da adequação ao estabelecido, de uma pedagogia pragmática que repete o já dado, de uma pedagogia da leitura como entretenimento, o autor acaba por produzir um conjunto de máximas “impertinentes” porque mexem com o que se costuma fazer, com o que se faz. No entanto, duas destas máximas merecem reparo, porque estão em terreno contrário ao que se defende ao longo dos demais textos.

Refiro-me a máxima: A leitura não é boa nem má – leitura é leitura. E a uma segunda máxima que lhe é decorrente: A leitura não salva nem condena – A leitura é. Embora estas máximas sejam seguidas de explicitação em que o autor tenta dar os sentidos ao que a máxima condensa, não consegue escapar da metafísica própria à condensação que elabora. A tautologia “leitura é leitura”, que esquece a tese de que “ler é verbo transitivo”, segue a fórmula do catecismo, da crença, da impossibilidade da explicação, restando apenas a aceitação. A fórmula vem de “Eu sou aquele que é”… O mesmo se dá em “a leitura é” que pretende se contrapor ao “salvacionismo” pela leitura. A fórmula no catecismo aparece como “Deus é”. O inefável, o inexplicável. A leitura, como mostram todos os demais textos, não é inefável, não é inexplicável, não é auto-definida: ela sempre está no meio de um contexto de que poderá – o que não quer dizer que fará – libertar o leitor.

Por fim, uma palavra sobre o estilo destes textos. É impressionante como desde o mais antigo texto aqui presente – de 1988 – até o mais recente – de 2015 – a clareza, a pertinência do vocábulo, a construção sintática elaborada mas compreensível: um estilo assim libertado do academicismo que esconde insegurança e falta de radicalidade toma o leitor, prende e faz com que ao final de cada texto ele fique querendo mais sabendo que o autor, como disse Proust (Sobre a leitura) sempre nos dá o que tem para dar, cabendo ao leitor ir além para reconstruir com o que lhe deu o autor suas compreensões. Outro aspecto que merece destaque: o autor é um leitor que nos faz circular pela literatura que sempre vem à tona. Neste sentido, minha anotação ao final do texto que abre a coletânea (A arte de ler, a arte de viver), anotação consequência do impacto do texto foi: “Poesia! Em “estado poético”. Lembrava aqui, com “estado poético”, o que ensina Edgar Morin em Amor Poesia Sabedoria: trata-se de êxtase”, do estar muito além da prosa da vida cotidiana.

Ler este livro de Luiz Percival Leme Britto é ler sobre a leitura em estado de êxtase, levado pela mão do autor a reflexões inusitadas, a percepções outras do que se vive, à elaboração de outros projetos de atuação como professor.

Referência: Luiz Percival Leme Britto. Ao revés do avesso – Leitura e formação.
São Paulo : Pulo do Gato, 2015.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.